Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Lost in Translation: Images of “deslugar/displace” in contemporary cinema

Encontros e Desencontros: Imagens do “deslugar” no cinema contemporâneo

Beatriz Alcici

Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil

Abstract

This research seeks to analyze the theme of deslugar-displace (FISCHER, S.) as seen in contemporary cinema, to discuss the concept and allow interpretations and analyses concerning the issue. We understand that the situation of deslugar-displace can be understood as a “state” of polarization between the opposite extremes, in which the subject displaced would be immersed in a permanent state of inadequacy, “non-belonging” and oscillation, entering in a kind of “state of anestesia”. The corpus selected for the research is composed of the following films to be contrasted and comparatively analyzed: Lost in Translation (Sofia Coppola, USA, 2003), Somewhere (Sofia Coppola, USA, 2010), Her (Spike Jonze, USA, 2013). The deslugar/displace, being timeless and psychic-intellect-emotional in the scope of human relationships and consequently of socio-communicational practices (FISCHER, 2011), aesthetically presents itself, it seems to us, in a particular way in the indicated filmic universes – outlining subjectivities, punctuating social practices that are sometimes unusual, and producing discourses and peculiar meaning effects.

Keywords: Deslugar/Displace, Sofia Coppola, Spike Jonze, Contemporary Cinema, Anesthesia.

Introdução

A presente pesquisa visa a tratar da temática do deslugar (FISCHER) tal como se dá a ver no cinema contemporâneo, com vistas a discutir o conceito e a alargar interpretações e análises concernentes à questão. Entendemos que a situação de deslugar pode ser compreendida como um “estado” de polarização entre extremos opostos, em que o sujeito assim colocado estaria imerso em permanente estado de inadequação, “não pertencimento” e oscilação, como se o sujeito assim, entrasse em estado de anestesia. “Basicamente definido pelo nem/nem, o deslugar é uma situação, uma posição psíquica e emocional tingida pelos matizes do indeterminado, do indizível e inominável, ‘enunciada’ pelo simultâneo não estar dentro e não estar fora” (FISHER, 2011, p. 3-4).

Tal desajuste é o motor de um movimento desestabilizador, concomitante alojamento/desalojamento que constitui um sujeito permanentemente assolado pelo desconforto e perturbado pelo estranhamento: é alguém que não está dentro, não está fora, não está entre dentro e fora; que não pertence pertencendo e que pertence sem pertencer; alguém que é mas não é. O sujeito pode, preenche todas as condições que lhe facultam ocupar determinada posição, mas a ela não se acomoda. É o ser sem ser. (FISCHER, 2011, p.4).

Sendo o deslugar atemporal e de ordem psíquico-intelecto-emocional no âmbito das relações humanas e consequentes práticas socio comunicacionais (FISCHER, 2011), esteticamente tal tropicalização apresenta-se, parece-nos, de forma particular nos universos fílmicos indicados. O corpus selecionado para a pesquisa é o filme “Lost in Translation” (Encontros e Desencontros, Sofia Coppola; EUA, 2003), por vezes, trazendo para a análise os seguintes filmes a serem contrastados e analisados comparativamente: “Somewhere” (Um lugar qualquer, Sofia Coppola; EUA, 2010) e “Her” (Ela, Spike Jonze; EUA, 2013).

As análises foram formuladas como ensaio poético, a fim de criar o efeito de sentido do deslugar no leitor. Com efeito, apresentamos uma breve sinopse dos filmes para contextualização.

Em Lost in Translation, solitário, Bob Harris é um famoso ator em final de carreira, que viaja ao Japão para estrelar a propaganda do famoso whisky Suntory. “Suntory time” (slogan do produto). Bob não quer estar ali, mas não consegue ir embora. Seus conflitos com a esposa Lídia, que constantemente se tenta fazer presente (e que ao mesmo tempo cobra a presença de Bob) com excessivas ligações e mensagens. Estão distantes (no relacionamento). Algo parece ter sido perdido. Inesperadamente, ele encontra Charlotte. Ela, uma jovem solitária, recém-formada em filosofia, casada por dois anos, acompanha o marido Johnny (fotógrafo) que vai ao Japão a trabalho. Ela preenche seus dias dentro do quarto de hotel e perambulando pela cidade. Ao trocarem olhares, algo parece ter se iniciado. As impossibilidades pairam sobre o relacionamento dos dois. Algo do inominável se repete ali (para si mesmos, e na relação de ambos). Se dizem perdidos, e algo que poderia fazer união, não une. Não vão ao ato, falta ação, falta movimento. Inconsistências. A própria quebra no “movimento” das imagens (e das relações), marca o ritmo do filme.

Em Somewhere, solitário, Johnny Marco é um ator famoso, uma típica celebridade hollywoodiana. Vive em endereço de hotel (mesmo tendo endereço fixo), perambula em sua Ferrari, para lá e para cá, em círculos. Gira no vazio. Repete. É assediado por muitas mulheres, fica com qualquer uma (pois cada uma é qualquer uma), se sente perseguido, recebe mensagens anônimas (hostis) que o perturbam. Ele aparece repetidamente perturbado, preocupado. Desligado, distanciado. Deslocado. Em sua profissão, em seu “papel de pai”. Isso parece se modificar quando ele passa alguns dias com sua filha Cleo de onze anos de idade. A sua convivência com ela, que agora faz parte (mesmo que por um curto período) do seu cotidiano, parece estabelecer (lentamente) algum tipo de “consistência” em Johnny, como um despertar em “câmera lenta”. Como se ele (voltasse) a formar laços com “o mundo” a partir de Cleo. Mas inconsistentemente, cada um vai para um lado. Ao mesmo tempo que abre, fecha. Volta.

