Abstract
This text seeks to both reflect and analyze the way in which contemporary Brazilian documentaries are articulated as political reinscription by means of certain aesthetic strategies, such as the graphic recurrence in the construction of narrative identities (RICOEUR, 2010) as a propelling instrument of subjectivities. Part of this effort in revisiting the past by crossing temporalities can be seen in films such as Portraits of Identification (2014) and I owe you a letter about Brazil (2019). Both productions show characters who have been part of the resistance to the authoritarian regime, demonstrating the specifics of the period, such as the experience of trauma, exile and the failure of revolutionary ideals. These documentaries resort to the written word of personal and historical archives, exposing excesses, contradictions, and submerged texts, which eventually interferes in the representation of the biographed subject, revealing characters whose identities become difficult to apprehend. Therefore, understanding the potential of writing requires a film analysis in fragments containing the material presence of the word and its thematic suggestion. These fragmentary constructions, naturally open to deviations, present themselves as a political reinscription as they approach silences, historical absences; not fixing identities but only reaching the subjects in what remains of them as a trace (DERRIDA, 2010). Such visualities are reconfigured from the filmic inscription engendered there, in what is lacking in them, since filming is also seeking the outside, that what escapes us, making distances and intervals visible (COMOLLI, 2007) - in an image to come.
Keywords: Documentary, Biography, Political Reinscription, Graphical instance, Narrative identity.
Apresentação
A realidade política brasileira contaminada e modificada por acontecimentos ocorridos antes, durante e depois do golpe parlamentar de 2016 e da eleição presidencial de 2018, impele a constante revisão e permanente crítica da sua história recente sob o ponto de vista dos efeitos da ditatura civil-militar (1964-1985) na sociedade. Em um cenário no qual a ruptura do consenso em torno do pacto constitucional levou a uma construção das identidades “por negação” (SOARES, 2019 p.11), somos assombrados por constantes ataques e ameaças às instituições democráticas, bem como, a celebração pública da violência do regime autoritário. Neste contexto, filmes que se propõem a revisitar o período ditatorial, contribuem para a reflexão sobre o passado e o presente do país, construindo, assim, novos espaços para a escrita, ou melhor, para a reescrita da história.
Comprometidos com esse propósito em examinar o passado, entrecruzando temporalidades, os filmes Retratos de identificação (Anita Leandro, 2014) e Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019), procuram assimilar os deslocamentos da história, suas rupturas e intervalos, por meio de determinadas escolhas estéticas, como a recorrência gráfica, a partir de arquivos pessoais e históricos, expondo excessos, contradições, textos submersos e um tempo desarticulado. Ao recorrer à palavra escrita, como uma via de acesso ao sujeito histórico, acabam também acercando os silêncios e as ausências e, dessa forma, reconfigurando e interferindo na representação, revelando personagens cuja identidade torna-se de difícil apreensão.
Ambas as produções, dialogam com o ensaísmo e as modulações biográficas, mostram fragmentos de acontecimentos com integrantes da resistência ao regime autoritário, expondo as especificidades do período, como a experiência do trauma, das prisões, da tortura, do exílio e o fracasso dos ideais revolucionários. São postas em cena trajetórias interrompidas, testemunhos de sobrevivência, memórias pessoais e históricas, sobrepostas ao presente, através de operações temporais no interior da imagem, alinhavando e atualizando uma crítica social e política ao país.
Retratos de identificação (2014), resgata os nomes e a história de quatro integrantes da resistência ao regime autoritário: Maria Auxiliadora Lara Barcellos, estudante de medicina e militante da VAR-Palmares, que se suicidou durante seu exílio em Berlim em 1976; Chael Charles Schreier, estudante de medicina, morto sob tortura durante sua prisão em 1969; Antônio Roberto Espinosa, comandante da VAR-Palmares e Reinaldo Guarani Sobral, integrante do grupo armado ALN (LEANDRO, 2016). O filme contrapõe documentos fotográficos e textuais produzidos pelos agentes da repressão com relatos atuais dos sobreviventes e com o testemunho de Maria Auxiliadora para os documentários chilenos Não é hora de chorar (1971) e Brazil: a Report on Torture (1971).
