Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Alterity, Dialogism and Polyphony through the film Encanto

Alteridade, Dialogismo e Polifonia através do filme Encanto

Natália Queiroz de Oliveira Souto

Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal/ Universidade de Brasília, Brasil

Abstract

This work recognizes the ability of cinematographic language to create opportunities for the construction of meanings about the world and its environments, about individuals in their relationships and interactions with others and with themselves. And it aims to analyze the alterity, dialogism and polyphony that permeate the constitution of individuals, in the light of cultural-historical psychology, through the film Encanto (2021). In this work, the filmic narrative is built on the tension between the expectations of the members of the Madrigal family waiting to receive a gift, which would give them with extraordinary powers or abilities to help in the community in which they live. In the context, the challenging reality of a family member not graced with the gift stands out. The story offers rich moments of verbal and non-verbal dialogic interaction between the characters, with interactions full of meanings and polyphonies that are established in family relationships. In its plot, the film exposes the reality of Maribel that is constituted in the possibilities and interactions available to her, as the common person - without powers - living surrounded by special people, endowed with supernatural abilities, recognized, applauded and approved, which reinforce the every moment the ordinary existence of the character. Throughout the work, the concepts of alterity, dialogism and polyphony offer the central theoretical support for the structuring of the adopted perspective, providing tools to deepen the reflection on the constitution of the self in the context of relationships and interactions with the other, so recursive, powerful and transformers.

Keywords: Alterity, Dialogism, Filmic Narrative, Interaction, Polyphony

Introdução

Desde a invenção do cinematógrafo, em 1985 (Aumont et al. 2012) o cinema e a sua linguagem característica têm consolidado seu lugar no âmbito das práticas socioculturais. Como produto cultural, a sétima arte vem expandindo suas temáticas e categorias, desenvolvendo novas técnicas e tecnologias, ampliando seu alcance de público, tornando-se um processo de expressão cada vez mais sofisticado e como sempre, descortinando novos pontos de vista. (Aumont et al. 2012; Vanoye and Goliot-Lété 2012; Metz 2019).

E são muitos os pontos de vista descortinados pelo filme Encanto (2021). A obra lançada em 2021, é uma produção da Walt Disney Animation Studios, sob a direção de Jared Bush e Byron Howard, com 1h53min de duração e classifica-se na categoria de fantasia, animação e musical, de indicação livre. A linguagem da produção é predominantemente informal e apresenta grau de apreensão acessível e fácil, ao mesmo tempo que é profundamente simbólica e instigadora, oportunizando múltiplas camadas de construção de sentido. A narrativa fílmica, constitui-se centralmente em torno da formidável e mágica família Madrigal e do milagre que os acolheu e abrigou, distribuindo os dons mágicos a todos os membros da família, menos a Mirabel, a carismática e divertida protagonista da trama.

Propondo-se a aproximar duas grandes áreas como o cinema e a psicologia, este trabalho está estruturado basicamente em duas partes convergentes e que delinearam-se assim como opção didática, pela convicção das estreitas articulações entre as mesmas. A primeira parte situa a psicologia histórico-cultural (Vygotsky 2008; Leontiev 2021; Valsiner 2012; Zittoun, Mirza, and Perret-Clermont 2007; Zittoun 2012; Wertsch, Río, and Alvarez 1998), como campo epistêmico e metodológico que se configura como interdisciplinar na compreensão dos fenômenos da subjetividade do indivíduo em intensa - intrínseca e extrínsecamente - interação com o ambiente sociocultural, o qual dispõe de suas propriedades históricas.

Segue-se uma breve discussão sobre a linguagem filmica (Martin 2005; Metz 2019) e por fim, uma sucinta exposição sobre os conceitos de alteridade, dialogismo e polifonia elaborados por Bakhtin (Magalhães and Oliveira 2011; Ponzio 2018; Bakhtin 2011; 2013; 2020; Volóchinov 2018), que não temos a pretensão de estender demasiadamente pelo escopo do estudo, que nesta parte persegue o intuito de delimitar o contexto para a execução do objetivo central do trabalho: analisar a alteridade, o dialogismo e a polifonia que permeiam a constituição de si dos indivíduos, à luz da psicologia histórico-cultural, a partir do filme Encanto (2021).