Em Her, solitário, Theodore é um escritor recém separado com importantes conflitos não resolvidos (sobre o casamento terminado). Escreve cartas pessoais, de pessoas, que não conhece, de intimidades e experiências, nunca vividas. Nem por ele, nem por elas (talvez só imaginadas por ele, por elas). Experiências, de outros, experiências inventadas, experiências de ninguém, romanceadas (quase que etéreas), compradas. Sujeito contemporâneo (hipermoderno), após assistir a propaganda do novo programa S.O1, Theodore começa a se relacionar com seu (novo) programa de computador. De S.O1, só conhecemos a voz, sedutora (que poderia ser de “qualquer uma”), desconhecida (mas familiar pela identidade marcante da atriz que interpreta a voz de S.O1). Eles se apaixonam, sem noção de limites, se misturam, ele com ela, ela com ele. Ele se fecha, ela se abre (para outras pessoas que compraram o mesmo programa e até para outros S.O1). Despedaçados, tentando inventar uma forma de “juntar”, mas nada se liga (embora estejam constantemente [des]conectados).

Assim, buscamos identificar e entrelaçar a “peculiar condição de personagens que se situam e se deslocam no espaço fílmico em deslugar, colocadas e configuradas – diegética e esteticamente – em condição de deslugar” (FISCHER, 2011, p. 2).

Encontros e Desencontros em Lost in Translation

Ampliamos o olhar para as personagens, cada qual em sua subjetividade, entrelaçando suas características, comparando, descrevendo (e fazendo associações) a respeito do estado de deslugar em que se “encontram”. O filme trata tanto imageticamente, quanto na diegese, o enrolar/desenrolar das personagens, que “estabelecem” somente inconsistências e instabilidades. A condição sensível das personagens parece resultar em anestesia, um recolhimento/encolhimento, de fora pra dentro, de dentro pra fora, sem que consigamos definir ou nomear.

Assim, em Lost in Translation Bob Harris, um famoso ator em final de carreira, o protagonista do filme (em crise conjugal), revela-nos um cotidiano com relações típicas de um ator famoso (com pouco tempo de convivência com a família/ grandes ausências), frequentemente em viagens e hotéis. As conexões afetivas de Bob e Lídia (sua esposa, uma personagem que nunca aparece, somente sua voz... distante em outro país, mas constantemente “presente” através de cartas, fax, telefonemas) são marcadas pela contínua desconexão entre os dois. Bob parece distante (não somente fisicamente), mas parece não se identificar com a família. As insistentes mensagens e cobranças de sua esposa, parecem marcar para Bob (nota-se em sua expressão facial “vazia” de tédio) sua incapacidade de fazer o papel de “pai de família” que Lídia tanto lhe cobra (sem dizer diretamente).

Bob aparenta estar em constante tédio, um “nada” inominável, um conformismo profundo, uma falta de sentido da vida (e sua incapacidade de dar sentido a ela). O mundo, as pessoas, o social, parece-lhe distante e entediante. Seu olhar por vezes perdido, nada parece olhar, e a procura por algo que ele próprio (aparenta) não entender, não encontra “fora” (nem dentro). Tanto faz. Ele parece estar sempre cansado, sua expressão ao mesmo tempo que nada explicita, nos traz inúmeras interpretações. Expressões vazias e de constante estranhamento, ocultam palavras (essas que nunca encontram lugar), reconhecemos na incerteza de suas expressões, algo de familiar. A incerteza quanto ao que está por detrás de sua expressão entediada, cria efeitos de infamiliar, que “seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 2019, p. 45) (que em Bob parece “congelar”). Na ambiguidade aqui, claramente podemos perceber que há algo do indizível para Bob, sua expressão entediada, expressa (muita coisa) o que não podemos definir (nem ele).

Figura 01- Frame do filme Lost in Translation (Sofia Coppola; 2003).

O contexto se anuncia desde o início, com a chegada de Bob em Tokyo, no Japão. Ele está no táxi a caminho do hotel passando pela cidade de Tokyo (de madrugada), meio acordado meio dormindo. Com o ritmo acelerado do carro em movimento, as luzes piscantes dos letreiros e outdoors da cidade, anunciam uma “dissincronose” (Jet Lag) da personagem, que se consolida no decorrer do filme como parte da personalidade de Bob (que não se encaixa no “tempo do outro”). Ao chegar no hotel ele é recepcionado por uma comissão de japoneses que o ovacionam. Esta admiração que transmitem diante do famoso ator, parece sufocá-lo a tal ponto que, ao mesmo tempo que incomoda, entedia. Ele não consegue dormir. O fuso-horário de outro país em conjunto com uma língua completamente estranha, o “deslocam” fixando-o em estado de solidão que aparenta ser próprio (familiar).

A esperada desconexão com seus objetivos na cidade e com o próprio contexto em que ele se encontra (Bob está em Tokyo á trabalho promovendo o famoso whisky Suntory), causada pelo corte brusco na distância da língua japonesa (ele pouco entende, pouco se comunica), e pelo fato de não querer estar ali (quer ir embora o quanto antes), faz com que o trabalho se torne enfadonho e desconfortável. Ele aparenta sentir-se invadido/atravessado pelo corriqueiro, e perturbado pelos barulhos (intromissivos). O ambiente pré-estabelecido, como as cortinas do quarto de hotel que se abrem bruscamente pela manhã o acordando como um corte/ um susto, o barulho perturbador e “copioso” da máquina de fax que com frequência recebe de sua esposa Lídia (atravessando as madrugadas), o som da cidade (carros, alto-falantes, pessoas, aglomerações), os chinelos que não cabem nos pés, o kimono muito pequeno, o quarto vazio, os constantes flashes de luzes no trabalho, as luzes piscantes da cidade, o assédio das pessoas e fãs. Ao mesmo tempo que perturba e entendia, faz querer ir embora, faz querer fazer outra coisa como teatro, mas não consegue. Não consegue ficar e não consegue sair. Seu estado de deslugar denota um possível estabelecimento de um quadro depressivo. Seu distanciamento com as pessoas e situações, e seu estado afetivo inerte e ambíguo, começa sutilmente a alterar quando ele conhece Charlotte.

