Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Recôncavo da Bahia and the endless images: collective body, affection and future

Recôncavo da Bahia e as imagens sem fim: corpo coletivo, afeto e futuro

Lina Cirino

USP/UFRB, Brasil

Angelita Bogado

UFRB/UFSCar, Brasil

Abstract

With the aim of expanding on our body of work (BOGADO; CIRINO, 2021) on films produced in the territory of the Recôncavo baiano, we will cross-reference the images of four short films– The Arc of Time (2019), The days with you (2021), marvin.gif Part II (2020), Heroic Dreams (2021), in the search for generating the “endless imagery”. These films bring a future to our own times by means the bodies on the scene and the body of the scene (BOGADO, et al.2020). They reflect not just an Afrofuturist language (FREITAS, BARROS, 2018), but an Afrofuturist practice. These are characters that inhabit the future and invite us, through affection, to want to build and inhabit this same dream world. This fabulatory prism, through which it may be interpreted, can provide us a political dimension of the imagery, as spaces that need to be dug, illuminated, and inhabited, so that the diversity and poetics of re-enchantment of the world may spring from them (RUFINO, 2019). This implies engendering the implied world we want to live in. From the intersection (RUFINO, 2019) of the films emerges a collective body that carries the strength, ginga, and dengo of an ancestral territory as a way to denounce and transgress the white epistemologies of a binary world.

Keywords: Cinema; Territory; Body; Afrofuturism; Affect.

Introdução

O Recôncavo da Bahia foi um dos primeiros territórios colonizados pelos portugueses. A região fica muito próxima de Salvador (que é a cidade brasileira mais antiga) e abarca mais de vinte cidades localizadas nas proximidades da Baía de Todos os Santos. Entre os séculos XVI e XIX, as capitanias hereditárias nordestinas que mais ganharam destaque na atividade açucareira foram as de Pernambuco e da Baía de Todos os Santos. A região do Recôncavo era a segunda maior produtora de açúcar do Brasil, pois além de circunstâncias geográficas favoráveis ao plantio da cana-de-açúcar, a Baía de Todos os Santos possibilitava ótimas condições de transporte hidroviário para os engenhos, além de ancadouro para os navios que transportavam o açúcar para a Europa (RODRIGUES; ROSS 2020). O açúcar1, no entanto, não foi o único produto de destaque no Recôncavo durante o período da colonização portuguesa. O tabaco, e mais especificamente o charuto, ganhou visibilidade na exportação mundial e se tornou uma relevante fonte de lucros à coroa portuguesa. O ciclo do açúcar e do tabaco demarcaram, de forma predatória e violenta, alguns séculos no Recôncavo Baiano. Essas são algumas das imagens sem fim que estão sendo combatidas pelo audiovisual por meio de uma estética anticolonial.

Tanto a exploração da cana-de-açúcar quanto a do tabaco na região do Recôncavo Baiano só foram possíveis devido à escravização de pessoas negras que vieram do continente Africano. Esse corpo-memória atravessado por violências é diverso, carrega em si séculos de um saber ancestral. Enfatizamos que, apesar do território do Recôncavo ter ganhado relevância nacional na exportação desses produtos, os exorbitantes lucros advindos desse comércio eram escoados para Portugal ou circulavam nas mãos de poucos senhores de engenho. As estratégias portuguesas para a escravização de africanos envolviam não só a exploração do trabalho, mas também o povoamento e ocupação do território brasileiro. As pessoas africanas que chegaram aqui traziam consigo, no seu corpo-memória, um legado cultural que notadamente marcou a “estética diaspórica”2 impelida à Bahia.

Cachoeira – a principal cidade do Recôncavo da Bahia – tem o maior acervo arquitetônico baiano no estilo barroco, depois da cidade de Salvador. A cidade foi tombada como Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional pelo Ministério da Cultura, em 1971 e é reconhecida pelo IPHAN como patrimônio da humanidade. Cachoeira também recebeu a alcunha de “Cidade Heróica” porque foi uma das primeiras cidades a infligir a independência do Brasil. As batalhas pela independência cultural, pelo desconfinamento da história e dos afetos oprimidos continuam sendo travadas.