Na segunda parte, realizamos uma abordagem mais descritiva e panorâmica da obra, destacando e analisando excertos da narrativa fílmica de Encanto e tecendo aproximações com diálogos entre os elementos cênicos e do enredo, que funcionam como representação dos construtos bakhtinianos, ampliando as possibilidades de compreensão do processo de constituição de si, suas reverberaçoes e engendramentos, através da relações consigo e com o outro, que permeiam todo o desenvolvimento humano.

Aproximação entre as linguagens do cinema e a psicologia histórico-cultural

Nesta sessão do texto, expõe-se brevemente o potencial de sensibilização da linguagem fílmica e a abrangência heurística da psicologia histórico-cultural, para refletir sobre a construção de significados a respeito do mundo, seus ambientes e os indivíduos em suas relações e interações com o outro e consigo mesmo, culminando no desenvovimento de si e do seu contexto de maneira recursiva.

A linguagem cinematográfica

Com sua escrita própria, essencialmente por meio de imagens, sons e movimento, a linguagem cinematográfica assume estilos peculiares e flexíveis, além de simbolismo em seu processo de expressão (Martin 2005; Metz 2019). Discutindo a linguagem fílmica, em seus avanços e reveses Marcel Martin (2005), argumenta que a realidade desta arte, se expressa na dimensão das circunstâncias históricas, ideológicas e culturais que tanto engendram como podem sofrer reverberação das narrativas fílmicas, ao demandar o potencial de percepção do seu público para uma determinada “invenção” proposta da realidade narrada (Metz 2019).

No exercício a que nos propomos, em uma visão analítica do filme, procura-se estabelecer um contato com a obra, respeitando sua autoria e o acabamento de sua apresentação,(Vanoye and Goliot-Lété 2012) constitui-se aqui, um fluxo articulado de palavras e olhares que se detém ao misto de movimentos, imagens e sonoridades que transformam o filme em um produto cultural, veículo semiótico, capaz de impregnar imagens, pensamentos e sentimentos, que dizem do ser humano e ao ser humano, simultaneamente, com as suas interações e interlocuções em determinado contexto (Metz 2019).

Nesta perspectiva, a linguagem cinematográfica, carrega em si a virtualidade intencional da autoria, do que pretende representar, ao mesmo tempo em que enseja e engendra no espectador, um posicionamento de construção de sentidos interpretativos e compreensivos sobre a temática e mesmo, sua extrapolação. Assim, ““falar” a linguagem cinematográfica, já é em certa medida inventá-la.” (Metz 2019).

Aspectos da produção como música, cenários, fotografia, efeitos, diálogos e enredo, articulam-se de forma bastante convergente e envolvente, constituindo uma bela caracterização do vilarejo fictício que leva o nome do filme, Encanto, geográfica e simbolicamente situado na Colômbia. A produção recorre à paleta de cores quentes e contrastantes bastante adequadas ao contexto natural, exótico e paradisíaco do enredo, com natureza vasta e exuberante circundando a casa dos Madrigal, assim como o vilarejo. O milagre, que assume grande importância na trama, ao distribuir dons mágicos à Família Madrigal, origina também sua casita mágica, assim como a pulsante Vila Encanto, liderada pela personagem coadjuvante, Alma Madrigal, a Abuela e matriarca da família.

É preciso ainda mencionar nesta apresentação da linguagem fílmica associada às peculiaridades da obra Encanto (2021), o seu caráter musical. A musicalidade do filme é pulsante, contextualizada, apresentando trilha sonora incorporada à narrativa e plena de problematização e significados, que possibilitam diferentes camadas de percepção e reflexão. Ao discutir a importância do papel dos recursos musicais, Francisco (2017) enfatiza seu potencial dramático e expressivo para configurar uma atmosfera capaz de sensibilizar, instigando emoções, sentimentalidade e insights, provocando a percepção do espectador. A autora evidencia que:

A trilha sonora, especialmente a música, pode compor os elementos constituintes do cinema e ser substancial no processo de transformação de uma obra literária para uma audiovisual (Francisco 2017, 54).

