AVANCA | CINEMA

Experiências migrantes no documentário Latino Americano em 1a. pessoa: algumas abordagens metodológicas 1

Sandra Straccialano Coelho 2

UFBA, Brasil

Abstract

The paper aims to discuss some of the current research results regarding contemporary first-person documentaries who focuses migration experiences. First, we will defend, more specifically, three main axes of analysis regarding this production: (1) the analysis of the imagery and sound archives and the relevance of the concept of archive effect (BARON, 2014); (2) the analysis of the mise en scène of the first-person narration (FRANCE, 1990); (3) the analysis of the poetics of the interviews (GRINDON, 2007) as one of the central strategies in the narratives of the biographical space (ARFUCH, 2010). Next, we will develop this discussion considering excerpts from some of the films of the most recent focus of our research: the latin american production. More specifically, we pretend to take a close look at the main strategies in the recent documentaires Allende, mi abuelo Allende (TAMBUTTI, 2015), Amazona (WEINSKOPF; VAN HEMELRYCK, 2016) and No intenso agora (SALLES, 2017).

Keywords: Documentary, First Person Cinema, Latin American Cinema, Migration, Film Analysis

Introdução

O texto que aqui se apresenta tem como objetivo explorar, mais especificamente, alguns eixos analíticos que consideramos pertinentes para análise de um conjunto de filmes documentários em 1ª. pessoa que, em alguma medida, encenam experiências de migração e de deslocamento.

O interesse por esse corpus de pesquisa surgiu a partir da observação mais geral de narrativas documentais que integram o espaço biográfico contemporâneo (ARFUCH, 2010)3 e que nos permitiram localizar, em seu interior, a recorrência de cineastas que têm colocado em cena diferentes experiências pessoais, seja enquanto migrantes (voluntários, diaspóricos ou exilados), seja enquanto descendentes destes.

No interior desse corpus fílmico, que temos tentado de algum modo cartografar, temos investido, mais recentemente, no sentido de localizar possíveis especificidades da produção latino-americana que nele se enquadra, por considerarmos que a produção acadêmica a esse respeito ainda é incipiente (ao contrário do que ocorre com relação a outros contextos de produção cinematográfica). (COELHO, 2016)

Vale ressaltar que, ao longo da pesquisa, diferentes questões teóricas sobre a delimitação desse objeto tem se colocado. Nesse sentido, por exemplo, é que de um movimento inicial, que considerava tais filmes de acordo com uma literatura dedicada mais especificamente ao estudo da autobiografia, hoje nos realinhamos no sentido de considerá-los em um contexto mais amplo, que é o do estudo das narrativas em 1ª. pessoa (LEBOW, 2008). Esse redirecionamento teórico se justifica na medida em que nos parece responder melhor à diversidade do corpus investigado, em que nem sempre as narrativas fílmicas realizadas se dedicam à consideração explícita da dimensão biográfica dos cineastas que narram suas experiências na primeira pessoa.

Contudo, ainda que esta produção seja múltipla e diversa, é tarefa do analista propor estratégias que melhor balizem sua análise. Dito em outras palavras, acreditamos que ainda que não se possa perder de vista essa diversidade, o pesquisador deve responder ao desafio de construir, do ponto de vista teórico e metodológico, os instrumentos que melhor respondam à delimitação de seu corpus.

No que diz respeito mais especificamente às estratégias de análise fílmica, que é o que nos interessa na etapa atual da pesquisa, partimos do pressuposto geral de que não é possível identificar um método único e universal a ser adotado. Pelo contrário, acreditamos ser fundamental que as estratégias a serem adotadas tenham como ponto de partida os próprios filmes. Nesse sentido, nos alinhamos com Aumont e Marie (2004) quando afirmam que,

[...] não existe qualquer método aplicável igualmente a todos os filmes, sejam quais forem. Todos os métodos de alcance potencialmente geral que iremos evocar devem sempre especificar-se, e às vezes ajustar-se, em função do objeto preciso de que tratam. É essa parte de ajuste mais ou menos empírico que muitas vezes distingue a verdadeira análise da mera aplicação de um modelo sobre um objeto. (AUMONT e MARIE, 2004: 31)

De acordo com tal pressuposto, julgamos ser necessário nos voltarmos para os próprios filmes, com o intuito de identificar algumas continuidades no interior dessa produção recente que poderiam constituir as balizas para a análise pretendida.

A partir da observação atenta de boa parte dos documentários selecionados em nosso recorte, acreditamos ser interessante propor três eixos centrais para orientar a análise, os quais serão melhor explicitados e desenvolvidos na próxima seção desse artigo, e que consistem em: (1) análise do efeito arquivo; (2) análise da mise en scène do comentário; (3) análise da poética da entrevista. Vale dizer que a delimitação de cada um desses eixos não implica, no entanto, na dissociação entre esses elementos no momento da análise, tendo em vista que, na maioria das vezes, eles atuam de maneira simultânea e articulada na materialidade fílmica.

No sentido de colocar à prova os três eixos propostos, será considerada, na sequência do texto, como sua presença se manifesta em três filmes latino americanos recentes, no sentido de vislumbrar, ainda que brevemente, as potencialidades audiovisuais de tais elementos em nosso corpus de pesquisa. A escolha dos filmes, diferente do ocorrido em etapas anteriores da investigação (COELHO, 2016; 2017), não teve como foco a centralidade da temática migratória na cena, mas sim a expressividade e interesse de cada um dos elementos que nos propomos a analisar (arquivos, comentários e entrevistas).

Sendo assim, na consideração de No intenso agora (2017), filme de João Moreira Salles, composto quase que exclusivamente por uma sucessão de arquivos de naturezas diversas, cuja apreensão é guiada incessantemente pela narração do cineasta, o foco da análise será justamente perceber de que modos a relação peculiar entre sons e imagens no filme afeta o espectador. Mais do que isso, interessa perceber de que modos essa articulação permite construir uma experiência que transita, de forma complexa, entre a dimensão familiar e contextos políticos e históricos mais amplos em que a história do diretor de algum modo se viu inserida, no período em que a família viveu na França.

