Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Belonging

Dos Regressos

José Duarte

CEAUL-ULisboa, Portugal

Abstract

As the outcome of a singular incursion into a rural Portugal during the fragile moment of the 2010-2014 economic crisis, Volta à Terra ([Belonging], João Pedro Plácido, 2014) presents itself as a curious film about memories and materiality and, above all, about a journey on the past and the present, on different times, places and landscapes, and on staying and leaving. The desires expressed by the few inhabitants of Uz (a village with 49 inhabitants) are registered here through the unique look of the director, who develops a work that oscillates between documentary and fiction and between “poetry and brutality”. Bearing this in mind, this work will develop a detailed analysis of some of the central aspects of the film, specifically on the idea of journey.

Keywords: Belonging, Portuguese Cinema, Journey, Landscape, Time.

Da matéria em Volta à Terra

Sobre Volta à Terra – primeira e última longa-metragem de João Pedro Plácido –, pouco ou nada se escreveu, em particular em Portugal, apesar dos prémios e nomeações em alguns festivais nacionais e internacionais. O filme, que pode ser entendido como um “documentário romantizado”, aponta para uma “sobreposição de registos” (Muñoz Fernandez e Villarmea Álvarez, 2015: s/p) que é característica de uma tendência comum a grande parte dos filmes portugueses mais recentes, onde os “cineastas contemporâneos manifestam [...] um claro desejo em experimentar com os géneros cinematográficos”, como apontam Fernandez e Álvarez em dois momentos distintos no artigo “Tendencias estéticas del cine portugués contemporáneo” ao mencionarem que:

[...] este nuevo cine luso se ha convertido en un punto de encuentro privilegiado en el que confluyen y del que emanan diferentes tendencias estéticas del cine contemporáneo, estableciendo relaciones imbricadas y azarosas en forma de ondas con otros cineastas, sin por ello dejar de mirar hacia el presente y el pasado de su propio país de origen. Sus principales cineastas están desarrollando nuevas maneras de narrar alejadas de las convenciones y los dictados comerciales, mientras que «sus imágenes», como ha escrito Glòria Salvadó Corretger, «plantean algunas de las cuestiones más importantes de la modernidad cinematográfica» (2012: 8). (2015: s/p)

Acrescentando ainda que:

Esta indefinición voluntaria de la frontera entre el documental y la ficción conlleva, en última instancia, una mutación en los postulados de la historia del cine que han privilegiado la ficción (y la narración) como un elemento esencial, proponiendo así una nueva genealogía para el cine contemporáneo ya sea a nivel portugués o bien a nivel mundial. (idem)

Ricardo Vieira Lisboa, num dos poucos textos publicados sobre Volta à Terra, publicado no site À Pala de Walsh em 2015, está em sintonia com o que Fernandez e Álvarez mencionam acima, notando igualmente que o grande trunfo e triunfo de Volta à Terra é “aquilo que se encontra por entre as imagens e nas próprias imagens” (Lisboa, 2015), matéria com que o filme se constrói. O mesmo autor acrescenta ainda que esta é uma obra sobre a “intimidade com as pessoas de Uz, o retrato de um país e de um interior, o agrilhoamento do campo e da pastorícia, uma história de amor perdida entre o ficar e a necessidade de imigrar para o estrangeiro” (idem), uma ideia que já se manifestava na sinopse de promoção do filme, em que se descrevia o filme da seguinte forma:

Uz é uma pequena aldeia minhota de casas em pedra onde ainda se podem ver construções cobertas com telhados de colmo. Depois de quase toda a população ter emigrado, restaram apenas 49 habitantes, que ainda hoje subsistem da agricultura e da pastorícia. Entre a recordação do passado e a esperança no futuro, este filme-documento mostra como seguem as vidas destas pessoas durante as quatro estações de um ano. Entre os habitantes de Uz encontramos António, um emigrante que realizou o sonho de voltar às origens e que se dedica a preparar a festa da aldeia para o Verão, e Daniel, um pastor que anseia encontrar o amor da sua vida.

