Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

“It’s hard to say whether that idea is really hers”: technology as an identity disruptor in Possessor (2020)

“It’s hard to say whether that idea is really hers”: a tecnologia como elemento disruptor de identidade em Possessor (2020)

André Francisco

CEAUL-ULisboa, Portugal

Abstract

Possessor (2020) is a science fiction film written and directed by Brandon Cronenberg. The story, set in an alternative universe, follows Tasya Vos, an assassin that uses a special machine to take control of others’ bodies to carry out her hits. Through an implant installed in the unwitting host’s brain, Vos insert her consciousness into their minds, forcing them to commit the assassination. As such, the film explores the relationship between technology and identity. The hosts lose control of their own body, while Vos, by being constantly in control of others’ bodies, living their lives, loses sense of herself and her life.
In this sense, technology and the individual are tied to modernity, which is characterized by Gilbert Simondon as the appearance of a new type of individual. Man was a tool carrier before the machines, and he was the technical individual himself. In the modern-industrial era, machines are the tool carriers and man is no longer the technical individual; he has become either their servant, or their assembler (apud Stiegler, 2014).
Taking this into account, the purpose of this study is to analyze how Possessor uses technology as a destructive and dystopian force that threatens every aspect of our reality, generating a dehumanizing effect, and how the film explores the idea of technology being responsible for the lack of identity and the violence, thus revealing some of the malaise of our contemporary society.

Keywords: technology; identity; violence; society; dehumanization.

“Technological progress has merely provided us with more efficient means for going backwards.”
― Aldous Huxley, Ends and Means

“Every advance in knowledge and technique is matched by a new kind of death, a new strain. Death adapts, like a viral agent.”
― Don DeLillo, White Noise

“This might be a bit of a rough jump”: Introdução

No livro Science Fiction Film: A Critical Introduction, Keith M. Johnston refere que as linhas temáticas exploradas tendencialmente pela ficção científica relacionam-se com elementos como a tecnologia, a ciência, o futurismo ou a figura do outro (2011, 7). Uma possível e simples definição do que é a ficção científica passa pela representação de situações e histórias que exploram as nossas esperanças mais promissoras e os nossos medos mais sombrios, que um dia se podem tornar realidade (AFI 2008c, 35). A importância destes temas encontra-se intrinsecamente ligada ao início do próprio cinema, se tivermos em conta, por exemplo, Le Voyage dans la Lune (1902) de Georges Méliès.

A intersecção entre a tecnologia enquanto causadora de medos e ansiedades está também ligada ao início da arte cinematográfica. Para além das várias adaptações da obra do autor Robert Louis Stevenson, Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, a adaptação de 1931 da obra Frankenstein, de Mary Shelley, realizada por James Whale, representa uma tentativa inicial de um estúdio de Hollywood de unir uma premissa científica / tecnológica com a especulação imaginativa. Apesar da correcta classificação do filme como parte do género de terror, atendendo às questões temáticas e textuais, bem como à abordagem estilística inspirada no expressionismo alemão, Frankenstein pode, igualmente, ser identificado como uma narrativa de ficção científica, uma vez que dramatiza uma história de experiências científicas, focando-se no laboratório e nos equipamentos do Dr. Henry Frankenstein (Johnston 2011, 23).

A combinação do terror com a ficção científica tem originado, ao longo da história do cinema, alguns dos títulos mais reconhecidos em ambos os géneros. Exemplos disso são os filmes: Invasion of the Body Snatchers (1956), The Last Man on Earth (1964), Alien (1979), The Thing (1982), Videodrome (1983) e The Terminator (1984). Para além de explorarem uma ideia de medo associada às possibilidades da tecnologia, estes filmes têm em comum temas como a questão da identidade, a violência e a desumanização.

Partindo deste princípio, o presente trabalho tem como objectivo analisar como o filme Possessor (2020), realizado por Brandon Cronenberg, levanta questões sobre o carácter violento da tecnologia e como esta pode afectar a identidade, gerando um efeito de desumanização nos seus utilizadores. Para tal, este estudo centrar-se-á na protagonista, olhando, primeiramente, para como o seu trabalho e a relação que tem com a tecnologia afectam a sua identidade e, em particular, a sua relação com a família. Posteriormente, será efectuada uma breve reflexão sobre a violência nos filmes de terror e sobre a sua função narrativa, para, por fim, analisar algumas das cenas mais violentas de Possessor, destacando a sua importância para a narrativa e a sua possível simbologia. Esta análise terá como propósito tentar compreender o papel desempenhado pela tecnologia no processo identitário e como a violência se apresenta como uma consequência desse mesmo processo.

“I barely recognize myself anymore”: A tecnologia e a identidade em Possessor (2020)

Possessor é a segunda longa-metragem do realizador Brandon Cronenberg, após a sua estreia na realização com o filme Antiviral (2012). Os seus dois filmes exploram a ideia de construção e/ou falta de identidade que é revelada através da sobreposição de corpos ou pela transfusão de células entre corpos. Aliás, a questão da identidade, em particular a cinematográfica do realizador, é muitas vezes alvo de atenção devido ao peso do apelido que carrega. Filho de David Cronenberg, lendário realizador de Videodrome (1983) e The Fly (1986), Brandon parece ter “herdado” um certo modo de fazer filmes que se constroem com base na relação da tecnologia e da ciência com o corpo humano. Todavia, apesar da proximidade ‒ ambos já trabalharam dentro do género da ficção-científica e do “body-horror” ‒ Brandon refere o seguinte a respeito dessa fácil associação ao cinema do seu pai:

I have a good relationship with my father, but it’s not like we sit around talking about body horror. People on the outside are always going to make comparisons, but my films are an honest expression of my own obsessions. (s/p, 2020)

Antiviral parte, precisamente, de uma dessas obsessões. Em 2004, quando ainda se encontrava na escola de cinema, e durante um período em que esteve bastante doente, começou a reflectir sobre o aspecto físico da sua doença e no facto de esta, agora no seu corpo, já ter estado no corpo de outra pessoa. Este aspecto “íntimo” da doença levou-o a pensar em pessoas que são obcecadas por celebridades e como essa obsessão poderia superar a repulsa em relação à doença (Cronenberg, s/d). O filme tem como protagonista Syd March (Caleb Landry Jones), um empregado da Lucas Clinic, uma empresa que compra vírus e outras patologias de pessoas consideradas famosas que adoecem para, posteriormente, as vender e injectar em clientes que desejam conectar-se de um modo mais íntimo com a sua celebridade favorita.

No caso de Possessor, é abordada a questão identitária do ponto de vista da relação do ser humano com a tecnologia. Num universo alternativo, no ano de 2008, Tasya Vos (Andrea Riseborough) é uma assassina que trabalha para uma empresa de espionagem industrial que transplanta a consciência dos seus agentes para um hospedeiro involuntário, seleccionado pela sua proximidade do alvo a assassinar. A vítima é raptada e submetida a uma pequena operação cirúrgica que lhe coloca um chip no crânio, introduzindo desse modo a consciência do assassino no corpo, do agora “zombieficado”, hospedeiro. Deste modo, e durante 48 horas, aquele corpo é controlado remotamente através de uma máquina semelhante a uns óculos de realidade virtual de maior dimensão, como um robô ou um avatar de um videojogo e conduzido até ao alvo, perto o suficiente, para o assassinar.

Esta tecnologia lembra The Matrix (1999) ou Avatar (2009), mas neste caso, serve para controlar outro ser humano. Porém, o trabalho acarreta um certo grau de perigo, uma vez que o “possuidor” pode sofrer graves consequências dependendo do tempo que passa enquanto parasita psicológico, em particular, a perda do controlo da sua própria identidade (Kermode, 2020). Vos, enquanto activo mais valioso da empresa, e pelo tempo que passa a controlar outros corpos que não o seu, vive em constante conflito com o crescente distanciamento em relação à sua própria identidade, não conseguindo separar totalmente o seu trabalho das interacções com o marido, Michael (Rossif Sutherland), e com o filho, Ira (Gage Graham-Arbuthnot).

Sobre a problemática de como trabalho e a tecnologia podem condicionar a identidade e as relações humanas, Lewis Mumford, no seu livro As Transformações do Homem (2021), afirma que a tecnologia “procura eliminar o elemento humano”. Ao tornar-se cada vez mais próximo da máquina, o homem é “reduzido tanto quanto possível a um conjunto de reflexos de modo a adaptar-se às necessidades de outras máquinas” (2021, 209). No filme, Vos vive uma vida dupla: por um lado é mãe, esposa e mulher de família, por outro, é uma assassina que, para se tornar mais eficaz no seu trabalho, ou seja, uma “máquina perfeita”, necessita de alcançar um grau de desprendimento emocional em relação ao seu mundo familiar. Como Mumford refere: “Todas as conquistas e memórias passadas, todos os desejos e esperanças, todas as suas inquietações e todos os seus ideais são obstáculos” (2021, 209). À medida que a família de Vos se vai transformando num obstáculo, o seu desequilíbrio identitário aumenta, uma vez que nunca lhe é possível manter um equilíbrio entre o doméstico e o profissional.

Ao tentar encontrar-se nos dois mundos a que pertence, a protagonista vive numa constante necessidade de procurar a personagem que deve interpretar de acordo com a situação em que se encontra. Quando questionada por Girder (Jennifer Jason Leigh), a sua chefe, sobre o método escolhido na execução de um alvo, atendendo ao facto de lhe ter sido dada uma arma para concluir de forma “limpa” o trabalho, Vos responde que a sua escolha, isto é, a utilização de uma faca, lhe parecera mais dentro da “personagem”, levando Girder a questionar: “Whose character?”. Subentendidamente, a sua escolha em nada se relaciona com o carácter do hospedeiro, mas sim com o seu próprio ou, pelo menos, com a “personagem” violenta que ela parece estar cada vez mais a incorporar.

Por sua vez, quando regressa a casa depois de um período de ausência, esta necessidade de encontrar uma “personagem” é também evidenciada. Momentos antes de interagir com a sua família, Vos é colocada no centro do plano, enquanto a câmara funciona como espelho das suas vocalizações e dos seus exercícios faciais, na procura, no seu interior cada vez mais desintegrado, da identidade / personagem a que corresponde o seu eu enquanto mãe e esposa. Este comportamento ganha uma nova dimensão quando comparado com a cena em que assistimos à sua rotina de preparação para um novo trabalho. Vos observa os comportamentos, os gestos e a colocação de voz de Colin Tate (Christopher Abbott), o seu novo hospedeiro, ensaiando para a personagem que irá interpretar. A câmara, desta vez fotográfica e presente na cena, apresenta uma dupla função: capturar os hábitos da vítima através da lente de grande alcance, ao mesmo tempo que o ecrã do equipamento, por onde Vos observa, se transforma, simbolicamente, num espelho onde ela vê reflectido o seu futuro “eu”. Vos olha para Colin como se já olhasse para si mesma.

