Abstract
When did the woman stop being a mother once? How long will the myths of the selfless mother and the bad mother, constructed by a patriarchal and racist structure, prevent the inventive and dialectical experience of motherhood? Seeking to answer such demands of feminism, we bet on cinema as a device of elaboration and sharing, of resistance and insubordination, to the images of control that define oppressive motherhood. Therefore, we present less of our research than the process of motivating its construction, and the first exercise to deal with this subject. In other words, based on the steps, theoretical and political assumptions and the methodological path, we expose the initial proposal of a research that intends to compose an inventory of films capable of, in their relationships, showing multiple and singular ways of mothering.
Keywords: Woman’s film, Maternal feminism, Racism, Control images, Inventory research.
Introdução
Várias de nós, além de pesquisadoras, somos também mulheres e mães, e se o feminismo nos ensina algo sobre ser muitas, é que nas dobras de uma experiência a outra, a reflexividade encontra sua forma política. Nesse plissado, nos interpela fortemente o modo como a maternidade foi, ao longo da história, institucionalizada, transformada em dispositivo de controle da reprodução, gerando ideologias e mitos a fim de subscrever a relação identitária e fixa entre os termos do par mãe-mulher - para a qual ser mulher é ser mãe, e ser mãe é sê-la, perfeita, integral, portanto, sacrificialmente -, conforme já argumentado de diferentes formas pelas pensadoras feministas Simone Beauvoir (1980), Adrienne Rich (1976) e Elisabeth Badinter (1985).
Ao trilhar esses e outros feminismos, nos inquieta ainda o modo como os mitos criados para fabricar a maternidade ideal, ideologicamente comprometidos com uma elite branca-masculina, portanto, com a subordinação das mulheres à esfera da reprodução, não foram os mesmos para todas elas, variando por raças, etnias, culturas, classes. Ainda que incida negativamente na subjetividade de todas - e que haja convergências (principalmente no último século que assistiu maior inclusão das mulheres racializadas na classe média, em campos de trabalho antes conferidos somente às brancas) - do ponto de vista histórico, ético e social, não há dúvidas que a opressão desses mitos é infinitamente mais violenta onde pesa o corte racial e econômico.
Se o encerramento da subjetividade feminina à maternidade é um modo de mantê-la em situação de submissão, atendendo aos padrões do poder cristão e machista (o casamento e a heterossexualidade), tal situação se modula na elite, e na pobreza, bem como pela diferença de raças, de modo a manter as prerrogativas capitalistas (a reprodução compulsória). Para as mulheres brancas – sejam ricas ou pobres -, segundo Badinter, “a mãe permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo” (1985: 9). E, se a mãe branca se define, hegemonicamente, por essa forma de mitificação - a da Santa Mãe de Deus com seu amor puro e sacrificial -, a mãe negra, ao longo das representações históricas, passou por mitificações diferentes de acordo com a racialização dos cuidados.
Inicialmente, em função do período da escravidão, com a transferência da sua maternidade para o cuidado com os filhos das brancas, a mãe negra é longamente retratada e estereotipada na figura da mammy.
Criada para justificar a exploração econômica das escravas domésticas e mantida para explicar o confinamento das mulheres negras ao serviço doméstico, a imagem da mammy representa o padrão normativo usado para avaliar o comportamento das mulheres negras em geral. (...) a mammy simboliza as percepções do grupo dominante sobre a relação ideal das mulheres negras com o poder da elite masculina branca. (COLLINS 2019, 140)
No pós-escravidão, quando a própria maternidade negra está em jogo, a pequena mudança para o estereotipo da nanny, as babás, ou maids, as empregadas domésticas (muito forte no Brasil), mantem vivo tanto o mito da “escrava feliz”, que recebe tal alcunha porque designada ao trabalho mais fácil (o doméstico), quanto o da matriarca má que, em sua agressividade, não supervisiona bem os filhos, e castra seus maridos.
Não resta dúvidas acerca da crítica intersecional ao modo como a perspectiva de grande parte das feministas não se deteve sobre a forma como a visão machista se impôs à maternidade racializada. “Embora as feministas brancas tenham efetivamente confrontado as análises dos homens brancos de suas próprias experiências como mães, elas raramente contestam as imagens de controle como a da mammy, da matriarca e da mãe beneficiária do Estado” (tradução nossa, COLLINS 2005, 150). Além dessas “imagens de controle”, Collins reconhece outras formas de mitificação homogeneizantes, criadoras de realidades racistas e falocêntricas, associadas a propriedades arquetípicas da maternidade, que nos parece convergir com a mãe instintivamente devotada definida em Badinter, Andrea O’Reilly1 e, como veremos, em Beauvoir. Tal imagem de controle é atribuída a uma produção discursiva inadvertida dos homens negros para as mulheres negras: a da “mãe-negra superforte” dotada de auto-sacrifício e amor incondicional (COLLINS 2005, 150).
É buscando problematizar essas imagens de controle da maternidade - “traçadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiça social pareçam naturais, normais e inevitáveis na vida cotidiana” (COLLINS 2019, 136-140) - que consideramos apropriado como gesto não só acadêmico, mas político, apresentar, ainda que em sua dimensão processual, nossa proposta de pesquisa que pretende pensar o cinema como forma de visibilidade e compartilhamento de experiencias complexas de ser mãe. Através de um inventário de filmes, buscamos mapear, agrupar e nomear, figurações de relações maternas singulares, capazes de resistir ou confrontar padrões restritos da maternidade compulsória, regulados pelos dispositivos disciplinares e biopolíticos2 das instituições patriarcais, racistas, capitalistas. O objetivo é abrir a maternidade compulsória e opressiva a outras forças de resistência próprias ao lugar da mulher ou da função mãe.