Já na análise de Allende, mi abuelo Allende (Tambutti, 2015), realizado pela neta do líder político e ex-presidente chileno, Salvador Allende, estará em relevo, sobretudo, a dimensão pública de uma memória silenciada e a busca da diretora, – especialmente materializada nas diferentes entrevistas e interações com seus familiares –, por uma reconciliação com um passado que passa pela busca dos arquivos que poderiam recompor o álbum da família.

Por fim, no último exemplo analisado, o documentário Amazona (2016), realizado pela cineasta colombiana Clare Weinskopf com a colaboração de seu marido, Nicolas van Hemelryck, a dimensão da encenação e, especialmente, a da entrevista, estarão no centro da análise, sem perder de vista as inserções que a cineasta realiza, ao longo do filme, de arquivos do passado (nesse caso, exclusivamente, familiares), assim como a forma como ela compartilha, especialmente com sua mãe, o espaço da narração.

Os eixos da análise: arquivos, comentários e entrevistas

É importante salientar, antes de desenvolver cada um dos eixos da análise aqui propostos, o fato de que estes não dizem respeito a elementos exclusivos da produção documental que aqui nos interessa. Arquivos, comentários e entrevistas fazem parte do arcabouço habitual de estratégias que os documentaristas têm lançado mão desde os primóridos do gênero. Contudo, acreditamos que sua presença recorrente e na maioria das vezes simultânea, na filmografia por nós investigada, tem demonstrado algumas particularidades que merecem ser consideradas de forma mais detida.

No caso específico do uso de materiais de arquivo, estratégia bastante recorrente no gênero documental, muito provavelmente por seu valor de documento do passado e aparente “prova” de vericidade, se observa que, no espectro das produções do espaço biográfico, de modo mais geral (e sobretudo naquele das narrativas em 1ª. pessoa), este se materializa, predominantemente, pelo uso de arquivos privados que incluem fotografias e filmes de família. Tais elementos, que em seu contexto de origem acionam um modo de leitura particular (ODIN, 2000), são apropriados, nos documentários em 1ª. pessoa, por uma nova narrativa que se abre para a fruição de espectadores posicionados além do espaço doméstico.

Para avançarmos na análise dessas imbricações e de seus possíveis efeitos na recepção de tais filmes, nos alinharemos, sobretudo, com as considerações da pesquisadora Jaimie Baron (2012) sobre o uso dos materiais de arquivo na produção audiovisual, e que propõe uma perspectiva fenomenológica interessada por aquilo que a autora nomeia como “efeito arquivo”.

Para Baron, independente do fato de os arquivos em um filme serem amadores ou oficiais, interessa considerar a distinção fundamental que se estabelece entre estes com relação aos registros audiovisuais que são produzidos pelos próprios cineastas, atentando, especialmente, para os efeitos dessa distinção.

Nesse sentido, a autora irá apontar dois eixos principais que sustentam o efeito arquivo nos filmes: a percepção de uma disparidade temporal e a percepção de uma disparidade intencional. Em outras palavras, mesmo que não seja possível precisar a autoria de determinados arquivos em um filme, localizando-os com precisão no tempo e no espaço, é preciso que os materiais reutilizados sejam percebidos pelos espectadores não apenas como tendo sido produzidos em um momento distinto no tempo daquele em que o filme foi realizado, como de que foram produzidos, originalmente, com um objetivo diferente daquele para o qual foram apropriados.

No que diz respeito mais especificamente à produção em primeira pessoa, a proposta da autora nos leva a perguntar a respeito dos efeitos emocionais dessas disparidades temporais e intencionais que cohabitam as imagens e sons de arquivo, pois como nos lembra Baron:

Quando confrontados por essas imagens da inscrição do tempo nos corpos de homens e lugares, há não apenas um efeito epistemológico, mas também emocional, baseado na revelação da disparidade temporal. Em outras palavras, não apenas investimos os documentos de arquivo com a autoridade de um passado “real”, mas igualmente com o sentimento de perda. (BARON 2012, 109; trad. nossa)

Vale dizer que, no caso dos filmes aos quais nos dedicamos, que tematizam experiências de deslocamento e migração, esse sentimento de perda de que fala Baron quase sempre se relaciona a questões relativas ao pertencimento cutural, nacional ou étnico dos cineastas, o que sinaliza um caminho de análise relevante a seguir.

Do ponto de vista dos objetivos mais estreitos que aqui propomos, voltados para uma dimensão preliminar que deseja servir de guia para a análise fílmica, interessa sublinhar que a consideração dos arquivos visuais e sonoros presentes nos filmes que temos analisados deve ter como pressuposto central sua afirmação enquanto elementos potencialmente múltiplos. Ao carregarem as marcas de sua origem, ao mesmo tempo em que se veem ressignificados em uma nova narrativa, interessa perceber de que formas tais arquivos materializam, na cena, a convivência entre esses tempos e motivações distintas e de que modo essa convivência afeta a experiência do espectador.

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O segundo eixo de análise aqui proposto é o da mise en scéne dos comentários. No caso mais específico do nosso corpus de análise poderíamos ter optado, talvez, pelo termo narração ou por lançar mão das diferentes categorias da voz, tendo em vista que um dos recursos mais recorrentes na produção documental em 1ª. pessoa é a presença da voz do cineasta que nos conduz ao longo das imagens, revelando dimensões de sua intimidade.

Contudo, tendo em vista as diferentes possibilidades que temos observado no uso desse recurso, em que muitas vezes a voz do cineasta abre espaço para conviver com as de outros personagens dos filmes, nos parece ser de maior interesse adotar a definição mais ampla do comentário (FRANCE, 1990: 2), que abriga desde a utilização de títulos, característica das décadas iniciais do cinema (mas que não se restringe a elas), à multiplicidade complexa de vozes da produção documentária mais recente.