Estes comportamentos mostram como a sua verdadeira identidade começa a desvanecer-se à medida que se vê confrontada com a necessidade constante de ser um “outro”, ao ponto da sua relação familiar se ter tornado em mais uma das suas performances. Apesar desse estranhamento em relação ao seu marido e ao seu filho, e embora as pressões e o sigilo do seu trabalho os tenham afastado, Vos continua a ser atraída de volta a casa. O lar parece ser o local onde o seu eu já em ruínas, assim como o que resta da sua humanidade, ainda tem os seus fundamentos mais firmes. A sua família funciona como uma espécie de âncora que a ajuda a manter as partes contraditórias da sua identidade – mãe, esposa, assassina – compartimentadas (Bitel 2020, s/p).

Podemos olhar para este desequilíbrio que se estabelece entre as relações familiares e as obrigações laborais enquanto representação simbólica dessas mesmas relações na contemporaneidade. Mark Fisher destaca a obrigação, a confiabilidade e o compromisso, como valores pelos quais se rege a vida familiar. Estes passam a ser considerados obsoletos no novo capitalismo. A família é cada vez mais um lugar importante pois possibilita o descanso das pressões de um mundo onde a instabilidade é uma constante (2009, 40). Talvez por este motivo, Vos ainda tente encontrar essa estabilidade na sua família. Todavia, Mark Fisher acrescenta:

The situation of the family in post-Fordist capitalism is contradictory, in precisely the way that traditional Marxism expected: capitalism requires the family (as an essential means of reproducing and caring for labor power; as a salve for the psychic wounds inflicted by anarchic social economic conditions), even as it undermines it (denying parents time with children, putting intolerable stress on couples as they become the exclusive source of affective consolation for each other). (2009, 40)

No caso particular de Vos, atendendo ao tempo que passa afastada da família, esta começa a perder a sua capacidade de lhe fornecer um sentimento de conforto e segurança, pois este é substituído pelas sensações que o seu trabalho lhe provoca. Para além disso, existem ainda as constantes pressões por parte de Girder, aqui vista como uma representação da entidade patronal que espera um desempenho irrepreensível por parte da sua empregada. Ao lembrar-lhe do perigo que ela representa para família, tendo em conta a sua profissão, e da importância da sua função na empresa (“Our next contract’s almost finalized, and it’s a big one. I can’t have my star performer falling apart on me.”), Girder tem a função de contrapeso institucional que procura retirar da sua empregada o melhor desempenho possível, procurando afastá-la daquilo que ainda pode condicionar a sua produtividade: a família.

Assim, o poder corporativo – a mercantilização, a reestruturação tecnológica, a globalização, etc. – trabalham persistentemente para enfraquecer tanto o tradicionalismo como a própria modernidade, como notam Boggs & Pollard (2003, 230). Sobre esta questão, os mesmos autores acrescentam ainda:

Lacking any notion of a stable or centered self, postmodern cinema checkmates any prospects for social or political stability. In the end, postmodern cinema constructs a Hobbesian universe filled with a colorful assemblage of antiheroes, drifters, outcasts, marginals, and just ordinary losers. (2003, 230)

Vos, enquanto parte desse universo, apresenta-se como uma personagem furtiva e perpetuamente à procura de onde se integrar e de uma identidade pessoal, num mundo repleto de turbulências psicológicas e sem sentido social (2003, 230). A subjectividade, e como veremos mais à frente, a violência, emergem quando ela consegue libertar-se dos constrangimentos das suas obrigações familiares.

A dualidade dos dois mundos de Vos é explorada também em termos formais. Brandon Cronenberg e o seu director de fotografia, Karim Hussain, procuram reflectir narrativamente, através da cor, da câmara e dos espaços, o conflito interior da personagem e o seu estado psicológico. Sempre que a observamos, ou temos acesso ao seu ponto de vista, no controlo de um outro corpo / dentro da máquina é utilizada uma steadicam para manter a estabilidade da câmara quando se move, mas também são utlizados alguns planos fixos. Estas escolhas evidenciam a própria estabilidade sentida pela personagem quando desempenha o seu trabalho. Quando ocupa o corpo de outro e está prestes a matar alguém, o mundo revela-se um lugar estável, seguro e que lhe proporciona uma certa felicidade. É também um mundo tendencialmente feliz e exuberante e isso é visível nos espaços que ocupa. Quando controla Colin, Vos move-se por apartamentos luxuosos em arranha-céus, cheios de luz natural, situados no centro da cidade, em pleno ambiente urbano, bem como por infra-estruturas megalómanas, tecnologicamente avançadas, como é o caso da sede da empresa Zoothroo, por mansões arquitectonicamente ostentosas, revestidas de mármore, com frescos nos tectos altos e piscinas interiores ou pelo lounge de um hotel de luxo. A cor também é um elemento utilizado para diferenciar as duas realidades da protagonista. Por exemplo, as luzes néon, vermelhas, azuis e amarelas que vemos em alguns dos espaços mencionados, bem como as luzes dos arranha-céus num ambiente nocturno, são usadas como forma de destacar, simbolicamente, o quão cativante e opulento é aquele mundo para a personagem, em contraste com o seu mundo “real”.

