Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Expatriate filmmakers, (trans)national films? : the case of two latin-américan filmamkers in Europe

Cineastas expatriados, filmes (trans)nacionais? : o caso de dois cineastas latino-américanos na Europa

Claudia Adrianzen Lapouble

Université Toulouse Jean Jaurès, França

Abstract

This communication seeks to address the complex issue of audiovisual creation in the context of transnational mobility. If the transnational dynamics of international contemporaneous cinema have been gaining more and more space in the social sciences, here we intend to articulate the migratory paths of two well-known Latin American filmmakers living in European countries - Brazilian Karim Aïnouz in Germany and Argentinean Pablo Agüero in France- with their films. Indeed, the most recent films of the two directors seems to have taken a “transnational turn”, not only from an economic perspective (being international co-productions) but also in a formal and narrative point of view, mainly picturing stories from outside their homeland. Moreover the entire filmography of these two filmmakers will allow us to interrogate the rapports between cinema and (trans)national cultures in the contemporary world.

Keywords: Transnational cinema, Latin-american filmmakers, Film studies, Artistic migrations

Introdução: Discutir as dinâmicas do cinema transnacional a partir das migrações artísticas

Aurora (1927), O crepúsculo dos deuses (1950), America, America (1963), Ninotchka (1939), Z (1969), Ponto de fuga (1990). Todos esses filmes tem em comum o fato de terem sido realizados por diretores instalados fora de seus países de origem : exilados como Raul Ruiz na França, Billy Wilder e Ernst Lubish nos Estados Unidos, antigos estudantes como Costa-Gavras na França, membros de diásporas como Elia Kazan uma vez mais nos Estados Unidos ou ainda aqueles que decidem partir para «fazer carreira» em outros mercados como F.W. Murnau em Hollywood.

A mobilidade de artistas e outros profissionais do cinema, como em boa parte das esferas artísticas e profissionais nos dias atuais, é um fato bem conhecido: desde os imigrantes europeus, como alemães e italianos, em Hollywood até o cinema feito por exilados políticos latino-americanos nos anos 1960 e 1970, passando pelos estudos que se concentram nas mobilidades estudantis e profissionais. Mas se essas mobilidades tem sido objeto de estudos que constituem hoje fontes importantes na compreensão desse cinema da mobilidade, o fenômeno das migrações artísticas contemporâneas fora os exílios políticos e as perspectivas diaspóricas continua uma questão pouco abordada nos estudos em ciências da informação e da comunicação.

Nossa proposta é partir da filmografia de dois diretores de origem latino americana residentes em dois países europeus - o brasileiro Karim Aïnouz na Alemanha e o argentino Pablo Agüero na França - para tratar da complexa questão da criação audiovisual em contexto de mobilidade transnacional. Nos interessa pois o cinema que fazem esses indivíduos que não são nem os exilados políticos da geração do Nuevo Cine latinoamericano, nem os migrantes dos discurso midiáticos e nem artistas “nômades”, mas esses profissionais que optaram por se estabelecer em um país estrangeiro para viver e trabalhar.

Estes apontamentos constituem uma parte dos resultados de nossa pesquisa doutoral, na qual interrogamos as relações entre percursos migratórios, formação de redes e objetos audiovisuais à partir de um corpus de cineastas de origem latino americana residentes em países europeus e seus filmes realizados entre 2000 e 2020.

Observando as redes nas quais eles se inserem e os espaços que seus filmes ocupam observamos que o cinema que eles realizam faz parte desse cinema de autor que desde já alguns anos vem chamando a atenção de criticos e acadêmicos : filmes tratando de temas “universais” à partir de realidades “locais” (características pois temáticas), que são o resultado de uma combinação de fundos internacionais e nos quais atuam profissionais de diversas nacionalidades e dirigidos por cineastas de carreiras igualmente marcadas pela experiencia internacional. Esse cinema interpela de um lado em termos estético-narrativos - seria esse um cinema de autor sem ancoragem? um cinema que teria sua identidade diluída para se dobrar às injunções do mercado? - e de um outro no que toca às dinâmicas economico-culturais das quais ele emerge - como definir então o pertencimento nacional desses filmes. A questão pode ainda ser reformulada em uma interrogação sobre a pertinência do nacional quando se trata tais produções.

Nossa comunicação, pretende assim se debruçar sobre um dos pontos da complexidade desse cinema de autor internacional : a trajetória dos realizadores, para levantar questões e lançar pistas de reflexão para a compreensão desse cinema cada vez mais presente em festivais e que tanto interpela críticos e universitários.

Dois pilares para os estudos sobre cinema e mobilidade

Nossa comunicação se organiza em dois pilares estruturantes que figuram já no título de nossa proposta. O primeira diz respeito aos percursos dos cineastas : o que quer dizer cineastas expatriados? A segunda, diz respeito aos objetos audiovisuais : o que é esse cinema transnacional? Apresentar e articular esses dois pilares sera nosso objetivo nas linhas que seguem.

Duas carreiras marcadas pela mobilidade internacional

Observar os deslocamentos transnacionais que marcam os percursos profissionais e pessoais dos dois cineastas em questão é importante, de um lado pelo papel central que esses deslocamentos parecem ter na carreira de ambos e de um outro pelas implicações que o lugar onde eles se encontram e sua nacionalidade tem nas negociações e dinâmicas que dão origem a seus filmes. Nossas observações, a analise sistemática da historia de produção dos filmes, entrevistas aos cineastas e o olhar atento e as analises de estilo dessas produções1 nos demonstram em efeito, que esse «entre lugar» (Santiago, 1978; Rueda, 2008) que os cineastas ocupam entre o pertencimento e a integração no país de residencia e no mundo do cinema de autor internacional e o interesse em filmar e contar historias que aportam uma visão de mundo ancorada em seus países de origem, é um ponto importante para pensar sobre seu cinema. Assim mesmo as particularidade das circunstâncias e contextos de migrações se configuram como mediações (Martin-Barbero, 2009) fundamentais que influenciam nas redes e nas dinâmicas que dão originam a seus filmes.