Juntamente com as fotos investigativas e os registros fotográficos dos “prisioneiros”, fragmentos textuais compõem um testemunho silencioso dos métodos e da violência inferida pelos órgãos militares, trazendo para a visualidade os rastros de um passado de horror, bem como, a espectatorialidade que acompanha toda palavra (DERRIDA, 2010), revelando assim, na espessura da escritura, os aspectos subjetivos, a fragilidade e a impureza daquilo que não pode ser visto, mas somente apreendido enquanto traço.
Por sua vez, Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019) percorre três gerações da família de César Benjamin, militante do movimento estudantil secundarista; integrante, ao lado do irmão, do movimento revolucionário MR8, preso ilegalmente em 1971, aos 17 anos, e torturado pelo DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação/Centro de Operações de Defesa Interna) vinculado ao Exército brasileiro. O filme, realizado por sua filha, Carol Benjamin, entrecruza passado e presente, refazendo a história do pai, a partir do longo embate travado pela sua avó, Iramaya, pela libertação do filho. Durante os 5 anos em que César permaneceu encarcerado nos quarteis das forças armadas (3 e meio em solitárias e 1 ano em meio em celas comuns), sua mãe enviava insistentemente correspondências aos representantes da Anistia Internacional. Quando, finalmente, em 1976, a Seção Sueca o escolhe como preso do ano, direcionando todos os esforços a seu favor. Sob pressão, no mesmo ano, o governo brasileiro decide por seu exílio.
O fluxo de cartas trocadas por Iramaya com uma das integrantes da Anistia Internacional na Suécia, Mariane Eyre, permanece após a soltura de César, revelando, além das nuances do passado político do Brasil, os vazios, as dúvidas e as tristezas em sua vida pessoal pós anistia. Servindo de fio condutor para a narrativa fílmica, a materialidade da palavra inscrita e a estrutura epistolar, atravessada pelo presente da sua leitura na voz em off da filha, neta e realizadora, parece trazer para a visualidade a sugestão das distâncias e da exterioridade intrínseca à carta, bem como, os intervalos e as lacunas da história.
Dessa forma, o documentário contemporâneo brasileiro, é aqui interrogado no encontro com a escrita; quando esta assume no percurso narrativo uma dimensão apta a dar conta das subjetividades, revisitando o passado e entrecruzando temporalidades. Entendida como instrumento de configuração temporal no interior da linguagem, a palavra inscrita ao trazer camadas da história à superfície, expõe tempos distintos e acaba, também, revelando as ausências e os silêncios daquilo que é narrado, visto que, na perspectiva do traço (DERRIDA, 2010), a palavra carrega sempre o aspecto da impossibilidade e da invisibilidade, sugerindo uma falta, um exterior à imagem.
Portanto, considerando as contaminações mútuas entre escrita e cinema, suas apropriações e deslocamentos, um dos desdobramentos possíveis, aqui proposto, interroga a forma como a palavra no interior da imagem é capaz de interferir na elaboração das identidades narrativas. Esse processo se passa ao recorrer à escrita, a partir de arquivos históricos e pessoais, as construções fílmicas alcançam uma discussão pela qual a compreensão do sujeito, ou melhor, a impossibilidade de sua apreensão única, é atravessada pelo “caráter linguístico (langagier/sprachlich) da experiência”, como expõe Gagnebin (1997, p.266), bem como, pela forma como a identidade é construída na dimensão poética e narrativa, sobretudo através da escritura, visto que, para Paul Ricoeur (2010b, p. 418), a resposta a respeito de um sujeito ou de uma comunidade, se efetiva na conjunção entre história e ficção, “a história de uma vida é uma história contada”, portanto, a identidade só pode ser narrativa.