A Psicologia Histórico- Cultural

Como campo epistemológico, a psicologia histórico-cultural, percebe o contexto sociohistórico e cultural, em transformação e interação com os seres humanos, de forma dialética, e entende o desenvolvimento humano através da interação entre indivíduo e ambiente social, em uma localização espaço-temporal dinâmica (Vygotsky 2008; Leontiev 2021; Valsiner 2012; Zittoun, Mirza, and Perret-Clermont 2007; Zittoun 2012; Wertsch, Río, and Alvarez 1998).

A Psicologia Histórico-Cultural compreende a cultura como um elemento fundante na produção da existência e na constituição lógica reflexiva do pensamento, um ambiente de artefatos materiais e imateriais, que mediam a experiência humana de existência, e caracterizam a formação, o equilíbrio e a movimentação do pensamento humano (Cole 2003; Valsiner 2012; Geertz 2015; Wertsch, Río, and Alvarez 1998).

Considera-se na próxima sessão, os conceitos de alteridade, dialogismo e polifonia, conforme a proposição bakhtiniana ,(Bakhtin, 2010, 2011, 2013, 2020; Magalhães & Oliveira, 2011; Ponzio, 2018; Volóchinov, 2018) para a ampliação das perspectivas de compreensão, na dimensão do que se propõe este trabalho, em busca das interfaces, exemplificações e diálogos possíveis a partir do enredo e da linguagem fílmica expressa na obra Encanto (2021).

Dialogismo, polifonia e alteridade nos estudos bakhtinianos

Os conceitos de dialogismo, polifonia e alteridade, constituem-se de forma imbricada e em complexa articulação. O conceito de dialogismo emerge através da elaboração teórico-analítica de Mikhail Bakhtin, e ganha corpo em obras como “Problemas da Poética de Dostoiévski” (Bakhtin 2013). O dialogismo constitui-se como uma teoria do discurso, é considerado por muitos estudiosos como essência da teorização Bakhtiniana (Bezerra 2013) e é destacado em “Problemas da Poética de Dostoiévski”, como marca da complementaridade e da interação discursiva que são características das personagens literárias de Dostoiévski, em oposição ao pensamento unicista e monológico característico do romance até então. Conferindo destaque à uma ampla compreensão das relações dialógicas, Bakhtin argumenta que “tudo na vida é diálogo, ou seja, contraposição dialógica” (Bakhtin 2013, p.49; destaque do texto).

Na perspectiva Bakhtiniana, o discurso constitui-se como veículo da consciência individual que é dialógica e polifônica - em contraposição ao conhecimento objetificante. Nesta perspectiva, o ouvinte ocupa uma posição ativa, responsiva, na dinâmica de dialogicidade com seu interlocutor, partindo da premissa de que toda a compreensão do enunciado, da fala ativa, evoca respostas, tem natureza responsiva (Bakhtin 2011; 2013; 2020; Bezerra 2013; Volóchinov 2018). Conforme Bakhtin, o plano dialógico “não se constrói como todo de uma consciência que assumiu, em forma objetificada, outras consciências, mas como o todo da interação entre várias consciências, dentre as quais nenhuma se converteu definitivamente em objeto da outra”. (Bakhtin 2013, 18-19).

No âmbito do dialogismo, visões de mundo diversas, podem expressar-se de forma alternada, manifestando matizes divergentes ou convergentes, em uma dinâmica sempre aberta à novidade que irrompe de forma incessante. Esta irrupção apresenta-se impregnada de questionamentos e pontos de vistas inaugurais, superficiais ou profundamente elaborados sobre o significado dos fenômenos que se processam no ambiente histórico social, o qual circunscreve as consciências humanas não estagnadas, de sujeitos em desenvolvimento e em interação contínua, apresentando sempre múltiplos planos de significação (Bakhtin 2013; 2020; Volóchinov 2018).

No contexto destas elaborações teóricas, outro conceito fundamental é o de polifonia - uma multiplicidade de vozes, que podem articular-se de forma diversa, em torno de um mesmo fenômeno ou assunto (Bakhtin 2013; Bezerra 2013). O conceito é oriundo metaforicamente do universo musical polifônico, onde:

“As cinco vozes da fuga, que entram em ordem e se desenvolvem em consonância contrapontística, lembram a ‘condução das vozes’ no romance de Dostoiévski.” (Bakhtin 2013, 22-23).