Menos que o resultado da pesquisa, apresentamos nesse artigo o processo de motivação de sua construção, bem como um primeiro exercício de relacionar filmes. Ou seja, trata-se de, a partir dos pressupostos teóricos e políticos, e do caminho metodológico, expor a proposta inicial de uma pesquisa que começa a compor um inventário de filmes capazes de, em suas relações, dar a ver formas de maternagem singulares, e ao final pensar formas dialéticas de subjetivação materna. Para isso, procederemos em três etapas: 1) apontar as motivações da pesquisa, através de algumas reivindicações feministas para maternidade, no sentido de constituir o escopo histórico-teórico e nos lançar a compreensão do papel do cinema a partir das formas e forças maternas que pode figurar; 2) conceituar e compreender o cinema como experiencia de partilha, portanto em sua potência estética e política para o debate, a partir de três níveis – o terapêutico, o pedagógico e o histórico - de modo a centrar nesse último; 3) apresentar um primeiro esboço do método “inventário” de filmes contemporâneos que aborda a maternidade pela complexidade e pelas histórias de vida que não a definem, mas a conformam, a partir de eixos de análise, agrupamentos e comparações entre as obras, que visam destacar a experiencia de ser mãe em sua multiplicidade de aspectos, contextos, e subjetividades.
Reivindicações do feminismo materno (1)
Uma primeira reivindicação do feminismo para maternidade, já introduzida aqui, é a de que o desejo de ser mãe não vem para todas, muitas nem estão certas se o possuem, mas acaba sendo aceito como tal pois sua ausência seria um desvio do ser mulher. Como nos ensinou Simone de Beauvoir, a sociedade patriarcal produziu uma versão da mulher que não deseja ser mãe como aberração. Mesmo que esse desejo seja legítimo, é preciso lembrar que ele tem contexto, e, mesmo, que incontornável, a maternidade não é vivida da mesma forma para todas as mulheres, variando não só de mulher para mulher, mas em suas interseccionalidades. Beauvoir, no final dos anos 1950, já havia dito que as mulheres não podem ser seu destino biológico e que a criança não é resultado óbvio de ser mulher. Ela iniciava ali a escrita feminista a contrapelo dos desmandos patriarcais da igreja e das instituições capitalistas, buscando definir o aborto como fato da vida, da liberdade da mulher e de seu corpo, levantando a bandeira de que maternidade é escolha (BEAUVOIR 1980, 308).
Ainda hoje, é preciso mostrar que a coação a ser mãe foi ideologicamente perpetrado para garantir que as mulheres seguissem servindo à procriação e, portanto, à uma relação heterossexual compulsória como garantia da produção de mão de obra para sustentar o capitalismo. Silvia Federici, já em o Calibã e a Bruxa (2017), reivindica que a maneira como a acumulação primitiva desembocou no capitalismo se deu com a institucionalização da mulher como máquina reprodutora, que levou à destruição de seus saberes tradicionais e de suas formas coletivas de subjetivação. A realização do parto pelas parteiras, os processos de cura, o cultivo e o uso das ervas medicinais, a vivência em comunidade, onde a maternidade era compartilhada coletivamente, não atendiam ao processo de acumulação econômica porque desviavam as mulheres de suas funções na lida doméstica do casamento, necessárias para que o trabalho masculino assalariado e as profissões autônomas dos homens da ciência vingassem. Tais mulheres, produtivas, ao lado das não casadas, e não mães – principalmente as curandeiras, prostitutas e velhas - eram tomadas como bruxas, e sacrificadas como símbolo de comportamento desviante do interesse do patriarcado, da igreja, e mais tarde da formação capitalista. Nesse processo, a mulher vai sendo desligada de suas formas de produtividade tradicionais, de suas relações comunitárias e participações públicas, bem como de sua sexualidade que se apresenta (de modo convenientemente machista) como desviante da pureza materna. Em seu livro posterior, O ponto zero da revolução (2019), Federici traz a reivindicação da maternagem como peça fundamental da engrenagem econômica: “Dizer que queremos salários para o trabalho doméstico é expor o fato de que o trabalho doméstico já é dinheiro para o capital, que ganhou e ganha dinheiro quando cozinhamos, sorrimos e transamos” (FEDERICI 2019, 48)
Apesar dos corpos femininos portarem a especificidade da procriação, ela não pode determinar o ser mulher. Se essa condição é o que define a todas igualmente, a ideia de Beauvoir de que “ninguém nasce mulher, mas torna-se” (1967, p.9) se refere às possibilidades de escolhas que constituem nossas diferenças, e que devem escapar às formas de escravização feminina à esfera privada para alcançar a pública. Eleni Varikas (1996) lembra como a construção moderna, interessada nos valores capitalistas, sustentou a separação entre a vida privada e a pública, opondo a lógica do ser mãe à de ter uma existência política. Essa separação implica na retirada da mulher do campo das decisões sociais e econômica, que eram parte na vida comunal pré-moderna, portanto, em seu apagamento histórico. Assim a divisão das esferas sociais concerne a divisão sexual do trabalho:
Primeiro, qualquer pessoa que não a mãe (o pai, a ama etc.) pode “maternar” uma criança. Segundo, não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus “deveres maternais”. A moral, os valores sociais, ou religiosos, podem ser incitadores tão poderosos quanto o desejo da mãe. É certo que a antiga divisão sexual do trabalho pesou muito na atribuição das funções da maternagem à mulher, e que, até ontem, esta se afigurava o mais puro produto da natureza. (BADINTER 1985,17).
Uma outra reivindicação do feminismo busca, contrariamente à dicotomia machista mãe boa x mãe má, a possibilidade de um entre que possa traduzir a experiência concreta do ser mãe como uma negociação constante entre desejos, expectativas e frustrações.
