Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Communicational biography and the usurpation of authorship in Brazilian television: a case study on Gilberto Braga’s last telenovela Babilônia

Biografia comunicacional e usurpação da autoria na televisão brasileira: um estudo de caso sobre Babilônia, última novela de Gilberto Braga

Patrícia Cardoso D’Abreu

Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

João Ximenes Braga

Roteirista, Brasil

Abstract

The Brazilian telenovela, as a work in progress, is built on the articulation of authorship and management of audience fluctuations. It is an important object of study to bethink the dynamics of television in certain historical moments. If Brazilian telenovelas are closely aligned with the contexts in which they are broadcast, to what extent do they mediate the perception of the country’s social, political and economic reality? This article is based on the hypothesis that certain interventions from executives in the plots results in the usurpation of authorship, especially at times when authoritarian postures tend to institutionalize. As these impositions implodes the foundations of a genre marked by authorial signature, our goal is to analyze the impacts on authorship when subtracted from its intertextuality and vision of the world. Our empirical object is the telenovela Babilônia (TV Globo, 2015), the last work by author Gilberto Braga (1945-2021) to be produced by Globo, in partnership with João Ximenes Braga and Ricardo Linhares, and which recorded the lowest 9pm slot audience rating ever. The concept-method to be used is that of communicational biography, which will guide the analysis through the articulation between different types of texts: the synopsis, the 80 chapters originally written compared to the chapters modified by imposition of the company’s management; autobiographical accounts; and the repercussion on specialized criticism.

Keywords: Brazilian audiovisual, Soap opera, Authorship, Babylon, Communicational biography

Introdução

É possível haver autoria na televisão?

Este questionamento é central para investigar e refletir sobre um veículo cujos produtos, em seus mais diversos gêneros e formatos, se estruturam a partir de uma série de mediações sociais, econômicas, criativas, culturais e políticas. No Brasil, a televisão ocupa um lugar especialíssimo, que mescla modernidade e arcaísmo, inovação e retrocesso, representatividade e homogeneização, originalidade e repetição. Paradoxal, o papel da televisão na cultura brasileira é desempenhado por agentes em constante disputa – dentro e fora dela. Produção de excelência da televisão brasileira, a dramaturgia oferece uma constelação de objetos para a pesquisa sobre essas tensões.

A telenovela é um formato industrial de dramaturgia dialógica, no qual diferentes instâncias criativas e estratégias de gestão demandam a reflexão sobre as singularidades da relação autor-obra na ficção seriada. Nesse sentido, é necessário afirmar as especificidades das disputas em seu campo de produção, com o objetivo de compreender a trajetória de seus profissionais, as possibilidades de autonomia criativa de seus realizadores e suas articulações com o audiovisual globalizado.

Nossa abordagem parte das noções de valor-trabalho da escrita, função autor, assinatura, exotopia, transdiscursividade, prática e campo de produção. A partir delas, a telenovela como obra aberta emerge também como obra-produto, instaurando disputas entre gesto criativo e gestão das audiências. Observada em Babilônia, essa dinâmica leva à alienação da autoria, o que impacta trajetórias profissionais.

O drama da autoria

Só a partir do século XVIII os autores passaram a ter o direito de vender suas obras e a desfrutar do reconhecimento de sua propriedade intelectual. Por volta de 1850, uma classe de escritores substitui o valor-uso da escrita pelo valor-trabalho.

Começa então a elaborar-se uma imagística do escritor-artesão que se encerra num lugar lendário, como um operário que trabalha em casa, e desbasta, talha, dá polimento e incrusta a sua forma, assim como um lapidário extrai a arte da matéria, passando nesse trabalho horas regulares de solidão e de esforço (...).Esse valor-trabalho substitui um pouco o valor-gênio; coloca-se uma espécie de vaidade em dizer que se trabalha muito e longamente a forma. (BARTHES: 2004, p.54)

Flaubert, para quem “o estado burguês é um mal incurável que adere pegajoso ao escritor” (IDEM, p.55), é o fundador dessa escrita artesanal. Questão da linguagem, a escrita impõe uma relação com a História e o partido que nela se toma porque, como a unidade ideológica da burguesia produziu uma escrita única, o primeiro gesto do escritor consciente foi o de escolher um compromisso com a forma. Em Flaubert, a dimensão dessa labuta se intensifica, o que leva Barthes a dizer que a flaubertização da escrita resgata a ideia de escritor. Se a escrita implica uma opacidade da forma, ela se baseia na existência de uma natureza social e seu objeto deve ser tratado por um artesão.

Se em BARTHES (1984) o “scriptor” irrompe da potência que o sujeito assume performaticamente na linguagem, em FOUCAULT (2006), o desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve nos remete ao discurso. Esse desaparecimento desvela o jogo da função autor. De fato, só existe autor quando não há anonimato mas, como isso se dá no campo discursivo, é preciso retirar o sujeito do papel de fundamento originário para analisá-lo como uma função variável do discurso.

O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser. Consequentemente, poder-se-ia dizer que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de discursos que são providos da função autor, enquanto outros são dela desprovidos. (...) A função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade (IBIDEM, p.274).

As quatro características dessa função são a possibilidade de apropriação dos textos, a singularidade do exercício autoral, a coerência textual e contextual e a pluralidade de egos. Como os discursos passaram a ser transgressores na virada do século XVIII para o XIX, era necessário atribuí-los a alguém passível de punição: como imperativo da literatura, a transgressão transformou juridicamente o discurso em produto, garantindo sua propriedade e responsabilidade.

Para BAUDRILLARD (1972) o ato criativo moderno precisa ser nomeado por um signo visível que agrega valor de diferença. Este signo não dá a ver a obra, mas permite seu reconhecimento e sua avaliação. Através da assinatura que leva à percepção de seu valor diferencial, a obra torna-se um objeto cultural, passa a pertencer a um determinado indivíduo de uma determinada cultura. O começo da modernidade é marcado por um novo ato temporalizado do momento da criação irreversível. As obras se somam e se sucedem para remeter, através de sua diferença e descontinuidade, a um sujeito criador que é repetidamente ausente. A função da assinatura é, então, significar a obra como objeto deste que, sempre ausente, marca presença na cadeia de produção simbólica. A assinatura se torna a legenda das obras e qualquer atentado a ela é um atentado ao sistema cultural.