Segundo Claudine de France, o comentário seria todo discurso a respeito da própria imagem ou relativo à ação mostrada que emanaria de um falante qualquer no filme, seja ele o próprio cineasta, os sujeitos filmados ou mesmo um indivíduo exterior ao registro. Contudo, a despeito da natureza verbal do comentário, a autora pondera que, para sua análise:

[...] me parece concebível abordá-lo por um outro viés que, paradoxalmente, é o da metodologia audiovisual e da cenografia. É preciso, uma vez definidas suas funções próprias, considerá-lo como uma maneira verbal de encenar o real ou a imagem, e de aplicar, para seu estudo, dentre todas as categorias de análise possíveis, aquelas que igualmente podemos aplicar ao estudo desta (FRANCE 1990, 1; tradução nossa)

A opção da autora por abordar o comentário enquanto estratégia de mise en scène se justifica tendo em vista sua hipótese central de que o comentário e a imagem são indissociáveis no cinema documentário. Em outras palavras, tanto quanto a imagem (e, sobretudo, atuando em conjunto com ela), o comentário é entendido por France como parte de uma ação que visa colocar em cena aquilo que o documentarista quer nos apresentar. Nesse sentido, o estudo dessa ação implicaria a necessidade de considerar a relação que se constrói, por meio dela, com o espectador.

Para efeitos da análise que aqui propomos, interessará examinar, sobretudo, essa relação de mão-dupla entre imagem e comentário na materialização da cena fílmica e seus efeitos. Mais do que isso, frente às particularidades dos documentários de nosso corpus, se evidencia para nós a necessidade de investigar os modos pelos quais os comentários se articulam com os arquivos que frequentemente são convocados para a cena, na tentativa de compreender o passado.

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Por último, mas não menos relevante, propomos ainda a necessidade de uma análise da poética da entrevista, aqui entendida não apenas como um elemento característico da produção que desejamos analisar, mas como locus de análise estratégico da configuração de um espaço biográfico contemporâneo no qual se encontra inserido nosso objeto de pesquisa. Nesse sentido, nos alinhamos com a perspectiva defendida por Leonor Arfuch, para quem:

Se o interesse em dar conta, em termos discursivos e narrativos, das formas de subjetivação que contribuíam para a afirmação de uma nova privacidade me conduziu ao espaço biográfico, minha indagação não se esgotaria em sua configuração geral. Antes, na interatividade dessas formas, nos diferentes suportes e estilos que me eram dados confrontar, desenhavam-se algumas linhas recorrentes que valiam a pena analisar em particular. Assim, foi ganhando importância, entre os diversos registros da expressão vivencial, a entrevista, um gênero sem dúvida predominante na comunicação midiática, que condensa admiravelmente os “tons” da época: a compulsão de realidade, a autenticidade, o “ao vivo”, a presença. (ARFUCH 2010, 23)

Esse formato nos parece fundamental em nossa pesquisa na medida em que pode relevar as dinâmicas intersubjetivas colocadas em cena nos documentários em 1ª pessoa (COELHO 2015; 2016). Mais do que isso, no caso específico dos cineastas que têm tematizado suas experiências familiares de migração, observamos que as entrevistas realizadas ao longo de seus filmes adquirem nuances específicas, tendo em vista que os papéis de entrevistador e entrevistado geralmente se vêm atravessados pelas relações familiares no contexto de uma busca por compreender e recuperar um passado que muitas vezes é silenciado.

Partindo desses pressupostos, e no sentido de operacionalizar a análise fílmica de tais dimensões, acreditamos, ainda, ser produtivo adotar a proposta de Grindon (2007) a respeito da necessidade de se considerar uma poética específica da entrevista. O autor nos apresenta, mais detalhadamente, cinco categorias de análise da materialidade audiovisual a partir das quais acredita ser possível investigar a relação tríplice que se estabelece, nos filmes, entre entrevistador, entrevistados e espectadores.

A partir do diálogo com alguns autores (especialmente com Bill Nichols), e por considerar insuficiente a reflexão exclusivamente dedicada a pensar as dimensões da entrevista no documentário, Grindon nos propõe o estabelecimento de uma poética baseada na própria tradição histórica do gênero e, portanto, organizada segundo suas principais linhas de força não excludentes: por um lado, as que dialogam de modo mais próximo com o telejornalismo, e às quais o autor alinha a tradição de documentários políticos estadunidenses; por outro lado, aquelas tributárias dos pressupostos do cinema verdade e que apostam na potência do encontro dos sujeitos frente à câmera, abrigando suas ambiguidades.

No desenvolvimento de sua proposta poética, o autor propõe, mais especificamente, as seguintes categorias analíticas que tomaremos como referência para as análises que se seguem: (1) a análise de como se manifesta (ou não) a presença do cineasta na qualidade de entrevistador; (2) a análise da perspectiva adotada frente ao entrevistado e que inclui enquadramento, distância, movimentação da câmera, assim como o cenário que compõe a cena da entrevista; (3) análise do contexto pictórico (ou imagético) ao qual a entrevista se vê associada e que contempla sua articulação possível a diferentes imagens (nelas incluídas os arquivos) (4) análise da performance do entrevistado (fala, postura, movimentação e gestos), e a (5) análise da polivalência da entrevista, que diz respeito a uma dimensão mais geral e interpretativa, que tem como objetivo perceber qual a orientação retórica da entrevista no interior do discurso fílmico. A respeito dessa última categoria, distinta das demais, Grindon afirma:

Polyvalence is distinct from the other four because rather than being an aspect of the interview’s design it emerges as a result of the whole. Polyvalence gauges the interview’s overall formal effect. Here the choice arises between affrming or undermining the authority of the interviewee as opposed to a more exploratory approach in which the subject develops and evolves over the course of an interview, expressing hesitation, doubt, ambivalence, or even contradiction. (GRINDON 2007, 8)

Estabelecidos os eixos gerais aqui propostos, nos dedicaremos, em seguida, à consideração desses elementos a partir da análise de breves trechos dos três filmes selecionados.