Charlotte é uma jovem recém-formada em filosofia, e no início de seu casamento com John, um famoso fotógrafo que vai para Tokyo à trabalho, acompanhado de sua esposa. Os dois aparentam estar em uma crise conjugal (ainda velada). A viagem motivada pelo “não estava fazendo nada” de Charlotte, que resolve acompanhar seu marido ao Japão, é substituída por um cenário estrangeiro, no qual ela continua a fazer – “nada”. Desprovida de desejo (aparentemente), Charlotte está perdida, e presa (como ela mesma coloca). Não sabe quem é, não sabe quem deveria ser, não gosta de nada que faz, e não sabe mais com quem se casou. Ela diz já ter tentado algumas coisas como Ikebana, e uma visita a um templo budista, mas não consegue sentir nada (chora ao telefonar para uma amiga desabafando seu estado, e esta, parece não ouvir). Está sozinha, angustiada pelo assombroso nada, por acreditar não sentir nada.

John viaja por alguns dias para outra locação enquanto Charlotte passa seus dias dentro do quarto de hotel (bagunçado), e observando por longos espaços de tempo a cidade pelas imensas janelas de vidro. O enquadramento das cenas em que ela observa a cidade através da imensa janela (transparente) nos confunde... ela está dentro e fora simultaneamente (aparentemente). Os limites são confusos pela repetição de transparências, essas que não encontram delimitações aparentes, apontam um vazio pelo qual nada parece acontecer/preencher.

Figura 02- Frame do filme Lost in Translation (Sofia Coppola; 2003).

Charlotte não consegue se adaptar, sente-se entediada com o social e com as banalidades cotidianas. Incerta do que sente, não sabe para onde vai. Sua instabilidade (dentro), aparenta ser buscada no espaço fora (aberto, que alternam em excesso e vazios). Para Certeau (2019), “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência (...) implica uma indicação de estabilidade (...), em suma, o espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 2019, p. 184). Mas Charlotte, parece desorientada. Suas constantes perambulações por vários lugares da cidade são marcadas pelo distanciamento e estranhamento desses ambientes. Em contrapartida, em grande parte do tempo que observa a cidade pela janela (com distanciamento), nada parece acontecer, nada aparenta ver. O tempo parece em suspenso.

Nas perambulações de Charlotte pela cidade, assim como ela, percebemos o ambiente tumultuado de pessoas (como se não houvesse espaço). O metrô lotado, os sons sobrepostos dos jogos e das máquinas, e o vai e vem constante dos carros, de forma dispersiva e evasiva. As experiências interativas que deveriam “ligar”, “desligam”. Há uma desapropriação de sentido (do sentido). Sons/barulhos (ruídos), luzes piscantes, bagunça, solidão... sua perturbação é velada. O fato de Charlotte se sentir perdida como diz, faz com que ela não consiga se organizar. Perdida, paralisa, perambula (parece buscar uma identidade).

Em uma cena, Charlotte bate o dedo do pé na cômoda do quarto de hotel, e a dor sentida no momento parece ter sido embutida, anestesiada (mesmo machucada, nada esboça sentir...como se não soubesse o que fazer com a dor / como se a dor física fosse alívio para as “dores psíquicas”). A angústia e o estado de deslugar de Charlotte, é parte da personalidade da personagem. Seus interesses e curiosidades parecem “acordar” quando encontra Bob.

Em uma noite, no bar do hotel, Charlotte e Bob trocam olhares, e assim, parecem sair de um “transe de tédio” (parecem ter encontrado alguém em meio a “homogeneidade do igual”, que tanto os entedia). Esboçam interesse um pelo outro. Se veem. Manifesta-se instantaneamente uma afinidade entre eles, mas não conseguimos definir que tipo de interesse surge entre os dois (eles também não). A relação de Bob e Charlotte se estabelece de forma ambígua. Ora parecem amigos, ora namorados, ora amantes, ora pai e filha. Ao mesmo tempo em que os dois se interessam um pelo outro, se identificam, e parecem se entender tão bem, há uma obscuridade incessante na relação. Na medida em que os dois vão convivendo (em um curto período, pouco menos que uma semana), se aproximam.

Duas pessoas solitárias, passando por uma “crise existencial” (e conjugal) à sua maneira subjetiva. Bob está fazendo um trabalho de promoção como ‘personalidade’ propaganda do whisky Suntory, e passa por uma crise em seu casamento. Ao que podemos entender, Bob não quer estar presente no seu casamento. Ele reclama ter de viajar a trabalho enquanto poderia estar fazendo outra coisa, como teatro por exemplo (como diz), mas não consegue. Mesmo ganhando dois milhões de dólares para fazer tal propaganda, ele não esboça nenhum tipo de entusiasmo. Talvez o que aborreça Bob seja a forma como que ele ganha esse dinheiro, fazendo o que não queria fazer (fazendo o que não faz sentido para ele). Mas não consegue abandonar esta posição, sofre (e não sofre) por estar onde está, e não consegue tomar uma decisão, ele não suporta ficar, mas não consegue sair.

O desacomodo no “ficar”, parece ser da ordem da “inconsciência”, impossível para Bob “assumir”. Há o aprisionamento de si mesmo nesta situação. Bob vai se perdendo em sua obscuridade. É como se estivesse percorrendo um caminho ora muito escuro (no qual nada pode se ver), ora muito claro (do qual também, pouco, ou nada se vê), a junção para ele é embaçamento... (como se sua visão estivesse distorcida sobre o mundo, sobre a ideia de mundo, embaçada). Como se algo estivesse ali, mas não conseguisse ver em detalhes, com definição (não consegue vê-las de perto, não consegue focar) ele as vê, mas não vê.

A melancolia de Bob parece ter se estabelecido. Como se anos deste mesmo processo (sem ficar e sem sair), fossem anestesiando a personagem, entediando de uma forma que Bob parece ter se esquecido como se dá sentido à vida. Ele lembra da época em que juntos, ele e sua esposa “riam o tempo todo” (como diz), e depois dos filhos e de suas frequentes ausências, tudo mudou (“ela só pensa nos filhos” – diz com semblante triste, como se tivesse sido abandonado, e ido para um lugar do qual não tem consciência... ele sabe que está, mas não consegue identificar ou definir). Sua anedonia é explicitamente esboçada em sua expressão facial marcante e constante. Seu silêncio, grita.

