Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

The movement-image under visual palimpsests in the samba schools of Rio de Janeiro

A imagem-movimento sob palimpsestos visuais nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro

Leonardo Augusto de Jesus

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Abstract

The existence of a “cinema spirit”, a transcendent essence of movement-image, characterizes the hypermodernity (Lipovetsky e Serroy 2009). In a world simultaneously phagocytosed by cinema and cinephagic itself, the seventh art composes the imaginary of all humanity and integrates the aesthetic unconscious in the 21st century. In this context, cinema can be considered as a matritial form that is expressed in other practices and representations. The influence of film culture is also evidenced in the parades of samba schools in Rio de Janeiro: from metropolitan robots to superheroes, the show repeatedly presents multiple references - textual or visual - to cinema, and plays an important role in the consolidation and transmission of film memory in Brazil. This article proposes, therefore, a reflection on the relations of intertextuality between the parades of the samba schools of Rio de Janeiro and cinematography, in order to understand the various plans according to which the carnival image presents itself as a palimpsest (Genette 1989) of the cinematographic image.

Keywords: Movie, Samba schools, Image, Palimpsest, Representation.

Introdução

Para evidenciar os diferentes tipos de relações que se estabelecem entre os textos, Gérard Genette (1989) utiliza a figura dos antigos palimpsestos para ilustrar o seu raciocínio acerca dos diversos graus da literatura. A mesma analogia mostra-se útil para tratar da imagem cinematográfica que se apresenta subjacente às visualidades apresentadas pelas escolas de samba do Rio de Janeiro.

Amplio a metáfora proposta por Genette da literatura à imagem pois esta não corresponde apenas ao que se vê, mas pode também ser encontrada nos textos: “a palavra exibe uma visibilidade que pode cegar” (Rancière 2012, 16). Por outro lado, o regime imagético sob o qual se apresentam os desfiles das escolas de samba relaciona o dizível com o visível em todas as etapas do seu desenvolvimento, desde a escolha de um tema até a criação e confecção de fantasias e alegorias. E alcança, ainda, os critérios de valoração da imagem carnavalesca: os julgadores dos quesitos visuais analisam a regulação entre o que foi apresentado e o que se afirmou na sinopse – texto fundamental de todo o desenvolvimento do desfile.

Por outro lado, o cinema compartilha determinadas características em comum com o desfile das escolas de samba. Ambos se apresentam como lugar onde concorrem múltiplos sistemas de significação e promovem uma comunicação complexa na qual se integram elementos significantes de diversos sistemas de códigos. Aos elementos materiais da mise-en-scène cinematográfica equivalem-se os elementos materiais da apresentação carnavalesca. Alegorias correspondem a cenários sobre rodas idealizados por cenógrafos e iluminadores; cada componente veste o figurino relativo ao seu “personagem”; a trilha sonora do filme é substituída pelo samba-enredo que embala a apresentação.

Desta forma, há que se compreender o mundo do samba1 como um mundo artístico no sentido atribuído por Becker (1977), no qual reconheço a semelhança com as artes cênicas e o cinema.

No cinema, a simples leitura do roteiro não nos permite compreender toda a mensagem emitida pelo roteirista em conjunto com o diretor e demais profissionais envolvidos na produção, pois estão ausentes os elementos materiais – figurino, cenário, iluminação, etc… - capazes de transmitir, de forma complementar ao texto, informações não verbais aos espectadores. O filme, assim, se apresenta como “uma mensagem de complexidade considerável”, que combina “diversas matérias significantes” ou “diferentes categorias de sinais a decodificar”, sejam eles visuais ou auditivos (Cardoso 2013, 77). Igualmente, a simples leitura da sinopse de um enredo de escola de samba não possibilita a comunicação pretendida pelo carnavalesco em sua plenitude. O desfile somente completa sua comunicação ao se materializar sonora e visualmente em frente aos espectadores e jurados ou ao ser transmitido e exibido nas múltiplas telas da hipermodernidade2. Farias explica como se articulam os aspectos literários e visuais em um desfile de escola de samba:

Do ponto de vista literário, o enredo pressupõe uma trama narrativa que encadeie ações; do ponto de vista semiótico, o enredo propõe um eixo de significados visuais a ser lido (...). (2007, 17)

Como se vê, portanto, tanto os filmes quanto os desfiles de escolas de samba correspondem a espetáculos audiovisuais em que se desenvolvem narrativas através de uma representação cênica, com figurinos e cenografia complexa, auxiliados por uma trilha sonora.

