Abstract
This communication aims to analyze the documentary made by Brazilian filmmaker Eliana Caffé, The Cambridge Squatter, made in 2016, from the point of view of reality and fiction, in view of the hybridization of genres proposed by the filmmaker. Caffé in his feature film mixes professional and social actors intertwining stories of migrants and refugees who find themselves living in what was once a luxury hotel in the downtown area of São Paulo, the Hotel Cambridge. For different reasons, they are in a situation of social vulnerability and in this collective space, they have one of the few possibilities of having a house, as well as food, in addition to being able to share stories and experiences ranging from refugees from the war in Congo to Syrians who left their country. The film also presents the situation of Brazilians, especially Northeasterners, who migrate from their places of origin in search of better living conditions, seeing this possibility in the city of São Paulo. In its political bias, it presents the various movements and NGOs involved in the struggle for the right to housing, and the problem of the abandonment of downtown and being occupied by “homeless” people. There are many themes punctuated in Caffé’s film, this communication will mainly address issues linked to this representation of poverty, the vulnerability of these people, and their struggle for a space of housing and social dignity, as well as the relationship and imbrication between the real and the fictional.
Keywords: Documentary film, Real and fictional, Human mobility, Housing and urban space.
Introdução
Em 2016, a cineasta Eliana Caffé realizou o filme: Era o Hotel Cambridge (2016), obra na qual nos apresentou dados de uma realidade vulnerável e cruel para pessoas em situação de refúgio ou mesmo de migração forçada. Os participantes relatam e apresentam o seu cotidiano precário enquanto relações humanas, sociais, politicas e mesmo humanas. Quando analisamos esta obra audiovisual não podemos escapar das condições de situações de realidade e de situações vividas e imaginarias. Em diversos momentos nos perguntamos até que ponto as relações de convivência podem suportar a realidade cruel. Alguns personagens, atores profissionais, podem ser confundidos com participantes, atores sociais, do filme. Neste exato momento, março de 2022, somos surpreendidos pelo conflito entre Rússia e Ucrânia e não podemos deixar de nos surpreender com a repetição da Guerra no Congo ou na Síria, situações apresentadas no filme Era o Hotel Cambridge, e que nos incitam a refletir sobre a situação do mundo na atualidade. Através de uma mescla entre ficção e real, a cineasta Eliana Caffé visa apresentar a realidade, mesmo que seja através do prisma ficcional, de um grande número de pessoas de uma das maiores metrópoles do mundo, a cidade de São Paulo, e os graves problemas da falta de moradia e da ocupação de imóveis abandonados, sobretudo no centro da cidade.
Processos de vulnerabilidade
As vésperas do colapso da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, Sigmund Freud (1856-1937), psicanalista, escreveu um dos textos mais importantes de suas publicações, chamado de Mal-Estar na Civilização (1929). Freud trata das infelicidades humanas e do conflito entre individuo e sociedade. Em recente texto do livro: Territórios Sociais1, aprovado pela UERJ-FAPERJ, trabalhamos o corpo, o mundo e as relações sociais na busca de compreender o mal-estar nos processos de refúgio e de migrações.
As informações que temos no momento sobre esses fenômenos mundiais se apoiam no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) do ano de 2019 em que sabe-se que 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar em todo o mundo (ACNUR, 2020). Esse número revela a expressiva existência de perseguição, conflito, violência, violação de direitos humanos ou eventos causadores de severa desordem pública que se têm vindo a acentuar no mundo. Atualmente, com o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia regista-se já 4,17 milhões de pessoas em situação de refúgio na Europa e estima-se que cerca de 13 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária na Ucrânia (ACNUR, 2022).
Sempre há que se reconhecer possíveis testemunhos de resistência, insensibilidade, preconceito e intolerância contra pessoas que escaparam de conflitos armados e testemunham uma crise humanitária de grandes proporções. Assim, passeando pelas fontes de sofrimento, apresentadas no documentário Era o Hotel Cambridge, percebemos sob a teia conceitual da psicanálise de Freud (1930/1976) e pela construção de sociedade sob a ótica de Nestor Canclini (2009) os desafios, a busca por amparo e as nuances de vulnerabilidade experimentadas no corpo do migrante.