Em seus estudos sobre Dostoievski, Bakhtin argumenta que o escritor tem uma ficção polifônica porque inclui a voz do outro, mas isso não significa que suas histórias sejam reduzidas aos personagens: excluindo a voz do autor, as histórias seriam monológicas. Nesse sentido, duas leis guiam a obra de arte: a lei do personagem (lei do conteúdo) e a lei do autor (lei da forma).

A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa. O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas, e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre determinado e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra. (BAKTHIN: 2011, p.11)

No ato artístico, a realidade do personagem (outra consciência) é o objeto do autor, mas a linguagem (consciência do autor), em sua contingência, é a forma dessa realidade se expressar. É por isso que os textos não podem ser analisados independentemente do contexto.

o artista interpreta as intenções mais complexas dos homens, das gerações, das épocas, das nações, dos grupos e classes sociais. O trabalho do olho que vê se combina aqui com os mais complexos processos de pensamento. (...) As contradições socioeconômicas – essas forças motrizes do desenvolvimento – englobam dos contrastes elementares imediatamente visíveis (a diversidade social da pátria na estrada real) às suas manifestações mais profundas e sutis nas relações e ideias humanas. Essas contradições deslocam necessariamente o tempo para o futuro. Quanto mais profundamente elas se revelam, mais essencial e ampla é a plenitude visível do tempo nas imagens do artista-romancista. (BAKHTIN: 2011, p.225-6)

O trabalho do autor compreende uma essencial tensão ético-cognitiva e seu estilo transcende a lida com as palavras: é um conjunto de procedimentos que trabalha com valores para elaborar um determinado conteúdo em uma obra que toma forma a partir de suas escolhas singulares. Por isso, a análise dessa obra deve ser arquitetônica - a compreensão sobre o dispositivo técnico não pode superar a lógica imanente da criação. Sendo esta tarefa ético-cognitiva essencialmente dialógica, há que se dedicar atenção analítica à relação entre o criador e os seres criados por ele - o que Bakhtin chama de “exotopia do autor”.

Uma vida encontra um sentido, e com isso se torna um ingrediente possível da construção estética, somente se é vista do exterior, como um todo; ela deve estar completamente englobada no horizonte de alguma outra pessoa e, para a personagem, essa alguma outra pessoa é, claro, o autor. (...) A criação estética é, pois, um exemplo particularmente bem sucedido de um tipo de relação humana: aquela em que uma das duas pessoas engloba inteiramente a outra e por isso mesmo a completa e a dota de sentido. (TODOROV In. BAKHTIN: 2011, p.XIX).

Se há polifonia na configuração do texto, a eliminação da consciência do autor ou do personagem destrói o acontecimento artístico. Resta “o falseamento (o embuste artístico de si mesmo); o acontecimento artístico é irreal, não se realizou de verdade” (BAKHTIN: 2011, p.185). Quando a exotopia é alienada, a autoria entra em crise. Tirar do autor o direito de estar fora da vida e lhe dar acabamento é, também, negar que ele é dotado de certa autoridade e coerência necessárias para a fruição: ele é um conjunto de princípios criativos que devem ser realizados. A autoria é um lugar que se ocupa para exercer uma função no discurso; como diz Bakhtin, é o espaço vazio onde o drama acontece: o autor é a dramatização. O ato estético permite a existência em um novo plano de experiência: o plano do pensamento sobre o mundo humanizado. Essa manifestação da consciência mostra que a noção de autor é crucial na individualização das ideias.

Para ECO (1985), o conhecimento do autor permite “compreender tudo através das palavras de alguém que não compreende nada” (p.32). As formas simbólicas das histórias são expressões que, ao instaurarem a operação de produção/interpretação, envolvem a aplicação de regras, códigos e convenções característica da convivência social. As formas simbólicas se constituem de elementos inter-relacionados e podem dar a ver uma estrutura de relações intertextual e transdiscursiva. Se não fosse assim, Madame Bovary não seria um folhetim sobre folhetins e Ema não seria intra e extrodeterminada pelas condições sociais de sua produção, circulação e consumo.

Toda prática discursiva objetiva a produção de sentido e nela incide um campo normativo, necessário devido à impossibilidade de acesso direto à realidade: daí a necessidade da mediação das linguagens na troca social. No contexto de Flaubert, quando emerge a literatura de massa, há a reestruturação dos meios e a reelaboração do caráter simbólico da vida social. Em meados do século XX, a reprodutibilidade técnica das formas simbólicas reformulará questões sobre os modos de dizer e as funções do autor: no contexto da vida midiatizada, a ordem discursiva é colocada diante de textos que, transcendendo a venalidade criativa, alienam a autoria.

Disputas entre obra e produto

O trabalho de criação nas grandes redes e emissoras da televisão aberta brasileira é necessariamente em equipe. Esta cadeia produtiva exigiu, a partir de 2010, a reestruturação dos negócios que envolvem a indústria da teledramaturgia. Na busca por inovação, novas formas de gestão aceleraram e intensificaram a conversão de demandas de consumo em orientação para o fazer artístico (SOUZA et al:2021).

Se não é novidade que a telenovela, como obra aberta, tem sua condução condicionada aos índices de audiência, é preciso ressaltar que, em um contexto no qual as mídias sociais mobilizaram a manifestação de multidões nas ruas do Brasil e do mundo, a urgência na adoção de medidas responsivas à opinião expressada nas redes tornou-se prática empresarial comum. A volatilidade dessas expressões gerou novas trajetórias de comunicação-consumo, o que impactou a gestão de um produto tão singular como a telenovela brasileira. Nessa impacto, o colapso da função autor, que tem na telenovela Babilônia um caso exemplar, ajuda na compreensão sobre a atual situação dos escritores-roteiristas no mercado audiovisual brasileiro.