Neste artigo, observo as relações entre as visualidades dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e determinadas imagens retiradas das telas dos cinemas para compreender os diferentes planos conforme se apresentam os palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento.

Um mundo cinefágico e fagocitado pelo cinema

O cinema, arte ontologicamente moderna, desafiou Walter Benjamin (1985) a entender a sua essência ao começo do século XX e levou-o a decretar a decadência da aura da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Desde então, diversas alterações ocorreram na cadeia da produção e reprodução da imagem, as quais Benjamin sequer ousou imaginar.

Progressivamente, toda essa cadeia produtiva se maquinizou em menos de um século; a imagem caminhou contínua e progressivamente rumo à sua desmaterialização (Dubois 2004, 33). Tome-se como exemplo a imagem de vídeo: apenas sinal elétrico codificado, imaterializável no espaço do visível. Incorpórea, mas ainda assim utilizada em diversas produções artísticas desde a segunda metade do século passado. Imagem que “não existe no espaço, mas apenas no tempo”, “pura síntese de tempo em nosso mecanismo perceptivo” (Dubois 2004, 64). Ou poderíamos ousar chamá-la de pura aura?

Nos anos 1980, Vilém Flusser profetizava que a imagem tecnológica concentraria os interesses existenciais dos homens futuros e apontava o fascínio mágico que delas emanava:

Vivemos, cada vez mais obviamente, em função de tal magia imaginística: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia é essa. (2009, 15-16)

Magia, pura aura da imagem técnica enxergada por Flusser no poder sedutor de sua tecnologia sobre a humanidade.

Com efeito, as tecnologias influenciaram progressivamente na produção e reprodução da obra de arte desde a modernidade. Atualmente, as práticas artísticas se constroem e se transformam em função das tecnologias, que dominam cada vez mais os seus processos de criação, comunicação e informação. Efetivamente, a produção e a reprodução tecnológicas da obra de arte alteraram a relação das massas com as práticas artísticas, como afirmou Benjamin. Neste contexto, Lipovetsky e Serroy afirmam a existência de um “espírito cinema”, uma essência da arte cinematográfica que transcende a tela-espetáculo e alcança a todas as telas da hipermodernidade. Espécie de essência aurática que permite ao cinema tornar-se “forma matricial do que se exprime fora dele” (2009, 26). As múltiplas telas hipermodernas difundem o “espírito cinema” à escala do indivíduo qualquer; chegamos a um momento em que todos podemos ser realizadores e atores de cinema, atendendo a um desejo de hipervisualidade do mundo e de si mesmo:

o indivíduo das sociedades hipermodernas passa a olhar o mundo como se fosse cinema, este constituindo as lentes inconscientes pelas quais ele vê a realidade onde vive. (Lipovetsky e Serroy 2009, 29)

Cinevisão globalizada do mundo, prenunciada por Flusser como “modelo para a futura manipulação do mundo” (2008, 20), e também por Dubois, que afirmou o cinema como “modelo de pensamento da imagem tecnológica”: “O imaginário cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa maneira de falar ou de ser” (2004, 24).

Dubois aponta uma cinefagia; por sua vez Lipovetsky e Serroy afirmam que foi o cinema que fagocitou as demais imagens. Neste debate, interessa-me a questão aurática da obra de arte cinematográfica. Ressalto, novamente, o pioneirismo de Benjamin em apontar a espetacularização cinematográfica do mundo: “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado” (1985, 183), já afirmava ele nos anos 1930, ao lamentar que a diferença entre autor e público perdia o seu caráter fundamental.

Onde buscar a aura da obra de arte na hipermodernidade, em um mundo simultaneamente cinefágico e fagocitado pelo próprio cinema?

Para responder a este questionamento, parece-me apropriado ampliar a afirmação de Benjamin de que a reprodutibilidade da obra de arte pretende a produção de uma obra elaborada para ser efetivamente reproduzida em todas as telas da hipermodernidade. Reconhecer que o “espírito cinema” expandiu-se através de todas as telas, promoveu a espetacularização do mundo e alcançou as demais práticas e representações importa, portanto, encontrar a aura da imagem cinematográfica difusa na sociedade transestética hipermoderna.

Carnaval cinematográfico

As práticas e representações, em geral, não passaram incólumes à cinefagia e adotaram o cinema como forma matricial. Vejamos agora como a aura cinematográfica atravessou os desfiles das escolas de samba.