As expressões culturais que emergem desse território (embora destacada a influência arquitetônica barroca) advêm, principalmente, de ressignificações das violentas relações afrodiaspóricas timidamente relatadas nos parágrafos anteriores. Apesar das proibições ou demonizações das práticas performáticas dos povos africanos e indígenas, muitos processos de restauração e resistência asseguraram a sobrevivência de uma corpora de conhecimentos múltiplos (MARTINS 2021). A maior parte dos africanos que cruzou o atlântico no período colonial vinha de sociedades em que a disseminação dos saberes não ocorria pela escrita, mas por outras vias: pelo corpo e pela voz na dinâmica do movimento.

O patrimônio imaterial da cidade de Cachoeira abarca festas populares, como a Festa da Boa Morte, a Festa D’Ajuda e a Festa de Yemanjá; grupos de Samba de Roda– Filhos do Caquende, Filhos de Nagô, Samba de Roda de Dona Dalva; as associações musicais centenárias Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana (1878) e Sociedade Orfeica Lira Ceciliana (1870); além dos inúmeros grupos de Capoeira e terreiros de Candomblé, como Lobanekun, Aganjú Didê e Asepò Erán Opé Olùwa. Manifestações culturais do mundo sensível sobrevivem, de inúmeras formas, no corpo audiovisual, sobre o qual nos debruçamos neste artigo.

O passado colonial de Cachoeira é reverberado no tempo presente, seja na cantiga de um Samba de Roda, no jogo de Capoeira ou nas festividades religiosas que compõem o complexo repertório cultural desse lugar, que é símbolo de luta e resistência. Ao mesmo tempo, Cachoeira é também local de celebração da vida – no corpo, na memória e na arte de quem se interessa desvelar essa cidade que materializa a construção de identidades individuais e coletivas históricas (QUEIROZ 2013).

Nessa perspectiva, o curso de Cinema e Audiovisual da Faculdade do Recôncavo da Bahia (UFRB), cujo campus fica localizado na cidade de Cachoeira e sediado em uma antiga fábrica de charutos, caminha atento aos contextos históricos e culturais que circundam esse território. A cidade convoca cotidianamente discentes e docentes a refletirem, juntos, a partir (e além) das circunstâncias enredadas no passado e no presente desse território, em direção ao futuro de um repertório simbólico que transcenda os traumas coloniais.

Escolhemos quatro curtas-metragens de alunos e egressos do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB para questionar estruturas racistas e coloniais que reverberam no presente, mas vão além e fabulam futuros em que existências negras implodem situações traumáticas ou violentas. Os filmes que acolhemos neste estudo são: O Arco do Tempo (2019) dirigido por Juan Rodrigues, Os dias com você (2021) de Luan Santos e Letícia Cristina, marvin.gif Part II (2020) e Heróica Dreams (2021): ambos dirigidos por Marvin Pereira. Vamos colocar as imagens deste território fílmico em cruzo. Inspiradas nas ideias de Rufino acerca das encruzilhadas (2019), trouxemos para o nosso trabalho um saber que é praticado nas margens. Do cruzamento das obras surge um corpo coletivo que carrega a força, a ginga e o dengo de um território ancestral como forma de denunciar e transgredir as epistemologias brancas de um mundo binário.

Figura 1 – A roda de imagens: corpo coletivo, afeto e futuro. Fonte: Acervo nosso.

A fabulação, muito presente nesses trabalhos, carrega uma dimensão política das imagens, que cria espaços e tempos que precisam ser habitados através de uma poética que antecipe, por meio da imaginação, o seu acontecimento. O caráter fabulatório das narrativas fílmicas está intrinsicamente associado à temporalidade. O fantasma colonial – sobre o qual tratamos na última edição da Conferência de Avanca (BOGADO; CIRINO 2021) – que ainda opera no presente da história, segue a lógica do tempo linear. Uma dimensão temporal que procura manter seu projeto de domínio, por meio de imagens hegemônicas, aprisionando os sujeitos, apartando-os da experiência e/ou confinando-os nos escombros do passado. As imagens, em cruzo, fazem circular uma outra lógica temporal. Os filmes trazem, por meio dos corpos em cena e do corpo da cena, (BOGADO; ALVES JUNIOR e DE SOUZA 2020) o futuro para o lado de cá, um futuro que começou há tempos. Concordamos com Simas e Rufino, “é fundamental enfrentar o tempo, aprisionado nas ampulhetas coloniais, com a força da invenção de outras formas de ser.” (SIMAS; RUFINO 2019, 40).