O olhar atento sobre o modelo de gestão das empresas produtoras de telenovelas tem se mostrado um espaço privilegiado para verificar as ações que mais amplamente interferem nos modos dos roteiristas autores conduzirem suas histórias em sistema industrial e que, na cultura digital, ganhou complexidade nunca vista, difícil ainda de ser dimensionada. Considerar o arranjo específico das empresas produtoras de telenovelas brasileiras nesse cenário orienta, assim, a compreensão das relações entre as marcas dos autores e as marcas das empresas. (SOUZA et al: 2021, p.26)

A investigação sobre a autoria dos produtos midiáticos tem no conceito de campo de produção da telenovela uma importante possibilidade de conhecimento crítico sobre a política do audiovisual no Brasil. A reflexão sobre o trabalho coletivo que coloca em circulação o produto telenovela é adensada quando uma determinada prática desta cadeia produtiva (a escrita do autor) sistematiza o conhecimento sobre o que BOURDIEU (1983) chama de habitus: a interiorização de estruturas exteriores que, em determinada contingência, atualiza práticas e engendra a noção de campo - um espaço social e as relações de poder que nele se manifestam. Assim, a noção de campo de produção da telenovela se refere às especificidades da gestão de um produto industrial e à construção social e à autonomia de seus autores (SOUZA: 2014).

Como instância de um trabalho coletivo, a escrita do autor da telenovela, diante do fluxo de mediações criativas de sua obra e das complexas demandas do produto dela resultante, é prática importantíssima para a reflexão sobre as disputas no campo da cultura. A especificidade de sua função torna arriscada (e simplista) sua redução à máxima cinematográfica que sinonimiza autor e realizador. Isso não significa dizer que as questões sobre a criação cinematográfica como arte sejam desprezíveis para a relação autor-obra na televisão. Mas é preciso atentar para proposições que, orientadas pela especificidade televisiva, investem em conceituações mais precisas para a TV.

Sobre o assunto, TARANGER (In GARDIES e TARANGER: idem) utiliza um corpus de análise composto de suplementos televisivos do jornal Le Monde, catálogos do FIPA (festival francês anual de televisão) e obras de referência sobre o veículo (como o livro La télévision des réalisateurs, de Jacqueline Beaulieu) para compreender como os termos autor e obra são empregados na TV. De início, constata que são utilizados como estratégias de legitimação artística da televisão, para assegurar o valor cultural do veículo. Norteadas pelas reflexões sobre o cinema, surgem nomeações como “televisão de realizadores”, “teleastas” e “oitava arte”. Mais que mera convergência lexical, essa analogia rompe com a clivagem estabelecida entre uma arte cinematográfica que goza de prestígio e a mera mídia televisiva de qualidade duvidosa (TARANGER In GARDIES e TARANGER: 2003).

É nesse sentido que o domínio dos roteiristas sobre o espaço diegético das telenovelas se mostra fundamental para a questão da autoria – preferimos “espaço” a “universo” por entendermos que a premissa literária da exotopia do autor não colide, em nosso panorama, com a noção sociológica de um campo de ação. Sendo o roteirista da telenovela aquele que tece as redes de relações que se estabelecem através desta particularíssima forma ficcional, sua autoria se estabelece em dois tipos de texto. Primeiro, a sinopse, trama de proteção de uma escrita trapezista que se arrisca nas flutuações dos gostos, valores, contingências, perspectivas e estratégias do consumo, da crítica especializada e das instâncias de gestão do produto. Em seguida, os capítulos, para além do mero texto organizado em diálogos e rubricas, trabalham o difícil equilíbrio entre suspensões, paralelismos, temporalidades e fluxos que sustenta uma intriga (inaudita no que se refere à literalidade de cada bloco de cenas). Particularidades da encenação, demandas de gestão e o diálogo com as audiências (três instâncias que se articulam) podem reorientar a escrita dos capítulos, mas seu anteparo tende a ser a sinopse. A capacidade do texto da telenovela se desdobrar em outros códigos (visuais, sonoros e audiovisuais) e em leituras diversas (crítica especializada e audiência) e inesgotáveis (reprises e cultura da nostalgia) é, assim, diretamente proporcional ao efeito poético buscado por aquele que instaura a especificidade desta escrita dramatúrgica: o autor-roteirista.

Autoria na telenovela: uma ficção?

A nomeação da telenovela brasileira como “obra aberta” exige que o texto atenda a critérios de gosto e de opinião pública, à moralidade mediana (geralmente do sul-sudeste nacional) e à gestão da audiência. Isso se acentuou no fim dos anos 1960, quando o folhetim eletrônico diário se articulou à crônica, incorporando costumes e temas cotidianos. Quase em sincronia com a instituição da censura prévia pela ditadura militar brasileira, em 1968, o território da telenovela passou a ser o lugar no qual o questionamento e o julgamento coletivos (orientados pela a moral doméstica e familiar) eram possíveis. Assim, a legitimidade do escritor de TV como autor não era somente uma extensão da legitimidade dos roteiristas da indústria do cinema hollywoodiano de entretenimento e do prestígio intelectual dos roteiristas-diretores do cinema de autor francês: um dos aspectos que diferenciam a telenovela brasileira das telenovelas de língua espanhola e das soap-operas norte-americanas é o diálogo que, através da especificidade de uma complexa estrutura de suspensões, os escritores estabelecem com seu contexto. O autor da telenovela brasileira se tornou aquele que dramatiza dialogicamente, assinando uma trama que dá início à cadeia criativa de um produto industrialmente rentável nacional e, posteriormente, internacionalmente.

Segundo NOGUEIRA (1999), autores como Gilberto Braga desempenham uma função que se hibridiza com a do produtor, figura que, para ele, controla todo o processo da telenovela.

