Abstract
This article discusses two artworks – The Miner, sound design performance, 2020 and Fragments of the Cage, multimedia installation, 2021 – that address and explore artistically the archive of the mining work from São Pedro da Cova, the role that the evocation of these workers memories represents and, therefore, the meanings present in both works that, through sound and image and their relationships, have used the heritage of memory to invoke the identity and path of the miner’s life.
Thinking of memory as a space for reflection becomes relevant in the environment of a contemporary world that often leaves us both alienated and besieged. In the context of contemporary artistic creation, and particularly the space of performance and installation, the archive has a central contribution in the necessary “emotional inscription” of memory as a vehicle for the awareness of reality.
The evocation of the miner occupies this space of consciousness, since the history and memory of these workers, and what unites them in the past as in the present, are, after all, their consciousness that they spent their lives digging up wealth that only brought them misery. Through the analysis of John Akomfrah’s film works, his vision of the artistic treatment of the archive, and the extensive heritage of documentary films about the workers from the São Pedro da Cova’s mining exploration, the realization of both artworks prospects the archive as vehicle for allegorical associations and discursive formations, seeking through sound and image the presence of another body of memory.
Keywords: Visual Art, Sound Design, Memory, Archive, Miner work
Introdução
No âmbito da realização de cada um dos trabalhos artísticos que aqui apresento, surgiram questões distintas e especificas ao seu desenvolvimento enquanto peça artística independente. Assim, a intenção do presente artigo não é a de ser uma mera assemblage genérica dos tópicos comuns a todos os trabalhos. Antes, através da análise das questões intrínsecas a cada produção, surge a reflexão acerca dos mecanismos através dos quais se materializou o objectivo de transformar o som e a imagem no veículo da memória, como a apresenta John Akomfrah (2012), como “um pré-requisito essencial para o ser”.
Apesar daquilo que moveu cada produção ter objectivos diferentes, os trabalhos contaram com o mesmo enquadramento conceptual como ponto de partida: relações do arquivo mineiro através dos diálogos entre o som e a imagem. Assim, os trabalhos presentes expressam dimensões distintas do relacionamento com esse arquivo e, portanto, implicações diferenciadas.
Na performance O Mineiro, coloquei-me em contacto com artefactos do trabalho mineiro, apresentando ao espectador a minha relação, através do toque, com esse imaginário e património. Na instalação multimédia Fragmentos da Jaula o som, transformado em texturas de luz e sombra, é veículo da reflexão acerca da fragmentação da memória e, numa invocação platónica, no confronto das camadas da realidade, num questionamento acerca da objectividade da imagem do arquivo.
O presente artigo irá, através da clarificação acerca dos dois trabalhos autorais acima referenciados, abordar as condições de trabalhar artisticamente o arquivo do trabalho mineiro, o papel que representa a invocação da memória dessas gentes e, portanto, os significados presentes em ambos os trabalhos que, através do som e da imagem e das suas relações, serviram-se do património da memória para invocar a identidade e percurso do mineiro.
O arquivo em John Akomfrah e o trabalho documental sobre a exploração mineira em São Pedro da Cova, Gondomar
The archive is the space of the memorial. The very few tangible memorials that say, ‘you have been here’. The archive is important because it is one of the places in which memorial attests to your existence. (Akomfrah 2012, s.p.).
Nascido no Gana, John Akomfrah é um artista e realizador britânico, cujas obras são caracterizadas pelas investigações sobre a memória, o pós-colonialismo, a temporalidade e a estética, explorando frequentemente as experiências das diásporas migrantes a nível global. O membro fundador do extinto Black Audio Film Collective é reconhecido por assentar a sua prática num trabalho de pesquisa, sistematização, organização, tratamento e montagem de materiais preexistentes de arquivos diversos.
Em vários momentos, Akomfrah posicionou a utilização do arquivo enquanto evocação que, posteriormente, vê na montagem, e na consequente colocação em contextos em que nunca foi percepcionada, configurações narrativas diferenciadas. Muitas vezes é-lhes retirado o som original, noutras existem alterações na tonalidade da imagem, contudo, é na organização em sequências lógicas por vezes surpreendentes que sobretudo reside o tratamento poético da imagem histórica.
The archive, especially the moving image archive, comes to us with a set of Janus-faced possibilities. It says, “I existed at one point and it’s possible that I could exist differently”. But in order to find that you need something else, which is not in the archive, which is the philosophy of montage. Montage allows the possibility of reengagement, of the return to the image with renewed purpose, a different ambition (Akomfrah 2015, s.p.).
