Abstract
The Carnival of the Animals is a piece for two pianos and orchestra written by Camille Saint-Saëns. It was composed in February 1886, when the composer was on vacation in a small village in Austria. The piece, far from being an innocent musical piece, appears as a social, political and artistic satire. The composer’s objective was to criticize the Parisian musical environment at the end of the 19th century.
From the analysis of “Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals by Camille Saint-Saëns”, produced, written and directed by Chuck Jones in 1976 -, we want to understand how the musical work defines the narrative contents of the animated film. In another, in this filmic proposal, the visual component that is built from two characters of animation cinema, Bugs Bunny and Daffy Duck, appears as a link with other form of arts, especially music, in order to clarify the various discursive plans that compete there. The narrative overlaps two planes, the real and the animated one. In another, it reflects, through a fictionalized narrative, a sharp critique of French society at the beginning of the 20th century. So, by its analysis, we expect to understand the contribution brought by the simultaneous use of the real and the fictional plans in order to shape the filmic object.
Keywords: Music for Film, Animated Film, Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals, Chuck Jones, Camille Saint-Saëns
Introdução
Camille Saint-Saëns (1835-1921), compositor francês nascido em finais do século XIX, escreveu esta enigmática obra, O Carnaval dos Animais, Grande Fantasia Zoológica, decorria o ano de 1886, aos cinquenta e um anos de idade. A sua intenção compreendia, para além do exercício compositivo, uma componente expressiva particular. O autor pretendia com a sua execução pública realizar uma forte e enérgica crítica social, sendo que a obra se apresenta irónica e jocosa, com um caracter prazenteiro de modo a divertir os amigos e a todos que se permitam a sua audição. Composta numa época específica do calendário judaico-cristão, a época do Carnaval, a peça só foi interpretada publicamente, e em vida do compositor, duas vezes. Depois disso, o compositor proibiu a sua interpretação pois temia que a divulgação da obra, nos conteúdos intencionais e expressivos, prejudicasse a sua reputação enquanto compositor sério. Ironicamente, a obra figura, desde a sua reaparição pública em 1922, um ano após a morte do compositor, entre as suas obras mais populares e conhecidas, tanto no seu país de origem, como internacionalmente. Ao facto não serão alheios os conteúdos técnicos e expressivos que apresenta, mas, sobretudo, a intenção marcadamente interventiva e expressiva do autor.
O contexto em que a obra foi composta reveste-se de um interesse particular. Em janeiro de 1886, Camille Saint-Saëns realizava uma digressão pela Alemanha. Dela se esperava grande aclamação por parte do público, facto que não se veio a verificar. À passagem por Berlim o compositor enfrentou uma forte contestação por parte do público alemão. A sua obra para piano e orquestra, o Concerto para Piano N.º 4 em Dó menor op. 44, composto onze anos antes, em 1875, e proposto em concerto à época, foi veemente rejeitado pelo público. O facto nada tinha a ver com a qualidade técnica, estilística e estética da composição, mas, com a circunstância de o compositor ter tomado partido numa querela social, cultural e política à época que visava impedir a representação da ópera Lohengrin (1850) de Richard Wagner (1813-1883), em Paris. Fazendo uma digressão pela Alemanha, o público cobrou a afronta do compositor ao seu ídolo, rejeitando veemente a sua obra quando esta foi proposta publicamente. Terminada a digressão, e fortemente abalado com o sucedido, o compositor realiza um período de férias numa pequena localidade próxima de Viena. É aí que compõe O Carnaval dos Animais, Grande Fantasia Zoológica, uma obra em forma de suíte na qual um conjunto de catorze pequenas peças contrastantes evocam a natureza e as características de diferentes animais (selvagens e domésticos), ilustrando a sociedade e o modo de ser e proceder dos seus indivíduos à época. A mais conhecida é sem dúvida a décima terceira, intitulada de O Cisne, a única que o compositor permitiu fosse interpretada publicamente ainda em vida1. De entre as catorze peças existem mais três que se destacam no conjunto da obra. São elas Introdução e Marcha Real do Leão, Aquário e Final.
A instrumentação proposta pelo autor, invulgar, engloba o uso e combinatória dos instrumentos: flauta, clarinete, jogo de sinos, xilofone, dois pianos, violinos, viola, violoncelo e contrabaixo. O seu conjunto é usado de modo diverso em cada uma das peças, de forma a concretizar diversas possibilidades e combinatórias timbricas, sendo que em o Final, o compositor usa a totalidade dos instrumentos2. A obra desponta como um exercício de estilo. A isto não será com certeza indiferente o facto de o compositor ser professor de composição à época. Neste sentido, e enquanto professor na École Niedermeyer, Saint-Saëns procedia à realização de diversos exercícios de estilo, bem como de improvisação, tanto livre como orientada, com os seus alunos. De entre eles, destacam-se já os futuros compositores Gabriel Fauré e André Messager, que se vão tornar igualmente professores nesta instituição3.
Nas suas aulas era, então, frequente o exercício da improvisação de modo a criar nos seus alunos uma capacidade de improvisação, discursiva e criativa mais ampla e diversificada. Sabemos que o ato de improvisar se estabelece numa prática corrente desde épocas remotas, mormente a nível sacro e religioso. Em diversas culturas e regiões do mundo a improvisação constitui ainda hoje uma prática corrente e um modo de transmitir conhecimento entre professor/mestre e aluno/aprendiz muito eficaz4. O desenvolvimento de uma capacidade de improvisação e de uma fluência discursiva é um dos elementos mais importantes e relevantes desta prática. Paralelamente, desenvolve-se a experiência da música a solo, ou de conjunto, de um modo igualmente mais amplo, criativo e livre5.