No filme de terror Babadook, da diretora australiana Jenifer Kent, o filho de uns sete anos, completamente perturbado por um monstro que diz lhe perseguir, não para de atormentar a mãe viúva. Está sempre atrás dela a reclamar de seu medo. À noite passa para sua cama, a interrompe quando ela está se masturbando no quarto, fala e resmunga sem parar, é agressivo e incontrolável, tem problemas na escola e em outros lugares públicos. A mãe, passiva, no exercício de seu amor abnegado, não consegue reagir ao assédio incessante do filho, mas conduz a tudo com o cuidado que lhe é esperado, até que ela mesma incorpora o monstro, o Babadook, e dispara a dizer tudo que sente para o menino, acuando-o. Progressivamente ela passa a amedrontá-lo, a ameaçá-lo e se torna violenta. A posta em cena dessa narrativa interpela fortemente mulheres mães sobre se esse monstro já não esteve nelas incorporado?
Não há dúvidas de que a primeira impressão é de que a mãe monstruosa é inaceitável. Ela é um desvio porque oposta a figura santificada, paciente e devota, que funda o mito materno cristão. O filme vai longe, bem ao gosto do gênero de terror, deixando claro um esquema - mãe-monstro-algoz versus criança-vítima-amedrontada - que sem dúvidas é inadmissível. Porém, a polarização entre a mãe abnegada e permissiva que passa a monstruosa, ao operar com os limites, na contramão da negociação dialética do entre, expõe essa identidade idealizada e hegemônica da maternidade: de que a mãe só é ou boa ou má. Seria possível à protagonista-mãe do filme escapar a condição sufocante de uma maternidade tóxica sem se tornar um monstro? No caso de Babadook, o medo da criança e o desespero da mãe se devem ao luto paterno. Saberemos mais adiante no filme, que o monstro representará, tanto como encarnação quanto como sintoma, o trauma pela morte do pai.
Se, para Beauvoir e Badinter, o tribunal do ideário eurocêntrico julgou como mãe má aquela que não fosse inteiramente identificada com a maternidade e a ela devota, para Patrícia Hill Collins, Michele Wallace (1976) e Renita Weems (1984), a matriarca negra má, responsabilizada por não cumprir bem seus deveres, portanto por contribuir para os problemas civis negros, representa a “mammy fracassada, um estigma negativo aplicado às afro-americanas que ousassem rejeitar a imagem de serviçais submissas e diligentes” (COLLINS 2019, 145). Além disso, a matriarca acusada pela ideologia dominante de não se dedicar como deveria às crianças negras, “permite que homens e mulheres brancos culpem as mulheres negras pelo fracasso de seus filhos na escola e perante a lei, bem como pela subsequente pobreza das crianças negras” (COLLINS 2019, 147).
De ambos os lados, a figura da mãe vai sempre oscilar entre dois extremos desumanos: a boa e a má. Tal dicotomia oferece pouco espaço entre uma coisa outra, muito menos fora de uma e outra, para que a ambiguidade das relações parentais e a subjetividade da mãe se construa, como também para que o par mãe-mulher possa ter formas e processos tão variados quantos forem as relações, e os desejos. Se de um lado as políticas públicas atuam no sentido de conferir uma série de cuidados às mães, por outro, esses cuidados convertem-se numa biopolítica que, atuando no corpo feminino, reforça a obediência da mulher a um protocolo pré-estabelecido de maternidade. Ali, o cuidado racializado ou mitificado se refere menos a mulher como sujeita do que como função reprodutora.
Para Collins, dois movimentos devem estar claros para que haja um espaço entre a subjetividade e a maternidade: a dialética e o othermothering (1985). Se a maternidade negra opera como uma instituição dinâmica e negociável, é porque frente aos esforços dos sistemas de opressão interseccional se opõe a luta das mulheres para construir suas próprias experiências de maternagem e delas se apropriar: “(...) a maternidade pode ser um espaço no qual as mulheres negras se expressam e descobrem o poder da autodefinição, a importância de valorizar e respeitar a si mesmas, a necessidade de autonomia e independência assim como a crença no empoderamento...” (COLLINS 2019, 296). Reforçando essas negociações entre a maternagem e as imagens de controle, o othermothering se refere à coletivização da maternidade que, não se restringe a mãe biológica. A exemplo das comunidades africanas - como vemos no filme senegalês, Selbe: One among many (2017), de Safi Faye, em que Selbe compartilha o cuidado com as crianças do vilarejo com outras mulheres -, mais do que uma rede de apoio (como concebemos hoje), trata-se da construção de um comum que desidrata o individualismo capitalista.
A partir dessas reivindicações, a ideia da pesquisa é pensar o cinema como dispositivo estético e político3 que pode operar na contramão (portanto, como contrapoder) dos dispositivos disciplinares descritos e das imagens de controle que instituem, ao permitir a elaboração, a construção e a comunicação coletiva da dimensão plural, singular e subjetiva das mulheres mães, especialmente quando as colocam em cena, e as conferem protagonismo, em suas diferenças de classe, raça, sexualidade, para que outras mulheres vejam. É nesse sentido que uma perspectiva feminista do cinema precisa resistir e confrontar, na trilha de Adrianne Rich, o processo de definhamento da subjetividade feminina pela ideologia patriarcal da maternidade compulsória.
A ameaça que o macho coloca à capacidade feminina de criar vida tem repetidamente tomado a forma de ódio por todos os aspectos da criatividade feminina. As mulheres não foram apenas ditas a limitarem-se a maternidade, mas nós fomos ditas que nossas criações estéticas e intelectuais são inapropriadas, inconsequentes ou escandalosas, um atentado à feminilidade adulta (RICH1995, 39).