As personagens do filme Era o Hotel Cambridge (2016) expõem sem pudor sua vulnerabilidade assim como se esforçam para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. (Freud 1930/1976, 94). Talvez a principal motivação humana seja a busca pela felicidade. A psicanálise apresenta uma importante reflexão no sentido de mostrar que essa busca não visa algo novo, mas sim à recuperação de algo perdido. Sob o arcabouço da teoria psicanalítica freudiana, é possível pensar que felicidade se refira a algo que o sujeito já teve, mas que perdeu e agora anseia encontrar novamente. Talvez ainda reste nele um resquício do sentimento de possuí-la que o motiva a persistir em sua busca. “Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez?” (Freud 1930/1976, 101).
Felicidade e sofrimento
Para compreender a busca do ser humano por felicidade, remontaremos aos primeiros dias de vida da criança, ao que Freud (1976) chama de “fase primitiva do sentimento do ego” Freud cunhou o termo ego, inicialmente, para se referir à sede da consciência, mas adiante deu-lhe o status de instância psíquica, tornando-o em grande parte inconsciente (Roudinesco and Plon 1998, 210). Em sua fase primitiva, o bebê não diferencia o mundo interno do mundo externo. O recém-nascido encontra-se alienado à mãe, em tal união que não é capaz de diferenciar-se dela. Ele tem a vivência de um corpo despedaçado, já que ainda não há unidade subjetiva; logo, o corpo da mãe é uma extensão do seu próprio. O bebê nem mesmo pode perceber que ela é um “outro”, dada a intensidade de sua ligação. Ela é sua constante fonte de prazer e o seu seio é a fonte de prazer mais desejada de todas. O bebê vive um estado fusional de satisfação, perfeitamente independente das vicissitudes do mundo.
A referência de Freud (1930/1976, 101) a um estado de “felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez” alude a um “estado de completude”, isto é, à ideia de um sentimento de satisfação, de amparo, de que nada falta; aqui, o desejo pelo que chamamos de felicidade. A descoberta de um mundo externo a si mesma causa uma grande transformação na vida mental da criança. A existência de algo fora dela mesma com que precisa se relacionar torna possível a sua constituição como sujeito, o que a diferencia da alienação imaginária com a mãe. Como vimos, a mãe é a primeira escolha objetal da criança, a quem dirige seus desejos. Seu mundo confortável de pleno prazer, que antes era tudo o que existia, passa agora a ser apenas parte do todo existente. O bebê sente-se ameaçado por diversos fatores externos e desconhecidos, possivelmente mais fortes e muito terríveis, que ameaçam sua obtenção de prazer. Ele se encontra de repente desamparado, necessitando de quem possa protegê-lo desses tantos males que o cercam.
Freud (1930/1976, 95) destaca três fontes de infelicidade: A primeira fonte reside no próprio corpo, “condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência” (Freud 1930/1976,idem). Aqui se incluem as enfermidades, as privações físicas (fome, sede etc.) e quaisquer outras aflições experimentadas em nosso corpo físico. O sofrimento experimentado, nesses casos, é sinal de advertência que provoca um movimento em busca de soluções para interromper a seu próprio desencadeador.
A segunda fonte refere-se às forças do mundo externo, que “pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas” (Freud 1930/1976, idem). Freud refere-se a este posteriormente como “o poder superior da natureza” (Freud 1930/1976, 105). Dessa afirmação que Freud refere-se aos fenômenos naturais que infligem ao homem grande sofrimento, como terremotos, tsunamis, furacões, inundações, dentre outros.
Finalmente, a terceira, destacada por Freud como talvez a mais penosa de todas, é aquela decorrente das relações interpessoais, ou “a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade” (Freud 1930/1976,idem). Nesse sentido, podemos refletir de antemão que o sofrimento experimentado na migração decorre de uma crise humanitária de desajuste social.
