Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Perspectives: an excursion through the cinema made by women in the Amazon

Perspectivas: uma excursão pelo cinema feito por mulheres no Amazonas

Pâmela Eurídice da Silva Beleza Baltazar

Universidade Federal do Amazonas, Brasil

Selda Vale da Costa1

Universidade Federal do Amazonas, Brasil

Abstract

When watching a film, the spectator is faced with multiple perspectives, three of which stand out: that of the director - projected by the camera -, that of the protagonist of the narrative and his own. These perspectives guide the way a work is absorbed by the public and, consequently, how the author/director’s worldview is established in his filmography. For the feminist theorist bell hooks, the gaze has a power that invites from resistance to opening to other interpretative margins. Such elements are interesting for the understanding of characteristics of certain cinematographic constructions and, also, for the perception of how an alternative cinema presents itself from that. With this assumption, this article seeks to discuss how the elements of the classic narrative look and the opposing look are present in the cinema made in Amazonas in the last decade, henceforth the observation of two Amazonian films directed by women: “Strip Solitude” (2013, 20min), by Flávia Abtibol, and “Assim” (2013, 13min), by Keila Serruya Sankofa.

Keywords: Gaze, Perspective, Direction, Women, Amazonas

Introdução

O cinema feito no Amazonas tem perspectivas narrativas e temáticas que possibilitam compreender a organização social da região e a potencialidade de histórias que a natureza e a urbanização do território dispõem. A presença de mulheres atrás das câmeras permitiu que tal percepção pudesse expandir-se por meio da construção de um olhar dissidente voltado a personagens invisíveis socialmente.

Esse olhar é disposto a partir da compreensão que o cinema pode ser definido a partir do lugar em que este se localiza e a possibilidade de variá-lo e expô-lo (MULVEY, 1983). Se a narrativa clássica coloca o ponto de vista fílmico dominante como o do homem, o cinema alternativo desafia os preceitos e abre espaço para novas discussões. Neste caminho, o olhar feminino assume a posição de resistência e abre a percepção para novas margens: opositoras, desconstruídas e verossímeis.

O cinema amazonense feito por mulheres toma este olhar insubmisso e atento às personagens que sofreram estigma no decorrer da historiografia regional e a perspectiva do cinema alternativo para contar seus relatos e articular a produção regional.

A construção do feminino na Amazônia

Compreender como a formação social do Amazonas pautou a ideia do que seja o feminino é um passo importante para peregrinar pelo cinema feito por mulheres na região, que tem como uma de suas maiores características a heterogeneidade sociocultural. A Amazônia é formada por uma sociedade mestiça que comporta valores indígenas, europeus e do nordeste do Brasil como influenciadores de sua cultura. Essa mistura de costumes, hábitos e crenças conduziu o poder local, ao longo da perspectiva histórica e encantada do território, a adotar um viés sexista.

Entre os fatores que alimentaram essa construção estão o preconceito étnico e a visão de mundo dos missionários e cronistas que vieram para a região. “A estrutura de poder se encarregou de forjar uma imagem para as índias associada ao erotismo sexual” (TORRES, 2005). Tal perspectiva era disseminada pelo apelo de que mulheres amazônicas eram exóticas e luxuriosas, prontas a satisfazer sexualmente o homem branco; ideia difundida para povoar o território. Segundo a professora e pesquisadora Iraildes Torres:

O período da política pombalina (1759-1798) estabeleceu as diretrizes para o povoamento do território amazônico, pela via da miscigenação portuguesa e indígena. A estratégia sexista do poder local, em requisitar a participação da mulher no projeto de reprodução física da Amazônia, se fez acompanhar de uma política de difamação moral da mulher índia associada a promiscuidade sexual. (TORRES, 2005, 27-28)

A estrutura sociocultural que predominava na colônia relegou a imagem da mulher indígena da Amazônia ao erotismo e à prostituição. A coroa lusitana incentivava o trato delas no comércio sexual, seja na prostituição ou relações de concubinato, motivado pela leitura equivocada de seu comportamento contido e silencioso, vistos pelo poder como submissão e passividade.

Os aspectos de sua cultura eram utilizados como justificativa para as ações dos colonizadores; um exemplo era a naturalidade com que os nativos encaravam a nudez, que os colocou simultaneamente na mira do desejo dos colonizadores e da perversão da Igreja Católica, “os missionários europeus impactados com a nudez indígena veem o corpo da mulher índia como diabólico, provocativo e pecaminoso” (TORRES, 2005, 72). A misoginia praticada pelos religiosos interligou a imagem feminina ao erotismo, vergonha e submissão.