Em contrapartida, quando Vos se encontra no seu próprio corpo a câmara passa a ser suportada pela mão do operador. Esta opção, que leva a imagem a oscilar, revela a instabilidade sentida no ambiente familiar. Vos sente-se estranha e desconfortável nesse papel, num espaço (a sua casa) que se tornou inóspito e onde não se sente feliz. Os movimentos incertos da câmara mimetizam o seu deambular interior. A casa situa-se num lugar suburbano e despersonalizado, como a própria personagem. O interior do espaço é colocado, na maior parte dos casos, em desfoque e em segundo plano, enfatizando a distância sentida pela protagonista, como que a diluir-se da sua memória. Similarmente, o seu local de trabalho, também despersonalizado, apresenta-se como um lugar sombrio e minimalista. Estes dois lugares são, tendencialmente, pouco iluminados ou obscuros, transmitindo o sentimento de alienação e de impostura em relação à sua própria vida. Em termos de cor, a sua casa encontra-se rodeada por um cinzento desbotado, enquanto o interior surge como um espaço sem vida, de cores pouco saturadas. O local onde se encontra a máquina que permite Vos controlar outros corpos é quase monocromático. Por essa razão, devido à palidez da sua pele, próxima da debilidade, e aos seus olhos frios, sem vida, Vos assemelha-se a um fantasma, mas neste caso, um fantasma reverso: presente a nível físico através do seu corpo, mas desprovido de uma alma ou identidade que a defina, logo, de interior espectral.

Assim, Vos pode ser entendida como um ser assombrado por um passado identitário que o ligava à sua família, mas também por um futuro incerto que a afasta cada vez mais das ligações humanas que conseguiu estabelecer ao longo tempo. Ao estreitar cada vez mais a sua ligação entre a sua identidade, a função que desempenha e a máquina que lhe permite tomar outros corpos, Vos torna-se um agente passivo e, por último, uma das vítimas da tecnologia, aproximando-se, vertiginosamente, da desumanidade. A falta de relação afectiva com o outro, pode, nas palavras de Byung-Chul Han, causar “uma crise de gratificação” uma vez que o auto-reconhecimento pressupõe uma ligação afectiva com um outro. Na impossibilidade de se auto-reconhecer e de se recompensar a si mesmo, o sujeito vê-se “obrigado a desempenhar” e a produzir cada vez mais (2011, 33). Por sua vez, Mumford refere que “a simpatia e a empatia, a capacidade de participar com imaginação e amor nas vidas de outros homens”, não têm lugar nesta metodologia. Uma vez que é “exigido que todos os homens sejam tratados como objectos”, estes, face à despersonalização latente, tornam-se delinquentes e “em última análise, um monstro em potência” (2021, 210). É precisamente esta tendência monstruosa que ganha destaque na vida de Vos, pois os seus impulsos violentos que vão para lá do “necessário”, mesmo enquanto assassina profissional, começam a evidenciar-se. Neste sentido, na seguinte secção olharemos para o modo como a violência é representada em Possessor, enquanto consequência do esbatimento da identidade da personagem, da sua crescente desumanização e como isso se relaciona com a tecnologia.

“Sometimes, that’s all it takes to lose control”: A violência e a identidade em Possessor (2020)

Antes de olharmos com mais detalhe para o modo como a violência é explorada e se torna importante no processo narrativo de Possessor, torna-se relevante atentar, resumidamente, para alguns dos papéis que a violência pode desempenhar no cinema, em particular no cinema de terror. A respeito da violência e da sua definição, James Kendrick, em Film Violence: History, Ideology, Genre, indica:

The long-running Cultural Indicators project, one of the foremost studies of media representations of violence and its reception by audiences, has used the broadest of definitions: ‘violence was found to be primarily a demonstration of power’ (Gerbner, Gross, Morgan & Signorielli 1994:19). More specifically, project researchers have defined violence as ‘the overt expression of physical force against self or other, compelling action against one’s will on pain of being hurt or killed, or actually hurting or killing’ (Gerbner and Gross 1976:184). Similarly, David L. Lange, Robert K. Baker and Sandra J. Ball define a violent act as ‘The threat or use of force that results, or is intended to result, in the injury or forcible restraint or intimidation of persons, or the destruction or forcible seizure of property’ (1969:235). (2009, 9)

Podemos afirmar que a violência faz parte do entretenimento e da arte, tanto quanto da vida. A ficção é um dos modos como os indivíduos e as comunidades lidam com a violência e com os medos que ela evoca. Contudo, mesmo aprendendo algo sobre a violência e a brutalidade a partir de representações ficcionais, paradoxalmente, essas mesmas representações podem servir como entretenimento, logo, são originadoras de prazer (Bacon 2015, 11). Sobre o paradoxo da violência, Henry Bacon acrescenta:

Violent entertainment feeds on a certain paradox. Although violence is generally thought to be something frightening and horrifying, for a significant if not major part of the population its representations award pleasures of sorts. In an aesthetic context, those negative primary reactions can give rise to a variety of meta-emotions as a way of coping with, even achieving a kind of quasi mastery over, the concerns and anxieties the very thought of violence evokes in most of us. As was argued above, due to certain patterns of responding to things that are thought to be horrific or which entail the idea of loss, aesthetic detachment also allows us to experience violence and our own responses to it as something almost involuntarily fascinating. This affective structure can be exploited by certain narrative and more specifically cinematic means to create a variety effects ranging from laughter to shock. Often these are based on appealing to prevailing notions about good and evil, treated either in an entertainingly simplistic fashion or with the aim of exposing their underlying complexities. (2015, 86)

Narrativamente, a violência apresenta-se como um conceito complexo, podendo ter, como John Fraser refere em Violence in the Arts, inúmeras e variadas funções: violência como fuga à realidade, como auto-afirmação, autodefesa, autodescoberta ou autodestruição. Mas também como libertação, comunicação ou como um jogo (1974, 9).