Embora as duas primeiras fontes possam ser consideradas inevitáveis (como as limitações causadas pelo envelhecimento dos nossos corpos ou a impetuosidade dos desastres naturais), esta terceira pode parecer controlável à primeira vista (se supusermos como fazem muitos manuais de autoajuda disponíveis em profusão, que ela depende unicamente do comportamento humano e que este pode ser plenamente controlável). Em uma larga escala, o esforço para evitar conflitos relacionais é institucionalizado por meio de normas sociais implícitas ou explícitas, eivadas de constantes conflitos de interesse quase nunca plenamente atendidas. Em nível internacional, são instituídas pelas diplomacias estatais, que se debruçam sobre a penosa tarefa de cumprir intermináveis regras de conduta às quais os países mais ou menos voluntariamente se submetem, para que, ao primeiro sinal de sua inconveniência, sejam desrespeitadas quase sempre impunemente por quem detiver o maior poder. Freud considera que
Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o quanto fomos mal sucedidos exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável – dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica. (Freud 1930/1976, 105).
Migrantes, diferentes, desiguais?
Nestor Canclini, um dos mais importantes representantes dos Estudos Culturais, em sua obra Diferentes, Desiguais e Desconectados: Mapas da Interculturalidade (Canclini 2009), a partir de suas investigações interdisciplinares (antropologia, sociologia, comunicação), contribui com reflexões acerca das possibilidades de minimizarem-se as desigualdades e produzirem-se recursos alternativos para a inclusão social e a vivência real de uma cidadania plena2. Após conceituar cultura como aquela que abarca “o conjunto dos processos sociais de significação ou, de modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social” (Canclini 2009, 41), o autor esclarece que a dificuldade de estratificar significações deriva do fato de que a cultura “se produz, circula e se consome na história social”, apontando a peculiaridade de não aparecer “sempre da mesma maneira” (Canclini 2009, 54).
No capitulo dois, da mesma obra, começa por discutir o fato de que as ciências sociais se acostumaram a dividir esses três objetos de estudo (diferença, desigualdade e desconexão); assim, questões imperialistas, comunicacionais, entre outras, eram tomadas em separado por diferentes áreas. Sua proposta é outra:
Naturalmente, não pretendo encontrar um observatório objetivo, mas achar pontos de interseção nos quais os cruzamentos de perspectivas controlem as refrações de cada posição. Por isso, partirei de duas reuniões internacionais em que interagiram variados modos de conceber o que é a diferença indígena na América Latina (Canclini 2009, 56).
Em suas tentativas de buscar características em comum ou “um termo unificador”, devido às inúmeras diferenças, Canclini levanta as seguintes perguntas: “Mas o que é mais decisivo: a desigualdade social ou as diferenças culturais? Definirem-se pelos referentes aos quais se opõem ou pelos ‘âmbitos de comunhão’?” (Canclini 2009, 57). Diante do impasse, o autor conclui que há uma desigualdade manifestada em duas vertentes: a socioeconômica e a das práticas culturais, ambas herdadas por “processos históricos de configuração social” (ibidem), mas sempre suscetíveis de mudarem em processos futuros, mesmo que tendam a ser absolutizáveis.
Aqui algumas constatações são imprescindíveis: As personagens do filme Era o Hotel Cambridge (2016), evidenciam o agravamento da desigualdade e da exclusão mostrando a existência de um mercado estruturado em políticas neoliberais cujas diretrizes conduzem ao aumento da produtividade em detrimento dos direitos dos trabalhadores, pela não intervenção de um Estado regulador. Dessa forma, como diz Canclini (2009), as pessoas “sem qualificações produtivas” ficam automaticamente alijadas da cadeia produtiva do trabalho, por não gerarem lucros ou riquezas.
Mas, como ser incluído no sistema societal e passar a ser conectado, sem que tais exigências sejam cumpridas a ponto de agravarem-se as desigualdades? Para isso, as políticas públicas que lidam com as diferenças precisam voltar-se para os direitos dos cidadãos “menos qualificados para o mercado”, pois, em essência, serão essas políticas e direitos que produzirão instrumentos de garantia da vida e da dignidade.