Gilberto Braga dribla algumas limitações estabelecidas pela indústria exercendo e atuando como autor-produtor em comum acordo com a emissora. Ele escreve as telenovelas juntamente com os colaboradores, afinados com suas ideias, escala o diretor com o qual quer trabalhar, visando uma sintonia na produção, escolhe o elenco e participa da escolha da trilha sonora com direito a veto. Se os entraves da indústria são suficientes para demonstrar sua força, a posição de autor-produtor, conquistada ao longo de sua trajetória, permitiu-lhe acúmulo de poder. Ou seja, Gilberto Braga se equilibra e mostra personalidade na tensão entre criar e seguir as normas da Rede Globo. (NOGUEIRA: 1999, p. 79-80)

Essa perspectiva parte da análise de SARRIS (1962) sobre o conceito de filme de autor: a direção seria valorizada porque os obstáculos que a indústria do cinema cria para o tratamento literário dos roteiros obrigaria a expressividade a se localizar no tratamento visual dos filmes. “De Andrew Sarris aproveita-se a ideia do ‘entrave’ como estímulo para se quebrar regras e normas e daí sobreviver na indústria” (NOGUEIRA: 1999, p. 79). Afirmando que as novelas O Dono do Mundo (Gilberto Braga, TV Globo, 1991-92, 20h30, 197 capítulos) e Pátria Minha (Gilberto Braga, TV Globo, 1994-95, 20h30, 203 capítulos) sofreram “crise” e “fracasso”, Nogueira ressalta a marca de Gilberto Braga como autor e sua importância na atualização do gênero, mas diz que sua proposta de telenovela entrou em crise e que a confirmação da autoria na teledramaturgia se estabelece melhor na minissérie.

Em vez d a noção de “entrave”, preferimos o conceito de mediação para refletir sobre essa ideia de autor-produtor da telenovela. Sendo o texto da telenovela a dramatização ou o exercício da trama, o desempenho de sua transposição para a audiovisualidade, sua encenação, é que pode dar a ver os “entraves” de sua poética. A participação de Gilberto Braga nas escolhas das trilhas de suas obras, por exemplo, nos remete ao conhecimento sobre a matriz do melodrama, no qual a música atua na cena como parte indissociável da pantomima. Com este entendimento, o autor aumenta sua possibilidade de mediar demandas específicas da encenação: em vez de limitações, temos as negociações de uma cadeia produtiva cujo objetivo final é a manutenção da função fática entre meio e telespectador. Temos o exercício da função autor ambientada na teledramaturgia: impossibilidade do anonimato, mas sem incorrer no subjetivismo.

“Assinada”, a telenovela singulariza o gesto de um criador repetidamente ausente mas essencialmente aberto ao dialogismo – esta é a marca da presença do autor da telenovela na cadeia da produção simbólica. Romper com esta dinâmica é romper com uma importante instância da mediação nos meios e com a autonomia criativa de uma significativa área do mercado de trabalho do audiovisual brasileiro. Argumentos de gestão das audiências dificilmente conseguem justificar essa ruptura. Não porque o autor seja onisciente ou seu texto seja inalterável ou sua tarefa seja insubmissa, mas porque a interferência na lógica e na coesão de um espaço diegético que se instaura pela habilidade de suscitar o engajamento afetivo de uma vasta e múltipla audiência é um equívoco estratégico com consequências para a biografia comunicacional de um autor. A tarefa da gestão das audiências, que também é mediadora, é capitalizar a abertura da obra, traduzindo dados estatísticos como subsídios para as decisões e redefinições autorais e administrando as condições materiais para sua encenação. Evidentemente, as tomadas de decisão da gestão são, necessariamente, atravessadas por subjetividades. Mas o produto teledramatúrgico que vai ao ar não é resultado da vontade pessoal de autor, produtor, diretor, ator ou gestor: este produto é o resultado de uma série de negociações entre conteúdo (ética) e forma (estética) assumidos pela representação simbólica de estados morais e emocionais em um determinado contexto. Seu ponto de partida é a habilidade da dramatização para mobilizar as consciências (de criadores, críticos e consumidores).

Gestar e gerir: um relato sobre a telenovela Babilônia

Nas telenovelas brasileiras, não é difícil identificar o universo temático, a densidade dos personagens e o ritmo da trama de acordo com seu autor. Talvez de forma mais superficial, mas não tão diferente de como os críticos da revista Cahiers du Cinema lançaram o conceito do film d’auter ao tratar de filmes produzidos com o intuito de se fazer entretenimento comercial. Mesmo sendo um gênero em que os clichês se amontoam (e clichês são estratégias de comunicação), as novelas, historicamente, sempre trouxeram uma forma de olhar e falar do Brasil que partia de seu autor principal, mesmo na escrita em equipe.

Inaugurada por Gilberto Braga (1945-2021) na televisão brasileira, a autoria partilhada da telenovela se deu pela primeira vez a partir do capítulo 57 de Água Viva (Gilberto Braga, TV Globo, 1980, 20h30, 159 capítulos), quando Manoel Carlos assumiu a co-autoria da trama. A novidade enfureceu Janete Clair (1925-1983), a mais importante autora do gênero no Brasil: “É como se você abandonasse um filho” (PROJETO MEMÓRIA GLOBO: 2008, livro 1, p. 382), ela disse para ele. Três anos depois, pouco antes de morrer, ela mudou de ideia ao dividir sua última (e inacabada) telenovela, Eu Prometo (Janete Clair, TV Globo, 1983-44, 22h15, 110 capítulos), com Glória Perez.

Coletivo, o processo criativo de Gilberto, a partir de 2007, reunia de seis a oito roteiristas, três vezes por semana, para o trabalho de elaboração dos perfis dos personagens e das tramas (principal e paralelas), ao longo de meses, até a confecção da sinopse.