Somado a isto, a compreensão de que ao acercar o não visível da palavra, aproxima-se da forma como o cinema articula-se politicamente, uma vez que, segundo Comolli (2008, p. 176), as operações no interior do filme, de recorte, subtração ou restrição, mobilizadas para que um fora possa ser apreendido, interferem nos discursos, no dado, no presumido do mundo. Para o autor, o não visível participa daquilo que é filmado enquanto resto “(...) dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas”.
No debate em torno das relações entre cinema e escrita, as ressonâncias, as reflexividades e as distâncias que emergem do cruzamento entre texto e imagem, são consideradas no momento em que a palavra comparece à composição fílmica, seja ela materialidade, assunto, ou mesmo, no empréstimo dos gêneros que presumem um campo textual, como a biografia, a autobiografia e o ensaio, como sugere Rowland (2016, p. 14). O que viabiliza a análise e a reflexão da palavra articulada como uma reinscrição gráfica, imagética e silenciosa, bem como, do próprio cinema como reescrita; em sua “capacidade de se escrever fora de si”, na sua exterioridade.
Dessa forma, para que possamos compreender as potencialidades da escrita, sua capacidade de atuar na concepção da identidade narrativa, realizamos uma análise fílmica em fragmentos contendo a presença material da palavra, no seu contorno, traço ou linha, como também, na temática que a sugere. Considerando os aspectos estruturais e temporais da composição narrativa e histórica (RICOEUR, 2010), pontuamos dois marcadores: a carta e as grafias do nome. Ambos auxiliam metodologicamente, por reterem, em sua essência e espessura imagética, uma correlação com a extensão e a experiência do sujeito no mundo (ROWLAND, 2015), bem como, o acesso aquilo que, uma vez traço, não pode ser visto, somente apreendido, em um movimento entre presença e ausência.
Portanto, a forma como um filme inscreve a palavra, acercando as ausências e interferindo na compreensão dos eventos, acaba conferindo uma outra espessura histórica e, assim, reconfigurando a experiência do espectador. Em nosso entendimento, estas visualidades, articulam-se como uma reinscrição política, ao trazer para a construção narrativa os aspectos não visíveis, construindo a identidade narrativa somente no traço que a supõe, como buscaremos demostrar neste artigo.
1. A carta
A estrutura epistolar pela qual o filme Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (2019) problematiza a forma como a escrita é absorvida pelo espaço narrativo, a partir daquilo que a materialidade ou sugestão da carta convoca, seja enquanto representação ou substituição de uma ausência; na ambivalência e fragilidade da palavra escrita e nas temporalidades e deslocamentos implícitos, explorando a densidade da linguagem em suas possíveis configurações.
Contrapondo o predomínio da voz em off da realizadora ao longo de toda a construção fílmica, a narrativa começa silenciosa, com palavras inscritas em fundo preto - tempo aproximado 01:12 - inaugurando uma série de menções e referências aos silêncios, aos segredos e às lacunas que acompanham os fatos narrados e a vida dos sujeitos biografados. Ainda que a leitura das cartas pareça confrontar esses vazios, a própria espessura imagética da escrita posta em cena – tempo aproximado 14:45 (figura1) - impede que se dissolvam inteiramente, uma vez que, segundo Gagnebin (2006), toda palavra carrega o traço de uma oralidade e de uma presença referida.
Figura 1 - Fragmento carta datilografada. Fonte: Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019)
Portanto, alcançar nos fragmentos textuais, nas rasuras, nas texturas da grafia, essa voz fantasmática, sobrepõe na visualidade um testemunho imagético, gráfico e silencioso. Sendo assim, se o indizível convoca o silêncio como uma forma de elaborar a violência e o horror, como afirma Seligmann-Silva (2018), podemos tomar os fragmentos da palavra inscritos no filme, como parte desta construção, na qual, o silêncio não se relaciona à omissão, ao vazio ou a falha. Para o autor, diante do trauma, da insuficiência da linguagem, o mutismo não configura um calar, um omitir-se, mas sim, incorporar esse silêncio como forma possível de apreensão do vivido, evitando assim os equívocos e excessos de uma representação insuficiente.