As referências ao carnaval na cinematografia remontam à primeira metade do século XX. Registre-se a experiência de Orson Welles, que, em fevereiro de 1942, realizou filmagens do carnaval no Rio de Janeiro, com assistência de Herivelto Martins e participações de Grande Otelo, Linda Batista e Emilinha Borba para a película It’s All True3. Mas o cinema brasileiro já conhecia a potência do samba e do carnaval carioca desde a década anterior: Carmem Miranda protagonizou O carnaval cantado de 1932 e A voz do carnaval (1933); entre os filmes produzidos pela Atlântida Companhia Cinematográfica4 sobressaem títulos como Este mundo é um pandeiro (1947), Carnaval no fogo (1949), além de Carnaval em Caxias (1953) e Carnaval Atlântida (1953). Cabral registra que o cinema

(…) descobriu as escolas de samba em 1934, quando foram feitas as filmagens de Favela dos meus amores, uma produção de Carmem Santos e direção de Humberto Mauro. O filme, cuja história se passava no Morro da Favela, contou com a presença de sambistas das escolas locais e outras, como a Portela, cujos integrantes, liderados por Paulo, participavam das filmagens. (2011, 101)

Por outro lado, a primeira tentativa de apropriação de uma obra cinematográfica em um desfile de escola de samba ocorreu em 1938, quando a Vizinha Faladeira apresentou o enredo Branca de Neve e os sete anões, inspirado na produção homônima dos Estúdios Disney no ano anterior e que rendeu à escola a desclassificação por infringir a norma do regulamento que proibia a escolha de enredos com temática internacional.

A péssima recepção do enredo escolhido pela Vizinha Faladeira pela banca de julgadores fez com que as escolas de samba, por várias décadas, renunciassem à transposição do argumento de produções cinematográficas para os seus enredos. Desta forma, apenas na segunda metade do século passado, as agremiações começaram a empregar referências cinematográficas em seus desfiles.

Ziriguidum 2001, um carnaval nas estrelas, enredo desenvolvido por Fernando Pinto no desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel em 1985, resgatou após quase 50 anos a intertextualidade entre enredos de escolas de samba e a cinematografia. Simas e Fabato registram que o carnavalesco escolhera provisoriamente o título Requebros imediatos de terceiro grau, que embora recusado pela diretoria da agremiação (2015, 135), comprova a intenção deliberada do artista em estabelecer um diálogo entre o desfile e determinada produção cinematográfica5. A escola sagrou-se campeã procedendo ao deslocamento espaçotemporal de diversas práticas do carnaval brasileiro para o vazio sideral com imagens inspiradas no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).

Ressalte-se que o mesmo artista já havia desenvolvido um enredo com temática cinematográfica no desfile do Império Serrano em 1978: Oscarito, uma chanchada no asfalto. No entanto, apresentou uma abordagem biográfica que tangenciava a cinematografia pela impossibilidade de desvincular as chanchadas brasileiras da trajetória do ator homenageado.

Após Fernando Pinto referenciar a cinematografia em alguns de seus desfiles, a Caprichosos de Pilares apresentou, em 1988, Luz, Câmera, Ação!, um enredo que abordava todos os gêneros cinematográficos.

Palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento

A partir dos anos 1980, portanto, as escolas de samba, cada vez mais, lançaram mão de referências textuais e imagéticas ao cinema, retiradas principalmente das produções hollywoodianas, que impregnaram o imaginário da humanidade desde o século XX. Escolha que se justifica pela legibilidade imediata que a imagem cinematográfica permite aos espectadores dos desfiles. Os estúdios de Hollywood sempre buscaram um mercado mundial ao apresentar filmes que dispensavam códigos de compreensão particulares, para apresentar-se não apenas como arte de massa – elaborada coletivamente e cujo próprio modo de produção permite uma recepção também coletiva –, mas também como arte de consumo de massa destinada a promover um consumo renovado cuja principal ambição é entreter, proporcionar um prazer acessível a todos, para deleite do maior número possível de pessoas (Lipovetsky e Serroy 2009, 65).

Foram essas imagens cinematográficas de consumo de massa, imediatamente legíveis por todos os espectadores, que proliferaram nos desfiles das escolas de samba a partir das últimas décadas do século XX. Mas não se pode negar a presença dos filmes de vanguarda na passarela do samba do Rio de Janeiro. Uma das imagens cinematográficas mais recorrentes na Sapucaí nas últimas décadas são os robôs de Metropolis (1927).