Karim Aïnouz : entre “ser brasileiro, mas também outra coisa”

Mais do que uma carreira internacional, marcada por mais de um longo período fora de seu país, Karim Aïnouz é ele também um homem que, como ele mesmo diz, é « fruto do intercultural ». Filho de pai argelino e mãe brasileira, Karim Aïnouz nasceu em Fortaleza (capital do Ceará, Estado da região Nordeste do Brasil) em 1966, onde cresceu ao lado de sua família materna. O cinema entra na vida de Aïnouz, segundo ele próprio, já na vida adulta, quando apos concluir seus estudos universitários em arquitetura ele viaja aos Estados Unidos com o objetivo de cursar uma pós-graduação nessa mesma área. Na Nova York do fim dos anos 1980 o jovem Karim Aïnouz entra em contato com as reivindicações das comunidades LGBT e outras minorias por meio da produção audiovisual, o que o faz sentir que «o cinema era uma forma mais direta de luta, de ação social concreta» (Aïnouz, 2019, comunicação pessoal). È assim que ele decide abandonar os estudos de arquitetura para seguir um mestrado em teoria do cinema ainda em Nova York.

Esse interesse pelo estudo do cinema como mídia e sua potencialidade como meio de ação e luta social pela expressão o levará a uma experiência de fazer cinema e ele começa a trabalhar em funções variadas como a de assistente de montagem e assistente de direção. A teoria cede assim lugar à prática e ele realizar seus primeiros curta-metragens no começo dos anos 1990, estando ainda baseado em Nova York, entre os quais Seams (1993) e Paixão Nacional (1994). Karim Aïnouz inicia assim uma carreira de cineasta entre o Brasil, mais precisamente Fortaleza, e os Estados Unidos em uma dinâmica de trabalho que segundo ele próprio consistia em «ganhar prêmios, conseguir dinheiro nos estados Unidos e gravar no Brasil».

O primeiro longa-metragem do cineasta, Madame Satã (2002), que lança verdadeiramente o nome de Karim Aïnouz nos circuitos do cinema internacional, sera uma coprodução entre a França e o Brasil e marcara o retorno do realizador a seu país natal. Nesse período de retorno ao Brasil, Karim Aïnouz atua essencialmente como roteirista colaborando com cineastas como Sérgio Machado (Cidade Baixa, 2005) e Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus, 2005), mas realizara outros longa-metragens como o Céu de Suely (2006), Viajo porque preciso, volto porque te amo (2010, codirigido com Marcelo Gomes) e O abismo Prateado (2011) além da serie de televisão Alice (HBO Brasil).

Esse período em seu país de origem, bem que produtivo, sera segundo o cineasta marcado por uma vontade de partir novamente. Na verdade, em entrevista Karim Aïnouz nos fala de uma relação bastante complexa com o Brasil, dividido entre um profundo interesse em acompanhar “o que acontece” e de querer agir por meio do seu trabalho e uma sensação de «não pertencer completamente» e um verdadeiro estranhamento de certos usos e costumes. Nesse sentido o cineasta nos fala ainda de uma verdadeira necessidade de questionar sua identidade nacional e da constante busca por não se ver limitado aos rótulos de nacionalidade afirmando «não [se] sentir completamente brasileiro, ou sim, brasileiro, mas também outra coisa», colocando assim não só suas origens argelinas, mas também os lugares nos quais ele viveu como igualmente importantes na construção de sua identidade no que toca ao pessoal e como artista.

Em 2010 o cineasta se estabelece em Berlim, cidade na qual ele havia passado cerca de um ano em 2004 como artista convidado no marco do programa Artists in Berlin do DAAD, onde ele vive até hoje e de onde ele vem realizando seus filmes, viajando constantemente ao Brasil.

Pablo Agüero : um tipo particular de exílio

Mais jovem que o cineasta brasileiro, o argentino Pablo Agüero tem igualmente uma carreira cinematográfica marcada pela migração internacional. Nascido em 1977, em Mendoza, o cineasta cresceu no vilarejo de El Bolsón, na Patagônia argentina em uma família «muito pobre, em uma cabana sem água corrente, nem eletricidade » (como é possível ler em quase todas as notas biográficas do cineasta em catálogos de festivais). Tendo «descoberto» as possibilidades de expressão da câmera de video graças a uma oficina de audiovisual, Pablo Agüero realiza ainda adolescente um primeiro video, Mas alla de las puertas (1995), que sera premiado em um festival local. O cinema passa assim a fazer parte da vida desse jovem que crescera «sem televisão, em um vilarejo sem cinema» (Agüero, 2020 comunicação pessoal), que partira de sua cidade para fazer estudos de cinema na Escuela Regional Cuyo de Cine y Video, em Mendoza.

Vindo de uma família de poucos recursos econômicos, Pablo Agüero relata ter vivido em uma situação pouco confortável em termos materiais, mesmo após a obtenção de seu diploma e é nesse contexto que ele tentara fazer um primeiro filme de ficção. Animado pelos filmes do nuevo cine argentino e sua proposta de um cinema «sin dinero», Pablo Agüero se lança em um projeto de filme contando com a ajuda de amigos, uma câmera «roubada» à Univerdad del cine e alguns rolos de película vencida. Com esse material ele faz algumas imagens no deserto, mas sua tentativa se confronta a novos obstáculos por sua falta de recursos : como revelar o filme? onde montar esse primeiro material?

A experiência de fazer esse primeiro filme e as dificuldades bem concretas encontradas, em grande parte por ser um jovem vindo do interior do país sem muitos contatos no meio do cinema em Buenos Aires e por vir de uma família que não poderia lhe oferecer um suporte econômico para se dedicar ao cinema, constituem segundo Pablo Agüero «uma revelação, um momento de desmistificar a ideia de fazer um cinema sem dinheiro» :

Quando eu tentei fazer esse filme, eu me lembro bem, tive uma revelação. Era a época de Mundo Grua (Pablo Trapero,1999 ), e eu descobri o que era fazer cinema independente, sem dinheiro (...), e é que esse filme ele o fez com, não sei exatamente quanto, uns 40 mil dólares, o que realmente não é muito quando se fala em cinema, mas que na verdade é muito dinheiro sim, quer dizer, eu não tinha na época de onde tirar uma quantia dessas por exemplo... e claro, além disso eles eram pessoas que tinham o próprio estúdio, estúdio de gravação, uma sala de montagem e que pagavam uma universidade que custava 500 dólares por mês... Então claro, eu pensei, assim é realmente possível fazer cinema sem dinheiro, quando você já tem tudo isso. E é ai que eu te digo que eu finalmente despertei para isso, que eu pude por assim dizer desmistificar essa ideia de cinema independente. Porque na verdade a gente precisa ter o mínimo de condições, e ai eu quero dizer o básico como saber onde você dormir de noite, que você vai ter algo para comer... Eu acho que para fazer um trabalho criativo é preciso ter esse mínimo de tranquilidade e conforto para estar com a cabeça livre para pensar, criar, refletir. Então foi ai que eu decidi que precisava fazer algo e eu fui embora em busca de um lugar onde eu pudesse ter essas condições mínimas, onde eu pudesse sentar tranquilamente e me pagar um café» (Agüero, 2020, comunicação pessoal).