Da pedagogia das imagens de arquivo em No intenso agora

Na página de divulgação oficial do documentário No intenso agora, abrigada no site do Instituto Moreira Salles, o filme é inicialmente descrito da seguinte forma:

Feito a partir da descoberta de filmes caseiros rodados na China em 1966, durante a fase inicial da Revolução Cultural, No intenso agora investiga a natureza de registros audiovisuais gravados em momentos de grande intensidade. Às cenas da China somam-se imagens dos eventos de 1968 na França, na Tchecoslováquia e, em menor quantidade, no Brasil. As imagens, todas elas de arquivo, revelam o estado de espírito das pessoas filmadas e também a relação entre registro e circunstância política.4

O breve trecho citado nos chama a atenção, em primeiro lugar, por revelar, com precisão, a centralidade que os arquivos ocupam nesse filme “que investiga a natureza de registros audiovisuais gravados em momento de grande intensidade” e que é composto por imagens, “todas elas de arquivo”. Por outro lado, nos parece que, a essa descrição, escapa uma dimensão fundamental do filme de João Moreira Salles, que é a da relação contínua e indissociável que esses diferentes arquivos estabelecem com o comentário do diretor.

O trânsito constante entre as dimensões pública e privada, que permite ao documentário revelar “o espírito das pessoas filmadas e também a relação entre registro e circunstâcia política”, de que fala o trecho citado, nos parece resultar não apenas de um hábil encadeamento, pela montagem, entre diversos arquivos públicos e privados, mas, sobretudo, pela forma como a voz do cineasta media a relação que o espectador estabelece com essas imagens, à medida que as analisa e as interpreta quase que de forma obsessiva ao longo de todo o filme. Nesse sentido, acreditamos que escapa a essa descrição oficial do filme uma dimensão crucial, que é justamente a de quanto esse filme nos revela sobre essa voz em primeira pessoa do comentário.

No sentido de desenvolver uma análise preliminar dessa dimensão constitutiva de No intenso agora, em que efeito arquivo e mise en scène do comentário se articulam a todo instante, recorreremos à análise mais detida do prólogo do filme, cuja duração é de cerca de 6 minutos, e aos quais se segue o título do documentário na tela. Esse trecho bastante breve, composto por três grupos distintos de imagens que iremos descrever a seguir, de certo modo condensa as estratégias que aqui desejamos colocar em relevo e traduz o tom dessa articulação característica no filme que desejamos investigar.

As imagens que surgem nesse momento não por acaso são todas elas silenciosas e, à primeira vista, revelam uma natureza íntima, o que nos leva a supor se tratarem de arquivos privados e domésticos: na primeira delas – e que não terá relação direta com os três grupos a que nos referimos –, vemos uma imagem em cores, na qual lampeja uma moça de cabelos lisos e castanhos que surge em primeiro plano. Ela está à beira de uma estrada, ao lado de um automóvel estacionado, e passa as mãos pelo cabelo. A disparidade temporal desse arquivo se evidencia pelo modelo do carro, assim como pela qualidade da imagem que desaparece rapidamente em um fade in. A intenção desse registro nos é desconhecida e não temos pistas a seu respeito, como se bastasse seu duplo convite ao passado e à intimidade, que é adornado pela personagem feminina.

Um fade out revela, agora, a imagem em preto e branco de uma caneca sendo preenchida por cerveja espumante, a que se segue o plano de recém casados que se beijam. Essa última imagem contextualiza os planos seguintes e dá o tom desse primeiro conjunto de imagens domésticas: estamos em meio ao passado, em algum momento do século XX, como se fôssemos intrusos em uma festa de casamento; o clima dessas imagens é de celebração.

Poucos segundos se passam enquanto as observamos, quando uma voz masculina se sobrepõe a elas e finalmente nos localiza com precisão no tempo e no espaço: “Essas são imagens de um filme amador na Tchecoslováquia de 1968”. Essa informação, dita sem emoção, convoca para a cena aquele que muitos sabem se tratar de um momento chave da história (e que mais tarde saberemos ser um dos temas centrais do filme), contudo, escolhe fazê-lo a partir de imagens domésticas em que se vê pessoas comuns.

Uma breve pausa após essa primeira fala nos permite olhar livremente para alguns personagens da festa que surgem em novos planos. Alguns segundos depois, o comentário, até então meramente informativo, muda de tonalidade: “Não conheço essas pessoas... o que sei sobre elas é o que as imagens mostram... sei que elas estão felizes... e imagino que quem filma também está”.

Chama a atenção, nesse momento, o uso explícito da primeira pessoa e o redirecionamento da atenção que essa fala opera, já que nos chama a considerar a presença de um narrador que coloca em cena sua própria relação com essas imagens. O filme, que até então nos falava das imagens de arquivo, agora também nos fala sobre aquele que as olha e comenta.

A primeira pessoa que narra é masculina e sua entonação é um tanto quanto monocórdia (e assim será até o final do filme). Observamos, como resultado da mise en scène desse comentário, sua presença que observa as imagens. Percebemos que, assim como nós, ela identifica a alegria das pessoas nas cenas dessa festa distante. Ao mesmo tempo, é possível supor que ela nos ultrapassa no momento em que nos convoca a expandir nossa percepção frente a essas imagens, e dirige sua atenção ao cineasta amador que filmou essa festa de casamento e que julga igualmente feliz.

Assim como o ano de 1968, a felicidade parece se colocar como um tema caro ao final desse trecho inicial que faz parte do prológo do filme. Não por acaso, em seu último comentário relativo às imagens da festa, a mesma voz sublinha: e“É verão de 1968, na Tchecoslováquia, as pessoas estão felizes”.