Real e ficcional no cinema documental
O teórico norte-americano Bill Nichols em seu livro Introdução ao documentário, afirma que “Todo filme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela” (Nichols 2005, 26). Observamos que desde o inicio do cinema documental, com a obra basilar de Robert Flaherty, Nanook, o esquimó, realizada há cem anos, em 1922, essa questão do real e da ficção já está colocada, tendo em vista que Flaherty ficcionalizou muitas das sequencias emblemáticas do filme, como, por exemplo, a construção do iglu e a caça à foca na parte final do documentário, mesmo com todas essas liberdades tomadas por Flaherty, não há duvidas que estamos assistindo a um produto que podemos qualificar de documentário. Pensando ao contrário, concordamos igualmente com a pesquisadora portuguesa Manuela Penafria que em seu artigo “Em busca do Perfeito Realismo” afirma que “Cada vez mais os filmes são menos ficção ou documentário, são filmes de fronteira. E são esses filmes que nos fazem julgar correcta a nossa proposta. Essa proposta pretende colocar ficção e documentário lado a lado, por partilharem um uso de imagens e sons, ambos são cinema” (Penafria 2003, 179), ou seja, um filme pode também ser visto como ficcional. Há certamente uma dosagem ou elementos que podem evidenciar uma maior aproximação com a ficcionalidade ou o real. Nesse sentido, não podemos nos esquecer da frase lapidar do cineasta, Jean-Luc Godard: “ O cinema é a verdade 24 quadros por segundo”, ou seja, todos os produtos audiovisuais são construções que se apropriam dos elementos próprios da cinematografia (câmeras, iluminação, gravadores, equipamentos de edição etc). Observamos que esta questão e discussão sobre a ficcionalidade ou o real presente em obras cinematográficas não é recente, e buscar uma definição estrita dos gêneros é algo arriscado e certamente não muito produtivo, mesmo que mereça uma ampla pesquisa sobre realismo, imaginário e ficcionalidade. É importante observar que na contemporaneidade, o cinema tem mesclado os gêneros, trazendo obras que dialogam tanto com o documentário quanto com o ficcional, a titulo de exemplo, podemos citar os filmes realizados pelo cineasta goiano Adirley Queirós que em suas obras realiza com grande sucesso hibridismos tanto no conteúdo apresentado quanto em sua forma como mostram os filmes A cidade é uma só? (2011), Branco sai, preto fica (2014). A ultima obra do diretor, realizada em parceria com a portuguesa Joana Pimenta, Mato seco em chamas (2022) foi apresentada em diversos festivais do mundo e ganhou este ano o grande premio do Festival du Réel em Paris. Esta relação entre real e ficção estará presente em muitas obras categorizadas como documentário.
Este é o caso da cineasta paulista Eliana Caffé que pelo menos em dois de seus longas-metragens, Narradores de Javé (2003) e Era o Hotel Cambridge (2016) mescla, em graus variados, essas fronteiras entre gêneros. No caso do primeiro filme, considerado uma ficção, a realizadora utiliza os cenários da pequena cidade baiana de Gameleira da Lapa e boa parte de seus habitantes para dar vida à historia ficcional da cidade de Javé que será submersa pelas águas de uma represa. O filme é todo ele ficcional, mas o real nesse caso está presente pela locação escolhida como igualmente pelos habitantes que estarão atuando na obra, mesmo que estejam representando personagens ficcionais e interagindo com os diversos atores profissionais que participam do filme, como José Dumont, Matheus Nachtergaele, Nelson Dantas, Nelson Xavier, entre outros.