Diante desse passado marcado pelo colonialismo que decidimos contextualizar nestas linhas é que cruzamos as imagens espiralares de Juan, Luan, Letícia e Marvin. O movimento de cruzar as imagens, proposta por este trabalho, segue a lógica de uma expressão cultural que nasceu no Recôncavo da Bahia: o Samba de Roda. Datado do século XVII, trata-se de um estilo musical que combina música, dança e poesia e foi alçado, pela UNESCO, a Patrimônio Imaterial da Humanidade, em 2008. Os corpos que bailam se reúnem em um círculo, chamado de roda. No centro gravitacional da roda, um corpo dança em destaque. Após algum tempo, por meio de um movimento nomeado de umbigada3, o corpo que baila no centro convida outra pessoa para tomar o seu lugar e a aprender a coreografia por meio da observação e imitação. O Samba de Roda é um componente cultural que em si já é uma encruzilhada, por enlaçar a cultura regional com os saberes corpóreos dos povos africanos. A partir da poética do cruzo, o corpo da cena/em cena transgride o mundo binário, dando a ver outras formas de ser/saber. O método de fazer circular as imagens, neste trabalho, é inspirado no movimento da umbigada, em que uma imagem convoca a outra para o centro da roda. Entendemos que essa metodologia potencializa a aparição do corpo-memória, seus saberes, suas temporalidades e põe para circular o axé.

Assim, quando retomamos as feridas coloniais é no sentido de refletir criticamente sobre elas para nos libertarmos e imagear um futuro para além dela. Não é uma cobrança – porque essa dívida é impagável (FERREIRA, 2019) – mas um bilhete que lançamos engarrafado ao Atlântico para quem abrir e ler: estamos vivos e em ponto de ebulição.

“Toda imagem é uma súplica para o futuro”

A frase acima é a sinopse do curta-metragem marvin.gif Part II (2020), roteirizado e dirigido por Marvin Pereira. O corpo dançante de Marvin ocupa simultaneamente três espaços-tempos na tela sob o fundo preto. Se pensarmos a dimensão temporal da forma como leciona Leda Maria Martins (2002), Marvin suscita, por meio da performance espiralar, as temporalidades presente-passado-futuro. A imagem tripartida4 de marvin.gif Part II, na mesma perspectiva, convoca o Arco do Tempo (2019), de Juan Rodrigues, para dançar.

Segundo Leda (2002), no tempo espiralar, o passado pode ser um lugar cujo saber e a experiência são acumulativos. Nesse espectro, o passado habita e é habitado pelo presente e futuro. O tempo espiralar é processo que busca suplantar vazios e rupturas das culturas e dos sujeitos negros que se reinventam e dramatizam a relação pendular entre lembrança e esquecimento. A concepção espiralar não quer abolir o tempo, quer abolir a sua perspectiva linear e consecutiva que nos foi empurrada goela abaixo. 

Figura 2 – O tempo espiralar de Marvin Pereira. Fonte: marvin.gif Part II, Marvin Pereira, 2020.

Figura 3 – O tempo espiralar de Juan Rodrigues. Fonte: Arco do tempo, Juan Rodrigues, 2019.

Marvin e Juan usam os braços para incitar o vício da imaginação de uma linha temporal que não existe: ela é uma invenção da História branca. Enquanto o corpo de Marvin parece querer romper o quadrado sangrento que lhe cerca, Juan puxa uma corda imaginária para conectar temporalidades que habitam as expectativas alheias e os desejos subjetivos de seu corpo negro. No centro, o Juan sem camisa trajando uma calça marrom que ativa memórias da colonialidade ora é puxado pelo Juan que performa a masculinidade (vestindo camisa e bermuda na cor vermelha), ora é puxado pelo Juan que performa a travesti (usando um vestido vermelho com detalhes dourados na manga). A imagem parida no entrelugar, a um só tempo, engole o continuum da história e o limite dicotômico de gênero.

“A carne mais barata do mercado é a carne negra, que fez e faz história segurando esse país no braço”. A canção Carne composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Ulisses Cappelletti foi imortalizada na voz de Elza Soares. É o som que pulula do cruzamento das performances de Marvin e Juan enquadrados pelo sangue: que jorra das balas perfuradas na capa que cobre as costas de Marvin e da carne crua que fica girando enquanto Juan dança ao som de uma música eletroacústica. A trilha musical dos filmes apesar da aura futurista, criada por meio da batida eletrônica, também é atravessada pelas influências rítmicas dos tambores de África. Além das imagens, na estética sonora dos filmes, futuro e passado se conectam no presente.