Esta articulação harmoniosa das vozes dos múltiplos personagens e dos múltiplos planos na literatura, é entendida por Bakhtin como propriedade da obra dostoievskiana enquanto romance polifônico - um novo gênero de romance. Expondo a transposição da alternância musical de um tom a outro para o plano da criação literária, Bakhtin afirma que:

São vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema. Isso constitui precisamente a ‘polifonia’, que desvenda o multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos humanos (Bakhtin 2013, 49 destaque do texto).

No contexto polifônico, as vozes - volições singulares dos sujeitos, opiniões, escolhas - mantém sua autonomia enquanto combinam-se de forma coesa, sem que ocorra o silenciamento ou à excepção de uma(s) sobre a(s) outra(s), mas a articulação, resultante da interação deste contexto situado espaço e temporalmente (Bakhtin 2013).

No âmbito do discurso polifônico, as vozes figuram e configuram ideias, pontos de vista sobre a cultura, o humano, a sociedade, o mundo, apresentando ênfases convergentes e/ou divergentes, que se articulam no discurso e através do discurso, constituindo as partes integrativas deste, apesar de poderem apresentar -se como estranhas ou mesmo incompatíveis em seus contextos dialógicos. Na polifonia atualizam-se e coexistem uma multiplicidade e uma complexidade de pontos de vistas (Bakhtin 2013, 41) imbricados, como na vida.

Como uma multiplicidade de vozes, que ora convergem e ora divergem, por suas percepções ou posições ideológicas diferenciadas, a polifonia é parte constitutiva e ecoa na enunciação do sujeito, que em seus discursos, expressa também essas vozes que o habitam, e que reverberam sobre as significações que constitui, implicando-as. Na perspectiva da polifonia, para Bakhtin, o “eu” é fundado na relação com o “tu”, por meio dos discursos, perspectivas, expectativas e saberes partilhados (Bakhtin 2011; Silva and Borges 2017; Pires and Tamanini-Adames 2010).

Em Bakhtin, a linguagem é entendida como prática social. Na perspectiva do dialogismo bakhtiniano, instaura-se a interdiscursividade como natureza da linguagem, como uma prática interativa que pressupõe o relacionamento entre o eu e o outro, em um processo de inter complementaridade. Nesta dinâmica, ocorre a ênfase no sujeito, nenhum dos sujeitos de um discurso exaure ao outro. É defendida a compreensão de que ao esgotar, ao concluir o outro, este é objetificado, transformado em coisa, tem sua consciência usurpada (Bakhtin 2013; Bezerra 2013). Na dimensão do dialogismo e da polifonia, a consciência decorre não do isolamento, mas da interação e do convívio com muitas outras consciências – a alteridade, o outro – que desfrutam de direitos iguais e se respeitam – não perdem sua existência como consciências e vozes independentes (Bakhtin 2013).Surge aqui, no âmbito da reflexão bakhtiniana, uma discussão profícua sobre alteridade, como uma dimensão relacional onde ocorre o reconhecimento do outro como potência para o surgimento, desenvolvimento e sustentação do eu. Problematizando a complexidade da relação eu-outro, para Bakhtin

Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. o homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro (2011, 341).

O sujeito, assume a percepção de si mesmo como existência, e se constitui, manifestando-se, orientando-se em direção ao outro. Não há caminho para a constituição do sujeito que não seja através do outro.

Eu tomo consciência de mim mesmo e me torno eu mesmo só me revelando para o outro, não posso passar sem o outro, não posso construir para mim uma relação sem o outro, que é a realidade que, por minha própria formação, trago dentro de mim, exerce um profundo ativismo em relação a mim
(Bezerra 2013, XXII).

A relação da alteridade eu-outro(s) estrutura-se em uma configuração dialógica e polifônica que engendra a constituição de si, da consciência sobre si e sobre o outro, através do discurso, situado sócio-histórica e culturalmente. Nesta abordagem a linguagem assume uma centralidade na fundação e mesmo no processo de desenvolvimento humano (Bakhtin 2020, 2011; Volóchinov 2018), ampliando possibilidades, visões de mundo, introduzindo novos horizontes, através do outro, do diverso que evoca, provoca, interroga, complementa e sustenta o eu, condicionando a existência como experiência sociocultural e espaço-temporal.