O cinema como partilha e histórico da maternidade (2)
Para tomar o cinema em suas formas de negociação com as imagens de controle, ele deve ser concebido como experiência complexa de partilha que ocorre em pelo menos três níveis: o pedagógico, o terapêutico, e o histórico. Tais níveis representam a concepção do cinema como potência de transformação no mundo, portanto como ato performativo, pragmático e não puramente representacional, como veremos na definição de cada um.
Do ponto de vista pedagógico, a forma como vimos e analisamos filmes, permite um aprendizado coletivo que se dá na espectatorialidade pela experiência seja da cumplicidade da identificação, seja do choque, da negação, que pode levar ao reconhecimento da alteridade. Num debate ocorrido na 1ª Mostra de Cinema Argentino de Mujeres (2019)4, em comentário público após a exibição do filme argentino, Julia e a Raposa, da cineasta Inés Maria Barrionuevo (2018), foi enfatizado a coragem de Julia, a protagonista mãe, em terceirizar sua função materna para um casal de amigos gay, bem como a importância dessa escolha de separar-se da filha de onze anos se dar, formal e narrativamente, de modo natural e leve. O desvio de Julia da maternidade para viver outra história é construído na duração detida da câmera de Barrionuevo em uma experiência subjetiva gradual de inadequação em um momento de luto pelo marido-pai. Sem nenhum tom grave, tal desvio nos parece contundente com a perspectiva feminista que pretende retirar o peso da mitificação do amor materno sobre mulheres-mães, no sentido de minimizar culpas, alargar as formas de maternagem, e propiciar outras relações não pré-estabelecidas entre mãe e filha. Mesmo frente a essa condução do olhar sobre o filme, durante o debate, uma das espectadoras da plateia alegou que Julia não deveria ter “abandonado” a filha, mas ficado com ela na casa de campo ampla e bela onde se passa a narrativa. Não há dúvidas, que o ideário patriarcal acerca da manutenção do elo materno a todo custo, e da presença abnegada da mãe, a despeito da sua incapacidade corporal e emocional de se doar à filha, não permitiu à espectadora ver que o “belo” casarão, apesar de estar em meio a uma natureza exuberante, se tornou sombrio com a presença doente, quase fantasmática, da mãe enlutada. Contudo, na confrontação do debate que dali se seguiu, a partir do compartilhamento daquela experiencia materna específica mostrada no filme, sobre a mãe que não consegue maternar após a morte do pai, o cinema se mostrou em seu potencial pedagógico. A espectadora aos poucos ouviu outras espectadoras e juntas colocaram em suspeitas a sustentação de uma condição materna frágil.
Do ponto de vista terapêutico, lembremos com Jean-Louis Comolli (2008), que o mau lugar do espectador – aquele deslocado da fácil identificação com a imagem – só permite a elaboração pois opera na crise pela dificuldade do reconhecimento. Nesse sentido, se é exigido do espectador sair do conforto de ter seus desejos satisfeitos e seus pressupostos comprovados na narrativa fílmica aprazível, no caso da espectadora mãe, é exigido um trabalho para além do imaginário mítico e institucionalmente instaurado. Assim como o feminismo de segunda onda nasce de sessões terapêuticas, nas quais as mulheres juntas percebem suas questões pessoais em um terreno comum, portanto político, o cinema como espaço do ver juntas, entre mulheres, permite que a singularidade de cada experiência apareça e seja compartilhada. Ao ouvirmos a espectadora no debate acima relatado buscando se deslocar para outra forma de subjetivação e percepção materna, nos damos conta de que o cinema, para além da tela, cria um comum onde há troca de posições e escutas. O que nasce do tempo em que diferentes mulheres-mães - latinas, africanas, europeias, indígenas - duram na tela é a possibilidade de devolver-lhes o olhar que nos interpela. E é assim que, acompanhando, por exemplo, Selbe, personagem do filme africano já citado, trabalhar vigorosa e obstinadamente no campo com seu bebê amarrado nas costas e compartilhando o olhar para os filhos das outras, ressignificamos nosso olhar sobre o peso da maternidade e o redistribuímos.
Finalmente, para pensarmos o potencial do cinema do ponto de vista histórico, fundamental nesse processo, voltemos ao passado num gesto de identificar um padrão de gênero cinematográfico que tematizou a maternidade, para a partir daí lançar luz e informar o processo de construção de um inventário de filmes atuais em que modulações variadas do ser mãe estão em jogo.
Women´s film: algumas reverberações do mito do amor materno
Os filmes americanos que destacavam personagens mães, dos anos 30 aos 50, eram considerados um subgênero do women’s film, melodramas sobre a maternidade, inevitavelmente sacrificial, destinados ao público feminino. Segundo Linda Williams, desvalorizar e degradar a figura real da mãe e santificar a instituição da maternidade é típico “dos filmes de mulher” em geral e do subgênero melodrama materno em particular. Para Adrienne Rich, nessas representações visuais a maternidade chega até nós filtradas por uma consciência masculina coletiva ou individual, e nos indica a importância de entendermos melhor uma vivência tão crucial na história, que foi arrancada das mulheres para dar poder e propriedade aos homens. Stella Dallas, A mãe redentora, de King Vidor (1937), como o próprio título em português anuncia, parece ser a síntese semiótica e moral do processo de mitificação que associa a mãe à bondade extrema. Nesse filme, o ápice é abdicar da própria maternidade tão desejada pelo bem da filha, ou seja, a dobra máxima que o melodrama poderia fazer: se a vida da mulher é e deve ser maternar, o maior gesto de amor abnegado é abandonar a filha para que ela tenha uma vida melhor, que nesse caso se refere à ascensão social.