Em 1886, e como já referido, Camille Saint- Saëns compõe O Carnaval dos Animais, uma fantasia musical zoológica como o próprio apelida em forma de Suite. No descerrar dos seus andamentos, das suas peças, percebemos que os animais narrados em cada uma delas, executam as ações que melhor se adequam às suas características físicas e comportamentais. Assim, o leão aparece dominador e majestoso com a sua família, as tartarugas dançam lentamente ao som do Can-Can que, realizado num andamento muito lento, desfigura as características da dança proposta6. Noutro contexto, os elefantes movimentam-se ao som de um momento musical que surge da transformação vigorosa de um Minueto da autoria de Hector Berlioz. Ao longo da forma Suite, os exemplos sucedem-se com acentuada alteração dos estereótipos de uma sociedade que o autor quer desconsiderar como convém à intenção primeira da obra, a realização de uma crítica social e comportamental. A sua intenção encontra-se de tal modo bem concretizada que o próprio compositor preferiu, como referimos, não autorizar a execução pública da obra, pois queria manter o estatuto de compositor sério que havia conquistado e que, fruto do discurso musical narrado poderia vir a ser maculado7.
A natureza da obra e a sua riqueza expressiva tornam-na alvo de várias produções, tanto a nível musical como enquanto suporte a outras áreas do conhecimento artístico, mormente o cinematográfico. De entre elas, encontramos aquela que aqui pretendemos apresentar - “Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals by Camille Saint-Saëns”, realizada em 1976, e da autoria de Chuck Jones. A análise da obra musical, bem como da proposta narrativa e visual de Jones, permitirá perceber de que modo a obra musical se mostra definidora dos conteúdos narrativos do filme de animação. Neste sentido, buscaremos identificar os elementos que a possam concretizar como ferramenta formativa da narrativa imagem. Buscaremos factos e argumentos para dizer se a obra musical e os diversos elementos que a constituem se redefinem para se integrar melhor nos conteúdos fílmicos, ou, se por outro lado, permanecem os mesmos, sendo que é no visual, e pelo visual, que a obra adquire os conteúdos imagéticos da temática proposta. Ao longo da obra, percebemos ainda que a componente visual, construída a partir de duas personagens do mundo do cinema de animação, Bugs Bunny e Daffy Duck, surge elo entre dois mundos e realidades (o real e o imaginado), ou seja, os mundos e realidades do maestro e da orquestra, bem como do espaço da sala de concerto e do seu público, e aqueles dos dois pianistas, dos seus instrumentos e do espaço do palco onde se apresentam, aqui ilustrados pelas personagens Bugs e Daffy, personagens de animação criadas pela Warner Bros. De salientar ainda a presença da personagem de Porky Pig no início do filme, quando chama os dois pianistas ao palco, de modo a dar início ao concerto e ao espetáculo. Ao longo deste texto pretendemos ainda identificar os elementos que possam apoiar esta proposta fílmica como ferramenta educativa. Constatamos que nela, a componente visual, construída a partir das duas personagens do mundo do cinema de animação, Bugs and Daffy, assoma também como elo de ligação com as outras artes, mormente a música, de modo a clarificar os diversos planos discursivos e os conteúdos expressivos que aí concorrem, possibilitando o descerrar e a discussão de diversos conteúdos de natureza científica e artística.
O Carnaval dos Animais - a obra musical
A história que alicerça a narrativa da obra O Carnaval dos Animais, compreende um discurso onde os diferentes animais, com as suas características físicas e emocionais bem marcadas, servem de suporte a uma crítica social e política à sociedade parisiense da época, como era intenção do seu autor8. A sátira surge desde a primeira das peças: Introdução e Marcha Real do Leão. A obra inicia com a Marcha Real do Leão. O Leão é o rei dos animais, o rei da selva. Todos os animais lhe obedecem e se submetem à sua força, domínio e audácia. A narrativa base da obra, aqui ilustrada por uma versão livre redigida em português por António Mega Ferreira, a partir dos textos de Francis Blanche (Mega Ferreira 2016), indica-nos que a viagem se faz ao longo de um espaço de fruição e conhecimento dos aspetos físicos e vivenciais dos diferentes animais, selvagens ou outros, um jardim zoológico, um espaço onde podemos observar não só as características físicas e comportamentais dos diferentes animais, como os seus comportamentos e atitudes.
No Jardim das Plantas, assim chamado/ por causa dos animais que para lá levaram, / no Jardim das Plantas reina uma estranha agitação. /Eles são decorações, eles são enfeites, /parafusos, pregos, plantações. /O castor ergue construções feitas com pauzinhos/ o grou arrasta fardos pesadíssimos/ pendura os quadros a serpente coleante/ porque esta noite, no Jardim das Plantas, vai ser demais! / Há festa rija e deslumbrante/ É o Carnaval dos Animais! (Mega Ferreira 2016)
Na narrativa, o primeiro animal que surge é justamente o rei dos animais: o Leão. Orgulhoso e imponente, ele marcha pela floresta, desprezando a todos. Como rei dos animais ele ruge com ferocidade, atemorizando.
Ouve-se de repente “Viva o Rei!” / e entra, de juba em movimento, / solta, para trás, ao vento, / o Leão, britânico e impante, / de altivo semblante.../ Vestido de sedas em tons cintilantes/ (sedas de Lyon, como eram dantes) / é o rei dos elegantes/ mas de uma timidez desarmante:/ à mínima coisinha/ enrubesce como uma menina/ Povo dos animais... ouve-o ... acalma esse fervor.../ Que a música de Saint-Saëns é o teu rei maior (Mega Ferreira 2016).