Figura 4 – Sangue que escorre dos furos de bala. Fonte: marvin.gif Part II, Marvin Pereira, 2020.

Figura 5 – A carne que sangra. Fonte: Arco do tempo, Juan Rodrigues, 2019.

Em voz over, enquanto cai em si, Juan dispara:

Eu destruí a caixa onde fui aprisionado, vivo e morto ao mesmo tempo. E então me vi caindo em um abismo em direção a autoconsciência. Enquanto caio, tenho visões do momento em que acordo, e por três segundos, não nasci com o alvo nas costas. Por três segundos sou livre para ser e amar. Por três segundos eu não vivo entre pessoas que acreditam em mamadeiras de piroca. O peso da minha existência é o combustível que move o meu corpo: a glória de existir desafiando estatísticas. Eu vivo atravessando a morte. Eu recuso a subexistência que nos é imposta. Nós somos autores da nossa narrativa. Serei livre quando não houver medo. Muitos temem a inevitabilidade da morte, enquanto nós sonhamos com a possibilidade de viver. E para você, que observa a minha queda, resta a percepção da impotência do discurso e a necessidade da ação. Nós continuaremos aparecendo, não existe negação para nossas histórias.O futuro irá provar que os laços forjados na luta, no suor e no sangue do povo negro continuará mantendo as portas por onde passei aberta. Eu não estou sozinho. Você não está sozinho. (Arco do tempo 2019)

Arco do Tempo assim como marvin.gif Part II partilham ideias do Afrofuturismo. O termo apareceu pela primeira vez em 1994, no texto Black to the future: Interviews with Samuel R. Delany, GregTate and Tricia Rose5, onde Mark Dery, um crítico cultural, traz como ponto de partida a seguinte questão: por que tão poucas ficções científicas literárias são escritas por pessoas negras? A pergunta é a mola propulsora da entrevista que Dery fez com três pensadores negros: o crítico cultural Greg Tate, o escritor de ficção científica Samuel Delany e a professora de história da África Tricia Rose. Eles elaboram algumas questões que ainda hoje fervem quando o assunto é Afrofuturismo:

Pode uma comunidade que teve seu passado tão deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas na busca por traços legíveis de sua história, imaginar futuros possíveis? (DERY 2020, 5)

Kênia Freitas (2017) aprofunda a reflexão: De que futuro falamos? De um futuro burocrático, tecnocrata, de contínua exploração, já posto pelos imaginários brancos? Ou de uma outra perspectiva de futuro que parte de experiências negras diaspóricas? Dery e seus entrevistados propuseram um futuro negro capaz de desmontar o imaginário branco do que poderia vir a ser – o que envolve criações artísticas que inventem futuros6 que rompam com ciclos predatórios das populações negras.

O universo afrofuturista cinematográfico é uma via de mão dupla: ao mesmo passo em que possibilita criações artísticas que ficcionam e friccionam debates raciais é também espaço de denúncia de experiências e vivências de populações negras que sobreviveram à diáspora, mas enfrentam um cotidiano no presente que é como uma ficção absurda. O passado da escravidão se colide com o presente de perseguição e violência estatal. É o que percebemos das balas contidas na roupa de Marvin, em marvin.gif Part II, assim como no texto narrado por Juan, em Arco do Tempo: o processo de autoconsciência é um curto-circuito no espaço-tempo que implica na queda do corpo aprisionado, que não quer carregar um alvo nas costas só por existir e que recusa a subexistência como forma de existência.

As narrativas de marvin.gif Part II e Arco do Tempo são fragmentadas porque contam histórias que só podem ser fragmentadas. Kênia Freitas (2015) alerta que a diáspora africana é feita de fragmentos e apagamentos: elos de continuidade interrompidos no passado entre África e Américas e que reverberam no presente de genocídio de jovens negros. Dessa forma, Marvin e Juan exploram fragmentos, restos, pedaços de narrativas que não foram apagadas e incorporam o não narrado através de frestas e buracos que eclodem no oposto do apagamento – a criação – enquanto forma de gerar outras possibilidades históricas.