Stella é uma mulher simples e de certa forma vulgar que casa em busca de uma vida sofisticada, mas não consegue se transformar para se adequar às convenções do casamento. Após o nascimento da filha, ela se separa do pai e se dedica à menina que tornará, como ela mesma diz, o único sentido de sua vida. Porém brega e sem modos, incapaz de partilhar as relações que a filha tem com a aristocrata nova família do pai, Stella abdica de seu amor, afastando a jovem para que possa acender socialmente e ter a vida que ela mesma não pode ter. A cena final da mãe assistindo na chuva, aos prantos, pelo vidro da janela, o casamento nobre da filha, gerou um vigoroso debate entre duas grandes pensadoras feministas nos anos de 1984 e 1985: Ann Kaplan e Linda Williams. Muito resumidamente, Kaplan defendia que o sacrifício da mãe pela filha é uma forma do patriarcado condicionar o olhar da espectadora feminina que, ao sofrer com o pathos materno, retorna a vida convencida de que Stella está sendo punido por não ter se subordinado aos padrões do casamento, restando a ela o lugar passivo da espectadora que assiste a filha casar-se sem participar. Já Willians argumenta acerca de uma multiplicidade de identificações possíveis às espectadoras em função da relação tensa de Stella com seu próprio casamento e sua tentativa frustrada de obter status social. (KAPLAN 2000, 466-504)
Entre os poucos filmes dedicados à figura da mãe negra fora do contexto da escravidão, o mito sacrificial aparece também em Imitação da vida, de Douglas Sirk (1959), em que a mãe solteira Annie Johnson, interpretada pela atriz negra Juanita Moore, trabalha como doméstica e cuida de Lora (Lana Turner), uma a mãe solteira, e de sua filha branca. Nesse melodrama, vemos os conflitos com as filhas a partir das duas mães, porém, como era de se esperar, o destaque é dado as personagens brancas. Se a maternagem é desviante para Lora, que envolvida em sua carreira de atriz, não ocupa o lugar da mãe dedicada, Annie o ocupa representando, desse modo, a imagem de controle da mammy, aqui já discutida. Ainda assim, Sirk é hábil em complexificar a figura da mãe negra através da relação com sua própria filha e de um ponto de vista racial. Mesmo lhe devotando um amor incondicional, a filha de Annie, Sarah Jane (Susan Kohner), por ter a pele mais branca, nega a mãe – e com isso a si mesmo como mulher negra -, a apresentando publicamente como sua empregada. Annie, com a humildade típica da mammy, cria a filha da patroa branca, e lhe dedica o cuidado que sua própria filha rejeita. É somente com sua morte, ao final do filme, que o amor puro e mendigado da mãe, que sobreviveu à rebeldia da jovem contra sua progenitora e sua raça, será reconhecido, não só pelo arrependimento dramático da filha. Numa cena triunfal, o enterro dessa mulher negra acontecerá conforme os ritos de sua crença religiosa, lhe concedendo, como sonhara, uma posição de rainha.
Entre os melodramas maternos, junto à temática da mãe solteira está a da gravidez inesperada, entre muitos filmes, destacamos o americano Mãe Solteira, de Ida Lupino (1949); o britânico A mulher que pecou, de Brian Formes, (1962); e o sueco, No limiar da vida, de Ingmar Bergman (1958). O primeiro, por ser dirigido por uma mulher, em meio a toda estrutura machista da indústria cinematográfica americana, teve grande importância no vigoroso debate feminista dos anos 70-80. A ingênua e apaixonada Sally engravida de um pianista que a abandona. Sozinha e envergonhada, ela foge de Drew, o rapaz que lhe acolheu em sua jornada de busca pelo pai da criança, restando-lhe um abrigo para mães solteiras onde ela será apoiada a dar o bebê em adoção. Em A mulher que pecou, Jane é um francesa que vai viver em um quarto de uma pensão pobre em Londres, onde, certa de não querer se casar com o pai do filho que espera, cogita o aborto.
Se Lupino não escapa à narrativa da mãe que enlouquece ao ser separada de seu filho recém-nascido, por outro lado, ela sustenta a separação até o fim. Porém, Claire Johnston, em seus escritos de 1973 (KAPLAN, 2000), coloca o posicionamento feminista do filme em questão, ao defender que opção pelo perdão final de Drew, construído como um personagem bondoso, manco e infantilizado, o colocaria como substituto do filho apartado, e resolveria tudo num happy end. É importante notar que num filme dessa época, quando, segundo Laura Mulvey (1983), as mulheres não eram protagonistas, mas objetos da pulsão escópica masculina, Lupino consegue uma brecha na estrutura machista hollywoodiana para contar a história de uma jovem que teve seu destino como mãe não realizado e o faz na perspectiva da personagem: a todo tempo estamos a vendo de frente ou vendo o que ela vê. Lembremos a célebre cena do parque em que a câmera frontal e próxima enquadra as expressões de agonia de Sally que, ao ser pedida em casamento por Drew, olhando o carrossel giratório, que entra num movimento alucinante – entramos no giro pois sabemos, e ele não sabe, que ela carrega o bebê de outro. Numa montagem que acelera a alternância entre o plano de seu rosto e o contraplano dos rodopios do carrossel, sentimos com ela a náusea não só da gravidez, mas da situação de impasse frente a sua situação e ao futuro. Tal jogo de montagem obriga espectadores homens a se colocar na pele da mulher, e as mães a reconhecerem a possibilidade de uma vida sem o filho, dialetizando tais relações. Lupino ainda alerta para as agruras de ser mãe solteira, a exemplo da cena em que Sally, na única vez em que tem seu bebê no colo, pergunta-lhe como poderia ficar com ele, e, num choro irônico, responde que ele poderia se cuidar sozinho, trocar as próprias fraldas enquanto ela iria trabalhar.