Em 1998, a Imperatriz Leopoldinense apresentou o enredo Quase no ano 2000… A segunda alegoria do desfile referia-se à cidade fictícia do clássico de Fritz Lang: destaca-se, como elemento central e mais significativo do carro alegórico, uma escultura da Maschinenmensch, personagem que corresponde à versão feminina de um robô, ao redor da qual componentes realizavam uma coreografia inspirada nos movimentos automatizados dos operários do filme.

Nove anos depois, referências a Fritz Lang foram apresentadas em dois desfiles. A Mocidade Independente de Padre Miguel desfilou o enredo O futuro no pretérito – Uma História feita à mão. Para tratar do fazer artesanal, a agremiação emulou em seu abre-alas o cenário de cenas de Metropolis: a alegoria reproduzia a fábrica esfíngica cuja enorme boca aberta devorava os operários. Ademais, a ala que vinha à sua frente apresentava fantasia inspirada no figurino da personagem Maschinenmensch.

Figura 1 – Abre-alas da Mocidade Independente de Padre Miguel, 2007. Fonte: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Por sua vez, a Unidos de Vila Isabel abordou as diversas mudanças na história da humanidade com o enredo Metamorfoses: do reino natural à Corte Popular do Carnaval - As transformações da vida. A quinta alegoria apresentada no desfile pretendia problematizar a automatização do trabalho: intitulada A robotização humana, exibia em seu centro uma enorme escultura inspirada na Maschinenmensch. Consciente de que as imagens de Metropolis não são de conhecimento imediato do grande público que assiste aos desfiles e que se faz necessário um conhecimento cultural ou histórico do cinema para identificá-las, o carnavalesco Cid Carvalho rodeou-a com componentes que vestiam uma fantasia inspirada no figurino da personagem principal de Robocop (1987).

O aniversário de 80 anos do clássico de Fritz Lang não passou despercebido pelas escolas de samba do Rio de Janeiro, portanto.

Figura 2 – Componentes fantasiados como Robocop, Unidos de Vila Isabel, 2007. Fonte: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Importa reconhecer que nenhum dos enredos em questão tratava diretamente da película de Fritz Lang ou de qualquer outro filme, mas os carnavalescos apropriaram-se de suas imagens por seu potencial expressivo que transita entre os pólos simbólico e dialético. Palimpsesto metafórico, portanto, empregado sob a função frase-imagem de que nos fala Rancière (2012).

A frase-imagem não representa por semelhança, mas faz do choque a sua potência de comunicação e da combinação de opostos a sua potência estética; não rechaça a sua relação a um discurso, mas o faz conforme um novo modelo de correspondência. Constrói uma grande parataxe, através da justaposição caótica, da mistura indiferente de significações e materialidades. Não se trata da mera união de uma forma visual com uma sequência verbal; a imagem transforma-se no não-lugar em que é possível justapor elementos heterogêneos que jamais se encontrariam no mundo real, mas cuja união ocorre na mediação pelas palavras. Apresenta-se como a união da função textual e da função imageadora pela forma como ambas desfazem a relação representativa do texto com a imagem. Subverte a lógica aristotélica do regime representativo das artes, através da qual cabia ao texto promover o encadeamento ideal das ações, enquanto a imagem correspondia a um suplemento de presença ilustrativa. A função frase atribui à imagem uma potência expressiva que decorre não da mímese em relação ao texto, mas do choque de elementos heterogêneos cujo encontro promove incômodo e estranhamento em seu receptor (Rancière 2012, 54-61).

Em outros momentos, no entanto, a imagem cinematográfica inseriu-se nas visualidades carnavalescas conforme a lógica aristotélica que pretende a representação mimética causal e verossímil em relação ao texto contido na sinopse, de forma meramente ilustrativa e não simbólica, como apresentado no desfile da Acadêmicos do Salgueiro no ano de 2011. De acordo com a sinopse do enredo Salgueiro apresenta: O Rio no cinema, os carnavalescos Renato e Márcia Lage propunham não só abordar as películas cujas tramas se desenvolveram em terras cariocas, como Olá, amigos! (1942), Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995) e Madame Satã (2002), dentre outros, mas principalmente mesclar Hollywood ao Rio de Janeiro e carioquizar os ícones do cinema estadunidense, em um delírio carnavalesco:

A notícia do tesouro escondido ao Sul do Equador não para de se espalhar. E deu a louca no cinema! Estrelas da sétima arte desembarcam por aqui e entram em irreversível processo de carioquização. Trocam o hot dog pela feijoada, o bip-bop pelo samba, desfilam pelo calçadão da fama de Copacabana... Uma confusão! Até o King Kong, vejam só, foi se pendurar na torre da Central do Brasil. O Homem Aranha se amarra no Beijo da Mulher Aranha, e com ela se prende numa teia conjugada na Zona Sul. A bela mocinha, que o vento levou, agora veste plumas e paetês e, quem diria, foi parar em Irajá! E a loirinha, que nunca foi santa? Virou rainha da escola. Gostou do samba e hoje vive muito bem. (Lage e Lage 2011)

Observe-se que, no caso em tela, os carnavalescos não produziram um palimpsesto metafórico; as imagens cinematográficas apenas representaram por semelhança as imagens literárias já produzidas na sinopse. Apesar do choque de elementos aparentemente heterogêneos – como o King Kong pendurado no edifício da Central do Brasil – as imagens não se destinavam à metáfora capaz de convocar os espectadores à reflexão ou à tomada de consciência sobre determinado tema. Palimpsesto representativo, portanto, que, em lugar de simbolizar o dizível, ilustrava ipsis litteris o texto contido na sinopse do enredo.

Com efeito, imagens cinematográficas inseridas em um desfile de escola de samba cujo enredo refere-se à sétima arte não surpreendem os espectadores, os jurados ou os pesquisadores de carnaval. O que chama a atenção é o emprego de imagens cinematográficas em enredos não relacionados ao cinema ou que apresentem uma conexão pouco evidente com a cinematografia.

Figura 3 – Alegoria do Salgueiro, 2011. Fonte: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Foi o caso do enredo Fama, desenvolvido também pelo casal Lage na Acadêmicos do Salgueiro, em 2013. A comissão de frente que abriu o desfile era formada por um grupo de fotógrafos que rodeavam uma limusine, da qual saía uma bailarina caracterizada como Marilyn Monroe na famosa cena do filme O Pecado Mora ao Lado (1954), dentre outras celebridades. Ali, evidenciou-se o potencial simbólico, metafórico e dialético do palimpsesto empregado sob a função frase-imagem: os carnavalescos pretenderam despertar no público uma reflexão sobre os efeitos adversos da fama, com uma superstar hollywoodiana sendo perseguida por paparazzi.

Paulo Barros: um caso singular de palimpsesto carnavalesco da imagem-movimento

Neste estudo, merece destaque a obra do carnavalesco Paulo Barros, que se notabilizou pelo emprego dos palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento desde o começo de sua carreira e elevou exponencialmente a quantidade de referências cinematográficas nos desfiles das escolas de samba.

Em sua obra, Barros se apropria de imagens retiradas predominantemente de filmes repletos de efeitos especiais, como O Tubarão (1975) e toda a sequência da franquia, as aventuras protagonizadas pelo arqueólogo Indiana Jones (lançados entre 1981 e 2008), ou as produções inspiradas nas histórias em quadrinhos de super-heróis: Thor, Batman, Superman e Spiderman, dentre outros, são presença garantida nos desfiles por ele desenvolvidos.

O primeiro grande sucesso de público e crítica na obra do carnavalesco foi a alegoria que ficou conhecida como “Carro do DNA”. Em um enredo que tratava da evolução científica, Barros apresentou uma alegoria que consistia apenas em uma estrutura cônica em ferro, ao longo da qual se sentavam 127 componentes que executavam movimentos coreográficos com as mãos alternadamente para ambos os lados.

Figura 4 – A pirâmide humana/DNA de Paulo Barros, Unidos da Tijuca, 2004. Fonte: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Dias aponta a intertextualidade entre a estrutura criada por Barros e a pirâmide humana do filme Footlight Parade, de 1933 (2016, 109). A alegoria não se assemelhava à estrutura helicoidal tradicional nas representações do DNA em publicações científicas, mas, enquanto palimpsesto de uma imagem cinematográfica, possibilitou a leitura clara, inequívoca e imediata pelos espectadores: a alegoria de Paulo Barros invocava a pirâmide cinematográfica já integrada ao imaginário popular para indicar a humanidade por dessemelhança. Apenas ferro e luz: o DNA humano não estava ali e ainda assim estava ali, na indexicalidade do movimento dos corpos dos componentes sobre a alegoria, cuja potência permitia comunicar uma presença na ausência, apesar de sua total dessemelhança com o objeto representado. Uma dialética do visual que atribuía à alegoria múltiplos significados: pirâmide-hélice-DNA-humanidade.