Os “bons tempos” com a esposa lembrados por ele, são de uma época distante, da qual não tinham filhos, a atenção e amor de Lídia era somente para Bob. Depois das crianças sua vida mudou, sua mulher mudou, seu casamento mudou. Mudanças naturais nos acontecimentos e contingências da vida, dos quais acontecem sem que possamos controlar. Vai se transformando em algo “outro”, tomando outras formas, além da compreensão. O entendimento que Bob parece ter absorvido de sua vida, não consegue acompanhar a ideia de uma “nova posição”. O nascimento dos filhos parece ter sido para Bob seu primeiro rompimento com sua esposa. A quebra da unidade, e a entrada dos dois filhos, que “dividiam” Lídia, foi insuportável para Bob, na medida em que, ele se fechou em si (para si). Lídia ao que podemos perceber, cobra a presença de Bob. Cobra a enunciação do companheiro. Ela perdeu sua companhia. Os distanciamentos de Bob muito além dos físicos, são “faltantes” para ela. Assim, ela o ignora. “Só pensar nas crianças” como ele diz, também é uma fuga (para Lídia), e uma defesa (para não sofrer a ausência de Bob que possivelmente a “abandonou” no papel de mãe).

Não se “veem” mais. Assim, estão juntos e separados, perto e (muito) distante. Os limites são tão obscuros, quanto suas clarividências sobre isso. Não está bom, mas também não conseguem mudar. Bob e Lídia parecem estar em deslugar no casamento. À medida em que as distâncias foram insuportáveis nas presenças, passaram a “conviver” na distância, literalmente (segunda ruptura). A partir do momento em que ele resolveu viver próximo (e distanciado), é como se ele estivesse de uma certa forma somente “assistindo” (sem fazer parte). É o que Bob faz com a família, e é o que Lídia (re)clama. Talvez a distância tenha sido o medo de (con)viver, ou o medo de perder (sua carreira), ou a imaturidade de saber lidar com as duas coisas ao mesmo tempo. A dança nas polaridades é a poética da vida que Bob não consegue lidar (o “movimento de vida” que Bob perdeu). Perdeu sentido, e perdeu si mesmo. Tanto faz se é um grande ator. Tanto faz se ganha muito dinheiro... Tanto faz ser contratado como uma personalidade para a propaganda de whisky, e ter de representar outras personalidades famosas, ao invés de si mesmo. Não se importa de ser outros (no caso de Bob que é um ator, interpretar outras personalidades é sua profissão, mas aqui, ele é um ator famoso, com uma carreira consolidada, e é contratado para “ser ele mesmo”).

O diretor aparenta incômodo com a expressão enigmática de Bob, e exige mais “transparência” e mais intensidade. Essa insistência “more intensity”, faz com que Bob perca a naturalidade, e acabe por interpretar uma caricatura com artificialidade (assim como ele compreende o pedido do diretor, e como consegue fazer). Não “saem do lugar”, não conseguem concluir a filmagem, o diretor “corta” repetidamente. “A concisão, a contenção e a artificialidade veem-se, de certo modo, representadas pela substituição dos sujeitos de ação pelos objetos de não ação”. (OKANO, 2012, p.135). Aparentemente não é o que o diretor pede, mas é o que a intérprete consegue traduzir. Propositalmente, as instruções (em japonês) do diretor não são traduzidas no filme, estabelecendo uma grande lacuna na tradução feita pela intérprete. Participamos da experiência de Bob, ficamos perdidos assim como ele, que não sabe o que está fazendo de errado. E nós também não (podemos imaginar).

O ritmo do filme marca a oscilação entre o parado e acelerado, silêncio e barulho, solitário e “apinhado”. Confuso. Algo perturbador encontra o limite na palavra. O (ex)espectador também permanece na incerteza, estranhamos, mas reconhecemos. Esse estranhamento, conforme já mencionado, Freud nomeou de infamiliar. Segundo sua definição, o infamiliar seria algo do qual (sempre), nada se sabe (Freud 2019). “Quanto mais uma pessoa se orienta por aquilo que se encontra a sua volta, menos é atingida pela impressão de infamiliaridade quanto às coisas ou aos acontecimentos” (FREUD, 2019, p. 33). O familiar por sua ambivalência, transcendeu seu significado até uma fusão com o infamiliar (seu oposto). Logo, essa fusão torna o infamiliar, como um tipo de familiar. Autômatos, e bonecos de cera, despertariam dúvida se um ser vivo estaria inanimado, e opostamente, se um objeto seria animado. Para que o efeito de infamiliar seja despertado, o espectador deve ser deixado na incerteza daquilo que tem diante de si. Essa incerteza não aparece diretamente, permanecendo obscura (FREUD, 2019).

O primeiro estranhamento de Charlotte, passa por “não sentir nada” (assim como ela define) quando visita um templo Budista. O que parece assustá-la (posteriormente), foi “não sentir”/sentido (alguma coisa). Nesta cena, seu semblante vazio e apático nos causa igualmente, estranhamento. Talvez o que perturbe Charlotte seja o estrangeiro (dentro de si, inominável e indizível, representado no filme também pelo estranhamento do estrangeiro japonês).

O segundo estranhamento, se passa em uma visita a uma casa de jogos eletrônicos. Nesta cena barulhenta (que contrasta o barulho dos jogos e o silêncio dela e dos jogadores, o contraste estabelece uma espécie de vazio [assim como as imagens sem som que se repetem ao longo do filme]) vê-se a hipnotização deles (dela) na interação com a máquina.

No silêncio barulhento em que se senta diante da máquina, um jogador entre tantos, e por isso mesmo ainda mais só, esse jogo provoca uma espécie de hipnose, uma estranha sensação de felicidade. Ganhar não é mais importante, mas o tempo passa, e as vezes se perde a noção de si mesmo, perde-se contato consigo mesmo, e você se confunde com a máquina. E assim, talvez, você esqueça o que sempre quis esquecer. (Wim Wenders, Tokyo-ga, Alemanha/EUA, 1985).