A submissão e a passividade, contudo, não são características inerentes à mulher amazônica. O professor e poeta Paes Loureiro (1995) comenta que o homem que reside na região tem características únicas arraigadas a contemplação do espaço e a docilidade que o isolamento lhe empresta. O que para o mundo ocidental foi lido como preguiça, é para o cidadão amazônico uma característica que lhe conferiu força e peculiaridade. Para Torres (2005, 33-34), “trata-se de uma expressão cultural que tem o seu ponto culminante na inter-relação do homem com a natureza, algo que vem da alma e encontra suporte na formação sócio histórica e cultural desses povos”.

Ainda hoje a visão feminina instaurada nesse período assume contornos carregados de preconceito e patriarcalismo. Os curtas-metragens “Strip Solidão” (2013, 20min), de Flávia Abtibol, e “Assim” (2013, 13min), de Keila Sankofa, ambos realizados em Manaus, capital do Amazonas, traduzem como o estigma sexual e a submissão permanecem assombrando as mulheres amazônicas, contudo, as diretoras apresentam uma nova percepção, salientando o ponto de vista de quem vivencia o tratamento opressor.

Os dois filmes são protagonizados por personagens femininas consideradas à margem da sociedade: profissionais do sexo e mulheres transexuais. Elas precisam lidar com os olhares e as desventuras de transitar pelo centro de Manaus. Em “Assim”, Sankofa escolhe a luz do dia para evidenciar o preconceito e a busca por aceitação de suas personagens; enquanto “Strip Solidão” utiliza a escuridão noturna e o imaginário para discutir os sentimentos e os motivos que levam uma mulher a vender seu corpo. Por meio da linguagem cinematográfica, valores e paradigmas estabelecidos na cultura amazônica são revistos e, consequentemente, apontam um caminho para a produção feminina no estado, este pavimentado pela resistência e a oposição que o olhar feminino inculca no cinema tradicional.

Olhar feminino: Perspectivas no cinema

O cinema se organiza a partir de perspectivas que nascem do lugar do olhar e da possibilidade de variações e exposições que dele se desenvolvem. Esse encontro existe devido a condição reflexiva do sujeito que predispõe enxergar o mundo a partir de outras visões e fomentar a multiplicidade de pontos de vista. Para o teórico de cinema Christopher Metz, isso acontece porque “o filme é como um espelho” (1980, 55) e diante dele o espectador se identifica consigo mesmo, a sociedade na qual está inserido e se embrenha no imaginário perceptivo que a arte mobiliza.

A leitura fílmica será feita a partir do campo perceptivo, alimentado pelo desejo de ver e de ouvir. O espectador projeta os seus anseios para a jornada espelhada na tela, a fim de descrever a satisfação que o olhar gera, é como se o filme lhe oferecesse a ilusão de espionar um mundo privado, que sempre lhe despertou curiosidade. A teórica feminista Laura Mulvey (1983) empresta o termo “escopofilia” da psicanálise para descrever essa sensação. A curiosidade e a necessidade de olhar misturam-se com a fascinação pela semelhança e o reconhecimento do que o cinema transpõe.

Este prazer visual indica como as narrativas são projetadas e para onde o olhar do público é direcionado. Enquanto assiste um filme, o espectador está dentro dele “através da carícia do seu olhar” (METZ, 1980, 64). No cinema clássico, este olhar se desdobra em três vertentes específicas: o olhar da câmera, do espectador e do protagonista masculino (MULVEY, 1983). Dessa forma, os códigos cinematográficos conduzem a uma perspectiva dominantemente do homem que estiliza a imagem feminina de acordo com as fantasias e os desejos deste. Seu olhar coordena a ação dentro e fora da tela, surge então uma problemática que é a outridade no cinema, nesse caso representado pela figura feminina. Segundo a professora norte-americana Ann Kaplan:

no cinema, a mulher é igualmente como seu verdadeiro ser, uma mulher real, elevada ao nível de conotação, o mito; ela é apresentada como sendo aquilo que ela representa para o homem e não em termos do que ela realmente significa. (KAPLAN, 1995, 37-38)

A mulher torna-se uma portadora de significado daquilo que o olhar masculino projeta, uma extensão de seu corpo, como a enxerga o cinema clássico. Quando se foge desse estereótipo, passa a ter um comportamento masculinizado ou ser uma ameaça castradora. Em “Assim”, por exemplo, ocorre uma espécie de intimidação falocêntrica. Ainda que as duas personagens femininas sofram preconceito, ele ocorre devido à imposição e persistência identitárias. No país que mais mata transexuais no mundo, o trajeto das protagonistas até o supermercado é um ato de luta e resistência.