Tratando-se Possessor de um filme que explora a violência no contexto do cinema de terror, é importante referir como é que esta é, tendencialmente, explorada narrativamente no género. Uma das possibilidades de classificação parte de duas funções: a reaccionária e a transgressiva. No seu papel reaccionário, a violência tende a ser exercida por personagens malignas e figuras que simbolizam a autoridade patriarcal: cientistas, polícias ou soldados. Este tipo de violência marca uma divisão clara entre o bem e o mal (Kendrick 2009, 85). Os filmes de terror, como é o caso do subgénero Slasher, podem também mostrar a impotência do poder masculino. Namorados, polícias ou outras personagens masculinas no papel de salvador, falham constantemente na missão de salvar a rapariga em perigo, acabando por ser uma mulher a conseguir pôr fim às agressões (Clover 1992, xii). No que diz respeito ao seu caracter transgressivo, a violência no terror pode sê-lo num sentido puramente visual. A violência gráfica é transgressiva por expor o que, segundo as normas culturais, deveria ser oculto, ameaçando assim a ordem social vigente. Ao induzir recções físicas aos espectadores, numa cultura que mantém a contenção e o decoro como altos padrões morais, provocar tais reacções pode não ser socialmente aceite (Kendrick 2009, 85). A respeito da violência gráfica, Kendrick acrescenta:

The taboo aspect of graphic violence – the way it allows us to see what is normally hidden and reflect on the fragility (and grossness) of our own bodies – is key to the appeal of watching gory horror movies, even though viewers understand it as a constructed fiction to which they willingly subject themselves and their insecurities. (2009, 82)

Para além de acentuar a fragilidade dos nossos corpos, a violência pode permitir um olhar simbólico sobre a sua natureza. Em termos narrativos, pode ser usada para examinar a natureza da responsabilidade e da culpa, mapeando como as condições sociais, as estruturas hierárquicas ou a procura de fortuna, fama ou, a simples, felicidade, podem levar a múltiplas formas de violência (Bacon 2015, 84).

Nesta perspectiva, podendo a violência adquirir múltiplos significados, em Possessor, o seu realizador refere o seguinte a respeito do seu uso:

The violence in Possessor is incredibly narrative because so much of Vos’s character is defined by her relationship with violence… It was important for audiences to understand those experiences on a visceral level because that’s how they can understand her. The depiction of violence in the film shifts to track her psychology. (2020, s/p)

Logo, tendo em conta a função aqui referida, torna-se necessário olhar para os principais momentos violentos do filme e analisar a sua importância no desenvolvimento identitário e na própria caracterização da protagonista.

Na primeira cena do filme, vemos Holly Bergman (Gabrielle Graham), controlada por Vos, a matar violentamente Elio Mazza (Matthew Garlick). Como referimos anteriormente, em vez utilizar a pistola que lhe é dada, Vos pega numa faca, ataca o pescoço do alvo e, posteriormente, desfere inúmeros golpes no torso do homem. A protagonista parece ser dominada por um impulso quase sexual que atinge o seu clímax quando no chão surge uma grande quantidade de sangue. Nesse momento, a câmara faz um plano aproximado da sua mão para destacar o modo como esta desliza prazerosamente no sangue espesso espalhado pelo chão. Depois, também em plano aproximado, a câmara atenta nos seus dedos que sentem o sangue que deles escorre e, em segundo plano, o seu rosto surge desfocado, a comtemplar esse gesto. A dimensão sexual da violência e a atracção que exerce sobre Vos é consolidada na cena em que esta se encontra a ter relações sexuais com o marido. É apresentado um grande plano do seu rosto lívido durante o acto, enfatizando o seu estado de alienação, para de seguida surgir a memória, em plano aproximado, da faca a entrar no pescoço de Elio Mazza. Vos, até então desligada do marido, ganha vida e excita-se sexualmente com essa lembrança. Sobre a ligação latente entre o sexo e a violência, Leo Charney refere:

Violence, like sex, becomes a way to feel present; or, more accurately, to mime presence, to manufacture a sensation of presence in the face of the impossibility of presence. Moments of violence aspire to restore, or at least to represent, the moments of tangible presence that are otherwise unachievable, as if their very force could hurtle them into the inside of a present moment. Violence and sex become aspirations to attain the immediacy of that sensational moment, but the apotheosis of sensation can by definition never be reached, and the inability to assuage the loss only intensifies the drive to do so. (2001, 49)

A impossibilidade de se sentir presente na relação física com o marido, face ao estado de desligamento que vive perante a vida matrimonial ‒ incapaz de lhe fornecer qualquer prazer físico ou emocional ‒, leva-a a procurar nas suas memórias violentas a lembrança de sensações que lhe despertam prazer. Todavia, esta cena revela ainda um desejo íntimo da personagem de assassinar o próprio marido, o que, no contexto da cena em questão, é equiparável a uma fantasia sexual. Se a violência é o único modo de Vos obter sensações, eliminar um dos elementos que, de algum modo, a afasta dessa fonte de prazer, ou seja, idealizar a sua morte violenta, parece juntar o melhor dos seus dois mundos. Por conseguinte, a violência enquanto exercício de poder e como oportunidade de libertação está intrinsecamente associada ao desejo sexual.