Charlotte, passeia (sozinha) entre as máquinas de jogos e videogames, observando demoradamente as pessoas, as máquinas... Por vezes, ela se funde imageticamente com uma máquina, no enquadramento da câmera que a faz “desaparecer” (ela aparece, e não aparece) atrás do vidro, embaçando sua figura. Atravessada. Podemos vê-la, mas nossos olhos pouco conseguem defini-la. Seu olhar, ao mesmo tempo que passa a impressão de estranhar o que se vê, também parece que nada veem.

Figura 03- Frames do filme Lost in Translation (Sofia Coppola; 2003).

Num outro momento, em um passeio pela cidade, Charlotte tem seu olhar atraído por um casal de noivos, que vestidos tradicionalmente com trajes típicos de uma cerimônia, transitam pelo templo. Ela se demora novamente, observando (com estranhamento) esta cena, e vai se aproximando como se estivesse em transe. Novamente, seu corpo é atravessado por galhos de árvores (pelo nosso olhar), assim como sua visão (uma imagem se funde na outra, vê-se partes dela, e partes não [vemos pelos olhos de Charlotte]). Podemos entender que parte do que é da ordem da consciência (daquilo que vemos e sabemos que está ali, logicamente) e da inconsciência (do que não podemos ver, mas “sentimos” que está ali [estranhamento/infamiliar]) estão (sempre) juntos, e são sentidos ao mesmo tempo. Ela encontra neste templo a árvore dos desejos, escreve um desejo num pedaço de papel, e o amarra no galho da árvore. Seu desejo permanece oculto. A imagem mostra Charlotte absorta em desejos (seus, dos outros...). Seu desejo inconsciente se relaciona com o “desejo desejado” (escrito no pedaço de papel, “nomeado”), mas sua definição, permanece inconsciente. Velado.

Figura 04- Frames do filme Lost in Translation (Sofia Coppola; 2003).

O filme tende a criar em nós uma espécie de estranhamento com a ambiguidade nas imagens (e incertezas), e ambivalência nas relações das personagens, principalmente de Bob e Charlotte, cuja relação é indefinida. Como há poucas palavras e diálogos no filme, temos um vasto espaço para ambivalências de sentidos. Desconhecemos. Reconhecemos o interesse de um pelo outro (mas pelo indizível), por aquilo que desconhecemos deles/neles (e por aquilo que eles próprios “se” desconhecem).

Tanto Bob como Charlotte parecem se distinguir em sua negatividade, das demais personagens. Personagens secundárias e coadjuvantes, não apresentam nenhum tipo de mistério, são um tanto estereotipadas, não nos causam dúvidas ou incertezas. Podemos dizer que são personagens da positividade.

Segundo Han (2017), a sociedade positiva, elimina toda e qualquer negatividade (alteridade), exigindo transparência e nivelando os indivíduos a um elemento funcional de um sistema, destituído de singularidade (perda de si). Ainda, acrescenta que o sistema social sujeita seus processos a um cerceamento, impondo transparência a fim de operacionalizar e acelerar os processos, desconstruindo assim a negatividade.

Han afirma que “as coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação”. As imagens tornam-se pornográficas (sem a negatividade da alteridade) no imediato contato entre olho e imagem (HAN, 2017, p. 09-10). A transparência estabiliza e acelera o sistema, apagando o estranho/estrangeiro. Só a máquina é transparente. “A alma humana necessita de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro” (HAN, 2017, p. 13), (justamente o “refúgio” das personagens, que se distanciam do “olhar do outro”).

Ainda, Han aponta a impossibilidade de ser transparente para consigo mesmo (seria impossível), pois o id (Freudiano) permanece oculto no ego. A psique é fissurada, não deixando assim o ego coincidir consigo mesmo. É essa fissura primordial que barra a autotransparência. “A espontaneidade, a capacidade de fazer acontecer e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência” (HAN, 2017, p. 13). É justamente na falta de transparência (de um e de outro), que as personagens se atraem. É no mistério e na negatividade, que eles se reconhecem. Essa atração os confunde (nos confunde). Eles seduzem um ao outro sem que suas intenções estejam claras ou definidas (para nós e para eles).

Ao mesmo tempo em que os dois seduzidos um pelo outro, parecem querer ir ao ato, recuam. Nada é exposto, ou clarificado, nada é nomeado. Está tudo em suspensão. As incertezas, e dúvidas entrelaçam essa (des)conexão. Possivelmente, o desconforto das incertezas em relação a Charlotte faz com que Bob em um dado momento, “barre” os possíveis desdobramentos amorosos com ela, se envolvendo (por uma noite) com uma cantora que encontra no bar do hotel. Mas Charlotte incomodada, percebe tal situação. O conflito se instaura, as tensões aumentam, mas nada é resolvido (ou desvelado), ou “nomeado”.

Vai,volta...

Charlotte procura “fora” (no outro) as coordenadas para o caminho de si mesma. Escuta um cd de autoajuda, no qual ensina-se a encontrar o “mapa interno” de si mesmo. “Toda alma tem seu caminho, mas as vezes esse percurso não é claro” – escuta sem parecer entender, e parece achar engraçado, como se aquilo não fizesse muito sentido. Podemos entender que a oscilação entre claro e escuro no filme, e os embaçamentos, passa pelo contexto confuso da personagem que não consegue sustentar o foco do olhar que dispersa, desfoca, embaça.

Para que o mundo nos faça sentido, Landowski (2012) propõe que ele precisa ser estruturado como um sistema de relações entrelaçadas e opostas (assim como o dia e a noite, a vida e a morte etc.). O ponto principal seria reconhecer uma diferença. Só assim pode-se estabelecer a singularidade, e fazer associações agregando valores a elas. O mesmo ocorre com o sujeito (e sua identidade), que forçado a se constituir pela diferença, tem necessidade dos outros. Na medida em que nos vemos “pelos olhos dos outros” (com atribuições da alteridade do outro) marca-se a diferença que nos separa deste outro. Assim, tanto individualmente quanto na consciência coletiva, o sentimento de identidade é urgente, e passa pelo intermédio de uma construção da alteridade.