O presente trabalho pretende, por isso, focar-se em alguns aspectos em particular do filme e que podem ser entendidos como as principais matérias de Volta à Terra, dado este ser um tema central à longa-metragem: os diferentes tipos de paisagem que compõem Uz – a paisagem natural, animal e humana –, e igualmente os objectos e as imagens que enformam e preenchem o filme, e que estão directamente relacionados com essa mesma paisagem, concordando com aquilo que Renira Gambarato descreve em relação à importância dos objectos num filme em “Methodology for a film analysis” (2010). Para a autora, os objectos que compõem um filme são mais do que apenas simples adereços e, como tal, permitem uma interpretação que se revela essencial para a sua compreensão:

In films, objects can translate the characters’ interior state of mind in a concomitant way that is both revealing/dissimulating, explicit/implicit; a game whose rules are based on the ethical-esthetical commitment to a conceptual narrative. Objects are signs that represent ideas, ideals and translate intended meaning in a film. (2010: 106)

Aliás, Volta à Terra é composto por uma sucessão de registos da passagem do tempo, com Plácido a rodar o filme durante alguns meses na aldeia e a registar objectos e materiais que apontam para uma viagem feita pelo realizador em Uz. Note-se, desde logo, o plano inicial do reboque que se afasta para nos conduzir literalmente para a história de António e Daniel, ambos directamente ligados à terra – entenda-se Uz, mas também a terra que é cultivada – e que, de algum modo, são os protagonistas do filme. É através deste percurso que o realizador nos vai contando uma história com múltiplas ramificações e caminhos que são ocupados pelas gentes de Uz que nos apresenta(m) precisamente os diversos tipos de matérias e materiais, nos quais se destacam aqueles que já evidenciei anteriormente.

Deste modo, esta proposta de leitura permite-nos, ao mesmo tempo, entender as matérias que nos são apresentadas, mas também a viagem que é retratada no filme e que compreende um triplo movimento: a viagem de regresso do realizador, a viagem dos que vivem em Uz e a viagem dos que regressam a Uz porque foram forçados a viver e trabalhar fora. É por via deste olhar que o filme se transforma num poderoso documento atento às transformações da terra de Uz e, a partir dela, de algumas das questões centrais do país no momento em que Volta à Terra foi filmado.

Paisagens: natural/animal/humana

A primeira matéria que merece destaque, como já referido, é a paisagem. Citando Graeme Harper e Jonathan Rayer em Cinema and Landscape (2010), esta “necessita reconhecer diferentes tipos de ambiente, desde o rural ao urbano, do macro-ambiente da ecologia expansiva ao micro-ambiente da habitação humana” (16). Como tal, sublinham ainda os autores, as representações e imagens da paisagem podem “incorporar manifestações da modernidade ou serem compostas inteiramente de ocorrências naturais”. No fundo, aquilo que Harper e Rayer defendem com esta definição é mostrar como “a paisagem é composta de muitos elementos e estes elementos interagem gerando assim a nossa percepção e recepção global” (16).

Com esta descrição concordam ainda Filipa Rosário e Ivan Villármea Álvarez ao apontarem a multiplicidade de interpretações que a paisagem pode ter, em especial no caso do cinema onde esta “surge quando a acção perde primazia narrativa, quando o cenário é apresentado através de mecanismos que potenciam a sua representação enquanto espetáculo, tendencialmente quando o realizador permite ou obriga à contemplação da imagem” (2016: 56).

Tendo em conta as observações destes autores, não pretendo aqui, naturalmente, afirmar que a paisagem tem primazia sobre tudo o resto em Volta à Terra, mas sim confirmar que esta é uma matéria importante do filme e é partir das suas várias interpretações que uma parte da obra ganha forma e que contribui para acentuar a ideia de viagem. Desde logo, a começar pelo modo como é feito um jogo com os materiais mais puros que, como nota Caterina Cucinotta, nos ajuda a compreender “a realidade imóvel daqueles lugares” (182), mas que marca a passagem do tempo dentro e fora do filme, criando aquilo que Giuliana Bruno apelida de uma dissolução entre “o dentro e o fora” (2014: 20).