Um corte seco revela agora a imagem de uma mulher com seus três filhos e uma babá que atravessam juntas uma rua. Temos a imediata sensação de que não estamos mais no espaço da festa, o que logo é confirmado por um novo comentário:

Brasil, por essa mesma época, imagens de uma família que também não conheço... a câmera pensa que apenas está registrando os primeiros passos de uma criança. Sem querer, mostra também as relações de classe no país. Quando a menina avança, a babá recua... ela não faz parte do quadro familiar. [...] Nem sempre a gente sabe o que tá filmando.

A distância geográfica entre os dois grupos de registros (o da Tchecoslováquia e o do Brasil), assim como sua natureza doméstica, pecebidos simultaneamente aos comentários que se ouve, nos dão indícios de que sua relação tem como único centro de gravidade a presença desse “eu” que os colocou lado a lado e os comenta. Mais do que isso, se evidencia, cada vez mais, a capacidade analítica desse narrador frente a essas imagens aparentemente estranhas umas às outras.

Percebemos, ainda, que a voz desse realizador-espectador não apenas se interessa por aqueles que registraram as imagens do passado, como faz do exercício de leitura dessas imagens uma oportunidade para questionar a própria prática cinematográfica (Nem sempre a gente sabe o que está filmando). Curiosamente, no entanto, ao mesmo tempo em que reconhece a impossibilidade de controle da interpretação das imagens por aqueles que as registram, parece se esforçar por controlar a apreensão destas pelos espectadores de seu próprio filme, na medida em que sobrepõe a elas seus comentários analíticos. É uma voz não só íntima e analítica como pedagógica, pois a todo tempo nos ensina sobre “como” e para “o quê” olhar nas imagens desse filme.

Por fim, perceberemos que o terceiro e último trecho desse prólogo que é comentado pelo narrador se diferencia dos dois anteriores. Suas imagens são coloridas e acompanhadas por uma música grave e melancólica executada ao piano, ao qual a voz do cineasta irá se sobrepor. Novamente as imagens se deslocam no espaço, unidas por um tempo e um olhar comuns. Os planos revelam agora registros amadores de uma viagem à China maoísta. O narrador, nesse momento, lê palavras que foram registradas em um diário de viagem e, com isso, insere na cena a presença de um outro personagem que igualmente comenta, na primeira pessoa, essas imagens. Em um primeiro momento, o comentário do filme nos revela que,

A pessoa que talvez tenha feito essas imagens disse assim, nas primeiras linhas do relato que escreveu: chegamos de noite, para aquela que seria a viagem mais penosa e fascinante de minha vida. (grifo nosso)

Pouco mais tarde, no entanto, o comentarista irá modificar a forma impessoal com que nos apresentou o autor ou autora desse diário. Essa mudança, que pode ser entendida como um artifício retórico, parece adiar, propositalmente, uma informação que será central para a narrativa que é construída pela montagem em No intenso agora. Tal estratégia nos parece alinhada com nossa hipótese sobre a natureza controladora dessa voz:

... ao contrário das cenas da Checoslováquia e do Brasil, sei quem pode ter feito essas imagens e reconheço essas palavras. Elas foram escritas por minha mãe, e narram a viagem que fez à China em outubro de 1966. Na época tinha 37 anos. Como ela aparece pouco, imagino que ela possa ter filmado boa parte dessas cenas... as imagens são amadoras, não foram feitas para a história, são apenas as sobras de um momento na vida... sem importância, eu as descobri por acaso, 40 anos depois de terem sido feitas.

A partir desse momento se revela um novo centro de interesse do filme, que se conecta diretamente à expressão subjetiva em 1ª. pessoa que caracteriza a voz do comentário. Podemos, nesses poucos minutos de filme, deduzir que No intenso agora é um filme sobre 1968, mas que também é um filme sobre a felicidade, assim como é um filme sobre a mãe do cineasta (atravessada pelo tempo dessas imagens e pela felicidade que por vezes as habita). Além disso, como os últimos comentários não nos deixam esquecer, este também é um filme sobre o próprio cinema, à medida em que o comentarista analisa as imagens de arquivo cuidadosamente selecionadas e articuladas, no sentido de trazer constantemente para a cena significados talvez distantes da intencionalidade que residia nos registros originais:

Minha mãe tentou ver a Cidade Proibida, mas deu com os portões fechados. “A revolução cultural dos despossuídos será eterna”, avistou na fachada, sem saber. Tinha ido ver uma coisa, e acabou por ver outra. Não o passado, mas a história em ação.

Da busca pela dimensão íntima de um passado coletivo em Allende, mi abuelo Allende

O filme de Márcia Tambuttti Allende também é composto, parcialmente, por arquivos que são habilmente articulados pela montagem, tanto entre si, como com a voz do comentário da própria diretora. Diferente do filme de Salles, no entanto, os comentários em 1ª. pessoa de Allende, mi abuelo Allende se restrigem à expressão da experiência da cineasta em um processo duplo que compreende: a busca pessoal pela reconciliação com a dimensão doméstica de um passado familiar que se cristalizou enquanto trauma coletivo (o suicídio de Salvador Allende no momento do golpe que instarou a ditadura militar no Chile); a materialização dessa busca enquanto processo de realização audiovisual.

Contudo, é importante notar que há também vários momentos desse documentário em que os arquivos se materializam na cena à medida em que são vistos pela diretora junto a diferentes familiares com quem ela conversa. Além disso, ainda que a voz em 1ª. pessoa da diretora se constitua como eixo central da dimensão sonora do filme, observamos que ela irá conviver com a voz de outros familiares que se tornam, por vezes, igualmente comentaristas das imagens.

No sentido de evidenciar esse compartilhamento dos comentários, assim como o modo como se dá sua articulação com os arquivos, nossa análise irá mais uma vez se centrar na consideração do prólogo do filme. Aqui, nosso objetivo será, ainda, inserir algumas considerações preliminares sobre o terceiro eixo de análise que propomos nesse trabalho. Nesse sentido, também será considerada a dimensão da entrevista que, algumas vezes, é utilizada pela diretora como comentário que se sobrepõe às imagens5.