Se não temos tempo, não temos espaço. Os excessos e “lotações” (apinhamentos [fora e dentro]), são causados pela sensação de enclausuramento vivida pelas personagens. Assim, o contraste com os vazios (como espaço de possibilidades) das transparências, que ao mesmo tempo fazem a fusão de dentro e fora, nada fundem. Charlotte observa tanto a cidade (olha e parece não “olhar nada”), como se procurasse algo que sabe não estar ali. O enquadramento mostra o apinhamento de prédios e luzes na cidade (pessoas e bagunças). Charlotte parece abstraída, não há nada para se ver além de prédios, no entanto, ela continua a olhar... como se o tempo demorasse a passar, como se o seu tempo fosse um espaço (vazio), solitário. Presa no seu tempo (espaço de dentro) vazio, que não flui e não acontece, parece faltar algo, algo “que não se sustenta”. Como se não estabelecesse vínculo com “o fora”. Como se o “fora” e o “dentro” não pudessem coexistir.

Seu quarto “amontoado”, e bagunçado, carece de espaço. E a solidão parece ser condição “apaziguadora” tanto para Charlotte, como para Bob.

A solidão é uma condição para adquirir a sensação de imensidade. A sós, nossos pensamentos vagam livremente no espaço. Na presença de outros, os pensamentos recuam devido ao fato de que outras pessoas projetam seus próprios mundos na mesma área. O medo do espaço muitas vezes vai junto com o medo da solidão. A companhia de seres humanos – mesmo de uma única pessoa – produz uma diminuição do espaço e ameaça à liberdade. Por outro lado, à medida que as pessoas penetram no espaço, para cada um chega um ponto em que a sensação de espaciosidade passa ao seu oposto – apinhamento. (YI-FU TUAN, 2018, p.78).

Perambular pelos lugares causa uma estranha sensação de localização (saber onde se está). Na esfera pública tem-se a ilusão de não estar sozinho, de algum pertencimento. Talvez, esse seja um dos motivos das perambulações de Charlotte pela cidade (as instabilidades dos deslocamentos, das constantes perambulações ocultam uma crise). Na proximidade, no apinhamento, a singularidade desfoca, escapa. Talvez seja preciso “se perder” para encontrar um caminho. Criar caminho (si mesmo). Possivelmente o distanciamento (e as perambulações de Charlotte), seja para poder estar mais perto de si mesma (na busca), a fim de se identificar, de se encontrar. Como se o “caminho para dentro” estivesse fora.

Tanto Bob como Charlotte (presos/perdidos), em seus excessos (como na vida conjugal e no tumulto de seus paradoxos existenciais), não encontraram meio para estabelecer uma possível relação (definição). A fusão aqui, sempre desfoca e desorganiza. Ao mesmo tempo que poderia unir, não une. Confusos num relacionamento em suspensão (inominável), a falta da palavra que define e que estabelece, não encontra lugar. Assim, o desfecho final (in)conclui o filme. Bob e Charlotte se despedem num sussurro.

No ruído, no abraço, no beijo de desejo (e de carinho), algo encontrou pertença. Palavra. Não escutamos. O ruído fissura o silêncio, nos confunde. Não podemos definir. Tudo se repete em suspensão. Ele quer ficar, ele vai embora. Ele segue para um lado, e ela para outro (opostos). Sem palavras.

A câmera em movimento, continua pela direção contrária por onde Bob chegou. No início do filme ele está chegando em Tokyo, e segue em movimento, da esquerda para a direita, na horizontal. Ao ir embora, ele faz o caminho contrário, em movimento da direita para a esquerda, na vertical, regressando. Se deslocam. Deslocamos “junto” com ele (com eles), também “regressamos” (não sabemos por fim, definir o que aconteceu entre Bob e Charlotte). O tempo que parece ter, “o tempo todo se alternado”, permanece em movimento (circular). Volta.

(Des)encontros e Inter/ações

Algirdas J. Greimas (2002, p. 80) nos diz: “todo impulso em direção à estesia está ameaçado de uma recaída na anestesia” - isso gera um processo de automatização. A anestesia, nos termos greimasianos (2002), pode ser rompida por uma espécie de fratura (que se efetiva por momentos de alumbramentos) ou escapatória (como construção sensível que desautomatiza o cotidiano), entretanto, o que há aqui é uma reiteração de ações que automatizam, colocando em cena uma paisagem anestésica, “dada pela carência de experiências interativas e intercomunicantes que se inscreve em uma forma de vida automatizada” (VAZ, 2021, p. 21). As escapatórias por mais que possam ser de ordem poética, e de forma sedutora, são uma espécie de “embuste”, no caso das personagens, não cria a apreensão e o movimento de continuidade. A alternância temporal provocada pelo “momento estésico, traduziriam na superfície uma relação de contrariedade sem mediação possível entre dimensões da experiência vivida concebidas não apenas como independentes, mas também como incompatíveis” (LANDOWSKI, 2017, p. 145). Desse modo, Landowski amplifica:

Efetivamente, uma dessas vivências, a estésica, define-se com a mera negação da outra, ou seja, de uma an-estesia prévia. E vice-versa. Do mesmo modo, em termos aspectuais, a pontualidade do instante decisivo de ruptura interrompe (nega), uma continuidade pressuposta, durativa por natureza. E, finalmente, tratando-se do sentido, tanto a sua aparição (acidental, como já sabemos) quanto a sua presença (efêmera) ocorrem como a simples suspensão de sua própria ausência – ausência esta que há de ser duradoura e, teríamos logicamente que supor, “normal”, mesmo que fosse apenas em razão do seu retorno prometido, inevitável e sempre iminente. (LANDOWSKI, 2017, p. 145).

Como propõe Eric Landowski, a significação que dever-se-ia atribuir ao sentido, (revelado na estesia), supostamente se “esgotaria” à medida em que as reiterações da cotidianidade o “dessemantizam”. “Mantendo-se na perspectiva do evento estésico acidental, não haveria uma resposta para tais perguntas que não seja, mais uma vez, de tipo dualista.” (LANDOWSKI, 2017, p.146).