É assim, que essa experiência concretiza o ponto de virada que o fara almejar a possibilidade de emigrar. A oportunidade de deixar esse país «de desigualdade e precariedade» (nas palavras do cineasta) em plena crise econômica, se apresenta em 2001 quando ele é convidado para apresentar seu projeto de filme à plataforma Cine en Construción2 e viaja à França. A viagem não concretiza um encontro profissional significativo e o projeto de filme permanecera inacabado, mas marcará um não retorno do cineasta seu país : «na verdade eu não saí, eu só resolvi não voltar», nos diz ele. Assim após Toulouse, Agüero passara por diversos outros dispositivos europeus entre labs (Torino film lab), programas e residencias de escritura (Cinéfondation, Cannes) e outros programas importantes de apoio a novos cineastas.

Entre essas diversas atividades o cineasta se estabelece em Paris, onde ele vive até hoje e a partir de onde ele foi construindo sua carreira e uma rede de parceiros que passam pela França, a Espanha e a Argentina. Ele realiza, já na França dois curta-metragens (Lejos del sol em 2005 e Primera Nieve em 2006) e um primeiro longa-metragem após passar pela residência de escritura da Cinéfondation, Salamandra (2008). Seguirão 77 Doronship (2009), Madre de los dioses (2015), Eva no duerme (2015) e Akelarre (2021) seu ultimo filme, uma coprodução franco-espanhola realizada no país Vasco espanhol.

Artistas do Sul e a problemática dos conceitos da mobilidade

Sendo o percurso migratório uma mediação central da problemática que nos ocupa, mobilizar um termo que desse conta da complexidade dos percursos de nossos cineastas, para além de uma descrição do ponto de vista demográfico, se torna uma questão importante. De um lado uso dos diferentes termos da mobilidade - exílio, nomadismo, viagem, migração e até mesmo diáspora - é carregado de significado; de um outro nossas pesquisas apontam para a maneira como diferentes percursos migratórios podem significar a construção de diferentes redes, a integração ou não a certos circuitos o que resulta em diferentes filmes.

Bem que um de nossos cineastas, o argentino Pablo Agüero, fale com certa frequência de sua viagem como de um exílio, o uso desse termo nos parece inadequado no quadro de nosso trabalho por dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar por uma imprecisão, ou ao menos uma ressemantização de um termo, que se bem poderia ser adaptado à um sentimento (o individuo pode se sentir em exílio) não o é de um ponto de vista factual (se trata de partidas voluntarias e não existe uma impossibilidade de retorno, por exemplo). Em segundo lugar, o exílio não constitui uma mediação no que diz respeito ao trabalho desses realizadores.

Quer dizer que, mesmo em um caso como o de Pablo Agüero, que como acabamos de mencionar, fala em exílio para se referir a sua migração, este não constitui um traço marcante nem em seu trabalho, nem na construção de suas redes de cooperação para a viabilização de seus filmes e nem na estratégia de difusão e mais tarde na recepção de seus filmes. Isso diferente de uma outra geração de cineastas latino-americanos (alguns, como o chileno Patrício Guzmán, ainda em atividade) que foi a dos anos 1960-1970, para os quais o exílio, mais especificamente o exílio político, constitui um componente importante tanto no que diz respeito ao deslocamento geográfico e à inserção social e profissional nos países de acolhida e para a construção de sua imagem de cineastas autores, quanto como uma categoria temática de seu trabalho nesse período e mesmo depois dele.

Por outro lado, falar de migrantes nos colocaria frente à questão dos discursos mediáticos, que falam de uma “crise migratória” e do migrante como um personagem sem passado ou futuro em uma massa de pessoas que se acumulam às portas da Europa. As variantes desse termo imigrante ou emigrante nos colocariam primeiro a questão de uma localização do nossos lugar de fala : observamos esses indivíduos no país de destino ou no país do qual partiram? Isso sem esquecer que tanto um como o outro enfatizam a mobilidade, o momento da mudança de país e o que nos interessa aqui diz mais a respeito à construção de carreira e à criação uma vez estabelecidos no novo país de residência.

Tendo em vista esse ultimo ponto, nossa escolha pelo termo «expatriado» se da, em primeiro lugar por seu valor prático. Se trata de um termo que nos parece fazer mais sentido para designar o individuo uma vez estabelecido em outro território. Por outro lado é preciso admitir que se trata igualmente de um termo a forte carga simbólica. Basta pensar a que populações ele é reservado : profissionais especializados e basicamente indivíduos do Norte (Colombi, 2016). Mas, como a breve apresentação dos percursos o deixa ver, nossos cineastas são de um lado profissionais, artistas, ao capital social elevado e de um outro, homens originários do Sul, fato que pode representar um lugar ambíguo em termos de denominações desse tipo.

As negociações transnacionais de um lugar do «entre dois»

Tendo devidamente apresentado nossos cineastas e colocado a questão da experiencia migratória como uma mediação importante nossa atenção pode se voltar ao papel dessa na questão das negociações e dinâmicas transnacionais que originam seus filmes. Tocamos assim no segundo pilar da nossa analise : a questão das dinâmicas (trans)nacionais.