Outra cena que nos remete para a correlação das ideias de violência e de poder é a da tentativa de assassinato de John Parse (Sean Bean). O magnata é dono da empresa Zoothroo que tem como principal negócio a recolha de dados. Apesar do exterior opulento, o espaço de trabalho dos empregados menos qualificados é caracterizado no filme como uma “sweatshop”, onde, através de uns óculos de realidade virtual, espiam através das câmaras dos equipamentos tecnológicos as preferências da população (que tipo de cortinado, candeeiro, etc., usam), um procedimento um tanto similar ao que empresas como a Google, a Amazon e a Meta fazem e que denominam como “publicidade direccionada”. John Parse é caracterizado como sendo sádico, uma atrocidade e um protozoário2, tendo em conta as condições de trabalho a que sujeita os seus empregados, bem como os meios que utiliza para lucrar à custa das informações que recolhe indevidamente. O seu temperamento e arrogância também se destacam, em particular, no modo como trata a filha e Colin Tate, o seu noivo. Estes detalhes tornam-se pertinentes quando olhamos para a forma como Vos escolhe assassiná-lo. Para se poder aproximar facilmente do alvo é escolhido como hospedeiro o corpo de Colin, antigo traficante de droga, sem familiares próximos.

Em relação ao objecto escolhido, mais uma vez, Vos recusa usar a pistola, optando por usar um atiçador de lareira, para agredir violentamente o seu alvo. A escolha de objectos fálicos (faca e atiçador) para levar a cabo as suas execuções, não é arbitrária. Tratando-se de uma mulher a matar homens com objectos fálicos, somos remetidos simbolicamente para uma subversão da natureza masculina do conceito de violência. Hilary Neroni refere que ambos os conceitos, violência e masculinidade, estão intimamente ligados no cinema, em particular, em Hollywood. Se pensarmos nos filmes do período clássico do film noir, nos westerns, nos filmes de gangsters e nos filmes de guerra, tendencialmente, estes centram-se na masculinidade, assim como na sua conexão com a violência (2005, 19). Assim, a respeito de ser colocada uma mulher enquanto sujeito violento, a mesma autora indica:

One powerful example—one that almost always acts as a nexus for concerns about gender identity—is the violent woman in film. If there is one characteristic that defines masculinity in the cultural imagination, it is violence. The depiction of a violent woman upsets this association of violence with masculinity. (2005, 19)

Consequentemente, a mulher, neste caso, Vos, tal como é apresentada em Possessor representa uma ameaça, uma vez que subverte a relação simbólica entre a violência e a masculinidade (Neroni 2005, 45). Neste sentido, o uso de objectos fálicos poder ser entendida como uma intensificação da própria subversão.

Por sua vez, o modo violento como decide atacar John Parse está simbolicamente associado às características mais evidentes do seu alvo. Em primeiro lugar, Vos começa por agredir violentamente a boca / a garganta / os dentes. Estes locais parecem ser escolhidos como modo de punição pela sua arrogância e pelo modo superior com que se apresenta em relação aos outros. Ao afectar-lhe permanentemente a fala – Parse acaba por não morrer, aparecendo mais tarde uma cadeira de rodas, completamente debilitado – é como se lhe retirasse uma parte de si que lhe permitia superiorizar-se aos outros. Em segundo lugar, Vos ataca o olho direito de Parse, como que alegoricamente o castigando pela intrusão na privacidade das pessoas que espia através das câmaras dos dispositivos.

Para além disso, podemos ainda remeter, uma outra vez, para a dimensão sexual da violência. Por um lado, a mais obvia conexão encontra-se na ideia do objecto fálico a ser inserido em orifícios corporais. Por outro, entre os vários cortes, que vão mostrando as várias fases das agressões (sendo o momento mais gráfico do filme), o rosto de Vos (enquanto Colin) surge em múltiplos grandes planos, apresentando a crescente satisfação presente no rosto que culmina num suspiro carregado de prazer após concluída a investida ao olho de Parse.

A última cena a destacar tem origem na incapacidade de Vos de se desligar do corpo que está a possuir. Depois de eliminar o alvo, ela deverá, ainda controlando o corpo do hospedeiro, “suicidar-se”. No entanto, ela parece ter perdido essa capacidade, talvez porque desligar-se daquele corpo significa regressar ao seu e, consequentemente, à sua vida normal, onde as sensações provocadas pela violência se encontram inacessíveis. Ao não ser capaz de matar Colin, Vos começa a perder o controlo do corpo, que é restituído a Colin, mantendo-se esta, no entanto, ainda presente. Depois de uma série de situações em que Colin e Vos lutam pelo domínio do corpo, o homem consegue aceder às memórias da protagonista e localizar Michael, o marido de Vos e Ira, o seu filho, com o objectivo de encontrar Vos e impedi-la de continuar a interferir no controlo do seu corpo. Por conseguinte, Colin desloca-se até à casa de Vos, onde se encontram o seu marido e o seu filho, ameaçando matá-los caso ela não lhe devolva o total controlo do seu corpo. No clímax do confronto físico que acaba por acontecer entre Colin e Michael e do confronto interior entre Colin e Vos, o corpo do homem ataca violentamente Michael com uma faca. Apesar da violência se assemelhar ao modus operandi de Vos, a dúvida sobre quem está em controlo do corpo mantém-se até ao momento em que a voz de Vos, sobreposta à de Colin, pede para que a desconectem do corpo. A fantasia de matar o marido é finalmente cumprida. Porém, na cena em questão, a violência perde o seu cariz sexual, para adquirir um sentido agressivamente libertador. Ao contrário do primeiro assassinato, a câmara mantém-se a maior parte do tempo num plano geral, destacando os golpes contínuos, assim como o ambiente familiar, a cozinha, com as paredes repletas de sangue. Simbolicamente, Vos não só matou o marido, como “matou” aquele espaço enquanto representação da sua vida familiar. Face à opressão que esse ambiente exercia, e tendo esta oportunidade, ela concretiza o seu sonho de um futuro livre. Neste sentido, Possessor explora a representação da mulher violenta que rompe com todos os seus relacionamentos familiares, destacando a natureza ambígua do seu relacionamento com a ordem social. Ao aceitar a sua identidade violenta, condicionada pela pressão de se manter como a “star performer”, Vos rejeita por completo a sua identidade familiar. A sua vida é agora finalmente dominada pela tecnologia e pela obrigação laboral.