A sinopse de uma telenovela estabelece o arco dramático de protagonista(s) e antagonista(s) e as tramas que daí se ramificam ou em torno da qual orbitam. Seu caráter descritivo define o percurso da ação de personagens com características bem definidas, que interagem em um determinado tempo (que pode ter múltiplas temporalidades) vivido em lugares específicos (que podem conjugar múltiplas referencialidades). A técnica que envolve essas descrições se articula, necessariamente, a uma complexa unidade dramática capaz de se abrir para a superposição e a continuidade de movimentos de exposição, desestabilização, complicação, clímax e normalização (COMPARATO: 1983, p. 106). Sendo aprovada a sinopse, os autores começam a escrever os capítulos.

Mesmo sendo um trabalho coletivo, uma obra com a assinatura de Gilberto Braga é entretenimento marcadamente autoral. Seus colaboradores, cientes de sua voz e sua visão, tinham como função ajudá-lo a criar e escrever, dentro do seu universo. Os princípios criativos de Gilberto Braga guiavam as escolhas (também criativas) de seus colaboradores. Sob a perspectiva de BAXANDALL (2006), podemos dizer que o encargo da produção de um texto de telenovela de Gilberto Braga equivale a relacionar o texto teledramatúrgico do horário nobre televisivo (entre 18h e 21h) e o contexto histórico, social e cultural de uma escrita dialógica e contemporânea. Envolve o que Baxandall chama de qualidade intencional.

No segundo semestre de 2013, esta relação entre objeto e circunstância deu início à criação da sinopse de Babilônia, que seria a última novela de Gilberto Braga e o mais baixo índice de audiência registrado para o horário das 21h até a conclusão de Um Lugar ao Sol (Lícia Manzo, TV Globo, 2021-2022, 21h00, 119 capítulos). Depois de duas novelas centradas em conflitos familiares, Babilônia seria o retorno de Gilberto Braga à crítica social que o consagrou em Vale Tudo (TV Globo, 1988-1989, 20h, 204 capítulos).

A trama foi concebida com uma variante da estrutura habitual “protagonista versus antagonista”. A protagonista, Regina (Camila Pitanga), dona de uma barraca de bebidas na praia, teria duas antagonistas: a empreiteira Beatriz (Glória Pires) e a advogada Inês (Deborah Evelyn), inimigas entre si que, em dado momento, fariam um conluio contra a protagonista. No primeiro capítulo, Beatriz mata o pai de Regina, que posteriormente encontraria pistas para investigar o assassinato com a ajuda do namorado, o advogado Vinícius (Thiago Fragoso). Ele, por sua vez, despertaria uma paixão obsessiva em Inês. Babilônia era a história de uma mulher batalhadora buscando justiça para sua família. Tinha como pano de fundo as tensões entre as classes sociais no Brasil, a partir do microcosmo do pequeno bairro do Leme, no Rio de Janeiro, onde esses contrastes são gritantes. Regina, moradora do morro da Babilônia, era uma representante da então “nova classe C”. A advogada Inês, moradora das ruas internas, pertencia à classe média, mas de um estrato que vinha acumulando ressentimentos, em vista dos avanços sociais que ocorriam no país. A empreiteira Beatriz, instalada num belo apartamento com vista para o mar, era um típico exemplar da elite financeira mais predatória.

Para essa dinâmica funcionar, era absolutamente necessário que Beatriz e Inês fossem vilãs com personalidades opostas. Beatriz era uma mulher solar, exuberante, sensual, segura de si; Inês era carregada de insegurança, inveja e ressentimento, desprovida de charme e senso de humor. Valendo-se de uma liberdade que sempre tivera na Globo (ou do poder conquistado por sua atuação como autor-produtor), porque entendia de escalação de elenco como poucos, Gilberto escolheu as três atrizes para os papéis nas etapas iniciais de criação da novela: em seu processo criativo, o aprofundamento dos personagens demandava uma escrita direcionada a seus intérpretes.

Sinopse aprovada, cerca de 80 capítulos foram escritos por Gilberto Braga e seus co-autores, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga (que também assina este artigo). Às vésperas da novela entrar em produção, mudanças na alta administração da TV Globo resultaram em mudanças significativas. A primeira decisão da então nova gestão foi a substituição da atriz Deborah Evelyn pela atriz Adriana Esteves no papel da ressentida vilã Inês. Como para Gilberto a escalação de elenco era fundamental para o desenvolvimento da trama, houve, antes da estreia, um forte impacto no que se refere a sua exotopia como autor. O problema era Adriana Esteves ainda ser muito identificada pelo público com a memorável personagem Carminha, da bem sucedida Avenida Brasil (João Emanuel Carneiro, TV Globo, 2012, 21h, 179 capítulos): uma vilã exuberante, carismática e cômica que mobilizou as audiências. Para justificar a mudança, os novos gestores alegaram que o público das novelas não via Deborah Evelyn como uma estrela no mesmo patamar de Camila Pitanga e Gloria Pires. Mas justamente isto ajudaria a estruturar no imaginário a submissão de Inês a Beatriz.

Babilônia estreou em 16 de março de 2015, celebrada pela imprensa especializada. Em “Babilônia estreia dando choques elétricos no espectador”, (UOL, 16/03/2015) o crítico Maurício Stycer sugeria que a narrativa da novela era inovadora: “Babilônia pegou o espectador pelo colarinho e o sacudiu por mais de uma hora (...). Foi atordoante”. No mesmo dia e também no UOL, sob o título “Capítulo de estreia de Babilônia é verdadeira aula de roteiro”, a crítica de Nilson Xavier sublinhava a autoria de Gilberto Braga: “Ascensão social e diferenças entres classes é Gilberto Braga puro. Aliás, o capítulo todo é um Gilberto Braga legítimo”. Na edição de 18/03/2015 do jornal Folha de S. Paulo, Roberto de Oliveira ressaltava o ritmo da trama: “A novela deve seguir por um terreno de surpresas e tensão, em que o público não encontrará espaço sequer para respirar”. Apesar da excelente repercussão na imprensa e nas redes sociais - o que mostrava o reconhecimento do gesto criativo de Gilberto Braga e a pertinência de sua tematização sobre o contexto de então - a audiência (mesurada pelo Ibope) em São Paulo era considerada baixa.