A grafia, graças à plasticidade da língua portuguesa, é aqui o produto de uma escolha consciente e reflete nossa perspectiva de questionar essa categoria que, desde mais de vinte anos, vem ganhando cada vez mais espaço nos estudos sobre cinema e audiovisual. O parentese proposto procura refletir nosso questionamento, afinal o que evoca então o termo? São esses filmes que transcendem o nacional? filmes que cruzam diferentes nações e referências a elas? ou ainda objetos que concretizaram a obsolescência da ideia do nacional? que o desconstroem?

Nesse sentido, vamos ao encontro das ideias de Higbee e Lim (2010) e propomos uma utilização critica da noção de transnacional aplicada aos estudos de cinema. Assim, mais do que apreender o transnacional como uma categoria descritiva que seria atribuída a filmes baseados em critérios econômicos (coproduções, participação internacional em fundos), estetico-narrativos (linguagem de cinema dito “universal”, accented cinema [Naficy, 1999], cinema intercultural [Marks, 2000]) ou ainda no que diz respeito aos profissionais envolvidos (diretores, atores, roteiristas e outros de diversas nacionalidades), pensar no transnacional através do cinema nos exige hoje um questionamento das dinâmicas que o constituem. A perspectiva transnacional nos parece particularmente produtiva aqui porque tanto Pablo Agüero quanto Karim Aïnouz nos permitem colocar a noção do transnacional duplamente em perspectiva : de um lado pela sua própria condição de indivíduos do entre-dois e pelas redes nas quais eles se inserem.

Os cineastas em questão são dois nomes relativamente bem estabelecidos no mundo do cinema de autor internacional. Ambos tiveram seu trabalho selecionado e premiado em festivais tipo A como Cannes, San Sebastian e Berlim e circulam nesses circuitos não apenas acompanhando seus filmes, mas também como convidados para compartilhar sua experiencia em sessões paralelas ou mesmo integrando o juri de competições (Pablo Agüero fez parte do juri na edição 2021 do Festival de Cinelatino Rencontres de Toulouse, e Karim Aïnouz participou diversas vezes como jurado em festivais e concursos , incluindo recentemente em Berlinale Talents). Além disso, ambos tiveram passagens por diversos dispositivos e plataformas de formação e/ou apoio a novos cineastas como os programas Artists in Berlin e La résidence de la Cinéfondation (em Paris).

Seguindo os passos de Howard Becker (2008) falamos de um “mundo” do cinema do autor internacional, de maneira a evidenciar nosso interesse em um ecossistema, na maneira como os atores se articulam e constituem redes, negociam seu lugar (o que significa que nem todos os atores se encontram em iguais condições de poder econômico e/ou simbólico) e cooperam. O resultado dessas interações são os objetos audiovisuais que chamamos de filmes de autor internacional. Esse cinema quanto a ele, se caracteriza por filmes que associam grandes atores da produção e distribuição, mobilizam recursos relativamente importantes (na escala dos projetos do cinema independente) e são apoiados por organismos nacionais e/ou supranacionais de promoção e financiamento de obras audiovisuais (Ibermedia, World cinema fund, Aide aux cinemas du monde ou ainda agencias nacionais de cinema).

Esse cinema de autor internacional, que encontra seu lugar em grandes festivais internacionais, constitui o art house cinema, o cinema dito “arte” ou d’art et essaie em francês. Steve Neale (2002) observa que se trata desses filmes que, no senso comum, constituiriam um “cinema de qualidade artística” em oposição ao cinema comercial - como o de Hollywood - ou industrial, que seria quanto a ele um cinema industrial com o objetivo de constituir objetos de consumo e de puro entretenimento3. Essa oposição entre dois modelos de cinema, de um lado o cinema de autor ou cinema de arte e do outro o cinema comercial, vem sendo questionada por autores como Deborah Shaw (2011), tanto no que diz respeito às redes e formas de produção, quanto às características estético narrativas dos filmes, sem esquecer dos espaços de difusão aos quais se destinam. Segundo a autora esse apagamento das fronteiras claras entre mainstream e art cinema se observa no sucesso internacional de filmes de diversas nacionalidades como Nueve reinas (2000, de Fabián Bielinsky), Diarios de motocicleta (2004, de Walter Salles), Y tu mamá también (2001, de Alfonso Cuarón).

Filmes como esses e, em grande medida também alguns dos principais filmes de Pablo Agüero e Karim Aïnouz, são igualmente o produto das dinâmicas cada vez mais marcadas pela mundialização e pelas mudanças nas maneiras de produzir e de articular os projetos fílmicos dessa «industria do cinema de autor» (Rueda, 2018; Duval, 2016; Reilhac, 2004). Praia do futuro e A vida invisível de Eurídice Gusmão de Karim Aïnouz e Eva no duerme de Pablo Agüero são filmes que ilustram essa aparente ambiguidade que caracteriza os filmes “de festival4 ” e de “arte” hoje : entre grandes produções e intenção artística. Assim, eles são ao mesmo tempo produzidos por grandes sociedades especializadas em um “cinema de arte” (como RT Features e JBA), tiveram sua distribuição mediada por grandes atores de vendas internacionais como The Match Factory e Pyramide, sem esquecer sua saída em plataformas de streaming que os classificam como filmes de autor. O elenco desses filmes conta igualmente com atores populares e reconhecidos internacionalmente (como Fernanda Montegro em A vida invisível e Gael Garcia Bernal em Eva no duerme) o que acaba chamando a atenção do publico.

Esses pontos, somados aos orçamentos relativamente elevados das produções, coexistem assim como o fato de se tratar de filmes que são 1) cercados de um discurso que os classifica como filmes “não comerciais”; 2) são apoiados por agencias nacionais de cinema e programas destinados aos cinemas “do mundo; 3) sublinham a nacionalidade de seus diretores e a ancoragem territorial das narrativas como um diferencial deles frente a outros filmes desse mesmo mundo do cinema de autor internacional e 4) se destinam a festivais de cinema de tipo A, sem deixar portanto de participar e competir a outros festivais especializados em cinemas regionais.

O resultado dessas transformações (que são, claro, progressivas e não significa de forma alguma que se tenha chegado aos mesmos recursos financeiros e modos de produção da industria hollywoodiana) é um cinema marcado pela ambivalência entre o desenho atual das redes que o constituem e na persistência dos discursos de autenticidade e valor simbólico que o cerca e confere aos filmes o “status” de obras de expressão artística e não de consumo.