A primeira das peças musicais I - Introdução e Marcha Real do Leão (Introduction et marche royale du lion) é composta a partir de um tema original do compositor. Nela, os dois pianos iniciam realizando um longo trémulo ao qual se sobrepõe um tema nas cordas (violinos I e II, Viola, Violoncelo e Contrabaixo) num Andante maestoso (Saint-Saëns 1886, 1). Acresce um longo glissando diatónico, ascendente num dos pianos e descendente no outro, concluindo esta pequena abertura (Saint-Saëns 1886, 2). A tudo isto, as cordas sobrepõem um motivo musical imitando os bocejos do animal, que será desenvolvido ao longo da narrativa. Em seguida, as cordas realizam uma marcha, a marcha do rei dos animais, sendo que o piano corta e sequencia o discurso proposto agora num tempo Allegro non tropo (Saint-Saëns 1886, 2). A textura adensa-se de modo a criar maior impacto na ação que o rei dos animais realiza: um passeio sobre os seus domínios, a selva, rugindo e vociferando de modo a amedrontar todos os outros (Saint-Saëns 1886, 2-7).
Na segunda das peças, Galinhas e Galos, a vida rotineira destes galináceos, o seu cacarejar e o rebuliço próprio de um galinheiro são aqui sugeridos e apresentados. A dominação do galo sobre as galinhas e o seu cortejar também.
Gente de quintas e gente de pluma/ Eis os galos e as galinhas! / Capoeira e curta pluma/ São entre nós comezinhas/ Uns gritam cócórócós/ em alta voz/ Outros piam e cacarejam/ sem sentido/ porque têm na cabeça/ uma ideia (que surpresa) :/ Assinar por um ano completo/ um contrato fenomenal:/ as galinhas no Preço Certo/ os galos no Telejornal (Mega Ferreira 2016).
O texto mostra-nos a submissão dos animais a uma necessidade fisiológica que é a alimentação, que os faz abstrair de uma realidade maior que é o mundo que as rodeia e todo o que nele se apresenta. O mundo não existe para além da necessidade de obter comida que bicam continuamente de fronte virada para o chão. O cacarejar contínuo das galinhas é ilustrado por um ritmo repetitivo ao qual se interpolam uns apontamentos musicais ilustrativos da sua ação: a apogiatura em glissando ascendente no âmbito de uma 5ª perfeita (Saint-Saëns 1886, 8). A segunda das peças musicais: II - Galinhas e Galos (Poules et Coqs) utiliza como conjunto instrumental a combinatória de Clarinete, os dois pianos, Violinos I e II e violas, dando seguimento a um breve trecho ao estilo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764). A intertextualidade e a citação, enquanto procedimentos compositivos e estéticos, evidenciam-se enquanto recurso, assim como o uso de técnicas de execução dos instrumentos, como sejam o glissando, de modo a realçar o cacarejar das galinhas. A peça é-nos apresentada num andamento Allegro moderato (Saint-Saëns 1886, 8-9).
No terceiro dos fragmentos, Hemíonos (Animais Velozes), o autor narra a ligeireza e audácia destes animais.
O que é um hemíono? Um cavalo. / Os hemíonos são cavalos/ O hemíono é um belo animal/ os hemíonos têm bem alto o astral/ Trota como um cavalo a sério/ galopam como cavalos a sério/ Quando cai não sente ardor/ levanta-se sem praguejar de dor/ E se o hemíono é um cavalo/ se os hemíonos são cavalos/ ele tem, como os demais animais, / eles têm, como todos os animais, / o seu lugar no nosso carnaval/ como em todos os carnavais. (Mega Ferreira 2016).
Os dois pianos são os instrumentos que o compositor considera como os mais indicados para realçar esta característica (Saint-Saëns 1886, 10). Os gestos e os contornos melódicos e rítmicos propostos, desenham a correria e a velocidade dos animais aqui caracterizados num Presto furioso. O contorno melódico de um é realizado à oitava baixa pelo outro. Os motivos vão-se sucedendo de forma repetitiva e num movimento ascendente e descendente por todo o âmbito do instrumento desenhando os saltos e as correrias dos Hemíonos, esses animais velozes, por toda a selva (Saint-Saëns 1886, 10-11).
No que concerne as Tartarugas, estas aparecem sob a forma de bailarinas. Prevemos o ridículo pela forma como as tartarugas se comportam e movem quando comparadas à subtileza e graciosidade que ressaltam da atuação de uma bailarina.
No carnaval, com anual afã, / as tartarugas dançam o can-can/ e debaixo da escamada carapaça/ suam as estopinhas como quem trata/ da lentidão com furiosa velocidade/ Basta observarmos a inanidade/ que é dançar o galope de Offenbach/ ao ritmo de João Sebastião Bach/ para perceber que os esforços são baldados/ em brincar com os seus corpos anafados/ Mais vale correr do que chegarmos atrasados... (Mega Ferreira 2016).
Uma melodia bastante conhecida, e facilmente identificável apesar do tempo lento em que é proposta, surge no conjunto das cordas de modo homofónico e homorritmico, num andamento Andante maestoso (Saint-Saëns 1886, 12). O facto acentua a forma pesante como se desloca este animal. E para descrever realmente o movimento das tartarugas, o autor usa a melodia num andante majestoso para que elas possam acompanhar, pois depois de tanto esforço, elas acabam cansadas.
Assim, na quarta das peças, IV - Tartarugas (Tortoises), Camille Saint- Saëns socorre-se mais uma vez do procedimento de citação. Utiliza um tema de Jacques Offenbach (1819 —1880). O compositor realiza uma paródia com base no tema Can-Can, inserida na obra Orfeu nos Infernos (uma Ópera Buffa, 1858), da autoria do referido compositor. Tocada num andamento extremamente lento pelas cordas, sobre um acompanhamento do piano, o facto fortalece uma das características da forma Suite (alternância de andamentos rápidos e lentos e de andamentos contrastantes). Acresce o ostinato rítmico realizado pelo piano I, elemento que torna ainda mais pesada a textura musical (Saint-Saëns 1886, 12-13).
Em o Elefante, o texto apresenta-nos um animal de grandes proporções e igualmente bastante lento. E as tartarugas encontram um rival: o elefante também quer dançar. “São como crianças/ os elefantes/ pois desconhecem a proibição/ Como defesa/ usam as presas/ julgando que usam a dentição” (Mega Ferreira 2016). Para acompanhar a sua dança, o elefante escolhe um instrumento do seu tamanho: o piano, e um instrumento que combine com a grandeza do seu corpo e a delicadeza dos seus movimentos: o contrabaixo, num andamento: Allegreto pomposo (Saint-Saëns 1886, 14).