Em 2005, novamente pela Unidos da Tijuca, Barros desenvolveu o enredo Entrou por um lado, saiu pelo outro… Quem quiser que invente outro. A proposta de abordar lugares imaginários mostrou-se bastante adequada para a apresentação de diversos palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento. Sob as visualidades do desfile, Barros introduziu cenas, cenários e personagens de diversos filmes. Entre lugares como o Purgatório e Atlântida, podiam ser vistos também sítios fictícios que se tornaram famosos no cinema, como o País das Maravilhas, Oz e o Planeta dos Macacos.

No ano seguinte, ainda na Unidos da Tijuca, o artista desenvolveu o enredo Ouvindo tudo que vejo, vou vendo tudo que ouço, através do qual pretendia carnavalizar a relação entre músicas, visualidades e memórias afetivas. No desfile, destacou-se uma alegoria que reproduzia a clássica cena do filme E.T. O extraterrestre (1982): diversas bicicletas pilotadas por componentes fantasiados com o figurino da personagem Elliot traziam em suas cestas uma escultura do extraterrestre mais famoso de Hollywood.

A partir de então, Paulo Barros não cessou de produzir palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento. O rol é longo e reproduzi-lo aqui não é o objetivo principal deste artigo. Interessa-me, de fato, destacar um aspecto diferencial no tratamento dado por Barros à imagem cinematográfica.

Em seus primeiros desfiles, o artista apenas fez referência a determinado filme, cena ou personagem que, de alguma forma, relacionava-se com o tema proposto ou com determinado ponto do enredo. Assim, à exceção do Carro do DNA – palimpsesto indexical, que expressou toda a sua eloquência na potência significativa do índice –, as imagens cinematográficas apresentaram-se na obra de Paulo Barros, inicialmente, enquanto palimpsestos representativos ou simbólicos.

Aos poucos, entretanto, o artista se libertou da lógica da representação aristotélica e se permitiu romper a linearidade do desenvolvimento do enredo, ao criar narrativas carnavalescas descontínuas, fragmentadas e dispersas, como as que predominam nas produções hollywoodianas da atualidade e que Lipovetsky e Serroy denominam como narrativas multiplex: roteiros que contam uma diversidade de histórias que se entrecruzam – ou não – em algum momento da intriga (2009, 98).

Mas o abandono da representação aristotélica na obra de Barros foi além da ruptura com a linearidade da narrativa e alcançou a própria produção das visualidades carnavalescas: de forma gradativa em seus desfiles, o artista abandonou o uso da representação mimética em relação ao dizível da sinopse para apresentar ícones do cinema cujas presenças se desdobravam em mera apresentação de si. Desta forma, Barros logrou operar os palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento enquanto imagem sem frase, apontada por Rancière (2012) como uma das funções imagéticas características do regime estético das artes. A imagem sem frase suprime a sua função mediadora e promove a identificação imediata entre ato e forma em detrimento das operações de semelhança, deciframento e suspensão. Institui um novo signo visível com propriedades bem particulares, que não dá a ver algo ausente, mas impõe sua presença; que recusa a sua interpretação como cifra de uma história, a exibir apenas a pura forma desprovida de significação (Rancière 2012, 31).

Ao discurso da Imagem opõe-se o discurso do Visual, que abrange as formas visíveis que não remetem a outro mas a si mesmas, que renunciam a qualquer significação. Imagem ostensiva concebida nos moldes do ícone, de potência bruta, resumida por Rancière com uma única palavra em francês: Voici, demonstrativo da presença no presente. Aqui está: presença insignificante que se desdobra em mera apresentação de si mesma; punctum que remete à identidade sem alteridade e que se coloca à frente do espectador como potência obtusa, como um “estar-aí-sem-razão”6 (Rancière 2012, 33).

Portanto, a imagem sem frase nos desfiles das escolas de samba é capaz de promover a identificação imediata, ao mesmo tempo em que renuncia à interpretação do espectador; apresenta-se como função que pretende a mera observação da imagem carnavalesca que proporciona ao público prazer estético sem convocar-lhe a uma tomada de consciência determinada.