Apesar de promissora, Babilônia colheu uma audiência morna em sua estreia, de 33 pontos em São Paulo. Mas até nisso se viu um sinal dos tempos: o capítulo bombou nas redes sociais, coisa hoje tão estratégica quanto o Ibope. Com 7,5 milhões de tuítes, a repercussão no Twitter foi 33% maior que a da estreia da antecessora Império (por sinal, uma nulidade em repercussão nas redes). Arrasaram, suas víboras”. (Marcelo Marthe e Mario Mendes, revista VEJA, 25/03/2015)

A baixa audiência inicial não seria justificativa para interferências drásticas da gestão de teledramaturgia na trama de Gilberto Braga. Em entrevista à revista TV Brasil, o autor Aguinaldo Silva explicava que

A audiência do primeiro capítulo não é indicativa de nada. Há novelas que estouram a boca do balão já na primeira cena, outras vão comendo o pirão pelas beiradas até se transformarem em grandes sucessos” (Aguinaldo Silva, revista TV BRASIL, 26/03/2015).

A observação do escritor vai ao encontro do fato de que a encenação do texto interfere no desenvolvimento dos capítulos. Isso, mais uma vez, ratifica a importância de uma sinopse bem consolidada (e acatada) para conduzi-los com um mínimo de coerência. No caso do primeiro capítulo de Babilônia, uma cena afetou parte da audiência de forma inesperada: o beijo de Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Natália Thimberg), um casal da terceira idade.

A intenção dessa cena logo no primeiro capítulo era a de consolidar a incorporação das relações homoafetivas às tramas, uma vez que outras novelas – como Paraíso Tropical (Gilberto Braga e Ricardo Linhares, TV Globo, ano 2007, 21h00, 179 capítulos) e Insensato Coração (Gilberto Braga e Ricardo Linhares, TV Globo, ano 2011, 21h00, 185 capítulos) - já haviam habituado o público a acompanhar histórias de personagens homossexuais. Dois anos antes de Babilônia, Amor à Vida (Walcyr Carrasco, TV Globo, 2013-14, 21h, 221 capítulos), por exemplo, deu destaque ao assunto. No período em que a história de Teresa e Estela foi desenvolvida, entre 2013 e 2014, ainda não havia indícios de que um movimento conservador de extrema-direita ganharia a força e representatividade política que hoje tem no país.

A cena não era segredo: na véspera da estreia de Babilônia, o jornal Correio Braziliense publicou uma nota afirmando que a novela “repete a fórmula que tem conseguido sucesso no horário nobre: beijo gay” (15/03/2015). Mas a cena revelou um pânico moral da sociedade brasileira menos discutido que a homofobia e a misoginia, mas tão intolerante quanto ambas: o etarismo.

Discutida pela equipe de criação de Gilberto Braga cerca de um ano e meio antes de ser veiculada, a cena foi ao ar durante as articulações pelo impeachment de Dilma Rousseff que resultou no golpe de 2016, um período no qual ultraconservadores se mostravam uma maioria cada vez menos silenciosa no Brasil. Síntese das mediações entre permanências e rupturas na sociedade brasileira, a novela, no entanto, cumpria seu papel como obra e produto da cultura de massa.

Reportagem de Paulo Ricardo Moreira na edição de 24/03/2015 jornal O Dia noticiava a queda de audiência de Babilônia, atribuindo-a ao boicote dos evangélicos, mas fazendo a ressalva de que isso tendia a ser passageiro. No texto, o presidente do Instituto de Estudos da Televisão, Nelson Hoineff, afirmava: “Já vi outras novelas começarem bem, caírem, depois a audiência volta a subir”.

Duas semanas se passaram, mas a reação contrária ao beijo não arrefeceu, nem os pedidos de boicote à novela.

O beijo entre as atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg no capítulo de estreia da novela Babilônia, da Rede Globo, despertou a ira dos parlamentares que integram a Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Composta por 75 deputados federais e 4 senadores, a Frente divulgou nota de repúdio ao beijo e convocou os cristãos, principalmente os evangélicos, a não assistirem à novela e não consumirem produtos dos anunciantes que patrocinam o folhetim. (Daniel Camargos, jornal Estado de Minas, 7/04/2015)

O reacionarismo em relação à cena do beijo do casal gay da terceira idade não abalava a estrutura consolidada da sinopse de Babilônia, que abordava a complexa relação entre as classes populares, a classe média e a elite brasileiras, representada pela busca por justiça da protagonista Regina contra a predatória falta de escrúpulos de Beatriz e sua paradoxal relação de desprezo e conivência com a ressentida Inês. Mesmo assim, a gestão de dramaturgia da emissora decidiu por mudanças arquitetônicas.

A primeira delas foi a antecipação do tradicional grupo de pesquisa sobre a telenovela, o que contrariou o criterioso rito de gestão do produto. As pesquisas de discussão com esses grupos são sempre agendadas para o fim do primeiro mês. Portanto, faz parte da arquitetura da novela preparar uma grande virada na trama para a quarta semana: consolidados, os dados advindos dessa pesquisa são repassados para que os autores façam ajustes na tessitura de suspensões, caráteres e tramas paralelas consolidadas na sinopse. Entre os autores, esta etapa é considerada como uma espécie de reestreia da telenovela, uma vez que é função do autor fazer a mediação entre a dialogia de sua obra, as ressignificações da encenação e as demandas de gestão e consumo. O trabalho de mais de um ano de gestação de um universo diegético e da alteridade dos personagens que nele habitam entra em disputa e negociação com as demandas da competição pela audiência: emerge a gestão da abertura da obra na indústria cultural.