Assim, as estruturas do cinema de autor tem por um lado se internacionalizado cada vez mais (com a celebração de novos acordos de coprodução entre países e a ampliação daqueles mais antigos, isso somado à importância que vem ganhando os fundos internacionais ligados aos festivais) mudando uma ideia segundo a qual seria o cinema de “arte” um campo exclusivamente financiado por entidades locais, setores públicos e produzido por pequenas sociedades independentes. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que os atores que participam são produtores independentes5 e que cada projeto de filme demanda a constituição de uma nova montagem associando, produtores e equipes diferentes e solicitando novas e diversas fontes de financiamento, essas montagens se fazem seguindo caminhos cada vez mais estruturados. Dito de outra maneira, se observa que certos filmes seguem um verdadeiro caminho previamente sinalizado desde a fase de projeto até sua estreia.

O papel dos festivais de cinema

Autores como De Valck (2007), Falicov (2016), Iordanova (2009), Rueda (2018) e Elsaesser (2005) e outros pesquisadores dos film festival studies tem chamado a atenção para o lugar que esses eventos ocupam na organização do mundo do cinema de autor internacional. Festivais como os de Cannes, San Sebastian e Berlim atuam cada vez mais não somente como pontos de difusão e instancias de validação e chancela da qualidade artística dos filmes que selecionam, mas também como verdadeiros pontos de encontro de profissionais e, graças aos dispositivos como works-in-progress, labs e mercados (Leclerc, 2016; Vinuela, 2018; Amiot, 2018) se constituem como espaços indispensáveis para a construção e viabilização dos projetos que virão alimentar esse circuito.

Assim, muitos projetos passam por diversas residências e labs (Cinéfondation, Torino film lab, programa Artist in Berlin), dispositivos de work-in-progress (Marché du film, Cine en construcion, Berlinale film market) antes de ser finalizados e apresentados nesses mesmos festivais. Os festivais se tornam assim espaços importantes em todas as instancias do processo de criação, podendo mesmo ditar as chances de sucesso de um projeto.

Um filme como Salamandra, primeiro longa-metragem de Pablo Agüero, constitui um exemplo desses verdadeiros “percursos de festival”. Apos apresentar seu curta-metragem Primeira Nieve, premio do juri na seleção oficial do festival de Cannes em 2006, o diretor Pablo Agüero é selecionada para participar da residencia de autores e para o atelier da Cinéfondation6. Assim, entre os meses de fevereiro e julho de 2006 Agüero trabalha no desenvolvimento do roteiro de Salamandra, que é em muitos sentidos um desdobramento da historia central de Primera Nieve (a relação de uma jovem mãe com seu filho que partem para se instalar em uma pequena cidade da Patagônia argentina). Salamandra sera produzido pela produtora francesa JBA em coprodução com a alemã Rohfilm GmbH e a argentina Rizoma Films com a participação de Arte (França). O orçamento de cerca de 1 Milhão de Euros foi reunido com a contribuição de diversos organismos entre eles o Centre National de la Cinématographie (CNC, França), o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCA, Argentina), Fonds Sud Cinéma e Medienborard Berlin Brandenburg (Alemanha). O projeto do filme passou ainda por dispositivos de festivais como Cine en construcción (do Festival de Toulouse), Festival de Biarritz e Encuentro de coprodución do Festival de Guadalajara, sem esquecer do Atelier de Cannes anteriormente mencionado.

Notamos assim que, ainda que o projeto tenha passado por diversos circuitos e obtido ajudas na Alemanha, Argentina e México, o projeto de Salamandra seguiu um verdadeiro “parcours Cannois”, desde sua escritura até a estreia, passando pelos dispositivos de pitch e encontro de parceiros para as fases de produção e pós-produção. Observamos ainda que esse percurso transnacional é contudo estruturado a partir de um eixo marcadamente binacional. Salamandra é assim um projeto no qual os principais fundos e atores envolvidos são franceses e argentinos. O filme é o resultado das negociações entre o cineasta argentino e seus parceiros na França e é graças a essas parcerias que o projeto se abre para novas fontes de financiamento e apoio.

A territorialidade em questão

O caso de Salamandra é um exemplo de como as negociações transnacionais no mundo do cinema de autor internacional podem se configurar quando se fala de cineastas que vivem e trabalham fora dos países dos quais são originários. Assim, observando os principais filmes dos dois cineastas em questões certos pontos chamam nossa atenção :

Um primeiro ponto diz respeito aos aspectos narrativos e temáticos e é que se trata de obras que, de uma maneira ou de outra, se situam ou falam dos países de origem dos cineastas. Observamos pois que ainda que instalados em outros países e tendo os dois inciado suas carreiras de cineastas profissionais fora, tanto Karim Aïnouz quanto Pablo Agüero continuam a fazer um cinema que remete a esse território e suas temáticas. Assim, em Salamandra, Pablo Agüero vai à sua cidade natal para filmar uma historia de mãe e filho baseada em sua própria infância; em 77 Doronship, seu segundo filme, o cineasta coloca em cena os distritos norte de Paris em um filme que trata da questão do exílio - ou da partida - à partir do encontro de uma jovem e o avô de seu companheiro, um argentino que acaba de deixá-la em seu nono mês de gravidez; já em Eva no duerme, Pablo Agüero se debruça sobre um dos personagens mais celebres do seu país, Eva Perón, em um filme não sobre a vida de Evita, mas sobre a rocambolesca historia de seu cadáver.

A filmografia de Karim Aïnouz é igualmente marcada por historias que o levam de volta a seu país. Assim em seus filmes ele já tratou de temas caros à sua região de origem, o nordeste do Brasil, como o êxodo e o “sonho de uma vida melhor no sul” - é o caso de O céu de Suelly, onde a personagem principal sonha em partir e para tal imagina uma rifa onde o primeiro premio é uma noite com ela - ou personagens históricos como em Madame Satã; a questão feminina no Brasil da década de 1950 em A vida invisivel de Euridice Gusmao e também a historia de amor e migração de um salva-vidas que deixa Fortaleza para se instalar em Berlim (Praia do futuro).