Ao longo dos mais diversos trabalhos de Akomfrah, o arquivo, designadamente do passado colonial britânico, é uma ferramenta que transporta a imagem de um conjunto de vivências, por vezes embrulhadas num esquecimento colectivo, para reconfigurações poéticas, que ganham luz por via da apropriação criativa que, em Akomfrah, surgem na perfeita consciência das implicações da utilização da imagem do passado em contextos absolutamente distintos.
Eu parto da suposição de que tudo o que eu uso ou me aproprio vem com uma nota promissória. O importante não é apenas as pessoas que estão fora dos materiais de arquivo; realizadores, operadores de câmara, etc., mas também as pessoas dentro do material. Todos aqueles que consentiram em ser filmados estão a dar ao futuro uma espécie de nota, dizendo “quando vir isto amanhã - sou eu”. Tento encontrar quantas posso dessas notas promissórias e depois tenho que juntá-las, mas no presente. “Eu sei que disse que quer estar no futuro, mas gostaria de estar neste futuro com aquele tipo ou esta mulher?” Tenho que tentar seduzir cada fragmento para fazer uma promessa a outro fragmento, porque sem isso é impossível haver narrativa. (Akomfrah 2018, s.p.).
A utilização do arquivo do trabalho mineiro para a prática artística contemporânea terá de, como aliás em qualquer prática que se proponha a entrar no território da memória, considerar a importância da investigação para a recolha e posterior tratamento artístico dos conteúdos audiovisuais.
Ora, considerou-se como objecto de estudo, mais do que o trabalho mineiro em geral, a exploração das minas de São Pedro da Cova, uma freguesia no concelho de Gondomar e no distrito do Porto.
Após a descoberta do carvão em finais do século XVII, São Pedro da Cova, que era sobretudo uma comunidade rural, passou a ser importante centro industrial na região norte de Portugal, com a vinda de milhares de trabalhadores para a exploração das minas de carvão. “Para termos uma ideia da sua importância, na década de 30 do século passado, no Complexo Industrial Mineiro de São Pedro da Cova chegou a extrair-se 70 por cento da produção nacional de carvão” (Correia, Vieira e Santos 2021, 13).
A dureza do trabalho é descrita por Émile Zola, no seu romance Germinal, onde, aliás, contactou bem de perto com o trabalho mineiro do norte de França:
O poço devorador tinha engolido sua ração diária de homens, cerca de setecentos operários que trabalhavam neste horário no formigueiro gigante, furando a terra em todos os sentidos, esburacando-a como a uma madeira velha atingida pelo caruncho. E, no meio do silêncio pesado, do esmagamento das camadas profundas, poder-se-ia ouvir, colando o ouvido à rocha, o laborar desses insetos humanos em marcha (…). (Zola 2013, p. 33)
Ora, a natureza do próprio trabalho, isto é, terríveis condições de vida a que estavam sujeitos os trabalhadores mineiros e as suas famílias sofriam, num quadro marcado pelas doenças consequentes do fraco equipamento de protecção e das longas horas de trabalho, associado ao facto dos trabalhadores terem a proximidade natural do facto de residirem na mesma freguesia, levou a um forte movimento de organização do movimento operário, num enquadramento histórico adverso pela natureza opressora da ditadura fascista de Salazar. Também pela construção do Bairro Mineiro de São Pedro da Cova onde os trabalhadores, em troca do valor da renda, tinham, entre outras condições, de contratualmente verem um dos filhos trabalhar na mina, quando atingisse os 14 anos de idade. Destacam-se as greves de 1923 e de 1946, onde os trabalhadores disseram que “não podiam trabalhar com fome”. (Vieira 2016)
As galerias estão completamente alagadas. Lá em baixo o calor é insuportável. Têm de trabalhar descalços e quase nus, alagados pelo suor e encharcados pela água da mina, durante 9 horas. Só há 2 respiradores para toda a mina. (Museu Mineiro de São Pedro da Cova, 1982)
Apesar do encerramento da exploração mineira se verificar em 1970/72, apenas com a Revolução de Abril de 1974 a história dos mineiros de São Pedro da Cova começa a ser divulgada e difundida por diversos meios. Até porque, todos os trabalhadores, mesmo com a mina encerrada, viam-se em condições de vida paupérrimas. Rui Simões, autor de uma série de três curtas-metragens sobre a vila mineira de São Pedro da Cova em 1976, uma delas (O Museu, 1976) exibida no Festival Internacional de Cinema de Berlim, relata que “o filme foi uma criação colectiva, sendo construído com base num levantamento oral e fotográfico da terra, da gente e da sua memória” (Correia, Vieira e Santos 2021, 62). É nesse enquadramento que Simões desenvolve um trabalho em estreita colaboração com a população.