Uma vez estruturado através desse percurso gráfico e silencioso, o filme constrói as identidades narrativas também no âmbito visual e legível da palavra, revelando subjetividades implícitas, rastros de uma presença, de uma existência, dos gestos de um sujeito contaminado pelos ruídos, trânsitos e desvios dessa escrita epistolar – tempo aproximado 34:40 (figura2). Portanto, a reconfiguração da carta no interior da imagem, através das operações que a colocam em protagonismo, contribuem também para uma reinscrição crítica da história, através da estruturação de uma narrativa poética capaz de “recriar a linguagem” (SELIGMANN-SILVA, 2018, p. 301), ao acercar, no seu traço, as ausências, o não dito, o ainda não visto.
Figura 2 - Fragmento carta Iramaya. Fonte: Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019)
Na sequência em que a câmera percorre capas de livros - ancorada na voz em off de Iramaya narrando como burlava a censura dos militares – a imagem incompleta, por vezes desfocada dos títulos e autores é interrompida por um breve silêncio trazendo a materialidade da carta à cena - tempo aproximado 22:18 (figura 3). Quando a caligrafia caprichada, sublinhada, rasurada, toma todo o enquadramento, revelando texturas e espessuras de um outro tempo, alcançamos não somente a permanente violência e angústia que cingia o momento, mas também algo outro que não participa da visualidade, mas lá está, eclipsado, oculto, em retraimento (retrait), ou seja: aquilo que não pode ser visto mas ainda assim é sugerido pelo traço (DERRIDA, 2010).
Figura 3 - Caligrafia 2 carta Iramaya. Fonte: Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019)
Portanto, o que nos interpela na grafia da carta é uma coisa outra, além do visível, algo que escapa à representação, aquilo que resta do traço, sendo ele mesmo invisibilidade. Em outras palavras, o contorno que delimita o dentro e o fora, aquilo que interfere nos sentidos extrinsecamente; o parergon, segundo Derrida, a ausência, o exterior a obra (ergon), porém pertencente a mesma.
Nesta mesma sequência, o silêncio, por sua vez, é interrompido pela leitura da carta na voz em off da realizadora, abrindo um jogo de temporalidades, que culminará na entrevista com Mariane cercada por livros em sua biblioteca - tempo aproximado 24:25 (figura 4). Cena na qual, é rememorado o dia em que as cartas foram presenteadas à Carol Benjamin com o intuito de “conhecer melhor”, por meio da escrita, em tom confessional, a mulher que a avó foi. Esta sugestão narrativa, pela qual todo o filme é estruturado, coloca em jogo a construção de uma identidade frente a insuficiência da escrita e aos limites da linguagem, expondo as tensões e os espelhamentos entre imagem e palavra, escrita e cinema (ROWLAND, 2016), ao mesmo tempo em que sugere a ruptura do silêncio no trânsito da carta, como se o distanciamento fosse a permissão para falar, contar, narrar.
Figura 4 - Leitura cartas. Fonte: Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019)
Se assim a palavra impõe-se nas figuras do livro, da carta, bem como, no seu silêncio e oralidade, podemos entendê-la também enquanto ligadura temporal, como uma formação nodosa que amarra os tempos e a história. Entretanto, a mesma configuração aciona à impossibilidade de transpor a opacidade da linguagem, visto que, como expõe Péres-Oramas (2010, p. 32), a palavra vista como um nó (legein) apresenta-se também como um emaranhado impossível de penetrar, no qual deixa escapar “não o silêncio que precede as palavras e as vozes, mas aquele que elas deixam quando se ausentam, uma vez vividas”. Portanto, aquilo que é narrado por meio dessas escritas espectrais é construído em um espaço também frágil e falível, feito de ausências, de vazios e silêncios, pois, segundo o autor, não sendo a linguagem transparente e confiável, alguns desses nós jamais serão desatados.