Imagear presentes: habitar futuros

Imagear o presente é uma forma de possibilitar o futuro. E o futuro de povos negros é uma teia de possibilidades que convoca o encantamento. De acordo com Eduardo David de Oliveira (2012), o encantamento é uma ética que nos mobiliza para conquistar, manter e ampliar a liberdade de todos e de cada um. O encantamento é uma experiência cognitiva e estética que encontra na razão uma aliança poderosa, mas o afeto é a sua razão de ser. Na linha desse raciocínio afetuoso, cruzamos imagens e ideias dos filmes Os dias com você (2021) e Heroica dreams (2021), que tecem a miragem de um presente-futuro encantado, ancorado no amor e no senso da partilha.

O curta-metragem, Os dias com você (2021), de Luan Santos e Letícia Cristina, através dos seus próprios corpos em cena e do corpo da cena (cujo afeto transborda para além da moldura da tela), traz o futuro para o agora. O filme não necessariamente aborda uma estética afrofuturista: ele é uma prática afrofuturista. “Quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro” (HOOKS 2010).

Amar é também curar. A autora bell hooks ensina que o amor entre pessoas negras é uma ação e um ato de resistência. O sistema escravocrata criou condições muito difíceis para o amor entre negros: filhos e filhas eram vendidos como coisas, companheiros eram chicoteados sem razão, companheiras eram estupradas por senhores de engenho – a escravidão condicionou pessoas negras a reprimir seus sentimentos para que pudessem ter mais chances de sobrevivência.

A repressão de sentimentos continuou como estratégia de sobrevivência mesmo após a escravidão. Barreiras emocionais foram mantidas após a abolição simbólica da escravatura. A ideia de que amar e demonstrar amor comprometia a sobrevivência foi passada de geração a geração entre negros. Ocorre que quando amamos, vivemos plenamente, e percebemos que é preciso nutrir condições emocionais e materiais que vão além da sobrevivência no futuro.

Luan e Letícia, estudantes de Cinema e Audiovisual da UFRB, imageiam um presente-futuro amoroso em Os dias com você (2021) e nos convidam a querer construir e habitar esse mundo implicado em gestos de afeto. A experiência sensível, de cuidado e dengo entre o casal, que atravessa a narrativa, difere das outras obras analisadas por nós e por isso mesmo está nessa roda.

Figura 6 – O afeto enquanto uma prática afrofuturista. Fonte: Os dias com você, Luan Santos e Letícia Cristina, 2021.

Figura 7- Corpo-coletivo é resistência e afeto. Fonte: Heroica Dreams, Marvin Pereira, 2021.

Dias prosaicos, que antecedem a partida de Luan (para a Bahia), da casa de Letícia, (em Itapevi, SP), dão a ver a saudade antecipada e dolorida da separação que, inexoravelmente, virá. Aqui os corpos não são alvos de balas, são receptáculos de delicadeza e ternura. As imagens sussurradas no pé do ouvido mostram o universo privado e subjetivo dos amantes. A prática afrofuturista também é uma arma de combate ao carrego colonial (SIMAS e RUFINO, 2019, p. 17), por permitir vazar imagens outras, que não a perpetração da violência, no futuro do hoje.

Em Heroica dreams (2021) o encantamento está presente no corpo-coletivo impresso dentro e fora da tela. No filme, o afeto é expandido em outra potência – o cuidado, o carinho e a partilha entre artistas de um mesmo território: o Recôncavo da Bahia. A sinopse do curta-metragem anuncia o propósito do filme em ser corpo-coletivo: “Todos os grandes artistas precisam começar em um lugar, mesmo que pequeno”. O filme – esse lugar poético imenso – conta com as participações dos artistas: Liani Carla, Mamba Mavamba, Hiago Ruan, Gabriel Moreno, Marvin Pereira, ReiDan, Frall, Negro Dellys da PT, Albert Elias, George Bispo, Evanize Essi, Mateus Costa, Deidivan Damasceno, Everton Pereira e Everson Pereira.