Vale notar que, ao longo de Allende, mi abuelo Allende, acompanhamos diferentes diálogos entre a diretora e sua avó, mãe, tia e primos, os quais quase sempre ocorrem em situações e cenários domésticos em que o carinho e a proximidade entre os personagens se evidencia (os diálogos, recostada ao lado da vó na cama, assim como a conversa na rede com a mãe são exemplos claros nesse sentido).

Ao mesmo tempo, o teor dessas interações é quase sempre o da busca por informações do passado e pelos questionamentos da diretora que nem sempre são respondidos pelos familiares. Existe uma espécie de resistência dócil da família com relação aos objetivos desta. Ao mesmo tempo, especialmente a partir da segunda metade do filme, acompanharemos de que modo essa resistência irá sendo lentamente desarmada pela determinação igualmente dócil da realizadora.

Antes mesmo que qualquer imagem nos seja apresentada, e enquanto acompanhamos alguns créditos iniciais, ouvimos um breve diálogo entre a avó e a diretora6 que materializa esse cuidado mútuo que cerca as entrevistas desse filme. Percebemos que a avó está sendo levada para uma sala, e, ao chegar, ela afirma ter se cansado muito, o que nos faz supor sua idade avançada. A diretora lhe oferece um suco, assim como pergunta se quer que busque um leque. Por fim, Marcia certifica-se de seu estado, perguntando se se sente bem. A entrevista, propriamente dita, assim como as imagens do filme, podem então começar.

A tela se vê agora preenchida por várias fotos preto e brancas em enquadramento 3x4 de Salvador Allende, dispostas lado a lado, que a câmera percorre em um movimento horizontal lento, da esquerda para a direita, como se as estivesse lendo. Vemos a figura séria do ex-presidente chileno, que surge vestido com um terno escuro e portando óculos de aros grossos. A mesma figura é replicada várias vezes nessas fotografias que foram registradas em sequência: a diferença entre uma e outra é mínima, e seu arranjo dá a impressão de que o personagem lentamente dirige seu olhar não apenas para a máquina fotográfica que o registrou naquele instante, como para a câmera que as percorre e, consequentemente, para os espectadores do filme.

Essas imagens, registradas sobre um fundo neutro, parecem comunicar exclusivamente a figura oficial de um homem público. Entretanto, na medida em que o plano sonoro começa a ser preenchido pelas perguntas que a diretora faz à avó, a dimensão íntima do personagem é convocada para a cena, na tentativa de descortinar algo mais. À primeira pergunta da neta – Avó, você imaginou como seria sua vida quando se casou com Chicho7 (apelido pelo qual Allende era conhecido na esfera íntima)? – a avó, contudo, replica: Quando vai acabar esta entrevista tão longa?

A entrevista que, no contexto do filme, mal acabara de começar, para a avó já era muito extensa. Ao mesmo tempo, enquanto ouvimos esse diálogo, Allende continua a nos mirar. Não será nesse momento que saberemos mais sobre ele, como confirma a resposta seguinte de Tencha, quando a neta lhe pergunta sobre o que a mãe lhe dizia de Chicho: Não falávamos muito disso. Acho que era um tabu.

Nesse breve prólogo, de pouco mais de 3 minutos, o trecho de uma segunda entrevista agora é sobreposto à sequência de fotografias iniciais do líder chileno. Agora, Marcia pede à tia que lhe fale sobre as fotos. Assim como ocorrera com a avó, o rumo da conversa muda e, com um suspiro longo, a tia se diz emocionada e angustiada com as lembranças evocadas pelas perguntas que a sobrinha lhe faz. Mais do que isso, pergunta ainda a esta sobre a dificuldade de alcançar seus objetivos, ao que a diretora responde que o “O mais difícil são vocês, que quando começo a perguntar parecem um bicho”. Apesar dessa queixa evidente, tia e sobrinha terminam o diálogo em meio a risos, de acordo com o tom afetivo que perpassa as diferentes relações familiares nesse filme.

Somente no final da sequência de fotos, que se encerra com a arte gráfica de cartazes estrangeiros em que se vê reproduzida a imagem de Allende, a diretora assume a 1ª. pessoa do comentário, dirigindo-se agora mais diretamente aos espectadores e se identificando, no sentido de esclarecer o tema do filme, assim como seus objetivos:

Conheci meu avô Allende através de cartazes. O rosto dele estava nas casas daqueles que, como nós, foram exilados. O México nos acolheu generosamente por 17 anos. É a minha segunda pátria. Desde que me lembro, todo 11 de setembro se fazem homenagens a meu avô e ao projeto de sociedade mais justa que liderava, destruído por um violento golpe de Estado.

Finalmente, um corte permite a introdução de arquivos em que veremos Salvador Allende em movimento, provavelmente registrados nas muitas campanhas em que percorreu o país ao longo de sua trajetória política. Nestas imagens em movimento, observamos seu carisma e apelo popular, além de ouvirmos seu nome ser entoado repetidamente pela multidão. No entanto, a cena comporta outros significados, ao se ver acrescida do comentário de sua neta, para quem o avô, até então “...era uma imagem fixa. Nunca ouvi ninguém criticá-lo. Sequer conseguia imaginá-lo de corpo inteiro.”

Não por acaso, os créditos finais do filme serão compostos como se fossem páginas de um álbum de família. Ao lado dos nomes da equipe de realização, veremos fotos em que se vislumbra Salvador Allende em diferentes contextos domésticos. Após finalmente encontrar essas fotos, e por conta das várias entrevistas que realiza com seus parentes, pouco a pouco a diretora revela uma figura do avô que permanecia encoberta pela do heroi nacional. Nos últimos segundos desse álbum, as mesmas fotografias que iniciaram o prólogo aqui analisado, e que naquele momento ocupavam toda a tela, são agora apresentadas em um único plano, onde cada uma delas se apresenta como uma perquena fração de uma página desse álbum de família.