Já em “Strip Solidão”, tem-se uma confirmação do olhar narrativo clássico. Juliana, a protagonista, é insatisfeita com a vida que tem, no entanto, suas ações denotam conformismo. Mesmo que o roteiro utilize recursos documentais, o desenvolvimento da personagem segue uma linha próxima da visão do personagem feminino como indefeso e em posto de vítima. Provando que mesmo no cinema feito por mulheres pode se encontrar abordagens tradicionais.

Para que essa lógica instaurada sofra uma ruptura, como em “Assim”, há a necessidade de se criar um espaço que possibilite a inserção de perspectivas opositoras ao sistema, que oportunizem interrogar o que se contempla no cinema e desenvolver uma forma de olhar além do recorte de gênero. O conceito de olhar opositor, de bell hooks (2019), agrega essa busca, oferecendo um lugar permissivo ao prazer da resistência, de questionar e poder dizer “não” às estruturas de poder dominante, contribuindo ainda para um retrato feminino mais próximo ao cotidiano.

Ao olhar-se para o cinema amazonense, pode-se perceber um encaminhamento rumo a rupturas, que tem sido orquestrado por realizadores que resistem a identificar-se com os discursos colonizadores que perpetram a região. Em “Território imaginado”, o professor e pesquisador Gustavo Soranz Gonçalves (2012) comenta como a Amazônia sempre esteve marcada por categorias eurocêntricas, que a relaciona a condições conceituais atreladas à riqueza de recursos naturais e aos mistérios que sua fauna e flora suscitam. Quando esta visão é aplicada ao cinema o que se constata em âmbito internacional e nacional é um local inóspito, apto para ambientar aventuras selvagens e suscitar discussões com temáticas sociais, mesmo que em sua maioria os debates estejam envoltos de questões que pouco caracterizem a Amazônia de forma sociocultural ou ainda contribuam para sua descaracterização.

Nessa esteira, a produção feminina regional se destaca como o vetor de ruptura. As discussões sobre gênero e sexualidade, as abordagens verossimilhantes, a presença de grupos representativos nos sets de filmagem e o olhar conferido às personagens femininas são elementos que salientam a utilização de um olhar opositor frente à corrente tradicional cinematográfica, mesmo com vestígios da narrativa corriqueira, como é o caso de “Strip Solidão”.

Um cinema alternativo na cinematografia feminina amazonense

A busca por uma representação feminina, condizente com a maneira como as mulheres se enxergam na vida prática, permitiu a criação de um espaço que oferece um cinema mais radical – em referência à linguagem dominante – apoiado pelo discurso político e estético insubmisso. Esse cinema alternativo se apresenta como vanguarda oferecendo “liberdade à investigação cinematográfica dentro de sua materialidade de espaço e tempo e, também, à investigação da audiência da dialética e do desprendimento passional” (MULVEY, 1983, 440). Quando posto em prática, tende a desestabilizar o prazer visual do espectador, fomentado pela maneira como os signos são projetados na linguagem cinematográfica. Segundo a teórica feminista Claire Johnston:

Todos os filmes ou objetos artísticos são produtos de um sistema existente gerido por relações econômicas, em uma análise final. Isso se aplica igualmente a filmes experimentais, políticos e comerciais (cinema de entretenimento). Filme também é um produto ideológico – o produto de uma ideologia burguesa (JOHNSTON, 1973, 26)

A narrativa clássica construiu uma imagem idealizada da figura feminina e a Amazônia, a qual segue o pensamento ideológico em vigência. Pautada no mito, a mulher – enquanto símbolo – passou a ser vista como um código, uma convenção indicando o ideal feminino para o patriarcado; tornando-a “invisível e, portanto, natural” (JOHNSTON, 1973) dentro da tela. Logo os signos que a circundam não falam nada sobre quem é o sujeito mulher, deixando-a eternamente fora das histórias e enredos. O mesmo ocorre em relação ao território amazônico, cuja abordagem passa a ideia de algo exótico, longe dos aspectos socioculturais que cercam os habitantes da região, colocando-os como exteriores a auto representação e com características mirabolantes. Ao apresentar os conceitos que formam o pensamento sobre a região, o pesquisador Renan Freitas Pinto comenta que