Também entendidos como arquivos históricos, as cartas quando estabelecem alguma linearidade ao tempo narrativo, são fragmentadas pela sua leitura no presente, reconfigurando a estrutura temporal do filme. Da mesma forma, as operações no interior da imagem pelas quais a carta ganha relevo, contribuem para que a potencialidade da escrita frature a elaboração das identidades, dissolvendo qualquer estabilidade. A exemplo, na sequência em que a carta de Cesar é lida no presente - tempo aproximado 45:02 (figura 5) - a caligrafia, em seu aspecto de traço, é capaz de revelar tanto as subjetividades do sujeito que a escreve como os vazios e as incertezas de um passado no exílio e, uma vez interrompida, quando sua materialidade é substituída por imagens do presente, a leitura das reflexões e críticas sociais do passado parecem alcançar a atualidade.
Figura 5 - Carta Cesar. Fonte: Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2019)
Dessa forma, ultrapassando seu caráter linguístico, a palavra, em sua dimensão gráfica e fônica, como um rastro (BENJAMIN, 2006) distante de nomear, representar e substituir, mais indica, aponta uma direção, um fora da imagem, sendo capaz de dissolver os sujeitos da escrita. Como o post scriptum retirado da carta e título do filme, quando lido - tempo aproximado 53:30- pontua a estrutura narrativa no momento em que o filme passa a sugerir como o presente convoca o passado para que novas possibilidades de futuro possam surgir.
Sendo assim, ao dispor do suporte da narração, a identidade biografada é passível de ser reconfigurada através da aplicação reflexiva dos elementos configurantes, sejam eles recursos discursivos ou estilísticos, como as cartas em sua espessura e oralidade. Segundo Ricoeur (2010b, p.419) toda mutabilidade, inconstância e plurivalência que acompanham o decurso de uma vida são compreendidos pela identidade narrativa na sua modalidade de “ipseidade”, revelando uma identidade não substancializada, subjetiva, descontínua, por vezes de difícil apreensão. Logo, se o percurso narrativo da estrutura epistolar, na qual a lógica da ipseidade (o si-mesmo), assume os aspectos que contrapõe a linearidade, o constante (o mesmo) do sujeito; o instável, aquilo que escapa, nos coloca diante de uma composição em que a conexão entre a identidade narrativa e o ipse estrutura-se a partir de uma dimensão temporal em uma “poética da temporalidade”, capaz de interferir na apreensão do que é narrado, revelando personagens cuja identidade se dissolve, não se fixa.
2. Grafias do nome
Neste percurso no qual a construção narrativa alcança o caráter temporal da experiência, perpassa toda uma reflexão acerca das formas como a compreensão do sujeito e do mundo é atravessada pela noção do si-mesmo. Para Ricoeur (2014), a identidade elaborada narrativamente contempla a pluralidade inerente ao sujeito, abrindo um espaço para o reconhecimento do si e do outro na sua constituição. Um outro, configurado a partir de elementos culturais e históricos, representações, linguagem, enredo, ou relações capazes de mediar sua presença.
A identidade, para o Ricoeur (2010), enquanto categoria prática, torna-se a resolução para a pergunta ‘quem fez tal ação? Se inicialmente a resposta aparece como um nome capaz de identificar o autor dos acontecimentos, a única forma de sustentar essa nomeação, e ao mesmo tempo dar conta das variações em torno desse sujeito, é a elaboração narrativa da identidade, uma vez que a história de uma vida é permanentemente reconfigurada por aquilo que é contado. Logo, as formas desse narrar; a articulação da linguagem no plano poético e narrativo é o instrumento que orienta este processo, em uma abordagem descritiva, identificando e, sobretudo, fragmentando esse sujeito, pois é através da sua fratura que o acesso do outro se efetiva.