Em A mulher que pecou e em No limiar da vida, impressiona o modo como os filmes matizam a experiência feminina da maternidade seja pelo realismo de Bergman, ou pela riqueza das relações de Jane, em Forbes5. Jane, a protagonista de Forbes não quer se casar, e sua desistência do aborto soa como resistência à assertividade masculina do médico que alega só existir uma ou outra alternativa. Além disso, na espelunca do subúrbio londrino, Jane travará relações de afeto singulares: com o rapaz com quem terá um romance; com uma mulher velha e solitária que confessa o amor lésbico a qual se dedicou por toda sua vida; e com um homem negro gay que compartilhando da paixão pelo mesmo rapaz que ela, desliza entre o ciúme e o desejo de protegê-la. Já No Limiar da Vida se passa em uns três dias da vida compartilhada por três mulheres num quarto de hospital, que enfrentam diferentes situações pelos bebês que carregam no corpo. Cecilia, a mais velha, no fim do segundo mês de gravidez, sofre um aborto espontâneo e lá está para fazer a curetagem; Hjördis, a mais jovem que não deseja ser mãe, tenta um aborto e é internada para segurar o bebê; e Stina, uma mulher alegre, extremamente entusiasmada com o nascimento do filho que está atrasado. Confinadas nesse espaço asséptico e pequeno do quarto hospitalar, que centram ainda mais em suas experiências, elas trocam confidencias e se apoiam em seus dramas. Cecilia que inicialmente queria o filho, ao abortar se dá conta de que sua “vontade” era uma percepção automática para “validar o casamento” e que se julga fraca, incapaz de nutrir amor pelo filho que carregava. Hjördis luta bravamente contra as investidas das enfermeiras de que ela tenha o filho, mas com a morte do bebê de Stina (que ressurgirá mortificada pela perda) resolve tê-lo. Os célebres closes de Bergman se tornam fundamentais meios de interpelação feminista. Em suas expressões de dor, medo, e desejo, as mulheres que ali se põem a olhar-nos tão proximamente pela tela, parecer um chamado não só da devolução do olhar como experiência de alteridade, mas do pensamento sobre diferentes devires mãe. É como se do passado elas nos perguntassem indicando um futuro que ainda não alcançamos.
Por um inventário (em construção) de formas fílmicas complexas da maternidade (3)
A partir da apresentação das abordagens do feminismo materno, das reivindicações que nos motivam para a pesquisa, e dos três níveis de apreensão do cinema como dispositivo de elaboração e partilha, apresentamos no recorte histórico uma breve constelação de melodramas sobre a maternidade. A função de tal investimento nesse artigo se justifica não como uma apresentação de sinopses ilustrativas, mas como uma prévia da possibilidade de apreender e entender, a partir das relações comparativas entre filmes clássicos exemplares que, colocados lado a lado, trazem as abordagens da maternidade em sua normatividade, mas também na força histórica da disrupções. É nessa postura metodológica que o inventário que a pesquisa6, almeja se baseia. A intenção, a partir daí, é cotejar filmes contemporâneos de ficção, realizados entre os anos de 2000 e 2021, de nacionalidades diversas, nos quais, como já dado no problema de pesquisa, percebe-se formas de insubordinação aos mitos construídos em torno da maternidade das mulheres brancas e racializadas. Tal inventário final tem como objetivo dar a ver nas comparação entre esses filmes – que ainda estão sendo buscados e pesquisados (principalmente aqueles feitos por mulheres de etnias e culturas menos hegemônicas) - a potência estética e política do cinema para o feminismo em convocar formas complexas de maternidade no sentido de desnaturalizar aquelas que definimos como previamente estabelecidas
Nesse sentido, tendo como base esse conciso histórico7 aqui composto de alguns clássicos do women’s film e da teoria cinematográfica feminista, é possível destacar pelo menos três grandes conjuntos de filmes sobre mães: aqueles que centram nas mães de crianças ou jovens; aqueles que centram na descoberta da maternidade (a gravidez até o parto e o período puerperal); e aqueles em que a gravidez (a maternidade por vir) é interrompida, portanto centram-se nos motivos para o aborto, seja ele uma escolha ou um acontecimento. Informadas por esses conjuntos, começamos a construir o método que vai organizar o inventário almejado. Uma etapa inicial define duas categorias classificatórias dos filmes já inventariados: a primeira engloba a maternidade vivida no corpo (ou seja, o processo de engravidar, vivenciar a gravidez, até o puerpério ou o aborto); e a segunda busca apanhar a maternidade já em processo (ou seja, a relação de mães com filha(o)s ainda dependentes do cuidado de adultos).
Em a maternidade vivida no corpo, um primeiro eixo de análise agrupa filmes nos quais o vir a ser mãe é de fato uma experiência, um pathos, em que o corpo é atravessado por tensões que, confrontando a ideia da gravidez idílica, levam a mulher a produzir uma série de questionamentos e, assim, a retirar desse estado algo para além da maternidade como destino ou fim em si mesma. Tais obras apontam um posicionamento político acerca da maternidade, que, através da afirmação da mulher, de seu corpo e de sua inserção social, vai do temor, e desafio da escolha, ao empoderamento. Nesse sentido, podem tanto fortalecer o desejo de ser mãe - como o faz, por exemplo, o brasileiro Olmo e a Gaivota, de Petra Costa (2014), ou o americano Se a Rua Belle Falasse, do cineasta negro Barry Jenkins (2019) -, quanto sustentar a recusa de ser mãe, ao negar o destino biológico e construir a experiência do aborto através da negociação com forças contrarias - como faz o brasileiro Pendular, de Julia Murat (2017), e o alemão 24 semanas, de Anne Zohra Berrached (2016).