A violência apresenta-se como elemento narrativo em Possessor, no sentido em que, a sua brutalidade serve como força atractiva e disruptiva que leva a personagem a abdicar de todo o mundo que conhece e que até então lhe era familiar, em prol das sensações que dela advém. A tecnologia que permite esse grau de violência sem uma real consequência ou responsabilização funciona no filme como uma força destrutiva e distópica que expõe a fragilidade de conceitos como o de identidade e de sociedade. Esta inclinação para a brutalidade e para um comportamento patológico funciona como um símbolo de regressão psicológica e evolutiva. O carácter artificial de Vos e a sua propensão para a violência enquanto um quase “deus” tecnologicamente capacitado, obriga-nos a reflectir sobre a suplantação da natureza em prol da tecnologia e como esta pode condenar o mundo à entropia. Consequentemente, o filme demostra-nos um mundo industrial, de extrema riqueza e tecnologicamente dependente, ao mesmo tempo que explora elementos comuns da tragédia e do melodrama – tortura, sofrimento e violência – expondo uma experiência prometeica num mundo onde até os aparentemente corajosos, vivem com medo (Auger 2011, 112).

Em suma, as ferramentas tecnológicas constituem um meio de facilitar, acelerar e intensificar a violência em Possessor, mas são também entendidas como entidades mercantilizadas, com arquitecturas corporativas e políticas que condicionam o seu uso e a violência que é praticada através destas (Segrave & Vitis 2017, 3). Assim, a tecnologia posiciona-se como um fenómeno altamente politizado, propenso a gerar pânicos morais e questões identitárias, que ameaça as relações humanas, levando, numa última instância, à desumanização.

“Pull me out”: Considerações finais

Regressando ao início deste texto, em particular, a Frankenstein, propomos uma possível relação entre o ser concebido pelo doutor Henry Frankenstein e Vos. Se, por um lado, temos um monstro criado através da unificação de várias partes humanas que, na sua busca por ligações afectivas, é abandonado pelo seu criador e rejeitado por outros humanos, recorrendo, consequentemente à violência, Vos é uma espécie de subversão deste conceito: trata-se de um ser humano que, ao ser-lhe removida a humanidade – as suas relações afectivas e a empatia – e ao rejeitar a ligação que tem com a sua família, torna-se um “monstro” violento. As duas narrativas partilham também a problemática das relações familiares e a consequência da sua ausência. Em ambos os casos, há uma transformação inerente à falta de uma conexão com a família, que tem como resultado a violência.

No caso de Possessor, o facto de se tratar de uma mulher violenta está efectivamente relacionado com alguns problemas e contradições sociais. Segundo Hilary Neroni, a mulher violenta surge em momentos de crise ideológica, quando certos antagonismos, presentes na ordem social, se manifestam (2005, 18). A dependência das tecnologias e o poder que a estas têm vindo a dar às grandes empresas tecnológicas e a entidades governamentais – o processo de escrita do filme iniciou-se na mesma altura das revelações de Edward Snowden sobre a NSA – levantam questões sobre a invasão de privacidade, sendo estes alguns dos problemas socais que o filme procura representar. Para além disso, Possessor permite ainda diferentes leituras sobre a identidade e sobre as questões de género, em particular, atendendo ao modo como retrata a violência feminina e a dualidade que existe entre os dois mundos em que a protagonista se move (família vs. trabalho).

Em última análise, independentemente da forma que se escolha olhar para Possessor, existe um claro processo de transformação e de procura do verdadeiro “eu” que atravessa todo o filme. Esta metamorfose começa e culmina precisamente na cena em que Vos identifica os seus objectos pessoais – processo que é repetido depois de cada trabalho. Na primeira vez que assistimos ao teste, dois objectos são destacados: o cachimbo do avô e a borboleta vermelha emoldurada. O primeiro objecto lembra-lhe as suas ligações familiares, evocando sentimentos como a ternura e o amor e isso é evidente na forma como ela toca no objecto e procura sentir o seu cheiro. O segundo, também uma memória de infância, fá-la pensar em arrependimento. Ao lamentar, depois de cada trabalho a morte do insecto, Vos procura naquele objecto a lembrança constante de sentimentos como a culpa e a empatia, ou seja, aquilo que ainda a torna humana. A cena final do filme espelha este evento, destacando novamente o cachimbo e a borboleta. Laconicamente, ela identifica os objectos, não referindo qualquer sentimento que, eventualmente, estes possam invocar. Sem essas memórias e sem aquilo que a torna humana, Vos torna-se uma “outra”3. Esta não é uma transformação típica, onde uma mulher se vê obrigada a ultrapassar uma série de obstáculos para se tornar numa melhor mãe ou esposa. Em vez disso, a protagonista evolui e aceita finalmente o seu lado mais negro e violento, concordando com o facto de não ser capaz de se encaixar numa vida “normal”.