A paisagem natural regista a dureza, mas também a beleza, da vida em Uz e é fonte de sustento para os seus habitantes: são mostrados, por isso, vários momentos directamente relacionados com a actividade agrícola e com os seus ciclos de cultivo e colheita1. Paralelamente, ela marca a passagem do tempo – primeiro o tempo das estações e, depois, o tempo do filme – e estes parecem não ser dissociáveis. São vários os momentos em que Plácido se serve da paisagem natural para marcar o compasso do filme, ora filmando como se estivéssemos a olhar para quadros paisagísticos que, por sua vez, dão conta da simplicidade do espaço de Uz por oposição à moderna grande cidade ou à fuga para o estrangeiro, ora seguindo os gestos e trabalhos do mundo rural. Esta questão é notória, por exemplo, em grande parte dos planos que, dado a sua construção, aproximam o filme do realizador daquilo que ficou designado como “slow cinema”, definido por Emre Çağlayan como:

As a discrete strand of contemporary art cinema, slow cinema’s dis- tinguishing characteristics pertain ultimately to its aesthetic design, which comprises techniques associated with cinematic minimalism and realism. These films retard narrative pace and elide causality, displacing conventional storytelling devices for the benefit of establishing and sustaining a mood and atmosphere, which are often stretched to their extreme in order to impel the viewers to confront cinematic temporality in all its undivided glory. (2018: X)

Note-se, no entanto, que esta categorização pode, de facto, ser complexa, uma vez que a definição de “slow cinema”, trabalhada por vários estudiosos2, necessitaria de um maior aprofundamento que não é possível explorar aqui. Contudo, Volta à Terra reúne algumas das características centrais apontadas por Çağlayan, em especial o modo como o filme nos faz repensar o tempo e o valor deste:

[...] because the films expand duration, they encourage audiences to rethink and repurpose temporality and its value at a time when the world seems to revolve at an ever- quicker speed. In other words, the extended experience of duration enables the absorption of a mediated reality with a luxury that we no longer possess in our daily lives, and the films are in many ways making us look and listen—and the longer we do, the more differently we can see and hear. (XI)

Seguindo o pensamento de Çağlayan, de facto, Volta à Terra leva o espectador por uma viagem que nos obriga a repensar o espaço e a vida de Uz, que parece funcionar como um microcosmos no complexo momento que o país atravessava, em particular uma crise económica que forçou grande parte dos portugueses a abandonar o país. Não me parece, no entanto, que o realizador esteja aqui a defender este estilo de vida, mas sim a registá-lo de um modo e contexto específicos, tal como o próprio indica numa entrevista, homenageando “uma forma de ser não consumista, antes respigadora, não individualista, antes comunitária, de uma consciência profunda do meio envolvente, de uma empatia com a natureza e com os animais, no fundo mais primordial” (Sol, Plácido, 2015).

A ideia para o filme surgiu de um contexto muito particular, que foram os anos da crise de 2010-2014 em Portugal. Confrontado com uma dura realidade económica, o realizador refugiou-se em Uz, a sua terra natal, decidindo fazer um filme onde a crise parecia não afectar as pessoas tão directamente. Conhecer todos os habitantes da aldeia facilitou o processo de as filmar, o que contribuiu igualmente para cumprir com o seu objectivo em Volta à Terra, realizar “um filme em que o principal dispositivo fossem as pessoas, a força do trabalho, sem uma postura de estudo etnográfico ou ambiciosa intelectualmente” (Sol, Plácido, 2015).

Contudo, reside no filme uma certa contradição que advém precisamente daquilo que as imagens revelam: por um lado, a restante comunidade de Uz, os seus gestos e o seu quotidiano onde a crise parece não afectar as pessoas; por outro lado, a crise está presente de diferentes formas: no vazio da aldeia, nos seus poucos habitantes, nos escassos recursos, na dureza da vida e da paisagem, no regresso dos imigrantes no período de verão, e nos comentários que vão surgindo quer por via dos habitantes quer pela rádio ou pela televisão onde são apresentadas notícias sobre o momento que o país atravessava. Estes são cruciais para contextualizar o filme.

Em algumas das entrevistas de Plácido, o realizador afirma que a sua intenção era a de um registo em que, como o próprio aponta, empurrou a “realidade para a frente da câmara” e é nessa “realidade” que o espectador se vê imerso e perante as contradições que enumerei anteriormente. Assim, se a paisagem natural é crucial para o filme, incluindo para sublinhar o silêncio, talvez o seja ainda mais a paisagem humana que a habita e sobrevive através dela. Aliado a esta surge a paisagem animal, cujo registo, indissociável no filme do quadro humano – e é de diferentes quadros que o filme se alimenta3 –, é essencial para compreender outros ciclos, também eles com conexão à paisagem natural, como o ciclo da vida e da morte, observável quando um dos animais dá à luz, mas também sempre que um destes animais é morto.