Das dinâmicas da alteridade e do compartilhamento em Amazona

Dos três filmes aqui escolhidos para a análise, Amazona é o que parece explorar menos os arquivos e seus efeitos. Não porque estes sejam pouco utilizados ao longo do filme, mas pelo fato de que não se constituem enquanto uma estratégia central da diretora.

Assim como em Allende, mi abuelo Allende, o documentário colombiano encena uma busca pessoal por reconciliação com o passado familiar da diretora. Porém, ao contrário deste, a personagem com quem Clare Weinskopf deseja se reconciliar ainda vive e é uma ilustre desconhecida do público.

Amazona é, em essência, um filme que tematiza a maternidade e seus desafios. Realizado durante a gravidez da diretora, desenvolve esse tema a partir da história que configura a relação desta com a mãe, Val – uma imigrante inglesa que, após uma vida burguesa junto ao primeiro marido colombiano, decide perseguir um ideal de liberdade que a leva a viver uma vida nômade. Vale dizer que o marido da diretora, que com ela produz e codirige o documentário, e que é responsável pelo registro da maioria das imagens que vemos, tem sua presença em grande parte apagada do filme (com exceção do prólogo, em que vemos um arquivo com sua imagem fixa, à qual se sobrepõe a narração da diretora).

A cena é, assim, quase uma exclusividade entre mãe e filha, nesse filme em que a entrevista se apresenta com contornos distintos daqueles observados no filme de Marcia Tambutti. Ao mesmo tempo, como grande parte dos filmes de nosso corpus, suas imagens são em grande parte perpassadas pelo comentário em off da diretora, que as preenche com outras dimensões subjetivas. No entanto, acreditamos que o que mais se destaca em Amazona é, sobretudo, o modo peculiar como a diretora consegue construir um centro de gravidade da narrativa fílmica em que a 1ª pessoa se vê, em grande medida, compartilhada com a própria mãe.

Nossa análise, assim, se verá centrada especialmente nos modos como a cineasta compartilha, na cena, o seu projeto de filme com Val, atentando para o modo como cada um dos elementos de análise que nos interessam contribuem para a construção de uma dimensão subjetiva plural a partir da qual o filme se organiza e que, ao nosso ver, tenta dar conta das múltiplas dimensões da maternidade.

Logo na primeira sequência após os créditos, a música e o comentário da diretora nos conduzem, enquanto vemos, do alto, o desenho de um rio que serpenteia pela floresta, assim como as nuvens que por vezes o encobrem. Clare olha, de perfil, pela janela do avião à sua direita, enquanto sua voz nos fala da personalidade aventureira da mãe, com a qual afirma se identificar: ... Nunca teve medo da mudança, do desconhecido, da aventura. Também há algo disso em mim. A seguir, sua voz afirma ter encontrado uma carta que a mãe escrevera para os pais aos 23 anos.

Nesse momento, o comentário passa a ser de responsabilidade da mãe que lê, em voz alta e em inglês, a carta que escrevera décadas antes. Essa mudança na voz que conduz o comentário transparece a cooperação com o projeto de realização audiovisual da filha. Na carta, Val expressa os sentimentos que tivera ao deixar Londres para viver com o marido na Colômbia.

Ao se dar conta do tamanho do passo que estava dando, a personagem afirma: E compreendi, repentinamente, o que vovó queria dizer quando falava que eu era “valente”. Simultânea a essa fala, vemos surgir uma fotografia do passado em que a vemos, ainda jovem, com o perfil orientado para a mesma direção observada na imagem da diretora que olhava pela janela do avião.

A personagem enfim se pergunta, na carta, pelo quê estava deixando sua vida confortável em Londres. Nesse momento, uma nova mudança de plano revela novamente seu perfil, agora idosa, de capacetes e óculos escuros, enquanto dirige uma lambreta em alta velocidade por uma estrada que é ladeada pelo verde da vegetação tropical colombiana.

Esses diferentes perfis, espaços e tempos, que cohabitam o trecho analisado, se alinham pela ação da montagem e dos comentários que os acompanham: o perfil da filha, no espaço do avião e no presente da viagem que a leva ao reencontro com a mãe; o perfil da mãe ainda jovem, muitos anos antes, no tempo que marca uma ruptura biográfica em sua trajetória; o perfil da mãe agora idosa, no momento da filmagem, integrada ao cenário colombiano.

A partir do eixo da maternidade, que atravessa e marca as histórias de Clare e Val, a diretora lançará mão de estratégias que evidenciam a sobreposição de ambas as personagens e muitas vezes as aproximam. Simultaneamente, contudo, as mágoas do passado e as oposições entre as visões de mãe e filha sobre a maternidade não são silenciadas pelo filme e se fazem ver, especialmente no momento das entrevistas.

Diferente do que foi observado em Allende, mi abuelo Allende, aqui a maior parte das entrevistas é encenada de acordo com canônes tradicionais do formato. Nelas, Val é quase sempre enquadrada no estilo documental que ficou conhecido como “talking heads”, enquanto é interrogada de forma direta pela filha.

A primeira dessas entrevistas ocorre aproximadamente aos onze minutos do filme, quando se ouve a voz de Clare que pergunta, do espaço fora de campo, se a mãe nunca sentira ter colocado a si própria à frente dos filhos. De frente para a câmera, a personagem responde, em uma performance direta e enfática: Creio que sim, claro! Esse é um dos problemas de ser mãe, não? Mas o mais importante na vida de uma pessoa, é sua própria vida... se algo não deixa que viva sua vida, você tem que fazer algo para conseguir... a vida de mãe e seus sacrifícios.. mas há coisas que não se pode sacrificar... me sacrifiquei por você agora você se sacrifica para mim?...isso vira um ciclo... é preciso romper com isso!