Assim, e na peça V - O Elefante (L’éléphant), o contrabaixo surge com a sua grandiosidade sonora, no colorido timbrico do seu registo grave e dos seus harmónicos, ao qual se sobrepõe o colorido dos complexos sonoros realizados pelo piano, desta vez o Piano II, num seu acompanhamento. Nesta pequena peça confrontam-se uma paródia lenta da obra Dança das Sílfides incluída em A Danação de Fausto (1846) de Heitor Berlioz (1803-1869), e uma alusão ao andamento Scherzo de Sonho de uma Noite de Verão (1826) de Felix Mendelsshon (1809-1847) (Saint-Saëns 1886, 14-15).
Os Cangurus vêm logo a seguir.
Atleta universal, uma espécie rara/ eis o canguru, temível pugilista, / campeão do comprimento e do salto à vara/ Sim, quando saíres do mato da Austrália, / os nossos desportistas ao pé de ti serão como espantalhos/ Ó canguru, tu vais deixá-los de rastos. (Mega Ferreira 2016).
Na pequena peça musical intitulada de VI - Cangurus (Kangourous): os pianistas imitam os saltos destes animais. Dois pianistas, dois cangurus em alternância, usando o mesmo material, que consiste basicamente em dois elementos musicais base interpretados num andamento Moderato. Contudo a aceleração e desaceleração própria do seu movimento transparecem nas constantes indicações agógicas e na alternância de métricas diferentes (Saint-Saëns 1886, 16). O primeiro origina um contorno melódico circular sobre o acorde perfeito de dó maior nas suas várias inversões, sendo proposto sempre a partir de uma apogiatura na nota mais aguda do acorde. O segundo intenta uma resolução cadencial que não concretiza. Para concluir a narrativa, o primeiro dos motivos realiza uma melodia em graus conjuntos com o mesmo material temático do gesto inicial, ao qual sucede finalmente, a cadência final. De salientar a mudança de compasso de um gesto musical para o outro, o que, diferenciando radicalmente a sua métrica, os torna, musicalmente, díspares (Saint-Saëns 1886, 16).
Aquário mostra-nos um outro mundo.
Da baleia até à sardinha/ da bela anchova ao vermelho/ lá no fundo se prepara a comidinha/ cada um se alimenta de outro mais pequeno/ Este costume singular/ esta luta de vida e de morte que é o mar/ faz vibrar a nossa alma regular/ Mas, no fundo, é assim a vida/ coisa que acontece, basta olhar,/ e que aquele que nunca foi levado a pecar/ aos peixes a primeira pedra atire (Mega Ferreira 2016).
Nesta sétima peça, VII - Aquário (Aquarium), percebemos a composição de uma das peças mais criativas do Carnaval, uma peça cheia de magia e mistério. Uma outra dimensão timbrica e sonora surge na iridescência da componente musical veiculada pelos dois pianos e pela celesta às quais se juntam os violinos I e II, as violas e os violoncelos num andamento Andantino (Saint-Saëns 1886, 17) 9. De salientar os movimentos melismáticos produzidos no extremo agudo do instrumento pelos pianos I e II ao qual se acresce o uso de uma polirritmia composta pela sobreposição de uma quiáltera de 10 fusas no piano I e por uma quiáltera de 6 semicolcheias no piano II (Saint-Saëns 1886, 17-24). Os contornos que as constroem são igualmente diversos. No piano I ela surge descendente depois de um primeiro desenho melismático ascendente; no piano II ela surge sempre ascendente. Os restantes instrumentos realçam o tempo forte e a parte forte do tempo através do seu contorno melódico, salvaguardando o caso da celesta que acentua a parte fraca do tempo. O uso deste instrumento e do âmbito extremo agudo pelo piano II associado à velocidade de execução dos elementos proposto, cria uma atmosfera onírica e infantil (Saint-Saëns 1886, 17-24). A peça constituiu-se numa das mais longas de todo o conjunto.
Em Personagem De Orelhas Longas, encontramos a referência ao burro, ao animal de carga, aquele que realiza as tarefas mais fastidiosas e árduas de uma sociedade. Trabalhador incansável e desprezado por aqueles que se julgam acima dele, o burro afirma a sua consciência face ao modo como é tratado. “Farto de ser besta de carga/ de quem toda a gente ri à socapa/ o burro, no Carnaval dos Animais, / enfiou umas orelhas de homem colossais!” (Mega Ferreira 2016).
Em VIII - Personagens de orelhas compridas (Personnages à longues oreilles), Camille Saint-Säens propõe-nos uma textura musical onde os violinos I e II alternam os seus motivos base de modo a melhor imitar o relinchar dos burros. Um ascendente em glissando e outro descente mais pesante. A obra é bastante curta, como escassa é a palavra dada a estes animais, e ao estrato social a que eles se referem, bem como o seu modo de andar, ora rápido, ora lento, ora fincados ao chão sem os conseguirmos mover, ora numa correria desenfreada que não conseguimos acompanhar. Assim se mostra o andamento proposto pelo compositor: Tempo ad. Lib. (Saint-Saëns 1886, 25). O trabalhador braçal não é ouvido, muito menos na época em que a obra é escrita. Os assalariados são força bruta para o trabalho, à semelhança do burro nas tarefas do campo ou da cidade, enquanto animal de transporte e de carga.
Em O Cuco no Fundo do Bosque, a narrativa fala-nos de uma personagem que se dissimula e que, nesse disfarce manipula a todos intentando obter o que deseja.