A tendência das representações que tem sido construídas em torno da Amazônia (...) é de um nivelamento por baixo, de uma caracterização das sociedades sem respeito as suas particularidades e diferenças, havendo frequentemente a tendência para a exotização, ou seja, para sua identificação como algo marginal e distante, não apenas geograficamente. (PINTO, 2008, 225)

A compreensão sobre a Amazônia e a mulher que habita nesta terra passa por questões ligadas ao preconceito e ao imaginário. O relacionamento com a natureza e o isolamento fizeram com que a região fosse inundada pelo mito e a estetização poética nutridos por um manto de mistério, ausência e intemporalidade. A expressão ideológica de quem observa exteriormente é de um local folclórico e primitivista. (LOUREIRO, 1998). As curvas dos rios, a solidão das várzeas, a floresta e seus encantos, tudo contribui para a sensação da livre expansão do imaginário e descaracterização dos amazônidas.

Ao longo da história amazonense, a cultura instaurada apresenta uma fisionomia intelectual, artística, moral própria marcada pelo isolamento e a identidade. Desses dois elementos influem tanto os aspectos positivos, como a diversidade natural e cultural latente, quanto os negativos firmados na estagnação, descontinuidade e falta de investimentos. Esse processo está bem delimitado dentro da sétima arte, a qual como parcela da realidade debruça-se em expressar a ideologia vigente, sem qualquer traço de imparcialidade.

A saída encontrada para a compreensão desses dois objetos que se fundem, nesta pesquisa, é a produção de novos significados dentro do discurso fílmico (JOHNSTON, 1973). Tal discussão arregimentada no cinema feito por mulheres na região suscita o debate em torno da interdependência, configuração e interligação entre o que se vivencia e o que a arte transmite.

O cinema alternativo feminista realiza esse processo por meio das técnicas usuais do cinema enquanto arte – como a montagem de Eisenstein, a noção de distanciamento de Brecht e o movimento modernista – utilizadas para questionar as convenções do cinema clássico e encontrar sua própria expressão independente do olhar masculino e colonizador. Assim, o debate não repousa apenas no estigma que cerca o arquétipo feminino e a região – sua representação, objetificação e submissão -, mas também na maneira como os signos projetados na linguagem cinematográfica traduzem desejos e as demandas que se restringem, ainda, à ideologia dominante.

A sétima arte é um corpo e a câmera, como seu olhar imediato, capta o que é natural para o olhar que está no comando. Dentro do cinema alternativo, a verdade, que o realizador quer repassar, precisa ser construída. Sobre isso, Claire Johnston afirma que

Qualquer estratégia revolucionária deve desafiar o retrato da realidade; não é suficiente discutir a opressão da mulher no texto fílmico; a linguagem do cinema/o retrato da realidade também deve ser questionado para que a ruptura entre ideologia e texto seja efetivada. Sobre isso, é informativo perceber filmes feitos por mulheres dentro do sistema hollywoodiano que tentaram, nos modos formais, trazer um deslocamento entre a ideologia machista e o discurso do filme; tais compreensões podem provar-se diretrizes úteis das quais o emergente cinema de mulheres pode beber. (JOHNSTON, 1973, 27)

A insubmissão, provocada pela busca de espaços e a ruptura ideológica, fez com que o cinema alternativo se expressasse como uma arte diversificada, apresentando suas tessituras desde longas narrativos a filmes ensaísticos. No Amazonas, essa diversificação manifesta-se em diferentes tipos de produtos audiovisual como vídeo-artes, videoclipes, curtas-metragens, intervenções e vídeo-aulas que seguem uma linha dissidente tanto em relação à construção estética do cinema quanto às temáticas clássicas que envolvem a região.

Um desafio presente, entretanto, para as realizadoras encontra-se em lidar, ao mesmo tempo, com o combate e dilapidação do domínio patriarcal e da representação da mulher; e a necessidade de estabelecer historicamente uma subjetividade feminina. Em meio aos processos técnicos e linguísticos, faz-se necessário ainda descobrirem e redefinirem o significado de ser mulher na sétima arte. Tudo isso dentro da forma da produção amazônica e as limitações impostas pelos motivos levantados anteriormente.