Consequentemente, a matéria paisagística, humana e animal partilham o ecrã e revelam-se na força da imagem. Se, por um lado, seguimos as histórias do Sr. António e de Daniel, duas gerações distanciadas pelo tempo, por outro, nesse percurso observamos as suas actividades inseridas num mundo profundamente artesanal, como o cinema que as regista. Como tal, somos confrontados frequentemente com “práticas rústicas e ancestrais” (Matos Cruz, 159) – ligadas directamente ao mundo rural – que, por sua vez, se cruzam com as outras actividades da comunidade de Uz, como é o caso da preparação das festas de verão.

É nesse ciclo que Plácido faz uma viagem em que nos dá conta das diferentes camadas dessa comunidade, quer do ponto de vista tradicional, quer do ponto de vista dos seus desejos, em particular de Daniel, que parece ser quase uma extensão do Sr. António. Um o emigrante regressado dos Estados Unidos que voltou para comprar um pedaço de terra e viver ali, e outro que, sendo jovem, quer assentar e encontrar uma rapariga. Esta “realidade” é reconhecida pelo próprio realizador que, em relação a Daniel e o Sr. António, afirma:

Conheço o Daniel desde que nasceu: ele é feliz, consciente do que tem e não tem e do que poderia ter, sem no entanto querer mais. Esse é talvez o maior problema ocidental, querer sempre mais. É muito sábio da parte dele saber aquilo de que quer cuidar. Ao mesmo tempo, o Daniel tem um discurso idêntico ao de um senhor de 70 anos; nesse sentido António espelha o futuro dele. António voltou, comprou a maior quinta na Uz e transformou-se num escravo do trabalho. (Sol, 2015)

O comentário de Plácido confirma as ideias destacadas anteriormente: apesar de Uz representar, em parte, um mundo no qual parece não haver crise, esta também ilustra o complicado destino que domina as suas gentes e, por consequência, o país – ficar é manter uma vida sem grande hipótese de um futuro melhor; sair implica deixar a casa e o país e regressar é voltar à vida difícil que se abandonou. A ideia de regresso é importante no filme porque aponta, primeiro, para o realizador que retorna à terra para filmar as suas gentes em tempo de crise e, segundo, para o regresso que é feito no Verão por parte daqueles que foram forçados a partir também no período de crise.

Ao mesmo tempo, estes movimentos ligam-se, por sua vez, com a rotação da própria terra e a povoação de Uz, como nota Plácido: “No Inverno não há acontecimentos sociais além da ida à missa. Na Primavera começam os trabalhos em colectivo. No Verão aparecem os visitantes. No Inverno volta-se a uma espécie de solitude, os campos estão em pousio.” (Plácido, 2014) É esta última observação que me leva à segunda matéria em discussão nesta apresentação: as imagens.

Sobre Regressos: “Volta à Terra”

Em Volta à Terra outras imagens duplicam-se para lá daquelas que o realizador filma, criando ecos específicos e inscrevendo assim o filme em diferentes tempos: o tempo de Uz, composto pelos distintos quadros mencionados mais acima, e o tempo fora de Uz, com o qual o primeiro contrasta.

Consequentemente, e apesar de Uz parecer imune à crise, ela está presente de diversas formas: nos movimentos de regresso e partida dos imigrantes, incluindo o Sr. António; nos diálogos dos habitantes em relação à realidade que os envolve como, por exemplo, nas inevitáveis mudanças como a chegada da TDT, mas também nos momentos em que a imagem fixa a paisagem que, apesar de poética, sublinha uma ideia constante de ausência (e eventualmente de austeridade).