Jogando às escondidas/ não se sabe bem com quem, / o cuco, esse velho intriguista, / acaba de roubar o ninho de alguém/ Usurpando uma casa bem capaz/ e o bem-estar de uma família destruindo/ é o cuco, pássaro voraz, / que faz o terror dos maridos/ E em cada um o mal-estar existe:/ “Lá longe, no fundo do bosque, / como o canto do cuco é triste” (Mega Ferreira 2016).
O cuco toca o clarinete. Clarinete e Pianos I e II são os instrumentos escolhidos pelo compositor para ilustrar a cena. Em IX - O cuco nas profundezas dos bosques (Le coucou au fond des bois), o piar do cuco surge no clarinete, sendo que se encontra por detrás do palco, camuflado, como dissimulada é a sua ação em sociedade, num tempo Andante (Saint-Saëns 1886, 25). Musicalmente, o facto, salienta o efeito de profundidade da sua ação e do seu canto. Acompanhado pelo elemento sonoro realizado nos dois pianos de modo homofónico e homoritmico, o som do clarinete, profundo e marcado pela ação do acompanhamento textural do piano, imita o canto do pássaro (Saint-Saëns 1886, 25-27).
Em A Gaiola/O Aviário, a narrativa propõe-nos um outro mundo sonoro, o conjunto dos animais forma um coro alegre e feliz, predispondo de forma vibrante e calorosa quem os ouve,
Melros, estorninhos, gaviões/ Canários e pardais, andorinhas e andorinhões voai, aves gentis, cantai!/ Ninguém, neste mundo, soltará um ai,/ ninguém vai censurar a cantoria/ ninguém julga o vosso voo uma folia (Mega Ferreira 2016).
Na décima das peças, X – Gaióla (Volière), surge uma proposta musical construída sobre um tema original de Saint-Saëns, onde uma flauta chilreia acompanhada pela textura realizada pelos dois pianos e pelas cordas com a intenção de nos lembrar os passarinhos num Moderato gracioso (Saint-Saëns 1886, 28). O seu chilrear faz-se com um mesmo motivo sobre as notas base do acorde e ainda pelo seu arpejar. A apogiatura imita o chilrear, sendo que os pianos acompanham este cantar no extremo agudo dos instrumentos. A textura realizada pelas cordas sustenta todo este cantar (Saint-Saëns 1886, 29-30). Salientamos o uso do trémulo, da apogiatura e do trilo como efeitos sonoros e musicais. Acresce ainda o uso dos glissandos cromáticos realizados nos dois pianos no registo agudo, bem como na flauta, ilustrando o vozerio dos pássaros dentro de uma gaiola (Saint-Saëns 1886, 30). Os animais, enclausurados e tendo que conviver uns com os outros, intentando aceitar as suas características, as suas diferenças, as suas necessidades e as suas ações, convivem numa azafama de ações, de lutas, de vitórias e derrotas constantes. Assim é a vida (Saint-Saëns 1886, 28-33).
E de repente surgem os dois Pianistas que também se juntam à narrativa, realizando um trecho baseado em exercícios técnicos: articulação/Czerny/escala.
Que curioso animal! / Dir-se-ia um artista/ mas no cartaz do recital/ chamam-lhe pianista. / Este mamífero concertívoro digitígrado/ vive, regra geral, em cima de um estrado. / Tem olhos de lince e um casaco com rabo/ alimenta-se de escalas, e, ao fim e ao cabo, / reproduz-se, nos salões, melhor que os ratos. / Junto do teclado, faz figura de solista, / mas a sua carne é pouco apreciada/ Caçadores e amantes da caça, / há que saber caçar, / não disparem sobre o pianista! (Mega Ferreira 2016).
Na proposta de Saint-Säens, XI – Pianistas, os pianistas praticam exercícios técnicos, exercícios de dedilhação, articulação e escalas no estilo de Czerny, num Allegro moderato como convém a qualquer iniciante do instrumento (Saint-Saëns 1886, 34). Progressivamente o mesmo elemento textural é transposto como acontece com as propostas de exercícios de dedilhação de Czerny. À medida que é transposto, a dificuldade parece aumentar e os “erros” de digitação acontecem. A pequena peça termina com uma dificuldade acrescida, a realização do exercício de dedilhação proposto por cada um dos pianistas com sobreposição de duas melodias à distância de terceira. Acresce um apontamento nas cordas de modo a salientar os tempos fortes e partes fortes do tempo e do compasso, bem como ao nível da cadência final de cada uma das propostas técnicas (Saint-Saëns 1886, 34-37).
Em os Fósseis são sobrepostas várias realidades como acontece no objeto que os identificam.
Em licença precária do museu, chegam/ os fósseis. / Ictiossauros/ brontossauros/ e dinossauros/ Iguanodontes/ megatérios/ e pterodáctilos/ Nabucodonosor e outro fulgor/ dos tempos passados/ Vieram arejar a pluma/ (uma pluma fossilizada, pois claro!)/ E à luz dos candelabros/ os seus corpos glabros/ vão deixando cair os ossos por toda a parte/ no frenesi que lhes provoca a música de Saint-Saëns,/ a vertiginosa Dança Macabra. (Mega Ferreira 2016).
A nível musical, e em XII - Fósseis (Fossils), também temos fósseis, isto é, velhos motivos musicais que todos recordam e que ainda assim, estão vivos e se mostram interessantes. Aqui, o autor amontoou muitos desses temas: a sua própria dança macabra, três canções populares francesas, e até um excerto de uma ária de Rossini, da sua ópera O Barbeiro de Sevilha propostos num Allegro ridicolo (Saint-Saëns 1886, 38). De modo a satirizar o musical, o compositor usa o xilofone. Assim, Fósseis (Fossils), utiliza o processo de citação de um conjunto de pequenas peças que se sucedem uma às outras. Neste conjunto, A Dança Macabra do próprio Saint-Saëns desponta como Leitmotiv, com o Xilofone imitando ossos batendo uns nos outros. A textura repetitiva e homoritmica, reforça a caracterização do animal (ou a sua fossilização) (Saint-Saëns 1886, 38-44).