Quando Simões chegou a S. Pedro da Cova pela primeira vez, em 1975, já o CRM (Centro Revolucionário Mineiro) tomara conta das instalações das minas, fechadas desde 70, e do dia-a-dia desta comunidade, desenvolvendo obra social, alfabetizando adultos, acarinhando o associativismo, construindo casas com organizações de moradores e apoiado num gabinete do SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) (Público 2017).
Figura 1 - Rui Simões, No final da exibição do filme São Pedro da Cova, fotografia, 22 de Maio de 1977
No mesmo âmbito, em 1976 a RTP, num dos episódios da série de documentários intitulada Temas e Problemas, visita São Pedro da Cova e emite, no mês de Abril desse ano, o programa “Memórias das Minas de São Pedro da Cova”, com relatos de antigos mineiros e oferecendo uma visão pormenorizada do trabalho do Centro Revolucionário Mineiro e os testemunhos dos ex-mineiros. As imagens para o segundo trabalho artístico descrito neste artigo (Fragmentos da Jaula¸ Instalação Multimédia, 2021) são em parte retiradas deste documento.
O Mineiro, 2020, Sound Design Performance
Perante a questão “what are the possibilities for modern art of recreating the actuality of our world?” (Baudrillard 1981, 107), o arquivo sonoro, enquanto traços auditivos da realidade de outrora, apresenta-se como confronto entre as várias dimensões do tempo e, portanto, num “campo de experimentación para la asimilación transformadora de diferentes patrones de la relación com el mundo” (Rosa 2019, 370).
Contudo, a arte que considera o arquivo como ferramenta base da sua criação - Archive Art, como alguns lhe chamam - não deve considerar o arquivo “neither faithful to reality nor totally representative of it; but they play their part in this reality, offering differences and alternatives to other possible statements” (Farge 1993, 5). Esse desejo de servir-se do arquivo como ferramenta ao serviço de uma narrativa artística remota à questão de base que quiçá, como tantas outras, advém da nossa herança freudiana: porque é que nos recordamos das coisas? Ora, estando nós no universo do arquivo na criação artística, essa recordação transporta-se para a interrogação de qual é o papel do arquivo na criação desses outros “statements” na produção artística que, ao invés da reprodução historiográfica do arquivo, não procura a sua objectividade. Especificamente, relativamente à reminiscência que serve de evocação deste trabalho, qual é o lugar da memória do trabalhador mineiro, neste caso, de uma mina desactivada nos anos 70?
Eu tive dois manos que morreram queimados lá em baixo na mina. (…) Uma pessoa estava doente, ia ao doutor e ele não dava baixa. Eles eram capazes de dar com uma pedra em cima dum dedo e esfacelar o dedo todo para terem a baixa por saberem que estavam doentes e não podiam trabalhar. Isto era uma calamidade aqui nas minas, e era tudo contrário ao trabalhador. E se alguém levantasse um dedo, ameaçavam logo com prisão. (…) Eles não queriam que homem aqui nenhum fosse muito esperto.
(Transcrição de testemunho de um trabalhador das minas de São Pedro da Cova, Memórias das Minas de São Pedro da Cova, RTP, 1976)
Figura 2 - Adriano Miranda, Carvão de Aço, fotografia, 2017
A história e a memória dos mineiros de São Pedro da Cova, que os une no passado como no presente, são, afinal, a sua própria experiência de explorados. As suas memórias revivem, hoje, no sentido que conferem à sua luta.
O Mineiro é uma performance de arte sonora em que, numa improvisação livre, activam-se, com o toque, artefactos do trabalho mineiro, através da tecnologia, criando visualmente um “instrumento” que sugere a identidade retratada. Aos sons da exploração do carvão, juntam-se camadas sonoras construídas por instrumentos electrónicos que aludem e transportam a ferocidade, dureza e crueldade da exploração desumana cometida, sobretudo no séc. XX, a famílias inteiras, a homens e mulheres.
O objectivo da performance foi o de colocar em confronto esse ambiente, usando como veículo o som e, em especial, o toque. Isto porque é apenas com o toque que os artefactos do trabalho mineiro são activados. Cria-se, por conseguinte, a ilusão de que é, por exemplo, o Gasómetro, a Picareta e a Caixa de Explosivos que estão a “dar som”. Os objectos do arquivo museológico ganham uma nova vida: como se nos falassem da dureza, escuridão e ferocidade que testemunharam. Assim, o meu papel, enquanto performer, é o de “perguntar” com o toque. Iluminar o artefacto. Dar vida ao objecto, quase permitir que ele, finalmente, passados estes anos, dê som.