Da mesma forma que o sujeito se define como um lugar vazio no qual dois estados radicalmente alheios um ao outro se manifestam cada um por sua vez, a noção, de sentido também se apresenta desprovida de conteúdo fixo, já que, como temos observado, remete alternadamente a dois modos de significar que não têm nada em comum. O primeiro é caracterizado como um regime de significação puramente denotativa” em relação a uma vida “aplanada – o que explicaria por que, paradoxalmente, nos próprios termos de Greimas, o “sentido” é aí considerado dessemantizado – enquanto o outro regime, aquele em que se torna possível o advento de um sentido diferente, denominado justamente de “outro”, é descrito como pleno de um conteúdo “deslumbrante” cuja apreensão permitiria vislumbrar, além do parecer, o próprio ser das coisas. (LANDOWSKI, 2017, p. 146)

Entre a elucidação de Landowski, pelos termos de Algirdas J. Greimas (2017), por essa “plenitude de sentido” em contraposição (e simultaneamente) ao “vazio ao qual – nos é dito – se opõe, este modelo não prevê gradações nem se preocupa em estabelecer matizes”. (LANDOWSKI, 2017, p. 146). A partir deste contexto, podemos associar o conceito da psicanálise de negação que define: “Negação: Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos até então recalcado, continua a defender-se dele negando que lhe pertença” (LAPLANCHE E PONTAILS, 2001, p. 293). Em termos Freudianos, estabelece-se a respeito “a negação” (Die Verneinung, 1925) três afirmações convergentes:

  1. “A negação é um meio de tomar conhecimento do recalcado [...];
  2. “O que é suprimido é apenas uma das consequências do processo de recalcamento, isto é, o fato de o conteúdo representativo não atingir a consciência. Daí resulta uma espécie de admissão intelectual do recalcado, enquanto persiste o essencial do recalcamento;
  3. “Por meio do símbolo da negação, o pensamento liberta-se das limitações do recalcamento...”
    Essa última afirmação mostra que, para Freud, a negação de que trata a psicanálise e a negação do sentido lógico e linguístico (“o símbolo da negação”) têm a mesma origem (...). (LAPANCHE E PONTAILS, 2001, p. 295)

Partindo desta premissa, pode-se pensar, que se o sujeito (como nas personagens fílmicas) teria a capacidade de formular um de seus desejos, pensamentos ou sentimentos (até então recalcados), e continua a defender-se dele (desejo) negando lhe pertença (de forma inconsciente), é como se um “ir”, que se depara com o querer esquecer (não querer ver), “voltasse”. Esse movimento de “volta”, anestesia. O vazio que seria e poderia ser a viabilidade de uma “ação”, movimento/ pertencimento... são sentidos como “excesso”, como se imerso em si mesmo (um mergulhar em si). Também representado/apresentado imageticamente nos filmes que, ora alternam em imagens que “transbordam” e quase sufocam, com as vazias, silenciosas. O silêncio enfatiza o esvaziamento da imagem/na imagem. A interferência de barulhos, ruídos (e sussurro) como em Lost in Translation tanto como as vozes sem corpo em Her (o barulho do motor da Ferrari (que perambula e gira em círculo) em Somewhere, perturba e “estranha”.

No caso das personagens, ao experienciar o espaço estésico e fluir (o desejo), cindem, cortam. Quebram (seriam essas também, escapatórias do repetitivo estado de anestesia das personagens?). Este estado de negação em que estariam as personagens, resultaria como “um ver sem ver” que desfoca e embaça, próprio das imagens que compõem Lost in Translation. O contexto de deslugar, seria ‘estado/espaço’ nesse processo (ou o próprio processo de se estar em negação). A partir do momento em que as personagens (no movimento de estabelecer conexão com o outro), na ação, não suportam o “contato” (com o desejo?) e entram em estado anestésico. Volta (não apreende, não estabelece). Anestesia.

Pode-se a isso, associar as cenas em que Bob, protagonista de Lost in Translation, se vê nos outdoors da cidade. A imagem artificial de si estampada como propaganda (de si/de outro), compondo as imagens da cidade (o estático que se opõe ou que está oposto ao movimento), parece também, causar estranhamento/desterritorialização/desacomodo na personagem.

Figura 05- Frames de Lost in Translation (Sofia Coppola, EUA, 2003).

Pode-se perceber similarmente, em Somewhere, imageticamente que, o que causa esse desacomodo/desconexão, em Johnny, parece ser o contato com o desejo (no caso) da outra/das outras (mulheres). Ao mesmo tempo em que ele quer se relacionar com uma mulher, se sente aterrorizado por ela/elas. Imageticamente, o outdoor na cidade visto pela sacada de seu quarto de hotel (com distanciamento), estampa a foto de uma modelo. Imenso, iluminado (no meio da escuridão, e que está fora, compondo a cidade), parece ser parte constituinte dos conflitos de Johnny.

Figura 06- Frame de Somewhere (Sofia Coppola, EUA, 2010).

A frase/palavra que não pergunta nem afirma (e assusta) “do you” (Você. Você... Você! Você? – ele não sabe) ilustrada no outdoor, no enquadramento da imagem, pela visão (ensimesmada) de Johnny, essa figura parece falar diretamente com ele/para ele. Podemos pensar que assim se define parte do estado de deslugar (quer/não quer/ é não é) do ator.

Mesmo estado que aparenta estar Theodore em Her o “fora” é percebido como ameaça, essa que Theodore “sente” nas relações (com o mundo, com o outro) como se esse mundo o “capturasse”, o “devorasse”. Imageticamente, um exemplo se dá na cena em que Theodore está desolado/isolado, sentado num muro pela cidade, e por trás, um pássaro gigante parece o ameaçar (capturar?), como se estivesse desprotegido, vulnerável (do outro? /de si?).

Figura 07- Frame de Her (Spike Jonze, EUA, 2010).

Essa sensação/estado de solidão que experimenta Theodore (tal qual as demais personagens analisadas), seria o estado de negação em que se encontram (?).