Em o Cisne
Como um ponto de interrogação/ rasgado a branco sobre um fundo verde de água / o cisne é como uma janela escancarada/ aberta a qualquer suposição/ Este cisne é patético?/ Será um amante abandonado?/ Digno, porém, romântico,/ ou apenas um glorioso falhado?/ Este é um mistério que persiste/ e o cisne afasta-se lentamente/ com o seu ar ausente e triste/ Para ele, esta é a instância fatalista/ em que se vai tocar um trecho perturbante/ ... mas é o momento de glória do violoncelista/ porque é dele o solo e o instante... (Mega Ferreira 2016).
XIII - O Cisne (Le Cygne), é uma das suas peças mais conhecidas. É ela que o compositor permite seja executada desde o momento em que a compõe. O solo do violoncelo deu origem, inclusive, a um pequeno ballet. Ao solo de violoncelo o compositor sobrepõe um ostinato nos dois pianos realizado pela repetição sistemática de dois motivos base no Piano I ao qual sobrepõe alguns arpejados/rasgueados, no segundo dos pianos realizados num Andantino gracioso (Saint-Saëns 1886, 45). A narrativa ilustra a frustração e o abandono a que o compositor se sente atirado depois do fracasso que foi a sua digressão pela Alemanha. Curioso será pensar que foi a única peça que deixou fosse executada do conjunto de toda a obra, a peça que ilustra os seus sentimentos de frustração e abandono por parte de um público que, de modo vingativo, reage a uma sua tomada de posição. A vingança e o infortúnio decorrente de uma tomada de posição face a um problema social, a uma questão social e humanitária, quantas vezes sobressaem no comportamento do ser humano ao longo dos tempos. Se analisarmos os comportamentos e as ações de todos, e de cada um, facilmente chegamos a este tipo de concretizações (Saint-Saëns 1886, 45-49).
Em o Final aproximamo-nos do final da nossa narrativa e da visita ao zoológico. Todos os animais grandes e pequenos, aves e peixes, cantam e dançam alegremente! Até os pianistas participam da festa, numa proposta que nos surge num Molto Allegro (Saint-Saëns 1886, 50).
E agora, aqui está, a festa atinge o auge/ os animais rompem as correntes e as grades/ e dançam uns com os outros, como irmãos: / o lobo com o cordeiro, / o negro corvo com a raposa prateada/ o tigre predador com o tímido cabrito/ e o piolho com a aranha/ o cabo com o seu machado/ Como é festivo e animado/ o Carnaval dos Animais! / E depois, quando a noite se tornar mais nítida/ e a música, exausta, se calar, / os animais farão fila para voltar / e tornará a ser como dantes a vida... / Uns dos outros vão voltar a sentir medo/ o cão e o gato, / o leão e o rato / e o mais que nem me atrevo... / E não se riam disto, por favor/ Os animais não são os mais estúpidos, afinal, / e se tiverem sobre isto uma dúvida normal / venham no próximo domingo, vestidos a rigor, / ao Carnaval dos Homens!” (Mega Ferreira, 2016).
Em XIV - Final (Finale), o compositor faz uma recapitulação dos principais temas da obra, concluindo de modo magistral o seu discurso, a sua sátira, a sua narração. Utiliza a totalidade dos instrumentos do seu conjunto instrumental (Saint-Saëns 1886, 50-61).
Bugs and Daffy`S Carnival of The Animals by Camille Saint-Säens
“Uma banda sonora é todo o conjunto sonoro de um filme, incluindo além da música, os efeitos sonoros e os diálogos” (Berchmans 2012, 19). É comum o termo ser utilizado para designar o conjunto de peças musicais empregues como suporte sonoro de um filme, ou para designar a parte instrumental que o acompanha, seja ela composta especificamente para o filme em questão, ou não. Foi em 1908 que se procedeu à encomenda de uma obra musical especificamente para um filme. A obra em questão, composta para a curta-metragem L’assassinat du Duc de Guise, é da autoria do compositor Camille Saint-Säens, o compositor aqui referido10. A animação produzida pela Waner Bros, Bugs and Daffy`s Carnival of the animals by Camille Saint-Säens, que se enquadra na séria de animação de Looney Tunes, no qual participam as personagens Bugs Bunny e Daffy Duck é suportado pela Suite musical O Carnaval dos Animais da autoria de Camille Saint-Säens. A obra apresenta-nos uma proposta filmica totalmente diferente e inovadora que se enquadra no contexto referido (Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals 1976). Nesta proposta assistimos à ilustração da rivalidade presente entre Bugs e Daffy, dois afamados pianistas, que se confrontam mutuamente de modo a conquistar a atenção do público. Esta ação transcorre ainda na oposição que fazem face à orquestra que surge num outro plano vivencial, o real, dirigida pelo maestro Michael Tilson Thomas que se subordina aos desejos e caprichos dos dois heróis de animação: Bugs Bunny e Daffy Duck. Esta criação foi dirigida por Chuck Jones e conta ainda com a narrativa de Ogden Nash e a prática musical dos pianistas Zita Carno e Kathryn Ando11.