Figura 3 - André Araújo, O Mineiro, 2020, sound design performance, auditório do CCCI, Universidade de Aveiro
Tal noção de activação do objecto aproxima-se da noção de Hal Foster, em Archive Impulse (2004), que apresenta o objectivo do artista que trabalha o arquivo na contemporaneidade de “seek to make historical information, often lost or displaced, physically present” (Foster 2004, 4). Essa presença física ganha uma enorme camada de intensidade por dois motivos: em primeiro lugar, a presença do objecto é activada com o toque e, em segundo lugar, esse toque é o que permite que aconteça o som.
Existe, contudo, uma grande componente performativa, bem como uma forte presença da própria figura do performer. O objecto artístico que é visto trata justamente do contacto do performer com o objecto, como uma relação entre o passado e o presente. Eu, que coloquei “na minha mão a força” de poder activar aquele património, sou testemunha justamente da intensidade presente nesse acto reflectivo, mas marcante na transmissão da sensibilidade que traz como exemplo, para os dias de hoje, de uma classe que tinha a perfeita consciência da sua própria condição de explorados. É justamente isso que os distingue: a consciência de que gastaram a sua vida a escavar riqueza que a eles só trouxe miséria.
Ora, o arquivo é colocado ao serviço dessa intenção de criar uma performance musical evocativa da memória daqueles trabalhadores, mas essa memória surge de forma indirecta e a própria memória evocada é, até certo ponto, transformada, ‘imaginada’ ou ficcionada. Tanto Foucault como Benjamin, que apresentam a existência do arquivo como um local de poder cultural e de transformação social, não deixam de o ver como um lugar abstracto, “an imaginary terminus wherein cultural expressions find meaning through contingencies, in allegorical associations and discursive formations” (Simon 2002, 104).
Fragmentos da Jaula, 2021, Instalação Multimédia
Foucault apresenta a noção do arquivo enquanto entidade fragmentada e, segundo o autor, “the archive cannot be described in its totality and in its presence it is unavoidable. It emerges in fragments, regions and levels” (Foucault 2006, 29). O arquivo enquanto conjunto de pedaços que, conforme Sue Breakell descrevendo o pensamento de Derrida, diz ser também local de poder e autoridade, mas, ao mesmo tempo, ambíguo e cujos conteúdos têm uma natureza fragmentada – “the ‘presentness’ and absence of traces that make up archives, the fact that they record only what is written and processed, not what is said and thought” (Breakell 2008).
Esta necessidade de guardar registos e pedaços vê, provavelmente, o seu maior exemplo em Ilya Kabakov na instalação The Man Who Never Threw Anything Away, 1996:
The entire room, from floor to ceiling, was filled with heaps of different types of garbage. But this wasn’t a disgusting, stinking junkyard like the one in our yard or in the large bins near the gates of our building, but rather a gigantic warehouse of the most varied things, arranged in a special, one might say carefully maintained, order. (Kabakov 2006, 32)
Figura 4 - Ilya Kabakov, The Man Who Never Threw Anything Away, 1988, esquema da instalação
Uma parede cheia de pedaços de jornais dos últimos 10 anos deveria significar fragmentos da realidade desse período de tempo, ou até, a própria realidade ali explanada. Contudo, certos autores eficazmente desafiam esta concepção que desliga os jornais de quaisquer condicionalismos e apresenta-os como um objecto inalcançável e, sobretudo, incorruptível e imaculado. Pierre Bourdieu destaca-se nesta crítica afirmando a realidade presente nos jornais como uma face da uniformização do discurso, das notícias e do restante material por eles produzido (Bourdieu 1997, 32).
Fragmentos da Jaula é uma instalação multimédia onde o som, transformado em texturas de luz e sombra, é veículo da reflexão acerca da fragmentação da memória e, numa evocação a Platão, no confronto das camadas da realidade. Ao jornal - enquanto acervo inquinado do real - é projectada a descida do poço dos mineiros - no espaço da realidade da consciência e da dureza - e tingida pela luz que é som, resultante do facto de movimento da luz ser controlado digitalmente pelas variações sonoras, criando uma sensação de imersão, bem como de unidade na percepção espacial da própria instalação.