“Nós existimos porque existiram antes de nós. Nós resistimos porque resistiram antes de nós. Nós insistimos porque insistiram, e agora somos nós”. O texto afável e a voz doce de Breno Silva acompanham as imagens desses artistas entre as cidades de Cachoeira e São Félix. O filme, que é permeado por diversos corpos-memória, enreda um corpo-coletivo com o objetivo de nutrir e contribuir, de alguma forma, com o crescimento do trabalho deles e de outros artistas negros. Esse movimento que encanta a partir do coletivo também é afeto – o amor é uma ação, como nos lembra bell hooks.

Uma das formas que o corpo da cena, de Heróica dreams e Os dias com você, encontrou para a exercer a prática amorosa e aflorar o corpo-coletivo foi construindo o tempo espiralar de uma forma distinta dos filmes O Arco do Tempo e marvin gif Part II, esses últimos, denunciaram a linha temporal imposta pelas epistemologias brancas. Agora é tempo de ação, o modo de espiralar o tempo, em Heróica Dreams se manifesta de múltiplas formas, seja nas fusões longas entre os planos, criando uma estética de atravessamentos, onde os corpos e as imagem desaguam uma na outra, como também por meio das performances de diversos artistas.

Figura 8 – Performance do espaço-tempo em devir. Fonte: Heróica dreams, Marvin Pereira, 2021.

Os arcos da arquitetura colonial, fincados em Cachoeira (na figura acima) trazem para a cena a dimensão simbólica da presença e das injustiças geradas pelo colonizador neste território, contudo, a cena nos aponta para outras possibilidades. O tempo fabulado e performado na imagem liberta os corpos e interrompe o curso do mundo linear ao criar desvios.

Trajando um terno em preto e branco, um homem negro apodera-se do centro da imagem. O corpo da cena/em cena, nos parece um movimento de cruzo. Ao convocar preto e branco, lado a lado, abre-se a história para o seu devir e uma multiplicidade de sentidos. Rufino nos ensina que a ideia de encruzilhada é avessa a qualquer forma de absolutismo, não se trata de aniquilar o outro, mas de transgredir os regimes da verdade colonial “opera sem a pretensão de exterminar o outro com que se joga, mas de engoli-lo, atravessá-lo, adicioná-lo como acúmulo de força vital” (RUFINO 2019, 18).

O amor enquanto prática e ética amorosa, defendida por hooks, está posto na temporalidade da cena, na relação dos corpos e no figurino do casal, em Os dias com você. Os corpos em cena vestidos de forma despojada, como se tivessem se preparando para ir à praia, performam para o espectador, olhando-os de frente.

Figura 9 – Montagem espiralar, brincando com o tempo. Fonte: Os dias com você, Luan Santos e Letícia Cristina, 2021.

Narradores de si, livres para exercerem suas subjetividades e afetos brincam de ir e voltar no tempo. No abrir e fechar do micro-ondas, fragmentados pelos múltiplos quadros, a montagem espirala o tempo e, da linguagem fílmica, vazam imagens e gestos amorosos, potentes na sua singeleza, nos convidam a habitar outros mundos.

“O fim do mundo como o conhecemos”

“Do que precisaremos abrir mão para liberar a radical capacidade criativa da imaginação e dela obtermos o que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo de outra maneira?” (FERREIRA 2016). Denise Ferreira da Silva (2019), anos depois que lançou essa pergunta, propôs o fim deste mundo – ou seja, a decolonização – enquanto movimento de des-pensar o mundo como o conhecemos. Esta tarefa não almejará promover respostas, ao contrário: implicará em levantar perguntas, segundo Denise.

A finalização, na percepção da filósofa, deverá acontecer “dentro e contra” as instituições da arte, da universidade e da mídia social. As formas de finalizar o mundo como o conhecemos, além de grandes revoltas e rebeliões, também envolvem revoltas mais singelas, como gestos de recusa e refúgio (FERREIRA 2019).

Se as imagens foram ferramentas essenciais para construção deste mundo que não desejamos mais habitar, poderão ser também fontes criativas e combativas para engendrar o fim do mundo, para que então a imaginação e a intuição possam guiar Outro Mundo implicado eticamente. O cinema afrofuturista é um grande produtor destas novas imagens, ou seja, é espaço-tempo que agencia afetos e modos de fazer de disrupção e invenção de novos mundos.