Uma análise detalhada da curta-metragem, mostra logo de início, a rivalidade existente entre as personagens, característica marcante da sua relação, no qual se deparam com dificuldade em pronunciar, de forma correta, o nome do compositor que compôs a obra que irão interpretar. Aperaltando-se num camarim, e denunciando desde já as suas personalidades distintas, são chamados pelo “porco”, Porky Pig, que os avisa que o espetáculo está prestes a começar. Ocorre uma mudança de cena. Surge a orquestra já sentada em palco, esperando a entrada do maestro para se dar início ao concerto. Sendo a obra composta para orquestra e dois pianistas, o maestro chama para o palco os solistas, Bugs e Daffy. Desde o início que assistimos a uma cena onde a rivalidade entre as personagens assoma mais uma vez. Bugs é presenteado com uma grande salva de palmas e Daffy entra num silêncio profundo por parte do público. O maestro dá indicação à orquestra e começa a fruição da obra de Camille Saint-Säens (Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals 1976). É de notar que a obra surge aqui num contexto didático, uma vez que temos aliada à performance musical, uma explicação/narração da inspiração que surge por detrás da criação do compositor Camille Saint-Säens, através das falas de Bugs e do seu diálogo com Daffy (Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals 1976). Este diálogo acontece entre os andamentos constituintes da suite, que, como é característico, se apresentam com caracteres contrastantes e secções musicais fragmentadas. No decorrer da obra, há ainda um diálogo entre as personagens animadas e o maestro que se apresenta num plano/figura real (Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals 1976). Aliada à secção instrumental, observamos um cuidado com as imagens que surgem ao longo dos andamentos, uma vez que estas descrevem o que foi dito na narrativa e na própria secção musical. De forma mais exemplificativa, no andamento “Galinhas”, observamos que sobre a música surgem diversas animações alusivas a este animais. A imagem acaba por ser utilizada de diferentes formas ao longo da melodia apresentada, relacionando-se com os seus motivos rítmicos e com as diferentes massas sonoras, captando constantemente a atenção do espectador. Esta característica está presente ao longo de toda a narrativa, durante os diferentes andamentos, onde observamos uma associação sonora aos diferentes animais e consequentemente ao desenrolar das diferentes imagens (Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals 1976).
“Bugs and Daffy`s Carnival of the Animals” by Camille Saint-Säens, é uma ocorrência artística com uma componente sonora e um discurso de imagens bem delineados e construídos, e que age de modo efetivo sobre o espectador. A obra pretende, no nosso entender, despertar nas gerações mais novas, uma vez que é uma versão animada, o interesse pela música erudita, recorrendo à sua exploração através da colaboração com outros mundos do conhecimento e da arte, como é o caso da imagem, do desenho, da poesia, da literatura e do cinema. Acaba, assim, por despertar em cada um de nós, e em cada qual, a nossa capacidade de dirigirmos a nossa atenção para os mais ínfimos pormenores, desenvolvendo características sensoriais e emotivas que nos transportam por uma viagem ímpar ao longo da narrativa sonora e visual propostas.
Conclusão
A música, composta para um conjunto de instrumentos que permite a sua combinatória em diversas formações timbricas de modo a realçar as características da personalidade dos diferentes animais e da narrativa a eles associada, é composta para diferentes formações instrumentais. Pela paleta timbrica que vai desenhando, pelas texturas que vai propondo, pelas formas musicais que vão transparecendo, ilustra o discurso imagens e, consequentemente, os conteúdos imagéticos e expressivos do discurso fílmico. As duas personagens, contracenando com o maestro e a orquestra ao vivo em sala de concerto, concorrem para uma sua efetivação também. A música e o sonoro, fazendo-se nas escolhas das tonalidades, das harmonias, dos ritmos, das métricas, das texturas, dos tempos e das formas capazes de ilustrar as intenções emotivas e expressivas do discurso imagem, ergue-se informada ainda das características dos personagens pianistas aqui colocados: Buggs Bunny e Duffy Duck. A escolha destes personagens não terá sido alheia. A subtileza das características que evidenciam enquanto personalidade mostram-se desde o início da narrativa. O culto, o educado, o bem-sucedido e o aplaudido por todos os setores da sociedade, versus, o inculto, o desajeitado, o desfavorecido e o ignorado pelo público, o maestro e a sociedade. Não sucedeu assim com o compositor aquando da sua digressão por terras germânicas?
Nos contrastes sonoros, são-nos sugeridos os mesmos factos do discurso imagem. Neste sentido, a música surge para diferentes formações instrumentais de maneira a realçar as componentes do discurso imagem, mas também da sua forma musical base – a Suite -, bem como as características subjacentes a cada uma das suas partes/peças, as sensações e emoções nelas descritas, pois que se relacionam com o conteúdo expressivo das cenas/narrativa, e a intenção do discurso imagem, concorrem para a criação de um objeto de arte cuja intenção expressiva e educativa se mostra expressa.
Notas Finais
1Curioso será pensar que o enredo de Lohengrin narra a história de Percival (ou Parsival) e de seu filho Lohengrin, o Cavaleiro do Cisne, e a peça que o compositor autoriza a execução seja precisamente esta. Ao longo do libreto de Lohengrin, o seu autor narra um acontecimento marcante que decorre na primeira metade do século X. No então Ducado de Brabante, na atual região de Antuérpia, o falecido Duque do Brabante confia aos seus herdeiros Elsa e Gottfried a tutela do Conde Frederico de Telramund. Frederico deveria ter esposado Elsa, mas, tendo sido recusado por esta, casa-se com Ortrud, uma rapariga descendente de uma estirpe de príncipes pagãos dotados de poderes mágicos. Para vingar a afronta sofrida pelo marido, e de modo a que este possa herdar o ducado, Ortrud transforma Gottfried em cisne. Entretanto, convence Frederico a acusar Elsa de fratricídio. A obra, originalmente pensada para ser tocada por Charles-Joseph Lebouc, o violoncelista que promoveu e organizou aquele sarau de 9 de março de 1886, viria a ser coreografada em dezembro de 1907 por Mikhail Fokine em São Petersburgo, tendo como bailarina Anna Pawlowa.
2Desta forma, a obra torna-se numa ótima forma de ficar a conhecer melhor cada um dos instrumentos e as combinatórias timbricas possíveis, de modo a caracterizar as personagens e a narrativa proposta no texto que suporta a obra. Não será por acaso, que é frequentemente tocada em programas de caráter didático e para um público mais jovem. Costuma ser alternada com a declamação de textos que fazem alusão aos animais em questão. O mais conhecido foi escrito no final da década de 1960 pelo humorista Francis Blanche. Mas existem outros.