Ora, esse confronto é justamente mediado pelo som: é ele que ilumina o jornal e que o confronta com a realidade dura e cruel da sensação de descida ao inferno que era a descida da jaula - Jaula era o nome que os mineiros davam ao ascensor que os levava e trazia da exploração mineira. Bem sugestivo, também, das sensações por eles vividas e cujo imaginário foi transportado para o trabalho em causa - mas também é ele que se intromete nessa mesma descida, recheada de agitação e inquietação. A criação desse ambiente que se espera imersivo foi, para mim, objectivo primordial para despertar a consciência de quem assiste. Numa espécie de fragmentação da memória, esse trecho em loop de um poço que parece não ter fim é esse misto de consciência emocional e intensidade que no caminho para as profundezas, cheias de pó, escuridão e falta de ar, em confronto com a realidade crua e insípida do jornal, nessa suposta realidade que teima em intencionalmente fazer adormecer.
Para Susan Sontag, “the shock of photographed atrocities wears off with repeated viewings... In these last decades, ‘concerned’ photography has done at least as much to deaden conscience as to arouse it” (Sontag 2005, 15). Ora, na mesma linha de pensamento de Sontag, Roland Barthes quando afirma que a fotografia “completely de-realizes the human world of conflicts and desires” (Barthes 2000, 118), apresenta o medium enquanto neutralizador do julgamento próprio e individual, substituído pelo fotografo que já “tremeu”, reflectiu, julgou por nós, deixando-nos sem espaço para essa experiência.
Também John Berger argumenta que a fotografia representa uma “oposição à história” pela qual as pessoas afirmam as experiências subjetivas que a modernidade, a ciência e o capitalismo industrial têm feito tanto para esmagar. “And so, hundreds of millions of photographs, fragile images, often carried next to the heart or placed by the side of the bed, are used to refer to that which historical time has no right to destroy” (Berger, in Berger, J. & Dyer, G., 2013, p. 84). Contudo, o autor parece ter uma posição mais ambígua, uma vez que se aproxima de Sontag, em Photographs of Agony, no retrato do trabalho de Don McCullin na guerra do Vietnam – descrevendo a observação como, na melhor das hipóteses, inútil e, na pior narcisista, levando o espectador a uma sensação de desamparo na sua consciência em vez de gerar indignação ou acção perante a realidade fotografada (Berger, in Berger, J. & Dyer G., 2013, p. 44).
O tratamento do arquivo, tanto na instalação como na performance sonora, procura justamente contrariar a visão do arquivo enquanto entidade objectiva e fechada, aproximando-se da concepção de Aby Warburg para quem, segundo António Guerreiro, “a imagem é, pois, uma formação simbólica que traz a memória de uma origem que a carregou de energia e através da qual ela sobrevive nas suas manifestações históricas. Ela está relacionada com uma inscrição emotiva, de grande intensidade” (Guerreiro 2012).
Figura 5 - André Araújo, Fragmentos da Jaula, 2022, Instalação Multimédia, Museu Santa Joana, Aveiro
Considerações Finais
No âmbito da realização de ambos os trabalhos, a problemática que os uniu foi a necessidade de trabalhar a memória enquanto instrumento reflectivo. A transmissão empática do sofrimento escondido no passado foi objecto central de ambas as produções e, nesse sentido, o arquivo mineiro ocupou uma posição central, dando-lhe esse contributo da “inscrição emotiva” da memória como veículo para a consciência da realidade.
Se um historiador olha para o arquivo, vê passado e através das fontes procura clarificá-lo e enquadrá-lo, como a fonte de um rio; procurou-se olhar para o arquivo e expandi-lo temporalmente, explorando um mar de relações que permanecem intactas como, aqui, a exploração do homem pelo homem. Nunca enquanto esclarecimento ou ilustração, antes sendo um veículo para associações alegóricas e formações discursivas.
O mineiro, particularmente de São Pedro da Cova, permanece como uma figura heróica. Partilhando, como tantos outros, a condição de explorado, por vezes pagando com a sua própria vida. Todavia, resistente enquanto património daqueles que, como eu, humildemente olham para a sua luta do passado e vêem futuro.
Bibliografia
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Webgrafia
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https://www.tate.org.uk/research/tate-papers/09/perspectives-negotiating-the-archive
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Filmografia
Akomfrah, John. 2012. Chiasmus: Interview by David Lawson. Londres: Smoking Dogs Films
Memórias das Minas de São Pedro da Cova.1976. Directed by Fernando Lopes. Produced by Cinequanone, Produções de Filmes. RTP
Agradecimentos
Os objectos do património do trabalho mineiro foram gentilmente cedidos pelo Museu Mineiro de São Pedro da Cova, Gondomar, a quem agradecemos na pessoa da sua curadora, Micaela Santos.
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04057/2020.”