Na discussão sobre alteridade, Ponzio situa o outro em uma centralidade pois em sua compreensão:

É na relação com o outro que se decide o nosso próprio destino, sem o outro não vamos a lugar nenhum, e a ideia de que contra, e em conflito com o outro, presos em nossa própria identidade, morremos e a própria vida, se assim a podermos chamar, rapidamente se enfraquece, se esclerosa e seca (Boeno 2013, 376).

O ordinário que cresce entre extraordinários

“Abra los ojos!” (Encanto 2021), é o convite que incita o expectador já na primeira cena da obra, através de uma voz feminina, ao fundo de uma tela escura.Aos poucos, a imagem surge culminando com a visão em close-up do rosto de Mirabel ainda criança com olhos bem fechados. A criança abre lentamente os olhos e pergunta à avó que a acolhe: “Então é aqui que a nossa magia começa?” (Encanto 2021). A matriarca Alma Madrigal, passa a narrar os fatos da história familiar que os trouxeram para aquele lugar. Relata que por ocasião do nascimento dos três filhos gêmeos, a família foi forçada a deixar a casa e o lugar em que moravam. Juntamente com outras famílias em perigo, no caminho da fuga, o avô, Pedro Madrigal, sucumbiu ao embate com os perseguidores. Neste momento, a vela que os guiava em meio à noite, se tornou mágica e sua chama não mais se apagava.

Este milagre os abençoou fazendo surgir um refúgio entre a floresta, fez surgir a casita da familia Madrigal e o vilarejo na Colombia, que dá nome ao filme, Encanto. À medida em que os filhos foram crescendo, o milagre - a vela mágica- abençoou cada um com um dom para ajudar a comunidade. O dom era revelado no momento da abertura de uma porta especial que dava acesso ao cenário extraordinário que passava a ser o quarto daquele integrante da família. O mesmo ocorreu aos netos. Os dons eram usados a favor da comunidade do vilarejo. É possível aqui,observar a atualização das polifonias que permeiam as relaçoes dialógicas abertas entre os Madrigal (Bakhtin 2011, 2013).

Neste momento Mirabel está prestes a fazer a abertura da porta especial para receber seu dom, e imbuída de expectativa, repete para si a sentença: “deixar minha família orgulhosa” (Encanto 2021). Mirabel confiante toca na maçaneta do que seria a sua porta mágica, o portal para o seu dom. A cena muda bruscamente e passa a retratar o dia a dia da jovem Mirabel, a partir da exploração da musicalidade nas cenas com músicas cujas letras apresentam os dilemas cotidianos dos integrantes da família às voltas com seus dons e serviços à comunidade. Todos na comunidade estão ocupados do preparo da noite em que Antônio - primo de Mirabel - é a nova criança Madrigal que receberá o dom mágico. O fato de Mirabel não ter recebido um dom, vem à tona novamente. Este fato é sempre comentado tanto pela família, como pela comunidade, quando não em palavras, em expressões gestuais. Mirabel mantém uma atitude positiva e o compromisso de deixar sua família orgulhosa.

A narrativa fílmica se desenrola, com o aprofundamento da exposição da realidade de Mirabel Madrigal que se constitui nas possibilidades e interações de que dispõe, como a pessoa comum – sem os poderes conferidos pelo dom mágico – vivendo cercada de pessoas especiais, dotadas de habilidades sobrenaturais, reconhecidas, aplaudidas e aprovadas, que reforçam a cada momento a existência ordinária da personagem. Não é a pretensão desta proposta perseguir o “mito de uma descrição exaustiva do filme” (Vanoye and Goliot-Lété 2012, 10), mas perceber nuances da história que oferecem ricos momentos de interação dialógica verbal e não verbal entre as personagens, com interações plenas de significados e de polifonias que se estabelecem nas relações familiares, adotando uma perspectiva de diálogo com a obra, explorando-a através de uma lente teórica, o que permite ampliar a percepção da mesma, movimentando suas significações (Vanoye and Goliot-Lété 2012).