Ao mesmo tempo, ecoam referências à crise, como notam Silva, Guerra e Santos (2018) quando Plácido regista a “tenacidade e simplicidade dos incansáveis trabalhadores que [parecem] resistir a um declínio quase fatal”. A crise entra também em Volta à Terra nos momentos em que a televisão ou a rádio estão ligadas e em que são audíveis as vozes dos políticos responsáveis pela entrada da troika em Portugal que implementou medidas rigorosas no país, originando um período de grandes dificuldades e provocando a saída de mais de 200 mil portugueses. E, assim, a crise que não está presente em Uz revela-se de outras formas, em particular na desertificação dos espaços rurais e da falta de oportunidade nelas existentes, mesmo para aqueles que, como Daniel, planeiam ficar por ali. É aqui que o jogo entre o documentário e o ficcional parece assumir um papel central, pois quer Daniel, quer os outros rapazes da terra, sonham em poder assentar e encontrar uma rapariga com quem cá casar.

Numa das cenas em que a ficção invade a realidade, Daniel chega mesmo a travar amizade com uma ex-colega de escola que vive no estrangeiro, mas não dá em nada. É, aliás, este um dos momentos mais poéticos do filme: sentado numa rocha, telefona à rapariga para se encontrarem, mas esta desculpa-se desse encontro, deixando-o votado à sua solidão. O telemóvel, objecto que permite encurtar distâncias, revela-se aqui essencial para marcar o afastamento e para acentuar o modo de vida de Daniel que fica com o coração partido.

Ainda no contexto das imagens, e regressando especificamente a Plácido, é de salientar que o realizador, em entrevista, aponta várias influências para a realização de Volta à Terra. Se, por um lado, este parece não querer “repetir as fórmulas” (Plácido, Sol, 2015) de filmes como Le Quattro Volte, de Michelangelo Frammartino (2010), por outro o realizador aproxima-se de obras como E a Vida Continua (1992), de Abbas Kiarostami – pela utilização de não actores – e Aquele Querido Mês de Agosto (2008), de Miguel Gomes pela forma como explora o terreno e os temas tipicamente portugueses, influências inclusive que menciona também numa entrevista4.

Todavia, um outro filme ecoa em Volta à Terra. Refiro-me a Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, não tanto pelo modo como funde vários discursos numa “miscelânea obviamente não conceptual, feita do discurso lírico visível (do poeta), do discurso épico esboçado (do antropólogo dos ritos, do sociológico), e do discurso dramático (da mise-en-scène teatral)” (1976), como observa Jorge Listopad, mas pela forma como filma as matérias que compõem o filme. À semelhança de Reis e Cordeiro – com as devidas distâncias – Plácido também parece aqui avançar com uma “estética dos materiais”, concentrando-se, como nota Cucinotta “em reflexões acerca da paisagem, [...] do conceito de família e do poder que a natureza tem na atitude do homem” (2012: 157). E como não lembrar do poético fim do filme de Reis e Cordeiro?

Em Volta à Terra quer os materiais brutos, quer as pessoas que ocupam a obra, como referido no início desta apresentação, são a chave do filme, o que é notório em diversos momentos, mas em particular no plano inicial e no plano final do filme. Se o filme abre com a câmara câmara estática que segue um reboque e no trabalho sobre a terra – e as muitas tarefas que se lhe impõem –, este termina com um momento “poético” em que Daniel, percorrendo a paisagem invernosa de Uz com o gado, desaparece por entre um intenso nevoeiro. Por alguns segundos resta apenas um ecrã branco com um grão particular. Se este momento poderá ser encarado como a confirmação da simbiose entre homem e natureza, ele também enquadra “o quotidiano destas gentes, revelando a sua poesia a par da sua brutalidade”, como o realizador refere.

Terminar o filme com esta cena é dar continuidade à viagem das várias personagens que ocupam esta história, sabendo que regressarão com os instrumentos que lhe são conhecidos para trabalhar a terra reportando-se, no fundo, a um verso de um poema de António Reis, “o regresso do meu sangue ao coração”. Esta é paralelamente uma cena que alude aos “campos em pousio” – a imagem fixa a duplicar a paisagem imóvel, em repouso, e ao regresso do espectador à terra e à viagem que empreendeu desde o início do filme.

Notas Finais

1Note-se igualmente, que as actividades relacionadas com a terra são também encaradas ou reduzidas a meros espectáculos, algo que pode ser visível na cena em que, durante o período das tradicionais festas de verão, os habitantes de Uz executam uma dessas actividades enquanto os que regressam do estrangeiro os observam.

2Veja-se a introdução bastante completa relativamente a este assunto que Tiago de Luca e Nuno Barradas Jorge nos oferecem no volume Slow Cinema, publicado pela Edinburgh University Press em 2015.