Assim observamos que esses diretores não só fazem filmes rodados total ou parcialmente no Brasil e na Argentina, como também procuram colocar em cena personagens desses países que falam a língua desses lugares (ou quando se exprimem em outro idioma guardam um sotaque reconhecível) em historias com temas bastante enraizados nessas sociedades, ainda que naturalmente, de maneira facilmente possível de entrar em ressonância com outras realidades (é o que se fala de uma localidade aberta ao universal).

Em segundo lugar estão as questões de produção e de economia dos filmes. Nas tabelas 1 e 2 podemos assim ver que se trata de uma maioria de coproduções e que, como havíamos observado por Salamandra, essas coproduções associam mais de dois países. O tema das coproduções é duplamente relevante no caso dos filmes que nos ocupam. De um lado a importância dessa maneira de produção para os cinemas de países do “Sul” - ou como é comum encontrar em editais de agências de fomento, países com uma paisagem audiovisual em desenvolvimento - já foi posta em evidência por diversos autores, segundo os quais sem participação de financiamentos estrangeiros um certo cinema “mais radical” e de menos apelo comercial não poderia existir em muitos países dentro os quais a Colômbia ou o Brasil. Por outro lado, como exposto acima, as dinâmicas cada vez mais transnacionais que caracterizaram os mercados do cinema de autor internacional resultam em um numero crescente de coproduções o que coloca essa forma de produzir cinema não mais como o resultado de mecanismo de ajuda a cinematografias menos desenvolvidas, mas como um verdadeiro «modelo de negócios» característico do mundo do cinema de autor internacional.

FilmeProduçãoFundos e outros
Salamandra (2008)
Longa-metragem (ficção)
35mm / Cor / 91 min.
França, Argentina, Alemanha

JBA productions (França), Rohflm (Alemanha)
com ARTE France
Produtores Marianne Dumoulin, Jacques Bidou, Benny Drechsel, Karsten Stöter
CNC - Centre National de la Cinématographie (França);
INCAA - Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (Argentina);
Fonds Sud Cinéma (França);
Medienboard Berlin-Brandenburg (Alemanha); Cinéma en construction (França)
77 Doronship (2009)
longa-metragem (ficção)
Cor / 80 min
França, Argentina

Charivari films (França), Sureno films (Argentina)
Produtores : Pablo Agüero, Nicolas Capola, Elise Jalladeau
INCAA (Argentina);
Cinéma en construction (França)
Eva no duerme (2015)
longa-metragem (ficção)
35mm / Cor e Arquivos / 85 min.
França, Argentina, Espanha

JBA production (França), Haddock films (Argentina)
Em associação com Pyramide
Em coprodução com : Tornasol Films (Espanha), Tita B Productions (França)
Produtores: Jacques Bidou, Marianne Doumoulin, Vanessa Ragone
Breizh film fund (França);
Torino Filmlab 2015;
Creative Europe Media;
Premio Cinéma en construction Toulouse;
INCAA (Argentina);
Aide aux cinémas du monde (França);
Premio especial Ciné+en construction (França);
PROCIREP/ANGOA;
Fundo de ajuda ao desenvolvimento de roteiros do Festival de Amiens (França);
Grande premio Sopadin do melhor roteirista (França)
Akelarre (2020)
Longa-metragem (ficção)
35mm / Cor / 91 min.
França, Espanha, Argentina

Lamia Producciones (Espanha)
Kowalski films (Espanha)
Sorgin Films (Espanha)
Gariza Produkzioak (Espanha)
Tita Productions (França)
La fidèle production (França)
Campo Cine (Argentina)
Produtores : Koldo Zuazua, Iker Ganuza et Fred Prémel
Arte Kino International Prize at Europe-Latin America Co-Production Forum;
CNC (França);
ICAA (Espanha);
INCAA (Argentina);
Le Group Ouest (França);
EiTB (Espanha);
Euskatel (Espanha);
Netflix;
Région Bretagne (França);
Région Nouvelle-Aquitaine (França);
PROCIREP/ANGOA (França)

Tabela 1 - Principais filmes de Pablo Agüero

O dispositivo da coprodução, nos leva finalmente a um terceiro ponto : a diversidade de nacionalidades das equipes envolvidas. Essa associação internacional de profissionais em funções artísticas como técnicas se constitui como uma característica cada vez mais presente em filmes do cinema de autor internacional. No caso especifico dos filmes em questão aqui, a formação dessas equipes resulta

1) das conexões do cineasta - como em 77 Doronship em que Pablo Agüero realiza um filme que poderíamos classificar de filme “de família”, com a participação de amigos e contatos pessoais como o diretor de fotografia franco-chileno Benjamin Echazarreta e seu próprio avô materno como um dos protagonistas. Essa liberdade total na escolha das equipes só é possível por se tratar de uma auto- produção que, segundo o cineasta, tinha a intenção de ser um filme entre dois grandes projeto Salamandra e Eva no duerme;

2) por sugestão dos produtores internacionais - como em O céu de Suelly ou A vida invisível de Eurídice Gusmão,de Karim Aïnouz em que as escolhas para a montagem, a direção de fotografia (no caso especifico de A vida invisível os co-roteiristas) respondem em grande parte a indicações dos produtores (Celluid dreams e RT features) que procuram seguir as regras que regem os acordos de coprodução no marco dos quais os filmes se realizam. Tais acordos, contam entre seus pontos principais que parte dos recursos sejam gastos em um determinado país ou que uma porcentagem dos profissionais envolvidos sejam do país em questão.