A ruptura política e estética, cerne do contra cinema, possibilita a subversão da realidade e do ilusionismo do cinema clássico. Essa quebra predispõe que o desejo de olhar – presente na narrativa tradicional por meio do voyeurismo, narcisismo e do prazer visual – assuma novas esferas e perspectivas; rejeitando a narrativa tradicional e as técnicas cinematográficas usuais, e dedicando-se a práticas experimentais. Dessa maneira, as bases para um cinema alternativo se alicerçam e a pluralidade óptica oferece embasamento para um olhar opositor voltado à sétima arte.

O olhar feminino no cinema amazonense

Um estudo realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), vinculado ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apontou que as mulheres negras não dirigiram ou roteirizaram nenhum filme entre os anos de 1995 a 2016. Segundo a Agencia Nacional do Cinema (Ancine), em 2017, dos 160 filmes brasileiros exibidos nos cinemas, nenhum foi dirigido por mulheres não-caucasianas.

Em contraponto a essas informações, a produção amazonense indica uma presença significativa de mulheres pardas e negras. Por meio da realização da Mostra do Cinema Amazonense (2015-2017), por exemplo, pode-se conferir a produção de diretoras amazonenses, somando 17 produções dirigidas por mulheres nas três edições, o que equivale a 26,56% das produções do evento. Flávia Abtibol e Keila Serruya Sankofa estão entre as diretoras em produção no Estado do Amazonas.

Formada em jornalismo e mestre no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, Abtibol nasceu no estado do Pará, mas foi no Amazonas que suas produções audiovisuais tomaram forma. Seus curtas-metragens tem uma relação com o modo de vida na região, abordando o imaginário, a natureza, os ritos e a busca por uma identidade amazônica. Neste sentido, a realizadora audiovisual também aborda a construção feminina na Amazônia, utilizando o rio como conector de suas personagens.

Em 2012, Flávia Abtibol conquistou o concurso de roteiros para produção de curta-metragem no Amazonas Film Festival, o que lhe oportunizou produzir “Strip Solidão” e apresentá-lo na edição seguinte do festival. A diretora estruturou o roteiro de modo a acompanhar a jornada noturna de uma prostituta, a câmera a acompanha como em um documentário.

Duas Manaus se encontram na narrativa; primeiramente, a portuária que mescla a questão urbana e o regionalismo por meio da ambientação, dos sons e das cores. Quanto a segunda, mostra ao espectador uma cidade invisível, escondida pelas penumbras da madrugada. O filme é uma oportunidade para compreensão da zona do meretrício manauara e da reverberação do legado da imagem lasciva e submissa da mulher indígena.

A frente de “Assim”, Keila Serruya Sankofa é uma artista visual transmidiática, que propõe o cinema como espaço para resgatar e reivindicar a memória negra, o lugar da fala dissidente e a história manauara. A artista e realizadora visual atua com performance, fotografia e audiovisual. Em alguns momentos mistura-os como em “Direito à Memória”, projeto transmidiático de visibilidade a figuras negras importantes para a história amazonense; ou os trabalha separadamente. Este é o caso de “Assim”.

O curta roteirizado e dirigido por Sankofa é a segunda parte do projeto “Assim aqui” que propõe intervenções nas ruas da cidade. Idealizado pelo Coletivo Difusão, núcleo independente de artistas e produtores culturais de Manaus, as pesquisas para a produção do projeto motivaram a artista a conceber o curta.

Explorando o lado sensorial, “Assim” acompanha a ida de duas transexuais ao supermercado. O simples ato de sair para fazer compras revela crenças, desejos e coragem. Protagonizado por Nayla Bianca e Patrícia Fonttine, o filme mistura ficção e documentário, retratando um microcosmo de ser transexual em área periférica. A narrativa se preocupa em denunciar questões sociais que permeiam a cidade de Manaus, tendo como foco figuras femininas invisíveis socialmente. Em 2019, “Assim” foi selecionado para a Mostra Alma no Olho: o legado de Zózimo Bulbul e o Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo no Festival de Roterdã.

“Assim” e “Strip Solidão” oferecem um norte de como o cinema amazonense realizado por mulheres tem se organizado. As duas obras utilizam temáticas presentes constantemente em filmes regionais que é a sexualidade e o dualismo natureza e o urbano, além de ter questões sociais como pano de fundo. Tais características apontam para uma quebra na visão exótica do imaginário da região e uma perspectiva voltada para personagens femininas ainda que vistas sob o olhar masculino.

A professora e pesquisadora Iraildes Torres comenta que há “uma perspectiva política de dominação androcentrica” (2005, 73), a qual invisibiliza figuras femininas. No entanto, ao contar histórias sobre mulheres e o cenário que as cerca, as diretoras procuram desmistificar olhares sobre elas e a região, ressaltando elementos que humanizam suas personagens. Para isso, a direção de arte e de fotografia contribuem para aumentar a percepção narrativa.