Na categoria inventariante a maternidade em processo (mais avançada até esse momento da pesquisa), indagamos como se dá a disputa entre as formas míticas e as complexas. Encontramos, num primeiro agrupamento para análise dentro dessa categoria, filmes que parecem desmistificar o lugar materno, porém não oferecem meios de negociação com a experiência do ser mãe que é achatada pelo status quo - opressão de classe, marginalidade, exclusão social, traumas familiares – portanto podem recair em estereótipos8, mesmo que apontando formas de controle. Nesse conjunto, as mulheres podem ter seu lugar materno obstruído ou impossibilitado. No alemão, Madonas, de Maria Speth (2007), Rita, incapaz de ter uma vida integrada socialmente, com trabalho e relações afetivas estáveis, não dá conta dos filhos (principalmente, da mais velha que lhe cobra o amor que lhe seria de direito), os entrega à avó, porém segue engravidado como forma de, ao que parece, punir a si mesma e a sua mãe, com quem a protagonista tem sério conflitos vindos as infância. Já Preciosa, de Lee Daniels (2009), porta a figura da mãe claramente má e “beneficiária do Estado” americano (COLLINS 2005, 150), porém inscreve tais condições histórica e contextualmente. Sua crueldade parece perpetuar a violência física e moral do marido que estupra sua filha desde bebê, e a imagem daquela que não trabalha revela a exclusão estrutural (moral e social) imposta pelo racismo. No que parece ser uma repetição traumática da estrutura opressiva, Preciosa é escravizada pela mãe que a obriga a cozinhar e a comer sem parar, cultivando perversamente sua obesidade, e a impede de estudar, bem como de cuidar de seus próprios filhos. Se para a mãe, vítima do abuso do pai que a substituiu sexualmente pela filha, só resta a maternidade abusiva, é Preciosa, que, em sua resistência (seja pela fértil imaginação, seja pelo empenho em aprender a escrever), poderia projetar-se numa maternagem dialética. Tal possibilidade é barrada quando o filme ao invés de oferecer agência à jovem moça, opta por empurrá-la para mais uma condição de exclusão social: a Aids. Lamentavelmente, se, por um lado, esses filmes tensionam as imagens de controle e os dispositivos de opressão sistêmica (racismo, machismo e pobreza), ao mostrá-los como motor do mecanismo da trama; por outro, não há mais disputa em jogo, pois não há linhas de fuga ou formas de subjetivação possíveis para que essas mães se reconciliem no cuidado com o outro.
Apesar de tratar-se de uma desmitificação que recai no estereótipo, no francês, Meu anjo, de Vanessa Filho (2018), o sistema social opressor não aparece como responsável. Marlène, mãe solo de Ellie (uma menina de uns dez anos), tenta controlar seu alcoolismo e sua sexualidade acentuada para criar a filha. Porém, em sua fragilidade crescente, os papeis se invertem, e aos poucos Ellie precisará cuidar da mãe, até que incapaz de sustentar a relação, a mulher sai de casa e deixa a filha sozinha, a ocupar seu lugar vazio. A menina começa a beber, maquiar-se, e comportar-se de forma sexualizada. Como a impossibilidade de maternar em Meu Anjo não tem lastro histórico (a experiência mãe e filha é apanhada no presente vivido do filme), a negação pela personagem do amor sacrifical levará, novamente, ao seu oposto radical: a mãe má. Contudo, dessa vez a monstruosidade materna não poderá mais ser justificada pelas formas interseccionais de opressão (machismo, racismo, classismo), como em Preciosa, (e, nem pelo gênero do terror, como em Babadook, apresentado no início desse artigo), mas apenas restituir a força da mitificação que condenará sumariamente Marlène. Por outro lado, ao enfatizar a volúpia sexual da mãe, dialeticamente, o filme evoca o seu avesso, mais uma vez, a mãe sagrada, portanto dessexualizada. Nesse sentido, talvez caiba aventar linhas de fuga do pensamento não sobre, mas, a partir do filme, acerca dos limites do moralismo que recai sobre a mãe, para que a sexualidade da mulher que materna seja reconquistada, lembrando, na trilha feminista forte de Audre Lorde, a afirmação de que a sexualidade empodera as ações femininas.
O erótico é um recurso que mora no interior de nós mesmas, assentado em um plano profundamente feminino e espiritual, e firmemente enraizado no poder de nossos sentimentos não pronunciados e ainda por reconhecer. Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer as fontes de poder inerentes à cultura das pessoas oprimidas, fontes das quais pode surgir a energia da mudança. No caso das mulheres, isso se traduziu na supressão do erótico como fonte de poder e informação em nossas vidas (LORDE 1989, 67)
Por fim, um último agrupamento dentro da categoria maternidade em processo, recruta filmes que não desmistificam completamente o lugar materno, porém apontam para outas formas de maternagem, numa negociação complexa com os dispositivos de controle e o sistema. Em A Vida Secreta das Abelhas, de Gina Prince-Bythewood (2008), a primeira cena filme sugere que a mãe branca é morta sem querer pela própria filha criança, Lily. Já adolescente, ela vive em uma relação abusiva com o pai. Após um episódio de violência racial sofrido pela empregada e única mulher com quem convive, elas fogem para uma cidadezinha da Carolina do Sul (na pista da história passada da mãe de Lily) onde são abrigadas por uma família de três irmãs negras que produzem o mel Madona Negra e vendem na região. August, interpretada por Queen Latifah, a mais velha e dona do pequeno negócio de apicultura da família, aos poucos passa a ocupar um lugar afetivo (maternal) na vida da menina. O que poderia reeditar o estereotipo da mammy, até mesmo porque August, descobriremos mais adiante, cuidou da mãe de Lily no passado, aos poucos se torna uma maternagem complexa, no qual os cuidados são de todas para todas. Em Miss Virginia, de R.J. Daniel Hanna (2019), a mãe negra solteira corrobora com o amor abnegado, e faz tudo para o filho estudar em uma boa escola, trabalhando dia e noite como faxineira. É nesse caminho do sacrifício materno, que ela vai se engajar na causa pela assistência ao estudo gratuito para crianças pobres nas melhores escolas de Washington, DC. A mãe, então, ressignifica sua posição subalterna e vulnerável (de gênero, raça e classe), e vê crescer sua autoestima, ao investir seu desejo no ativismo. Empoderada, ao mobilizar uma comunidade de mães, ela complexifica o lugar materno, conquistando espaço social não só para o filho negro, mas para os vários filhos das classes pobres.