Ficcionalidades do real em Era o Hotel Cambridge (2016)
Em relação ao filme lançado por Caffé em 2016 (e, até o momento, ultima obra realizada pela diretora) Era o Hotel Cambridge, a proposta de realização surge após discussões realizadas com participantes dos movimentos sociais, Frente de Luta pela moradia (FLM) e Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST). O filme é apresentado tanto como uma ficção documental quanto um documentário ficcional, ou seja, a mescla de gêneros já estará presente desde a categorização da obra. O Hotel Cambridge, construído nos anos 1950 no centro da cidade de São Paulo, já teve os seus dias de glória, sendo uma hospedagem de luxo para abastados que viajavam para São Paulo. Em 2012, após vários anos em total abandono, o local foi ocupado pelos participantes do Movimento Frente de Luta pela Moradia, sendo que 172 famílias formadas por brasileiros, imigrantes e refugiados se instalaram no local. A filmagem da obra ocorreu em 2014 e mostra as diversas lutas pessoais e coletivas desse conjunto de pessoas bastante heteróclitas que buscam sobreviver nesse espaço coletivo. O filme dá um destaque importante aos atores sociais imigrantes e refugiados e na interação destes com os moradores vindos de diversas partes do Brasil, bem como com os atores profissionais, José Dumont e Suely Franco.
O filme tem inicio com planos do centro da cidade de São Paulo, mostrando a deterioração desse espaço urbano, através de imóveis degradados, abandonados, pichados, até mostrar um prédio, também bastante degradado, no qual uma porta se abre e entram pessoas naquele que será apresentado como sendo o Hotel Cambridge. A partir desse momento praticamente toda a ação do filme estará concentrada nas diversas dependências desse local de moradia, tanto as de uso publico, como as de uso privado. Nos planos iniciais do filme observa-se a situação de ruína do local, sequencias do filme apresentam paredes rachadas, encanamentos e fiações expostas, exibindo o quase total estado de abandono em que se encontra o hotel. Muitas sequencias apresentam pessoas circulando pelas escadas do prédio, tendo em vista que os elevadores não estão mais funcionando, será pelas escadas que objetos e equipamentos serão transportados para os andares superiores. Esses planos serão contrapostos a outros que apresentam a resistência das pessoas em suas lutas pela moradia. Nesse sentido, serão apresentados locais mais organizados e arrumados, como a sala comum onde se encontram alguns computadores para uso coletivo, a cozinha e o interior de vários apartamentos, mostrando uma organização e regras para a manutenção da ordem do local. Em uma sequencia do filme, uma pessoa informa que teve o seu ventilador roubado, a líder comunitária Carmen Silva, e uma das principais personagens do filme, irá imediatamente pedir que a pessoa que levou o objeto o entregue ao proprietário. Em outros momentos da obra veremos Carmen na busca de soluções, tanto para os problemas menores e do cotidiano, quanto para os maiores e que atingem todos os moradores, por exemplo, quando ela se vê obrigada a dialogar com advogados que vieram informar os moradores sobre a reintegração de posse. A obra transita entre esses diversos registros, tanto através dessas macro quanto micronarrativas, aos poucos vamos conhecendo vários dos moradores do hotel ocupado, sendo que alguns estarão mais presentes ao longo do filme e outros somente participarão pontualmente.
A interação dos diversos personagens com os dois atores profissionais é constante e tem por objetivo trazer certa cumplicidade e bom-humor às situações apresentadas, que muitas vezes mostram realidades bastante difíceis, Esses são momentos menos dramáticos que pontuam situações ficcionais, como a sequencia na qual Apolo, interpretado por José Dumont, organiza uma reunião noturna com outros quatro amigos do hotel, que estão bebendo, cantando e conversando. A presença da atriz Suely Franco, que interpreta a nordestina Gilda também tem certa comicidade, quando esta começa um flerte com um jovem imigrante palestino, apesar da grande diferença de idade existente entre eles. Esses momentos “quebram” com a seriedade do tema do filme e trazem alguma leveza às situações apresentadas. A atuação, nesse sentido, dos dois atores profissionais mostra com grande evidencia o fosso existente entre o trabalho deles e dos atores sociais, tendo em vista a maior espontaneidade na “jogo de cena” tanto de Dumont quanto de Franco, mas essas performances não trazem prejuízo à atuação dos outros personagens/atores sociais, sobretudo pelo teor do conteúdo e das historias de vida trazidas pelas “reais” personagens da obra, ou seja, aqueles que realmente vivenciam a situação de exclusão e marginalização.