Dessa forma, no filme Retratos de identificação (2014) a recusa pelo nome próprio das vítimas pelos agentes da repressão já aparece acompanhando as primeiras fotografias postas em cena - tempo aproximado 01:20 - em fragmentos textuais nos quais é possível ler ‘o alvo’ (figura 6) referindo-se à Maria Auxiliadora. As intenções de captura através do tratamento conferido acompanham o cotidiano da cena registrada, revelando as técnicas de controle e de investigação ostensiva dos militares. Na sequência, o trecho utilizado da entrevista para o documentário chileno Não é hora de chorar (1971), traz os nomes completos, oralmente, como uma dupla resposta, ao filme e à história. Vale notar, ainda que graficamente representados no documento que registra as prisões – tempo aproximado 02:59 (figura 7) - a montagem opta por interferir e fraturar o arquivo, justapondo temporalidades e conferindo uma nova legibilidade ao que é dado ao sublinhar os nomes.
Figura 6 - o alvo. Fonte: Retratos de identificação (Anita Leandro, 2016)
Figura 7 - Nome sublinhado. Fonte: Retratos de identificação (Anita Leandro, 2016)
A forma como a identidade é construída narrativamente, através das diferentes grafias do nome, entre a dissolução do sujeito e sua identificação como um mesmo, entre o idêntico a si e o cindido pela linguagem, somado ao entendimento da escrita como um traço, traz para a discussão as escritas dessa identificação enquanto sugestão do sujeito, bem como, das suas reconfigurações diante do tempo. Se a identidade não é fixa, mas sim, fraturada e sempre se remete a um exterior, a um outro (RICOEUR, 2014), as tentativas de reconhecimento ou de fragmentação através da sua inscrição gráfica contribuem para a constituição e dissociação da identidade, naquilo que a afirma ou contrapõe através do nome próprio.
A exemplo, quando no filme os personagens ganham uma espessura através da palavra inscrita, na representação do nome e das notas biográficas, a apreensão do sujeito ocorre também através das particularidades gráficas. Como na composição – tempo aproximado 05:58 (figura 8) - os aspectos visíveis e não visíveis da escritura são incorporados ao que é dado, sugerindo algo outro, além do discurso. A escolha tipográfica ficcionaliza um ‘fichamento’, dialogando com a oralidade do o que é narrado, sendo capaz de promover uma espécie de inversão, um desvio, subvertendo as formas de identificação a favor de uma leitura crítica da história.
Figura 8 - Identificação nome. Fonte: Retratos de identificação (Anita Leandro, 2016)
Da mesma forma, as imagens dos “prisioneiros” os chamados mugshot- tempo aproximado 7:42 (figura 9) - utilizados repetidas vezes ao longo da narrativa, em seu enquadramento aproximado, detalham as expressões e as marcas físicas da violência, servindo não mais em sua proposição inicial, mas, no agora, como denúncia da tortura e do horror sofridos pelos presos políticos. Nessas imagens, a placa com o número amarrado ao pescoço, reforça ainda mais as formas de poder e controle exercidas pela repressão, sugerindo a despersonificação e conversão do nome próprio em matéria quantificada. Gesto que o filme contrapõe ao colocar no mesmo plano, o número e a extensão do nome escrito - tempo aproximado 16:27 (figura 10). Aqui, a espessura tipográfica, aquilo que sobrevive no seu traço, reconfigura a experiência histórica, incorporando graficamente, na visualidade, as formas de ver o sujeito. Ainda que a semelhança das caligrafias possa confundir a autoria, o que importa é a presença do nome próprio em seu gesto de escrita.
Figura 9 - Mugshot. Fonte: Retratos de identificação (Anita Leandro, 2016)
Figura 10 - Números E Nomes. Fonte: Retratos De Identificação (Anita Leandro, 2016)
Ao longo de todo o percurso narrativo, as grafias do nome aparecem de diferentes formas, em documentos, registros, atestados, laudos, lista de exilados, na inscrição fílmica sob uma fotografia nomeando as mulheres, presas políticas, nos cartazes de procurados da repressão. O fluxo destas formas de nomear expõe a palavra articulada graficamente enquanto testemunho histórico, trazendo outras camadas temporais e imagéticas para a visualidade, reconfigurando a experiência histórica do espectador ao construir as identidades narrativas através destes elementos gráficos e dos rastros por eles mobilizados.