Concluindo, Possessor, através da combinação de elementos dos géneros ficção científica e terror reflecte sobre o uso da tecnologia, a relação entre os humanos e a ciência, a representação do “outro”, bem como do passado, do presente e do futuro. Desta forma, o filme mostra-nos a contínua relevância destes dois géneros – quer na sua combinação, quer nas suas diferentes abordagens ou sub-géneros – na reflexão a respeito da incerteza social provocada pelos novos desenvolvimentos tecnológicos e pela constante vigilância, e no modo como as tecnologias de consumo podem retratar a ideologia capitalista e algumas áreas reprimidas da consciência humana.

Notas finais

1A respeito da questão sexual enquanto exercício de poder, podemos ainda destacar a cena em que Vos controla o corpo de Colin num acto sexual com a namorada, Ava Parse (Tuppence Middleton). Num momento visualmente onírico, observamos Vos, isto é, o seu verdadeiro corpo, à excepção do órgão sexual masculino, no acto sexual, desempenhando o papel de homem. Esta cena possibilita diversas leituras, nomeadamente, no que diz respeito a questões de género e transgénero.

2Organismos unicelulares que se alimentam de matéria orgânica, como outros microrganismos ou tecidos orgânicos e detritos.

3Vale a pena acrescentar ainda que o nome Tasya provém do nome Anastasia, cuja origem é a palavra grega anastasis que significa ressurreição ou renascimento. Deste modo, Tasya pode representar uma espécie de renascer da identidade na cultura de consumo capitalista, em que o corpo se torna apenas mais uma mercadoria que pode ser substituída por outra a qualquer momento (Newell, 2021: s/p).

Bibliografia

AFI (2008c) “Official Ballot”: http://connect.afi.com/site/DocServer/10top10.pdf?docID=381&AddInterest=1781

Auger, Emily E. 2011. Tech-Noir Film: A Theory of the Development of Popular Genres. Bristol / Chicago: Intellect.

Bacon, Henry. 2015. The Fascination of Film Violence. London: Palgrave Macmillan.

Bitel, Anton. 2020. “Possessor sends Andrea Riseborough out of her mind”. BFI. https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/reviews/possessor-brandon-cronenberg-andrea-riseborough-remote-assassin

Boggs, Carl e Tom Pollard. A World in Chaos: Social Crisis and The Rise of Postmodern Cinema. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc.

Charney, Leo. 2001. “The Violence of a Perfect Moment”. Violence and American Cinema editado por J. David Slocum. New York: Routledge.

Clover, Carol. 1992. Men, Women, and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film. Princeton: Princeton University Press.

Cronenberg, Brandon. 2020. “Possessor Director Brandon Cronenberg on Inheriting a Body-Horror Legacy – Exclusive Image”. Entrevista de Ben Travis. Empire. https://www.empireonline.com/movies/news/possessor-director-brandon-cronenberg-body-horror-legacy/

------------------------------------s/d. “Brandon Cronenberg on Legacy”. Entrevista de Crash redaction. Crash. https://www.crash.fr/brandon-cronenberg-interview/

-----------------------------------2020. “Tokyo: Brandon Cronenberg on the Necessary Violence of ‘Possessor’ and Why Everyone is Vaping in the Film”. The Hollywood Reporter. https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-news/tokyo-brandon-cronenberg-on-the-necessary-violence-of-possessor-and-why-everyone-is-vaping-in-the-film-4087360/

Fisher, Mark. 2009. Capitalist Realism: Is There No Alternative?. Alresford: O Books.

Fraser, John. 1974. Violence in the Arts. Cambridge: Cambridge University Press.

Han, Byung-Chul. 2017. Topologia da Violência. Petrópolis: Editora Vozes.

Johnston, Keith M. 2011. Science Fiction Film: A Critical Introduction. Oxford/New York: Berg.

Kendrick, James. 2009. Film Violence: History, Ideology, Genre. London / New York: Wallflower Press Book.

Kermode, Mark. 2020. “Possessor review – mind-and-body-snatching thrills from Brandon Cronenberg”. The Guardian. https://www.theguardian.com/film/2020/nov/29/possessor-review-brandon-cronenberg-andrea-riseborough-christopher-abbott

Mumford, Lewis. 2021. As Transformações do Homem. Lisboa: Antígona.

Neroni, Hilary. 2005. The Violent Woman: Femininity, Narrative, and Violence in Contemporary American Cinema. New York: State University of New York Press.

Segrave, Marie e Laura Vitis. 2017. Gender, Technology and Violence. London / New York: Routledge.

Filmografia

Alien.1979. De Ridley Scott. Filme.

Antiviral .2012. Brandon Cronenberg. Filme.

Avatar. 2009. De James Cameron. Filme

Frankenstein. 1931. De James Whale. Filme.

Invasion of the Body Snatchers. 1956. De Don Siegel. Filme.

Le Voyage dans la Lune. 1902. De Georges Méliès. Filme

The Fly. 1986. De David Cronenberg. Filme

The Last Man on Earth. 1964. De Ubaldo Ragona e Sidney Salkow. Filme.

The Matrix. 1999. De Lana Wachowski e Lilly Wachowski. Filme.

The Terminator. 1984. De James Cameron. Filme.

The Thing. 1982. De John Carpenter. Filme.

Videodrome. 1983. De David Cronenberg. Filme.