Em vários momentos da obra situações que trazem algum humor são apresentadas no filme, como logo no inicio da obra, dois brasileiros, um congolês e um brasileiro descente de japonês conversam sobre a diversidade culinária de seus países, para o congolês a comida brasileira é pouco diversificada, tendo em vista que praticamente todos os dias se come os mesmos alimentos, o que difere radicalmente da culinária no Congo, muito mais rica e diversa, o mesmo é corroborado pelo homem nissei que concorda com o congolês e afirma que o mesmo ocorre com a culinária japonesa, bastante rica, diversa e saudável. Os dois migrantes brasileiros tentam mostrar que a culinária brasileira é tão rica e diversificada como a do Congo e do Japão.
Alguns conflitos serão igualmente explicitados ao longo do filme, e estes sem o viés do humor, como no exemplo da reunião dos moradores em uma assembleia para se discutir como encontrar uma solução para o despejo iminente dos moradores. Durante a reunião, muitos estão presentes no saguão do hotel e a assembleia é coordenada pela líder do movimento, Carmen Silva. Em certo momento um morador, refugiado do Congo, toma a palavra e diz que por ser refugiado ele não pode participar de atos políticos, mas imediatamente um morador, migrante do nordeste, rebate o refugiado dizendo “a gente já não está conseguindo nem cuidar de nós-mesmos e ainda temos que cuidar de refugiado do Congo, da Síria, da Colômbia”, enquanto o congolês responde, “o Brasil está fazendo bonito lá na ONU, o país concede o refugio, mas quando nós chegamos, cada um que se vire!” Um palestino, também morador do hotel, diz “Eu sou refugiado palestino no Brasil, vocês são refugiados brasileiros no Brasil.” A líder do movimento finaliza a discussão com a frase lapidar “Brasileiros e estrangeiros somos todos refugiados da falta dos nossos direitos!”
É dada especial atenção às historias de vida de alguns dos refugiados, sobretudo os homens, vemos Hassam, que fugiu dos territórios ocupados da Palestina, se instalou inicialmente em um campo de refugiado na Síria, mas devido à guerra no país se viu obrigado a migrar para outro país, tendo escolhido o Brasil. Enquanto ele conta a sua história, vemos imagens de arquivo de um campo de refugiado na Síria. Em outro momento a história dele será complementada pela comunicação via Skype que ele terá com a irmã que ainda se encontra na Palestina. As imagens de fundo na tela de sua irmã mostram um cenário de guerra, locais destruídos por bombas e ela também diz que não suporta mais viver ali, e que também deseja sair da Palestina. Hassam vai dizer que sempre viveu em locais e países ocupados e que esta é a primeira vez que ele ocupa um local.
Em outro momento do filme, uma sequencia mostra um jovem refugiado do Congo, que conta a sua história. Ele fugiu da guerra civil no seu país e foi possível sair do Congo agarrado à roda de avião, quando a aeronave chegou a um país vizinho, ele conseguiu embarcar em outro avião que pensou estar indo para os Estados Unidos, mas que aterrou em São Paulo, no Brasil. Enquanto fala, vemos imagens de arquivo de cenas de guerra no Congo. Essas imagens de arquivo ajudam o espectador a melhor contextualizar as situações de violência vivenciadas por muitos moradores do hotel, sobretudo os refugiados.
A parte final do filme mostra duas sequencias emblemática na primeira a preparação para uma festa, ou seja, a ocupação de mais um imóvel no centro de São Paulo a fim de abrigar outras pessoas necessitando de moradia, e na sequencia final a chegada da tropa de choque da policia militar do estado de São Paulo na porta do Hotel Cambridge, a fim de realizar a retirada dos moradores do local, que transforma a região em cenário de guerra urbana com bombas de gás lacrimogêneo, fumaça, gritos e muita correria. Os últimos planos do filme remetem para as imagens iniciais do longa-metragem, ou seja, apresentam fachadas de prédios do centro da cidade, só que agora todos os imóveis apresentados estão cobertos com faixas dos diversos movimentos sociais de luta pela moradia na cidade.