Em “Assim”, por exemplo, o público é apresentado às protagonistas por meio dos objetos de seus apartamentos, percebe-se, a partir destes, coisas que lhes são incômodas - ainda que façam parte de seu cotidiano - e elementos que lhe dão prazer. Os planos fotográficos passam a sensação de vivenciar os passos junto a elas, além de mostrar objetos que denotam experiências latentes como o barbeador e os santos católicos.

Já em “Strip Solidão”, a percepção ocorre pelas cores. O vermelho está presente na maior parte das cenas que envolvem profissionais do sexo, pode-se encontrá-lo no bordel, nos sutiãs, nas pinturas indígenas; ele busca evocar a paixão e a luxúria que o tema evoca. Contudo, o tom documental que a produção se propõe em incutir também oferece ao ambiente um ar de consumismo, como se o corpo das moças fossem um pedaço de carne à venda – fato inclusive falado por elas em cena. Há uma dicotomia no olhar sobre as personagens, pois ao mesmo tempo em que elas são tratadas de forma seca e direta, há vestígios de compaixão e tristeza latentes nos depoimentos prestados.

Nos dois filmes, as personagens femininas vivenciam seus próprios dramas, existentes pelas escolhas que elas mesmas fizeram. Ao assumir o que são, lutam pelo que querem e se tornam resistência frente ao conservadorismo latente em Manaus. Seu posicionamento ressignifica os conceitos estabelecidos sobre a passividade e submissão das mulheres nortistas, além de carregar novos simbolismos para o feminino na Amazônia.

Essa ruptura incide diretamente na maneira como o território é abordado. Mesmo que as obras escolhidas se passem na capital do estado do Amazonas, salientam questões que abrangem a formação do pensamento social regional relacionadas à natureza, responsável pela expansão do imaginário e do conceito de falta de particularidades de seus habitantes. Ao escolher o centro da cidade como o cenário de suas produções, o dualismo homem/urbano e natureza abre espaço para uma dicotomia, na qual a natureza perde seu protagonismo para que as relações entre os seus habitantes não estejam vinculadas a distância e isolamento que o imaginário propõe.

As obras das diretoras amazonenses têm discutido temáticas universais dentro do contexto amazônico, partindo de situações específicas da região para configurar o cenário macro de suas discussões, como a disparidade social, a manutenção das culturas tradicionais, o rastro cultural indígena e negro e a visão LGBTQI+. Tais peculiaridades regionais aproximam nossas histórias do público.

Um reflexo dessa trajetória são as premiações. As histórias femininas têm conquistado espaço e sido reconhecidas internacionalmente por meio da seleção de produções amazonenses em festivais e mostras, alcançando até mesmo conquistas inéditas. Keila Sankofa, realizadora de “Assim”, é um nome conhecido no Brasil devido ao seu engajamento na causa negra. Em constante transformação e colocando suas ideias e pontos de vista em diversas manifestações artísticas, teve este curta-metragem selecionado para a Mostra Alma no Olho do Festival de Roterdã 2019. Já “Strip Solidão” saiu premiado no concurso amazonas de roteiros para produção de curta-metragem no extinto Amazonas Film Festival, impulsionando a carreira de Flávia Abtibol.

Tais façanhas confirmam a riqueza de narrativas e o potencial que as realizadoras têm a oferecer para o cinema de forma geral e em mostrar as mulheres e a Amazônia para além da ideia colonizadora.

Conclusão

O cinema feito por mulheres apresenta um dispositivo no qual a mulher é observada e entendida por si. Debruçar-se sobre a sétima arte em busca do olhar feminino e como este incide na Amazônia traz à tona reflexões quanto aos estereótipos e arquétipos entrelaçados constantemente à feminilidade, acompanhados por objetificações e discriminações de gênero.

O cinema no Amazonas busca quebrar essas ideias e contextualizar a arte dentro de um escopo cultural maior, trazendo os conceitos sobre a região para um discurso identitário autêntico. Existe em articulação um projeto cultural disseminado por mulheres que enxergam na sétima arte um campo aberto para explorar as narrativas vividas na Amazônia, o que possibilita a existência de muitas histórias verossimilhantes e identificáveis para quem sempre precisou ter um olhar opositor ao que incidia sobre sua região.

Notas Finais

1Profa. Dra. Selda Vale da Costa

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