FilmeProduçãoFundos e outros
Madame Satã (2002)
longa-metragem (ficção)
35 mm / Cor /103 min.
Brasil, França

VideoFilmes (Rio de Janeiro)
StudioCanal (França), Wild Bunch (França), Lumière (França), Dominant 7 (França)
Produtores : Isabel Diegues, Mauricio Andrade Ramos, Walter Salles, Marc Beauchamps, Donald Ranvaud, Vincent Maraval, Juliette Renaud
Fonds Sud cinéma (França)
Hubert Bals (Holanda)
O céu de Suelly (2006)
Longa-metragem (ficção)
35 mm / Cor / 88 min.
Brasil, França, Alemanha, Portugal

VideoFilmes (Brasil), Celluloid Dreams (França), Shotgun Pictures (Alemanha), Fado Filmes (Portugal)
Produtores : Walter Salles, Mauricio Andrade Ramos, Hengameh Panahi,Thomas Häberle, Peter Rommel
World Cinema Fund
ANCINE (Brasil)
Praia do Futuro (2014)
Longa-metragem (ficção)
35 mm / Cor / 106 min.
Brasil, Alemanha

Coração da Selva (Brasil), Hank Levine Film, (Alemanha) Detailfilm (Alamanha)
Whatchmen productions (Alemanha)
Produtores : Geórgia Costa Araújo, Hank Levine, Fabian Gasmia, Henning Kamm, Christopher Zitterbart
World cinema fund (Alemanha)
FSA - Fundo Setorial do audiovisual ANCINE (Brasil)
MOIN Film Fund Hamburg Schleswig-Holstein (Alemanha)
Medienboard (Alemanha)
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2019)
Longa-metragem (ficção)
35 mm / Cor / 139 min.
Brasil, Alemanha

Canal Brasil (Brasil), Pola Pandora Filmproduktion (Alemanha), RT Features (Brasil)
Produtores:Rodrigo Teixeira, Michael Weber, Viola Fügen
FSA - ANCINE (Brasil);
Medienboard (Alemanha)
Nardjes A. (2020)
Longa-metragem (documentário)
Cor / 80 min.
Brasil, França, Alemanha, Argélia, Catar

MPM Film (França)
Watchmen Productions (Alemanha)
Show Guest Entertainment (Argélia)
Inflamável (Brasil)
Produtores :Marie-Pierre Macia, Christopher Zitterbart, Claire Gadéa, Richard Djoudi, Janaina Bernardes
Doha Film Institut
Medienboard (Alemanha)
Marinheiro das Montanhas (2021)
Longa-metragem
(documentário)
Cor / 98 min.
Brasil, França, Alemanha

Globo Filmes (Brasil)
MPM - Movie Partners in Motion Film (França)
Videofilmes (Brasil)
Big Sister, Jihan El-Tahri (França)
Watchmen Productions GmbH (Alemanha)
Produtores: Walter Salles, Marie-Pierre Macia, Simone Oliveira
ANGOA - Agence Nationale de Gestion des Œuvres Audiovisuelles (França) Apoio à escritura; PROCIREP - Société civile des Producteurs de Cinéma et Télévision (França); ajuda à produção
MOIN Film Fund Hamburg Schleswig-Holstein (Alemanha);
Robert-Bosch-Stiftung (Alemanha);
CNC (França)

Tabela 2 - Principais filmes de Karim Aïnouz

Uma virada transnacional?

Como havíamos ressaltado acima nossa perspectiva do transnacional não se limita aqui a uma categoria a atribuir a certos tipos de filmes, mas bem a considerá-lo como uma chave de leitura para compreender as dinâmicas que constituem os objetos culturais em questão. Nesse sentido pensar o transnacional no caso de cineastas entre duas culturas e entre dois territórios convida a interrogar como essas dinâmicas se constituem à partir de múltiplas negociações nas quais o nacional continua a ocupar um lugar importante.

Voltamos para isso em um dos pontos citados acima : a ancoragem local dos principais filmes de ambos cineastas. Se por um lado, diretores de origem latino-americana inseridos em circuitos do cinema dito mainstream como os mexicanos Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu ou os brasileiros José Padilha e Fernando Meirelles, navegam entre projetos que incluem franquias de ação (Robocop) e de super-heróis (Birdman), adaptações de romances (O jardineiro fiel) e filmes de ficção cientifica (Gravidade), os cineastas do «Sul» inseridos nos circuitos do cinema de autor internacional tem uma filmografia voltada para outras temáticas e estéticas.

A questão é relevante, pois toca aos valores simbólicos que estruturam esse mundo do cinema de autor internacional. Um desses diz respeito a uma noção de autenticidade das obras. Nesse sentido, observamos que a ideia de autenticidade é, quando se trata de cineastas e filmes do “Sul” ainda bastante permeável a uma certa ideia de identidade cultural dos autores e que esta ainda se compreende como ligada ao nacional ou ao local. Se considera pois que um filme deve ser autentico, dando atenção à língua, à construção de narrativas que reflitam uma realidade local e que permitam ao publico “encontrar outras culturas” e isso deixando espaço para uma identificação que transcende as diferenças culturais.

Em 2011 a então diretora do World Cinema Fund, Sonja Heinen explicava em entrevista que os projetos a maior vocação internacional são aqueles que exploram o local, se tornando mais atrativos para investidores. Nesse sentido os filmes que se destinam a festivais e a vendas internacionais devem encontrar a maneira de equilibrar essa questão à liberdade de criação que anima seus autores, que, não raro sentem e manifestam a vontade de explorar outras temáticas e outras escrituras.

Por Karim Aïnouz e Pablo Agüero, a «saída» para equilibrar o deslocamento territorial de seus últimos filmes é ligá-los respectivamente à sua historia pessoal e a um interesse temático mais abrangente. Assim, pelos dois últimos filmes de Aïnouz, essa manutenção da verdade do autor é o que garante a marca da autenticidade da obra : as origens argelinas do cineasta e o paralelo constante que seus filmes buscam ter com seu território de origem em Nardjes A. e em Marinheiro das Montanhas.

Quanto a Pablo Agüero a questão de ser argentino e se interessar por uma historia que se passa no País Vasco no seculo XVII é colocada em quase todas as entrevistas ao cineasta a respeito de Akelarre, seu ultimo filme. A todas essas interrogações o diretor responde deixando claro de uma parte sua intenção de ancorar seu filme no País Vasco, procurando não somente atrizes que falassem euskera e filmando nesse território, mas procurando parceiros na região; e por outro salientando um interesse pelo tema da condição feminina que, segundo ele, percorre toda sua filmografia.

O nacional como um recurso

Como podemos ver nas tabelas 1 e 2, todos os filmes listados figuram como coproduções com participação, ainda que em todos eles minoritária, do país de origem dos cineastas. Um tal detalhe é significativo, para a além das questões de uma atribuição automática em função da nacionalidade dos diretores ou do fato dos filmes serem rodados nesses territórios. No caso especifico desses filmes, é graças à participação de um coprodutor baseado na Argentina e no Brasil que os projetos puderam se tornar elegíveis a importantes fundos como Aide aux cinemas du monde (França) e Hubert Bals (Holanda). Como esses outros fundos como Fonds Sud-Est (Suiça) ou World Cinema Fund (Alemanha) são destinados às coproduções com certos países e só são acessíveis a projetos que associam coprodutores dos países elegíveis além daqueles do país de origem do fundo.