Nela, antecipar em duas semanas a pesquisa com o público significa interpelá-lo, por amostragem, sem dar tempo para que o hábito de consumo da ficção estabeleça um entendimento consolidado sobre os personagens e a trama: o eixo central da história (as conflituosas imbricações entre classes populares, classe média e elite), criteriosamente estabelecido na dramatização da sinopse, não teve tempo para fazer emergir suas possibilidades de abertura como mediação - como confronto que só é possível no encontro entre arcaísmo e mudança, permanência e ruptura. Na onda misógina que resultaria no golpe de forças reacionárias contra o segundo mandato da primeira mulher presidenta do Brasil, não foi respeitado o tempo tradicionalmente dado ao telespectador para consolidar seus afetos em relação a uma trama que, personificada por mulheres, trabalharia simbolicamente as opressões, os ressentimentos e o caráter predatório da sociedade brasileira.

A antecipação do grupo de pesquisa para a terceira semana, confirmou que o ponto principal de rejeição à novela era o pânico moral em relação à homossexualidade expressa abertamente na terceira idade. Para as espectadoras conservadoras, o beijo das duas senhoras não havia sido apenas um escândalo, mas uma agressão.

O segundo ponto dado como relevante dos grupos de discussão era algo que os autores já haviam avisado que aconteceria: Adriana Esteves compunha com excelência a Inês mesquinha, ressentida, invejosa. Mas as espectadoras queriam ver Carminha. Como a tradicional e meticulosa estrutura de suspensões dos capítulos trabalha o vínculo do público com a trama, a antecipação da pesquisa se deu em um momento da história no qual as ações de Inês contra Regina ainda estavam se consolidando. Apesar disso, a direção de dramaturgia estabeleceu que a advogada Inês deveria trabalhar na empreiteira de Beatriz e que a história se voltaria para uma briga entre elas por poder dentro da empresa. Todas as tramas anteriormente criadas e estruturadas na sinopse (as principais e as paralelas), inclusive a da própria protagonista, Regina, com sua busca de justiça pelo assassinato do pai, deveriam ser suspensas. A história passou a ter uma heroína e suas antagonistas agindo de forma paralela, sem “enovelamento” (CAMPEDELLI: 1987). A estruturação dramática e o aprofundamento psicológico dos personagens, que consumiram um ano e meio de trabalho dos três autores, foram alienados da cadeia criativa do produto.

De acordo com um dos co-autores de Babilônia (e também co-autor deste trabalho), o argumento de que as viradas estruturadas para os capítulos seguintes poderiam mudar a visão do público não foi acolhido pelo Diretor de Teledramaturgia Diária da TV Globo, Silvio de Abreu. Um estudo comparativo entre a leitura da sinopse e dos 80 primeiros capítulos da trama original e os capítulos de Babilônia que foram ao ar permitiria identificar de forma mais sistemática esta intervenção – mas a extensão desta análise não é possível nos limites deste artigo.

Embora não tenha ido ao ar após a intervenção na novela, a trama que envolveria Inês e Vinícius - que era estrutural na arquitetura da sinopse para adensar a tensão entre as três protagonistas - foi exposta na imprensa de forma discreta: “Segundo Ricardo Linhares, o envolvimento previsto entre Vinícius e Inês (Adriana Esteves) não vai mais acontecer”. (O GLOBO, 17/5/2015). A justificativa da diretoria de teledramaturgia para este corte foi a de que a novela deveria se ater tão somente a uma disputa entre Beatriz e Inês por ações na empresa – situação que não estava prevista na sinopse. Reconfigurada por Silvio de Abreu, um autor reconhecido pelo público e pela crítica por suas tramas cômicas - “Silvio de Abreu sabia o que estava fazendo quando jogou a torta na cara de Fernanda Montenegro e Paulo Autran”, afirma o texto institucional do PROJETO MEMÓRIA GLOBO (2008: p.265) - a história de Gilberto Braga se perdeu.

A TV Globo sempre respeitou a autoria das novelas e, em caso de insucesso, cabia ao autor decidir sobre as mudanças a serem instauradas para alavancar a audiência. Mas a intervenção da então recém empossada diretoria de teledramaturgia alienou o gesto criativo de Gilberto Braga. A história deixou de ser o embate entre a lutadora Regina contra a assassina Beatriz e a ressentida Inês para se tornar uma briga por poder empresarial entre as duas antagonistas. A heroína e suas antagonistas, que viviam em classes sociais diferentes, passaram a viver em mundos paralelos. A assinatura de Gilberto Braga se transmutou em ausência de fato.

A alienação de sua autoria como princípio criativo fez com que o objeto histórico Babilônia perdesse sua unidade dramática e tivesse sua dialogia interditada. Um mês antes do fim da novela, os autores foram autorizados a retomar algo da trama original. Mas a audiência nunca subiu. Nas redes sociais, a repercussão passou a ser negativa quase o tempo todo. As críticas da imprensa especializada também não pouparam a novela. E não ocorreu a ninguém relacionar o fracasso de Babilônia às mudanças na emissora e em seu departamento de dramaturgia.

Em declaração dada ao jornal Folha de S. Paulo na edição de 31/05/2015, o diretor-geral da novela, Dennis Carvalho, dizia que a culpa do fracasso de Babilônia não era do público, mas “da emissora e dos autores que mudaram a novela para atender a reclamações e a deixaram pior”. Para o crítico do UOL, Maurício Stycer, a novela tinha “um enredo fraco, piorado ainda mais depois que os autores reescreveram tramas, mudaram radicalmente o perfil de alguns personagens e abandonaram outros” (1/6/2015).

“Com tantas alterações, a história acabou se tornando incoerente e perdeu toda a credibilidade perante o público”, avaliou Camila Oliveira na revista Guia da TV, em 03/09/2015. “Babilônia, que naufragou na audiência, teve sua trama modificada (...) e terminou desfigurada”, publicou Nilson Xavier em 25/09/2015, no UOL. Se a crítica especializada apontava que as alterações desfiguraram Babilônia, a imprensa não noticiava que essas alterações foram impostas.