Um brevíssima conclusão possível para a demonstração do processo
Se nos filmes aqui agrupados pela maternidade no corpo a força política da escolha em ser mãe parece muito ligada às personagens nos quais estão em jogo a força da fabulação e reinvenção corporal, pelo teatro ou dança, e, no caso específico de Se a rua belle falasse, da corporificação maternal como resistência ao racismo; naqueles em que a maternidade está em processo vemos claramente duas formas opostas de contrariar o mito do amor sacrifical. Na primeira, o mito contrariado se refaz na impossibilidade do amor materno como escolha, seja porque as formas dialéticas de maternagem parecem se esvair na marginalidade, na história de opressão e abuso, a exemplo de Madonas e Preciosa; seja porque a incapacidade existencial para o cuidado de si embarga a passagem ao cuidado do outro, como em Meu Anjo. Na segunda forma de contrariar as formas de controle da maternidade, os filmes mesmo assumindo a imagem da boa mãe (que se sacrifica pelos filhos ou as que se doam aos filhos dos brancos) a desmistifica, ao oferecer brechas para que a maternagem se transforme em uma multiplicidade, aponte outros devires, e formas políticas de resistência, como em A vida secreta das abelhas e Miss Virginia.
Enfim, tratou-se aqui de, a partir dessa breve exposição da dinâmica dos dois eixos de análise (e dos agrupamentos fílmicos já observados), demonstrar, num gesto ainda condensado, o modo como a pesquisa pretende seguir metodologicamente inventariando e comparando as forças complexas que instituem diferentes subjetividades maternas, para melhor compreender as forças que as politizam e que as apaziguam. Esse primeiro esboço de como o inventário deverá se organizar e colocar os filmes em relação, trouxe em seu conjunto pouca diversidade de nacionalidades e mistura entre filmes feitos por mulheres e por homens. A ideia para o futuro da pesquisa é buscar mais obras produzidas por mulheres de etnias, culturas e regiões menos hegemônicas, de forma a construir também dentro dos eixo de análises outras classificações de agrupamento, ou mesmo transversalidade, onde o contexto e as intersecções da autoria possam ser pensados em sua singularidade. Nessa perspectiva, o objetivo é pensar em que medida as mulheres ao tomarem as câmeras, principalmente aquelas que foram por questões de opção sexual, classe, raça e nacionalidade, mais invisibilizadas, carregam esse traços singulares, e modos de resistência histórica no que se refere a maternidade para dentro de suas produções, no sentido, de na comparação pensar em possíveis relações entre essas invisibilidades e formas mais dialéticas de maternidade.
Notas finais
1Andrea O’Reilly (2013) define dez linhas de atuação da ideologia patriarcal para regular e o oprimir a maternidade, entre eles: essencialização (a maternidade funda a identidade feminina); privatização (o maternar restrito ao doméstico e ao reprodutivo); individualização, naturalização e biologização (só a mãe materna, o faz por instinto inscrito biologicamente); normalização (modelo heteronormativo de família); idealização ou o próprio mito da mãe perfeita e do amor incondicional.
2Na perspectiva de Foucault, os dispositivos disciplinares forçam os sujeitos a se autovigiarem e se vigiarem mutuamente, essa vigilância “se ancora em padrões de normalidade que visam a atender a demandas científicas e institucionais, através de valores sociais e morais” (VEIGA 2008, 49). Já na “biopolítica, tais dispositivos incidem sobre a vida dos sujeitos e a produção mesma das subjetividades, em sua dimensão criativa, plural e inventiva, extraindo o conhecimento que permitirá a administração pública e o controle da população” (VEIGA 2008, 39).
3Sobre essa discussão do cinema como dispositivo conferir VEIGA, R. 2008.
4Trata-se de conferência feita pela autora na 1ª Mostra de Cinema Argentino de Mujeres ocorrida em 13 a 15 de março de 2019 no Cine Humberto Mauro (Belo Horizonte – MG).
5É importantíssimo notar que assim como Stella Dallas, adaptação do livro da escritora Olive Higgins Prouty, as duas obras têm uma mulher responsável pela fatura feminista dos filmes: Lynne Reid Banks, autora do livro que Forbes adaptou, e Ulla Isaksson, roteirista responsável pelos fortes diálogos da adaptação de seu conto por Bergman.
6Essa pesquisa extensa está sendo realizada no grupo Poéticas Femininas, Políticas Feministas (UFMG-CNPq) e conta com a participação várias pesquisadoras.
7É importante lembrar que se tratando dos longas clássicos de ficção, principalmente os americanos e europeus, anteriores aos anos 70, é a maternidade branca que estará mais presente, e quando a maternidade racializada é abordada, o lugar da mãe negra não vai além dos estereótipos aqui retratados e dificilmente os tensionam ou os rasuram.
8Trabalhamos aqui com uma relação sutil entre mito e estereótipo, no qual, seguindo a trilha aberta por Hazel Carby (1987), esse último seria os modos de funcionamento pragmático dos mitos enquanto representação ficcional da realidade. Tal relação se liga a imagem do controle, de Collins (2019), na medida em que se entende as forças opressoras, portanto se politiza, o que está por trás dessas formações simbólicas.
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