3Note-se, por exemplo, dois momentos em que a ideia de “quadro” é facilmente identificável, seja pelas escolhas a nível de enquadramento, seja a nível estético. Refiro-me ao momento em que os trabalhadores de Uz estão a almoçar e quando o realizador filma o nascimento de uma bezerra num estábulo. Em ambos, Plácido fixa a câmara, deixando o momento acontecer numa espécie de “tableaux vivant”.

4Questionado sobre rever-se em Aquele Querido Mês de Agosto o realizador responde: “O filme do Miguel surge mais como uma confirmação de que era possível fazer em terreno português o que o Abbas Kiarostami me tinha mostrado aos meus 16 anos, com A Vida Continua, pegando em pessoas que não actores e pondo-as a viver o seu próprio papel. As primeiras obras dele, até O Sabor da Cereja, fizeram-me dizer: ‘É este tipo de cinema que quero fazer’. Não quis repetir as fórmulas de Les Paysans, de Raymond Depardon, com planos fixos de mais de dez minutos, retrato do que é ser um lavrador onde a mecânica está na palavra. Nem de As Quatro Voltas, de Michelangelo Frammartino, que também é muito lento e em que a câmara está muito distante das pessoas” (Sol, Plácido, 2015).

Bibliografia

Bruno, Giuliana. 2014. Surface: Matters of Aesthetics, Materiality, and Media, Chicago, Intellect Ltd.

Cucinotta, Caterina. 2018. Viagem ao Cinema através do seu Vestuário: Percursos de Análises em Filmes Portugueses de Etnoficção, UBI, LabCom.

Cruz, José-Matos. 2007. “Trás-os-Montes”. In O Cinema Português através dos seus Filmes. Ed. Carolin Overoff Ferreira, 151-158. Lisboa, Edições 70.

Çağlayan, Emre. 2018. The Poetics of Slow Cinema, Londres, Palgrave Macmillan.

Fernández, Horacio Muñoz e Villarmea Álvarez, Iván. 2015. “Tendencias estéticas del cine portugués contemporáneo” in Cinema Comparat/ive Cinema 6 (2015): 39-46.

Gambarato, Renira Rampazzo. 2010. “Methodology for film analysis: The role of objects in films” in Revistas Fronteiras – Estudos Mediáticos, 12(2): 105-115.

Harper, Graeme and Rayner, Jonathan. 2010. “Introduction – Cinema and Landscape”. In Cinema and Landscape: Film, Nation and Cultural Geography. Eds. Graeme Haper e Jonathan Rayner, 13-29. Bristol, Intellect.

Lisboa, Ricardo Vieira. 2015. Volta à Terra (2014) de João Pedro Plácido” in À Pala de Walsh. https://www.apaladewalsh.com/2015/07/volta-a-terra-2014-de-joao-pedro-placido/ Acedido a 19 de Fevereiro de 2022.

Listopad, Jorge. 1976. “Atrás dos ‘Trás-os-Montes’” in Revista Expresso: 22.

Rosário, Filipa; Villarmea Álvarez, Iván. “A paisagem no cinema: imagens para pensar o tempo através do espaço” in Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento 4 1 (2016): 55-63.

Plácido, João. 2015. “Empurrei a realidade para a frente da câmara” in Sol. https://sol.sapo.pt/artigo/401885/joao-pedro-placido-empurrei-a-realidade-para-a-frente-da-c-mara. Acedido a 20 de Janeiro de 2022.

Reis, António. 2017. Poemas Quotidianos, Lisboa, Tinta-da-China.

Silva, Augusto Santos; Guerra, Paula e Santos e Helena. 2018. “When Art Meets Crisis: The Portuguese Story and Beyond” in Sociologia, Problemas e Práticas, 86: 26-43.

Filmografia

Aquele Querido Mês de Agosto (2008). De Miguel Gomes. Filme.

E a Vida Continua (1992). De Abbas Kiarostami. Filme.

Le Quattro Volte (2010). De Michelangelo Frammartino. Filme.

Trás-os-Montes (1976). De António Reis e Margarida Cordeiro. Filme.

Volta à Terra (2014). De João Pedro Plácido. Portugal. Filme.