Na grande noite dos Madrigal, toda a comunidade se reúne na casita. Abuela realiza um discurso sobre o orgulho da tradição e da cerimônia de receber o dom. O conteúdo desta fala, associada à estética do quarto de Mirabel, delimitam e materializam o posicionamento de Mirabel em um lugar de quem não tem orgulho por ser quem é e sequer orgulha aos membros da família extraordinária. Com medo, Antônio pede que Mirabel o acompanhe no percurso até o dom. A esse pedido a família reage gestualmente com espanto e certa contrariedade. Tem início aqui, talvez a cena mais densa da animação. Mirabel tristemente atualiza a experiência de infância em sua cerimônia quando, tocando a maçaneta, presenciou atônita o movimento inverso da porta, cuja magia transformou-a em parede e a chama da vela tremula e enfraquece quase apagando-se, gerando um misto de consternação e terror aos presentes. Os conceitos centrais aqui nesta proposta podem ser percebidos de maneira extremamente complexa e articulada. A relação dialógica estabelece-se na articulação interdiscursiva dos enunciados com sua potência verbal e não verbal, evoca dialogismos já instaurados na constituição subjetiva e familiar. Os dialogismos que coexistem entre os enunciados e ecoam na polifonia em múltiplas significações através dos sentidos produzidos, da responsividade evocada pelo enunciado (Bakhtin 2011, Volóchinov 2018).

Tudo corre bem na cerimônia de Antônio, que recebe seu dom e passa a compreender e interagir com empatia com os animais, sua porta personaliza-se e todos celebram aliviados. Abuela, relata que sabia que ele ia receber um dom tão especial quanto ele, e indiretamente através das polifonias engendradas e que se engendram no dialogismo, (Bakhtin 2011, 2013). reafirma o sentimento de Mirabel em sua identidade comum, seu não pertencimento. A família se reúne para uma foto, sem incluir Mirabel. Esta cena tem importante impacto para a narrativa, pois a imagem permanece pausada e Mirabel passa a cantar dizendo que está legal e que não vai chorar, mas reafirma que ainda é da família Madrigal, declarando porém, que se sente deixada para trás. Chama a atenção e é bastante rica a forma como a personagem lida e expõe seus sentimentos em relação as tensões nas quais se insere, assumindo uma perspectiva dialógica consigo frente à situação potencialmente desestruturadora, através da expressão musical. No destaque, o contraste de sentimentos entre a família e a comunidade recebendo o dom e a forma como Mirabel se percebe no contexto, alternância entre luz e sombras, expressões faciais de alegria e sofrimento caracterizam os três conceitos explorados de dialogismo, polifonia e alteridade.

Após cantar, sozinha, Mirabel presencia uma telha da casa cair, na sequência o piso tremula e apresenta rachaduras que se espalham pelas paredes alcançando até a janela mais alta, onde a vela permanece e a chama da vela vacila. Ao informar que a casa estava correndo perigo sem ter provas para apresentar, Mirabel fica mais desacreditada. Em cena na cozinha, a fala da mãe de Mirabel oferece o acabamento possível na dinâmica da alteridade ,diante da inconclusibilidade do enunciado (Bakhtin 2011, 2013), com uma percepção de Mirabel no contexto de interação dialógica com a sua mãe:

Eu queria que você conseguisse se ver do jeito que eu te vejo, você é perfeita do seu jeitinho, você é tão especial quanto qualquer um desta família ... tem um cérebro maravilhoso, imenso coração, óculos legais... (Encanto 2021).

O enunciado de sua mãe reforça e oferece sustentação ao processo de constituição de si, da filha, em uma dinâmica dialógica e de alteridade, reconhecendo a filha como outro ao mesmo tempo em que a posiciona em sua singularidade autônoma, não reificada (Bakhtin 2013).

Mirabel descobre que em secreto a Abuela também percebe que o milagre corre risco, a jovem então reforça seu entendimento, compromete-se a salvá-lo e inicia investigações. Após suas descobertas Mirabel tenta explicar para Abuela, o motivo pelo qual ela aparece na visão de Bruno, quando não recebeu o dom. Sem dar ouvidos Abuela declara que as rachaduras na casa, a partida de Bruno (seu tio), o enfraquecimento dos poderes da Luíza e o descontrole de Isabela (suas irmãs), são culpa de Mirabel, em seu propósito de destruir a família. Diante da declaração, Mirabel conclui que nem ela, nem qualquer outro membro da família, com ou sem poderes, nunca seria boa ou bom o bastante para a avó, mesmo que tentasse. As rachaduras da casa aumentam com a discussão de Mirabel e Abuela, tudo começa a ruir e, apesar de tentar Mirabel, não consegue salvar a vela que acaba apagando-se. O Encanto acaba-se e todos ficam desolados sem saber o que fazer, como pensar ou se comportar em vidas ordinárias.