Neste sentido, Derrida (1988, 1991,1998) expõe como a problemática da assinatura e do nome próprio alcança uma discussão centrada nas formas de falar, escutar e narrar o outro, chamada por ele de otobiografia, como uma outra forma de leitura, ou melhor, de escuta, contrapondo a autobiografia e a biografia. Para o autor, estas escritas são colocadas sob rasura (sous rature) referindo-se aquilo que se mantem legível - ainda pode ser visto - mesmo depois de riscado, modificado, desconstruído.
Escrever sob rasura insere uma marca na palavra estabelecendo um movimento duplo entre legibilidade e apagamento, ou seja, o traço que rasura traz uma instabilidade capaz de interferir na apreensão daquilo que é dado. Como na sequência em que o laudo e o atestado do óbito de Chael Schreier sobrepõem-se a sua fotografia - tempo aproximado 26:41 (figura 12) - lido pausadamente pela voz em off de Antônio Roberto Espinosa. Entre as imagens, o que resta é o nome sublinhado, misturando-se ao rosto, seguido pela inscrição numérica do prisioneiro. Dessa forma, as grafias que ali nomeiam, somadas às sobreposições, podem ser vistas como uma rasura que interfere na apreensão desse sujeito.
Figura 11 – Nome sobreposto. Fonte: Retratos de identificação (Anita Leandro, 2016)
As narrativas biográficas e autobiográficas quando lidas a partir dos seus desvios e do que é colocado sob rasura dão a ver uma fronteira, uma borda, chamada de dynamis por Derrida (1988), que se coloca num entre - nem interior, nem exterior - entendida como um traço invisível entre obra e autor, vida e narrativa, deslocando a construção da identidade em direção ao seu aspecto temporal, uma vez que aquilo que é narrado, contado, modifica-se dependendo do momento em que é elaborado. Portanto, estas construções, ao exporem um sujeito fraturado, aberto, a partir das diferentes grafias do nome, como uma rasura, possibilita a compreensão de que a identidade narrativa também possa ser apreendida em sua fragmentação e dissolução, uma vez que a reconfiguração só se torna possível no entendimento de um sujeito instável, mutável, que se dissolve em direção a um outro e se efetiva em um fora, no traço que o supõe.
Considerações
Ao trazer a espessura gráfica da palavra para a elaboração das identidades narrativas, os filmes assumem um percurso pelo qual a escrita é capaz de trazer camadas da história à superfície, revisitando o passado, entrecruzando temporalidades e acercando as subjetividades. Dessa forma, engendra-se uma visualidade capaz de incorporar imageticamente um tempo desarticulado, bem como, a insuficiência da linguagem e a resistência do traço, alcançando um debate acerca das formas de construção e representação dos sujeitos e das temporalidades na tomada do testemunho histórico. Durante o percurso narrativo dos filmes aqui analisados, foi possível perceber em fragmentos de textos, sobretudo na figura da carta e do nome próprio, a sugestão de uma ausência, dos silêncios e das lacunas que participam tanto da história como da constituição dos personagens biografados. Dessa forma, através de uma poética, pela qual as rupturas, as rasuras e as instabilidades assumem parte de um relato gráfico e silencioso, a palavra em seu aspecto de traço e rastro é capaz de interferir na apreensão das identidades, a partir da sua própria espectatorialidade, deixando transparecer os vazios, as distâncias e os intervalos, para acessar, ou pelo menos sugerir, o interdito, o ainda não visto. Sendo assim, a forma como os filmes entrecruzam camadas temporais, revela uma inscrição fílmica engendrada naquilo que nela falta e naquilo que escapa, articulando-se como uma reinscrição política capaz de apreender as identidades narrativa e histórica somente no traço que as supõem, pois, ao recorrer à palavra escrita como via de acesso ao sujeito histórico, os silêncios, as ausências, os aspectos subjetivos e a fragilidade que acompanham toda palavra sugerem um exterior à visualidade, reconfigurando a experiência histórica do espectador em uma imagem por vir.
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