3A Escola, fundada por Louis Niedermeyer (1802-1861), compositor de origem suíça naturalizado francês, subsistia com o apoio de Napoleão III. O mesmo acontecia com o Real Instituto de Música de Alexandre-Étienne Choron, defensor da restauração do canto coral na instituição igreja. A Escola Niedermeyer, bastante importante ao nível do ensino da música sacra em França, tinha como princípios orientadores da sua ação e do seu currículo, o facto de se opor à invasão da arte mundana no domínio sagrado, estabelecendo uma separação clara entre religião e arte secular. Assim, o objetivo da Escola, subsidiada pelo Estado, seria o de permitir um ensino de alto nível aos futuros profissionais das igrejas, da música religiosa em todas as suas vertentes: canto gregoriano, piano, órgão, acompanhamento, escrita, improvisação, etc. Neste contexto, verificamos que nas suas aulas, Saint-Saëns procedia frequentemente a exercícios de improvisação tanto livre como orientada, de modo a capacitar os seus alunos para a prática musical em contexto.
4Lembremos o caso de J.S. Bach e de todos os seus contemporâneos, bem como a cultura indiana, por exemplo.
5A improvisação ao piano, com um caracter jocoso e bem-humorado eram práticas constantes em Camille Saint-Saëns, sendo que dessa prática se mostra contínuo o recurso a temas de obras do grande repertório sinfónico, tanto religioso como profano. Da autoria dos intervenientes, ou da autoria de outros autores, o uso desses temas promove a prática de uma improvisação orientada com recurso à citação e da consequente intertextualidade, procedimento bastante usado na obra em análise. Em jeito de caricaturas musicais, o professor ilustrava o estilo de escrita dos diferentes compositores, sendo seguido pelas realizações dos seus alunos.
6Concebida sobre tema de Jacques Offenbach, um dos mais populares compositores de opereta do século XIX, e fazendo recurso da intertextualidade, Saint- Saëns propõe-nos uma caricatura musical.
7Só após a leitura do seu testamento, já no final de 1921, permitiu que voltasse a ser tocada. Curiosamente, logo se tornou na sua composição mais popular.
8Ao nível da sua estrutura formal, a obra comporta um conjunto de 14 pequenas peças alusivas a personagens e situações vivenciais que o compositor queria criticar e satirizar à época. A obra é constituída pela sequência de:
1.Introdução e Marcha Real do Leão (Introduction et marche royale du lion; Piano I, Piano II, Violino I, Violino II, Viola, Violoncelo, Contrabaixo);
2.Galinhas e Galos (Poules et Coqs; Piano I, Piano II, Clarinete Sib, Violino I, Ciolino II e Viola);
3.Mulas (Hémiones) (Animais muito velozes; Piano I e Piano II);
4.Tartarugas (Tortoises; Piano I, Violino I, Violino II, Viola, Violoncelo e Contrabaixo);
5.O Elefante (L’éléphant; Piano II e Contrabaixo);
6.Cangurus (Kangourous; Piano I e Piano II);
7.Aquário (Aquarium; Flauta, Celesta, Piano I, Piano II, Violino I, Violino II, Viola e Violoncelo);
8.Personagens de orelhas compridas (Personnages à longues oreilles; Violino I e Violino II);
9.O cuco nas profundezas dos bosques (Le coucou au fond des bois; Piano I, Piano II e Clarinete Sib (backstage));
10.Gaiola (Volière; Piano I, Piano II, Flauta, Violino I, Violino II, Viola, Violoncelo e Contrabaixo);
11.Pianistas (Pianistes; Piano I, Piano II, Violino I, Violino II, Viola, Violoncelo e Contrabaixo);
12.Fósseis (Fossiles; Piano I, Piano II, Clarinete Sib, Xilofone, Violino I, Violino II, Viola, Violoncelo e Contrabaixo);
13.O Cisne (Le Cygne; Piano i, Piano II e Violoncelo);
14.Final (Finale; Piano I, Piano II, Flautim, Clarinete em Dó, Celesta, Xilofone, Violino I, Violino II, Viola, Violoncelo e Contrabaixo). (Saint- Saëns, 1886)
9Em algumas versões da obra surge por vezes o uso do Glockenspiel, ou do jogo de sinos, em substituição da celesta.
10Contudo somos a referir que à época ainda não existiam métodos de sincronização entre o som e a imagem. Neste sentido ainda não se pode falar de uma partitura para filme (film score) (Berchmans 2012).
11Esta é uma versão reduzida da obra, na qual são presentados apenas os andamentos do “I - Introdução e Marcha Real do Leão”, das “II - Galinhas e Galos”, do “V – Elefante”. dos “VI - Cangurus”, do “VII - Aquário”, da “X- Gaiola/Pássaros”, dos “XII - Fosseis”, terminando com o grande “XIV - Final”. Estes excertos são apresentados inclusive por uma ordem diferente da proposta na obra original.
Bibliografia
Berchmans, T. 2012. A Música do Filme (4a edição). Escrituras Editora.
Blanche, F. 1960. Le carnaval des animaux. Texte de Francis Blanche http://www.occe.coop/~ad2a/IMG/pdf/texteblanche.pdf Acedido em 21 de dezembro 2021.
Mega Ferreira, A. 2016. O Carnaval dos Animais. Versão livre em português de António Mega Ferreira, a partir dos textos de Francis Blanche. https://docplayer.com.br/39507590-Camille-saint-saens-o-carnaval-dos-animais-grande-fantasia-zoologica.html Acedido em 3 janeiro 2022.
Saint-Säens, C. 1886. Le Carnival des Animaux. Partitura para orquestra. https://www.musicologie.org/sites/c/m/06220242.pdf Acedido em 12 outubro 2021.
Filmografia
Bugs and Daffy’s Carnival of the Animals. 1976. Chuck Jones. https://www.youtube.com/watch?v=iHo-pFUE0so Acedido em 12 de outubro de 2021.