A alteridade de Mirabel, exposta através do dialogismo estabelecido no interior da família, traz em seu bojo polifonias sobre o ser e o dever ser, anteriores a sua existência, alimentadas e reveladas na dinâmica discursiva por meio da qual – sua maneira outra de ser no contexto da família Madrigal, se impõe na aproximação e na relação com os seus familiares, assim como a alteridade destes se impõe à ela, evidenciando tanto a forma extraordinária de seus familiares existirem por intermédios dos dons mágicos e dos milagres que realizam, quanto a forma de Mirabel coexistir, interagindo sem habilidades mágicas. Por meio desta tensão Mirabel interage social e culturalmente, observação que evidencia o impacto da visão do outro, do olhar do outro sobre o sujeito na sua percepção e valor sobre si; de forma a perceber-se como sendo o que o outro reconhece e admira em si.

Todos os membros da família são salvos do desmoronamento. Mirabel se afasta para longe dos escombros e Abuela vai em busca da neta. Em diálogo aberto, a garota afirma que a avó queria que ela fosse alguém que ela não era. Seguindo uma proposta dialógica (Bakhtin 2011, 2013), Abuela confessa que achava que seria uma mulher diferente, que teria uma vida diferente e reconhece sua parcela de culpa na maneira como conduziu a família. Mirabel defende que não há nada que tenha sido arruinado que juntas, não possam consertar. Em um abraço restaurativo, Abuela reconhece que Mirabel foi um presente para ajudá-la. Nesta sequência de cenas, é possível entender com base em Ponzio (2018), que ocorre um fechamento da ideia de identidade da família extraordinária com dons mágicos, imaginada e nutrida pela Matriarca Alma, que passa a abrir-se à alteridade de Mirabel, das pessoas da vila, de tudo que em sua diferença, é capaz de atestar sobre o eu, o outro e o nós em sua potência de ser.

As cenas de fechamento da produção, remetem à reconstrução da casa, com o amplo apoio da comunidade, que se junta a eles, com ferramentas comuns e sem talentos sobrenaturais, delineando a ideia de que as pessoas são bem mais que seus dons mágicos. Com a casa pronta, Mirabel, recebe a honra de abrir a porta com a nova maçaneta. Ao colocá-la na porta, Mirabel devolve a toda à vila de Encanto e à casa, a magia peculiar e passa a pertencer à foto final. Deste ponto de vista, Mirabel assume a posição que esperava desde a noite em que não recebeu seu dom mágico: ser percebida e recebida como parte legítima, de uma ótica dialógica bakhtiniana, daquela história, daquele tempo e daquele lugar, em sua singularidade, em seu vir-a-ser.

Conclusão

Ao abordar as interrelações entre dialogismo, polifonia e alteridade - os conceitos centrais deste trabalho brevemente discutidos com base nas contribuições de Bakhtin, sob a perspectiva da psicologia histórico-cultural, destaca-se não apenas a relevância, mas também as implicações da linguagem como fenômeno produzido socialmente, assumindo centralidade na produção da cultura nos contextos sociais para a constituição e para o desenvolvimento humano. Por meio dos excertos da trama e do enredo do filme Encanto (2021), apresentados através da linguagem cinematográfica, e aqui abordados em texto na modalidade escrita, foi possível delinear e discutir algumas articulações e exemplificações, como tessituras engendradas através das relações dialógicas, com suas polifonias abertas e inconclusivas quanto ao sentido que assumem em suas legitimas e reconhecidas alteridades, não objetificadas.

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Filmografia

Encanto. 2021. Jared Bush e Byron Howard. USA: Walt Disney Pictures. https://www.disneyplus.com/pt-br/movies/encanto/33q7DY1rtHQH acesso em 26 de abril de 2022