Podemos pensar que a “negação” aqui é empregada não somente restringindo-se ao termo usado na psicanálise, mas em seu termo ampliado, com possibilidades ramificadas neste contexto. Então, a partir desta “ideia” de negação proposta, podemos “repensar” as personagens, e a própria composição imagética dos filmes, que sugere nas alternâncias de iluminação/obscuridade, as quebras de estesia, e o próprio recalcamento, (que recai sobre o obscuro, indizível, e que parece anestesiar). Aprisionar. Assim, estaria Johnny em profunda negação, como Bob (que aparentam desistência de “um sentido na vida”), tal como, Theodore que atravessa “um recente estado de negação”, sobre sua recusa quanto ao término de seu ex casamento. Ainda, Charlotte, de Lost in Translation, que parece lentamente (ainda pela pouca idade) iniciando este processo, tal qual as demais personagens. Poderiam as personagens representarem/retratarem o sofrimento/sintoma do sujeito contemporâneo? Como coloca Haroche (2008):

Sob o impacto da globalização, as sociedades contemporâneas tendem a se tornar sociedades que se transformam de maneira contínua; sociedades flexíveis, sem fronteiras e limites; sociedades fluídas, líquidas. Tais condições tem consequências sobre os traços de personalidade, dos mais contingentes e superficiais aos mais profundos, sobre os tipos de personalidade que tendem a desenvolver, e mesmo encorajar, e também sobre a natureza das relações dos indivíduos. A fluidez destituída intrinsecamente de limites acarreta modificações nas estruturas e pode pôr em questão a possibilidade de estruturação e mesmo de existência do eu.
(HAROCHE, 2008, p.123).

“É possível pensar imerso na fluidez, sob pressão permanente e ininterrupta do fluxo? Privado de tempo, da duração exigida pelos sentimentos, o indivíduo hipermoderno pode experimentar algo diferente das sensações?” (HAROCHE, 2008, p. 123). Alguns estudiosos, aponta Haroche (2008), delinearam traços de comportamento e de caráter específicos do extremo individualismo contemporâneo, como: “a indiferença, o desinteresse, o desengajamento, a falta de elã, a ausência de espontaneidade, o cálculo permanente, a instrumentalização de si e do outro, os comportamentos fugidios e o desvencilhar-se” (HAROCHE, 2008 p. 127). “Esse sujeito” aparentemente, não é capaz de construir e sustentar uma realidade, “triste figura, deste sujeito a quem não ocorrem acidentes e que vive sem viver aventuras!” (LANDOWSKI, 2017, p. 150).

Assim, característica das personagens, que parecem ter deixado de crer no inesperado, e deixado também de acreditar no próprio fazer estésico (do qual o movimento de “tentar contato”, faz com que recaiam na anestesia) numa espécie de “automatização da solidão”, no qual este sujeito solitário está em deslugar (personagens), e vai se distanciando (do outro, e de si). Alienando-se (perdendo-se), até que ele perca a capacidade de apreensão/sentido, estésico. Ou seja, a aproximação (com o outro) parece “ficar perto demais”, de uma forma, que “perde-se o senso” dos limites entre “eu e outro”. Confunde (como um desfocar do olhar), desorienta. Então recuam, e sem estabelecer “entrelaçamentos” (necessários para a criação de “sentido de vida”) a ação vira não ação, descontinua, para e anestesia. Não se sustentam. Cindem, se dividem. Não há simultaneidade das emoções. Perde-se algo que não se sabe o nome. Perdidos na tradução.

Solidão experimentada na aglomeração. Quando há estesia, o que poderia se apreender, se desprende, se dessensibiliza. As imagens, mesmo em movimento, parecem parar no tempo. Entediando. Desconectando, fragmentando, desunindo, partindo. Estão nesse perambular por “onde se sabe não ter aonde”. Muitos caminhos, muitos espaços, muitos lugares (são muitos excessos), e “são nenhum” (são deslugar). Desconectam-se na procura de si (fora de si). Sem direção, no distanciamento de tudo que dá prazer (anedonia). O outro parece assombrar (e sedar). Tentativas de laços são feitas. Estesia. Petrifica. Ilusão. Projeção. O fora e o dentro não conseguem coexistir. Não está nem aqui, nem ali (e está aqui e ali). Se juntam sem se fundir, na transparência que confunde (que invade). Atravessa. Não fixa, não fica, e não sai daqui.

Considerações Finais

Semelhantes no semblante, nos conflitos, solitários e anestesiados. O movimento de tentativa de sair deste “estado”, vai (e não vai), volta. Na repetição das personagens, tanto quanto na “repetição” imagética, compõem-se de opostos. Ao mesmo tempo em que pareciam se juntar, não havia fusão, se distanciavam. “Indo e vindo”, perambulando. No contraste de “mais para dentro”, “mais para fora” (e nem fora nem dentro), principalmente em Bob e Charlotte, que se “seduziam” com harmonia/desarmonia. E como em Her, Theodore, que tanto se fechava em solidão, acaba por se apaixonar ilusoriamente (talvez por ele mesmo) por uma voz tão distante e ausente (quanto o próprio distanciamento de si). Embaçamentos que ofuscam sentidos, assim como em Lost in Translation, imageticamente, podemos deduzir que tanto Theodore como Johnny, “fecham os olhos para fora” (se fechando em si).

A simultaneidade do desconforto e inadequação, e a impossibilidade de nomear (tanto dentro como fora), deixam as personagens quase como em estado (cotidiano) de evanescência. Nos filmes, o deslugar compõe os jogos imagéticos que parecem dançar no ritmo da alternância das polaridades. Esse “vai e vem” (não vai e não vem), oscilam repetidamente. O que poderia ser possibilidade, reconstituição, não forma, é da ordem de uma impossibilidade. As ações, são não ações (não fluem). Os gritos se abafam no silêncio. Os reflexos desfiguram, embaçam. O escuro e o claro (muito claro, muito escuro), e as paisagens, vão quase como destituindo o sentir/sentido, é “se” estar em deslugar.

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Filmografia

Her. Direção: Spike Jonze. Estados Unidos. 2013 (2h 06min).

Lost in Translation. Direção: Sofia Coppola. Estados Unidos; Japão. 2003 (1h 41min).

Somewhere. Direção: Sofia Coppola. Estados Unidos. 2010 (1h 38min).

Tokyo-ga. Direção: Wim Wenders. Alemanha; Estados Unidos. 1985 (1h 32min).