Se a parceria com o país de origem constitui uma condição necessária para o acesso a financiamentos importantes e sem os quais a maior parte dos projetos ficariam inacabados, a nacionalidade constitui um recurso dos para os cineastas em suas negociações. Assim, voltando ao exemplo de Salamandra, graças a nossas pesquisas e observações é possível afirmar que a tanto a nacionalidade do cineasta autor (ou mais precisamente sua ligação pessoal à Patagônia, território no qual se passa o filme) constituiu um ponto forte na estruturação do projeto e um verdadeiro “argumento de promoção” do mesmo junto aos organismos e comissões financiadoras. Assim, o nacional se firma como um recurso a se mobilizar (ou não) nas negociações transnacionais do mundo do cinema de autor internacional.

Assim, no que toca aos cineastas expatriados, afirmar sua nacionalidade de origem ou sua ligação à um território ou localidade constitui um ponto que coexiste com sua integração ao país de residência. Isso, em termos de cultura, coloca esses indivíduos em um lugar às vezes difícil : nem completamente legitimo para falar do pais de origem, nem completamente à par das questões do país de residência.

Esse lugar ambíguo, ou entre-lugar, entre ser um cineasta local e um cineasta estrangeiro é claramente explicado por Karim Aïnouz, quando ele nos fala de sua maneira de ver seu espaço de cineasta na cidade de Berlim :

Ah é sempre uma guerra, porque você vai tendo que conquistar seu lugar, tem um trabalho de sedução ai. Porque tem toda aquela coisa de que você mora ali e que você entende os códigos ao mesmo tempo que você vem de fora e você traz uma coisa nova, então assim você vai negociando uma existência...E(...) então é sempre esse equilíbrio de como que você é dali e não é. (...). Na Alemanha especificamente foi muito difícil no começo, foi quase impossível...Hoje em dia o contrario, eles são super curiosos com o meu trabalho, super respeitosos e eu sei que eu trago pra cidade também uma diversidade que a cidade precisa, entendeu?...enfim tem sido super bacana, eu não tenho nada a reclamar... e inclusivo eu falo um alemão muito ruim (...) e eles dizem tudo bem! a gente gosta precisamente porque você é de fora e você traz coisas novas para a cidade, você traz uma coisa com um outro frescor para a cena cultural da cidade... então também vou me encontrando nesse lugar entende?

«Se encontrar» nesse lugar, entre «ser daqui, mas ao mesmo tempo não ser» é precisamente o que os dois cineastas dos quais tratamos procuram fazer a cada projeto de filme.

Conclusão

O caso desses dois cineastas - e nossas pesquisas parecem confirmar - o nacional é ainda uma questão vasta e uma ideia que está longe de ter sido esgotada ou defasada. Ele constitui ao mesmo tempo um referencial para os artistas e para os outros atores do mundo do cinema de autor que ainda operam em termos de “países e autores a apoiar”. Mesmo que a questão das tensões entre o “local” e o “global” (nos discursos de criticos e profissionais do cinema a questão de filmes “que falam uma linguagem universal a partir de realidades locais” aparece constantemente) não possam ser resumidas ou rapidamente assimiladas à ideia de nação é pela nacionalidade e se servindo dela como de um recurso, que o trabalho desses cineastas migrantes é posto em cena, é categorizado e viabilizado e finalmente dado a ver.

Finalmente nos parece importante terminar por salientar que muitas das problemáticas das negociações interculturais que articulam as dinâmicas transnacionais do cinema de autor internacional são igualmente observáveis quando de cineastas de outras regiões do mundo e mesmo aqueles que não necessariamente passaram pela experiencia migratória. Dito isso, nosso estudo procurou se concentrar na camada adicional de complexidade que essa condição de “estrangeiros” parece trazer a essas negociações. Uma complexidade que se concretiza na ambivalência em que o “entre lugar” que esses cineastas ocupam : entre ser um cineasta “estrangeiro” - com toda a implicação de ser um “portador de novidades” ou de “novos olhares” que essa etiqueta pode significar do ponto de vista dos parceiros internacionais - e ser um habitante do país - novamente, do ponto de vista do parceiro internacional, estar geograficamente próximo, conhecer as instâncias ou ainda falar a língua. Uma ambivalência e um lugar difícil igualmente no que toca aos discursos fílmicos e que coloca os artistas na posição de equilibrar de um lado uma “expectativa” internacional de tratar de temas e de representar seu país de origem, e de um outro, um questionamento de suas legitimidade de tratar desses assuntos e problemáticas sendo que eles não vivem mais nesse contexto.

Notas Finais

1Por uma questão de tempo, a analise fílmica não poderá ser abordada em profundidade nesta comunicação que se limitara a apresentar somente alguns pontos resultantes dessas analises.

2Dispositivo que vinha se criar no Festival Cinelatino Rencontres de Toulouse com o objetivo de oferecer um espaço para que novos realizadores pudessem apresentar seus projetos inacabados a potenciais parceiros. Ver Rueda (2018)

3O que significa que se trata de filmes que correspondem a um mínimo de critérios não apenas estéticos, como econômicos e mesmos temáticos. Isso significa grosso modo que certos filmes, radicais, artesanais ou ainda populares serão dificilmente “aceitos” nesses circuitos que, mesmo que os booksoffice não os sigam e cada vez mais jovens criticos os questionem se erigem como um dos pilares do que se pode denominar um cinema arte e “de qualidade”

4Mais sobre a noção de filme de festival em Falicov (2016)

5Entendemos por produtores independentes os produtores que não são vinculados a atores da difusão.

6A residência oferece aos autores-diretores a possibilidade de desenvolver seus projetos de roteiro em um “quadro” privilegiado em Paris e tendo a acessória de outros profissionais. O atelier, quanto a ele se constitui em um dispositivo visando promover o encontro entre cineastas e potenciais parceiros.

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