Os curtas-metragens que acolhemos banham margens de um movimento de imaginação em direção ao futuro permeado pela cultura negra que assume a relevância da fabulação de um novo imaginário – e uma nova estética – atenta aos processos (não só) diaspóricos, que possibilite a existência negra apesar (e para além) da violência ontológica branca. Nessa trilha, Marvin, Juan, Letícia e Luan colocam seus corpos em ação para dialogar com a retomada ancestral, a realidade presente e cenários futuros de protagonismo negro.

Os corpos em performance desses estudantes e egressos da UFRB, dentro e fora de cena, cruzam saberes conectados à ancestralidade e ao encantamento des-pensando o mundo como o conhecemos. Denise Ferreira da Silva (2019) reivindica o valor da expropriação das terras e dos corpos escravizados como condição ética e política da decolonização e, portanto, do fim das estruturas de poder do capital global que se sustentam nos pilares da separabilidade, sequencialidade e determinabilidade. Marvin.gif Part II, Os dias com você, Arco do Tempo e Heróica Dreams são filmes implicados que reivindicam a decolonização e se apoderam, no território fílmico, de manobras estéticas e discursivas que os tornam inseparáveis, não-determinantes e fragmentados.

Quando se cruzam, fazem surgir uma outra imagem e desmantelam a noção de início e fim das obras – elas estão emaranhadas, implicadas e abertas para novas giras. A implicação aborda a concepção de que a sociedade não seria causa tampouco efeito de relações separadas, mas de coexistências imbricadas que questionam narrativas lineares impostas pela História, conforme Denise (2019). O Mundo Implicado está conectado a outra concepção da autora, que é Corpus Infinitum: “uma imagem de um contexto ilimitado, complexo, sem centro. Um contexto no qual tudo está lá conectado com todo resto. Não através de uma linha, mas através de seu modo de existir” (FERREIRA 2020). 

A metodologia que empregamos aqui, de colocar para circular as imagens no movimento do Samba de Roda, traz em si um caráter inventivo e combativo como modo de existir. Fora das imagens, mas dentro da roda, o olhar espectatorial também samba e passa a imagear outros futuros. Na gira do Recôncavo as imagens são sem fim.

Notas Finais

1A decadência do ciclo do açúcar foi brandamente substituída pela ascendência do ciclo do tabaco. No século XIX, o Recôncavo era o principal exportador de tabaco no Brasil, com destaque para as cidades de São Félix, Maragogipe e Cachoeira - todas localizadas às margens do rio Paraguaçu. A cultura do fumo tornou Cachoeira um importante entreposto comercial devido ao porto fluvial e a rede de estradas que interligavam o sertão e outras capitanias. O fumo produzido na região do Recôncavo e nas zonas do agreste era conduzido à Cachoeira e despachado em embarcações para Salvador, em direção à Lisboa, Porto, além da costa africana - o tabaco era utilizado como moeda de troca na compra de escravos (XIMENES 2012).

2Expressão de Stuart Hall (HALL p. 34, 2003).

3Umbigada é um passo de origem banto característico do samba de roda que consiste em um movimento de umbigo em que uma bailarina convida outra bailarina a substituí-la no centro da roda.

4A divisão da tela em três, na história da arte, remonta o pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Bosch pintou figuras humanas ao lado de animais e monstros devoradores. Nos parece interessante associar a poética de um artista de uma nação colonizadora, e que viveu no início das explorações marítimas, à estética dos filmes de Marvin e Juan. A tela dividida em três e no fundo preto opera um novo projeto político das imagens, devorando o tempo-espaço do opressor.

5DERY, Mark. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose”. Flame wars. The discourse of cyberculture. Durham and London: Duke University Press, 1994.

6O Afrofuturismo já havia sido manifestado por Sun Ra na música, desde 1950. George Clinton e Lee Perry foram músicos influenciados por Sun Ra que também incorporaram na sua performance o Afrofuturismo, antes do termo ser cunhado por Dery nos anos 90. Além da música, o texto de Dery destaca outras manifestações artísticas que utilizaram a ficção científica e a tecnologia nos seus processos criativos e de expressão, como a escritora Octavia Butler, o pintor Basquiat, o grafiteiro Rammellzee.

Referências bibliográficas

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Filmografia

Heróica Dreams. 2021. De Marvin Pereira. Corvo Vermelho.

Marin.gif parte II. De Marvin Pereira.

O Arco do tempo. 2019. De Juan Rodrigues. Rebento Produtora.

Os Dias com você. 2021. De Luan Santos e Letícia Cristina