A voz da cineasta, agora sobreposta à imagem de uma revoada de pássaros responde, no espaço dos comentários, apenas para nós: Que sacrifício? Pode o amor se converter em sacrifício? Essa pergunta permanecerá em aberto e o filme aposta na ambiguidade da condição materna para alternar entre momentos de oposição e de divergência entre mãe e filha com outros em que a cooperação entre ambas se evidencia na cena. A violência e o afeto visceral entre essas duas figuras femininas surgem, assim, como dois lados inseparáveis da relação que o filme constrói para elas.

Mais próximo do final do filme (e da gravidez de Clare), veremos mãe e filha agora reunidas na mesma rede. O enquadramento registra a cena de modo a reunir as personagens enquanto conversam sobre o momento do parto, que agora se aproxima para a filha. Um corte restringe o foco para uma das extremidades da rede, onde vemos a diretora, com os pés da mãe ao lado de sua cabeça. Nesse momento, um diálogo curioso traz para a cena, de forma explícta, a dimensão autoconsciente que orienta mãe e filha nesse projeto de realização e que sinaliza a centralidade das dimensões da encenação nesse documentário:

Clare: Qual acha que é o tema do filme que estamos fazendo?
Val: entre mãe e filha...
Clare: Mas o quê?
Val: A relação que temos... ou tem algo secreto?
Clare: E por que acha que estou fazendo esse filme?
Val: Porque quer ganhar prêmios [risos]

Poucos segundos depois a mãe parece querer corrigir o rumo de sua resposta, ao afirmar que fazem o filme, enfim, “para entender a relação que temos”. A utilização da primeira pessoa do plural, nesse caso, pode ser entendida tanto como uma referência ao casal de diretores, como, de acordo com a análise aqui proposta, com a participação estreita de Val no projeto do filme.

Conclusão

Esperamos que o exercício de análise aqui realizado tenha permitido vislumbrar, ainda que brevemente, as potencialidades tanto dos elementos propostos como eixos da análise, quanto do nosso corpus de pesquisa. Acreditamos que a utilização conjunta entre materiais de arquivo visuais e sonoros, comentários e entrevistas tem caracterizado essa produção e merece o desenvolvimento de estratégias afinadas com suas particularidades. Nesse sentido, um gesto analítico que permita considerar a articulação entre esses três elementos, sem perder de vista suas especificidades, nos parece em grande medida útil, para não dizer necessário.

Tentamos evidenciar, assim, a partir dos exemplos analisados, diferentes possibilidades de materialização de cada um desses elementos. Sobre as possibilidades do comentário, foi possível perceber desde a expressão subjetiva de uma 1ª. pessoa onipresente e controladora dos sentidos das imagens de arquivo, no filme de João Moreira Salles, passando pelo embaralhamento entre as dimensões do comentário e da entrevista, que permitiram a coexistência de vozes no filme de Marcia Tambutti Allende. No exemplo talvez mais instigante, dentre os filmes aqui analisados, foi ainda possível observar a possibilidade de sua materialização subjetiva plural em certos trechos de Amazona.

Já no que diz respeito aos arquivos utilizados, estes se apresentaram tanto como a única matéria constitutiva das imagens de um filme, como surgiram na cena articulados, seja às imagens realizadas pelos cineastas, seja inseridos no interior da própria cena fílmica. Independente da escolha do cineasta, no entanto, percebemos que sua presença permite o cohabitar entre temporalidades e intenções diversas nos filmes, cujo efeito pode se ver amplificado por meio de sua articulação aos comentários, diálogos e entrevistas que coexistem no plano sonoro e que irão compor, junto com os arquivos, uma dimensão essencial e por vezes única da encenação nesses filmes.

Por fim, no que diz respeito às entrevistas, foi possível perceber a diversidade de estratégias pelas quais estas podem se ver materializadas no contexto dos documentários em 1ª. pessoa. De sua presença exlcuiva no espaço dos comentários, ao aconchego familiar do espaço doméstico, em que os limites entre entrevistas e diálogos afetuosos são tênues, como ocorre em Allende, mi abuello Allende, ao enquadramento característico da entrevista enquanto espaço de investigação ou de confronto, como em Amazona, as entrevistas irão se conformar de acordo com projeto particular de cada filme, sem com isso perder de vista sua motivação básica, que é a da busca pelas informações que o cineasta deseja.

Ao final desse exercício analítico, no entanto, talvez seja pertinente sugerir a consideração futura de um quarto eixo de análise em nossa pesquisa: a da encenação dos personagens que habitam as imagens desses filmes e que, na maioria das vezes compartilham, amigavelmente ou não, de um projeto de realização audiovisual.

Notas finais

1 Pesquisa realizada com recursos do Edital 01/2015 do Programa Nacional de Pós-Doutoramento da CAPES (PNPD) junto ao Programa de pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Póscom/UFBA).

2 Docente do programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (Póscom/UFBa) e investigadora colaboradora do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta de Lisboa (CEMRI/UAb). sandrixcoelho@gmail.com

3 Adotamos aqui a perspectiva proposta por Leonor Arfuch a partir do conceito de espaço biográfico, originalmente proposto por Philip Lejeune, por acreditar em sua maior afinidade com as particularidades de nosso corpus de análise.

4 https://ims.com.br/filme/no-intenso-agora/

5 Nesse momento, dedicado ao filme de Marcia Tambutti, nos dedicaremos exclusivamente à análise desse recurso, tendo em vista os limites desse trabalho. Outras dimensões da entrevista serão desenvolvidas quando da consideração do próximo filme.

6 Há ainda uma terceira personagem que ouvimos nesse início: a cuidadora da avó. Mas, só poderemos identificar sua presença retrospectivamente, por vê-la em algumas cenas do filme e por sabermos do estado frágil de saúde de Tencha.

7 As traduções dos diálogos dos filmes Allende, mi abuelo Allende e Amazona, do espanhol para o português, são nossas.

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Filmografia

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No intenso agora. 2017. De João Moreira Salles. Brasil: Videofilmes. DVD.