Poucos dias antes de morrer, Gilberto Braga tentou retomar alguns projetos. Mesmo com a saúde debilitada, não havia desistido de superar o fracasso que resultou da implosão da estrutura dramática de Babilônia e a consequente reticência para que seus projetos seguintes fossem produzidos.

Considerações finais: “Você só pode matar quem está fazendo sucesso”

Não é possível avaliar a obra de Gilberto Braga sob a perspectiva evolucionista. Como nos mostra o conceito de biografia comunicacional, de SACRAMENTO (2015), devemos levar em conta a especificidade histórica da estética de suas obras, observando o que as vincula “no interior das pressões e limites determinantes da televisão e da sociedade brasileira de diferentes épocas” (IDEM, p. 10). Assim, em vez de considerar o produto do autor como acabado, é importante investigar sua qualidade de obra aberta num sentido amplo, tanto por sua arquitetura como pela potência de ser ressignificada pela visada sobre as disputas que ela representa e comporta - o que ela tem de histórico e de trans-histórico.

Ao refletirmos sobre noções como função autor, valor-trabalho, assinatura e exotopia, não tomamos a trajetória profissional de Gilberto Braga como um conjunto de vontades subjetivas e gestos personificados, mas sim como elo de um processo de valoração da autoria que impacta o mercado audiovisual brasileiro. Ao tomarmos sua última telenovela como objeto de análise, localizamos esse processo no interior da teledramaturgia e em um dos contextos – sem trocadilho - mais dramáticos da história recente do Brasil. Tentamos, assim, observar como, no momento específico de uma trajetória individual, circulam, se configuram e dialogam ideias, ações, posicionamentos e modos de percepção dissonantes que se dão a ver em diferentes textos.

Como acontecimento biográfico, Babilônia fez convergir textos nos quais se articulam formas de consagração e declínio da autoria de telenovelas, que para além do indivíduo, revelam a dinâmica de um determinado campo, suas práticas e movimentos de reprodução e autonomia. Nessa convergência (ou nesse encontro-confronto discursivo), textos da crítica especializada, da cobertura dos produtos da cultura de massa, dos autores roteiristas e do próprio Gilberto Braga se articularam a um panorama conceitual sobre a relação autor-obra com o objetivo de intensificar o debate sobre como a obra-produto impacta uma trajetória profissional.

De acordo com SACRAMENTO (IBIDEM), a biografia comunicacional se concentra nas mobilidades das práticas sociais e discursivas nas quais o sujeito biografado se envolve em diferentes momentos: seus posicionamentos e suas imagens públicas na tessitura social constituem processos comunicacionais que precisam ser historicizados. A biografia comunicacional “tem como principal objetivo desfazer a dicotomia entre o individual e o social na análise das trajetórias de vida, buscando os modos de produção, circulação e reconhecimento das figurações públicas de um determinado agente” (p. 565). Demonstra como um conjunto de processos comunicacionais constituiu a imagem e a memória de uma carreira.

“Você só pode matar quem está fazendo sucesso” (PROJETO MEMÓRIA GLOBO: 2008, p.404), disse Gilberto Braga quando questionado sobre o assassinato de Lineu Vasconcelos (Hugo Carvana) na novela Celebridade (Gilberto Braga, TV Globo, 2003, 21h00, 221 capítulos). A frase nos instiga a pensar sobre o caráter predatório do audiovisual globalizado no que se refere à autonomia dos escritores-roteiristas brasileiros.

Depois das interferências estruturais em Babilônia e da consequente alienação da assinatura de Gilberto Braga sobre a obra-produto, três movimentos aparentemente independentes colocam em risco de extinção a autoria na teledramaturgia brasileira: a ascensão de forças ultraconservadoras com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016; a consequente paralisação da Agência Nacional de Cinema (Ancine); e o debate político que continua em curso sobre a extinção da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), objetivo de um lobby poderoso das multinacionais de telecomunicações que operam no país.

Em paralelo, as grandes plataformas de streaming começavam a produzir no Brasil. Mas o que os roteiristas têm visto desde então é justamente a desvalorização da voz autoral. Muitas dessas plataformas sequer aceitam interagir com o criador, apenas com produtoras, quase sempre as mesmas. Os cachês são baixos, e todas as decisões cabem aos executivos. Não há autonomia da parte do autor, mesmo sendo o criador de uma trama original.

Roteiristas brasileiros perdem contratos por demandar a garantia de, por exemplo, fazer a redação final de uma criação original. Durante um webinar destinado a roteiristas, uma executiva de uma grande produtora deu a seguinte resposta para um escritor que manifestou o desejo de ser autor de seriados: “Seriado não tem autor”.

O trágico é que o audiovisual brasileiro sempre foi marcado pelo respeito à autoria. No cinema, autoria dos diretores; na TV, autoria dos escritores. Crítica especializada e grande público reconheciam as marcas autorais de Dias Gomes, Aguinaldo Silva, Manoel Carlos, Carlos Lombardi, Cassiano Gabus Mendes, entre outros.

Será um projeto asfixiar a autoria nos países periféricos para manter o audiovisual local incapaz de formar uma identidade nacional?

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Textos publicados em periódicos

Maurício Stycer, portal UOL, 16 de março de 2015.

Nilson Xavier, portal UOL, 16 de março de 2015.

Roberto de Oliveira, do jornal Folha de S. Paulo, 18 de março de 2015.

Marcelo Marthe e Mario Mendes, revista VEJA, 23 de março de 2015.

Aguinaldo Silva, revista TV Brasil, 26 de março de 2015.

Jornal Correio Braziliense, 15 de março de 2015.

Paulo Ricardo Moreira, jornal O Dia, 24 de março de 2015.

Daniel Camargos, jornal Estado de Minas, 7 de abril de 2015.

Jornal O Globo, 17 de maio de 2015.

Denis Carvalho, jornal Folha de S. Paulo, 31 de maio de 2015.

Maurício Stycer, portal UOL, 16 de junho de 2015.

Nolson Xavier, portal UOL, 25 de setembro de 2015.