Considerações Finais
O filme Era o Hotel Cambridge (Caffé 2016) traz um tema de grande pertinência que nos ajuda a refletir sobre questões da atualidade, sobretudo ao nível dos diversos conflitos étnicos, políticos e armados no mundo que têm originado muitos milhões de migrantes e refugiados e das políticas públicas, acolhimento e direitos humanos relativamente a estas populações (Ramos, M. C., 2020; Ramos, M.N., 2020). O mais recente, a guerra que está devastando um país europeu, a Ucrânia, e que está obrigando grandes parcelas de sua população a buscar refugio em outros países, inclusive no Brasil, Atualmente já são vários milhões de ucranianos que foram obrigados a deixar o seu país, sendo que desses, mais de mil escolheram o Brasil como terra de asilo. Os problemas, para muitas dessas pessoas, não termina quando migram para outro país, mas agora tem início outras situações que exigem novas estratégias de adaptação e de sobrevivência, para muitos o local de escolha para viver é desconhecido, trata-se de outra cultura, outra língua, outros hábitos e costumes e de resolver uma questão fundamental, ou seja encontrar um local para morar.
Essas situações às quais os migrantes de forma geral se veem confrontados, em graus variados, pois para o migrante do próprio país há mais facilidade, sobretudo ao nível linguístico já que fala a mesma língua e conhece a cultura do país, para os imigrantes internacionais e refugiados há necessidade de adaptação e aprendizagem sociocultural para que possam se inserir no país de acolhimento, ou como observa a líder do movimento pela moradia, Carmen Silva: “Percebi que não basta chegar a São Paulo e fazer planos para si mesmo. É preciso fazer parte da cidade. E como fazer parte de um local que não é seu? Conhecendo como a cidade funciona. Quando você entende a cidade, você faz parte dela.” Nesse sentido o filme de Eliana Caffé é exemplar por apresentar situações bastante diversas e variadas sobre vivências tanto ao nível individual quanto coletiva de pessoas que ocuparam e habitam um antigo hotel do centro da cidade de São Paulo, transformado em moradia para 172 famílias após uma ocupação ocorrida em 2012.
O longa-metragem mescla situações reais e ficcionais apresentando um caleidoscópio humano heterogêneo e bastante rico na imbricação que realiza entre atores profissionais e atores sociais que trazem as suas próprias histórias de vida. Eliana Caffé, em entrevista a Rodrigo Fonseca da Revista de Cinema (2016), diz que para ela a “questão certa, a que melhor possa representar os conflitos humanos, perguntar pelo ser humano. Saber perguntar pelo ser humano, de maneira certa, é o que mais me preocupa hoje em dia. Sinto que, conforme eu vou envelhecendo, vou entendendo melhor o mundo e a brutalidade de suas relações”. São exatamente essas questões que observamos no filme, há uma maneira de se aproximar do outro e, sobretudo de saber ouvir as suas histórias, muitas delas repletas de dor e sofrimento.
Notas
1Referência do capitulo do livro Territórios Sociais aprovado pela UERJ-FAPERJ, aguardando liberação financeira para publicação. Migração: emergentes questões e condições de um mal-estar. Migration: emerging issues and conditions of malaise. Autores: Wallace Araújo de Oliveira (UERJ) wallacearaujo1982@hotmail.com; Diogo Mathias Brum (UFF) mathiasbrum@outlook.com; Regina Glória Nunes Andrade (UERJ) reginagna@terra.com.br.
2Referência do capítulo cinco da Dissertação de Mestrado (PPGPS-UERJ- 2022) Condição Humana: Rumo ao Terrestre Através de Migração, Cultura e Vulnerabilidade de Adriano Otávio Lopes de Figueiredo adriano@gmail.com sob orientação de Regina Glória Nunes Andrade (UERJ) reginagna@terra.com.br.
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