No desfile que desenvolveu para a Unidos do Viradouro em 2008, Barros propôs carnavalizar as sensações capazes de nos causar arrepio. Em referência ao arrepio de frio, vestiu os componentes da comissão de frente com uma fantasia inspirada no personagem Mr. Freeze, da animação Batman & Mr. Freeze: Abaixo de zero (1998). A sensação de arrepiar-se de frio poderia ser suscitada nos espectadores por diversas maneiras diferentes. Vejamos como a sinopse tratava a questão:

Começou o desfile. Sente o frio?
Esse vento que passa provoca arrepios.
Esfregue as mãos, cubra o corpo, chegue mais perto de mim.
Não deixe que o sangue congele. Se embole, se agite.
Nunca vi nada assim.
Grite! Procure saber de onde vem o vento, a ventania.
Esfria, arrepia, me esquenta.
Ouça o samba. Mexa o corpo, requebre, me aguenta.
Quero fazer sua vontade. Te arrepiar na folia.
(BARROS, 2008)

A escolha do artista reforça a intenção deliberada de apropriar-se do imaginário cinematográfico. À diferença das tentativas anteriores, no entanto, não utilizou a imagem enquanto símbolo, índice ou ícone de determinada imagem literária contida na sinopse, uma vez que não havia qualquer referência textual à referida produção. Barros pretendeu, efetivamente, não a decifração de uma mensagem, mas apenas o reconhecimento instantâneo, a identificação da imagem cinematográfica enquanto ícone que apenas apresenta a si mesmo. Assim, na comissão de frente, os bailarinos fantasiados de Mr. Freeze não representavam o texto contido na sinopse, mas o próprio personagem cinematográfico que, apesar de não apresentar relação com o enredo, suscitava a emoção do espectador, ao invocar a consolidação de uma memória cinematográfica relacionada à sensação de frio.

Semelhante estratégia foi adotada pelo carnavalesco no desfile que lhe rendeu seu primeiro título de campeão da competição entre as escolas de samba em 2010. O abre-alas, que fazia referência ao incêndio da Biblioteca de Alexandria, trazia em sua lateral fotografias de Elizabeth Taylor caracterizada como Cleópatra na superprodução homônima de 1963. A inserção de outros ícones cinematográficos se mostrou bastante pertinente no desenvolvimento do enredo É segredo: desfilaram pelo Sambódromo todos os principais super-heróis do cinema, com direito à exibição do símbolo do Batman no edifício de uma alegórica Gotham City. Em referência aos detetives que desvendam segredos, Barros apresentou uma ala cuja fantasia era a reprodução exata do figurino de Warren Beatty em Dick Tracy (1990): assim como o Mr. Freeze no desfile de 2008, aqui a presença da personagem desdobrava-se em apresentação de si mesma, capaz de evocar a memória cinematográfica do espectador e estender sua iconicidade a todos os detetives.

A temática do enredo Esta noite levarei sua alma, que girava em torno dos filmes de terror, já explicitava que o desfile da Unidos da Tijuca em 2011, desenvolvido novamente por Paulo Barros, apresentaria diversos ícones cinematográficos. Com efeito, neste desfile o artista explorou ao máximo os palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento. Dentre as visualidades apresentadas pela escola naquele ano, destaco aquelas que operaram segundo a função imagem sem frase, ou seja, que renunciaram à qualquer significação oculta a ser decifrada pelos espectadores e apenas apresentaram a si mesmas.

Barros inseriu imagens de filmes que não pertenciam ao gênero homenageado pelo enredo: havia uma ala com componentes fantasiados como os carros-robôs de Transformers (2007); a fantasia de outra ala reproduzia o figurino dos stormtroopers da franquia Guerra nas Estrelas (1977 a 2019); uma alegoria fazia referência ao filme Avatar (2009). Os filmes Priscilla, a Rainha do deserto (1994) e Peter Pan – De volta à Terra do Nunca (2002) foram abordados em uma ala e um tripé, cada. As sequências de Planeta dos Macacos estavam presentes em um carro alegórico, assim como as franquias Harry Potter (2001 a 2011) e Indiana Jones (1981 a 2008). Em um enredo sobre filmes de terror, houve espaço até para uma ala em referência à animação A fuga das galinhas (2000).

Todas as imagens acima relacionadas, portanto, foram empregadas enquanto imagem sem frase: não se relacionavam ao enredo pretendido, tampouco veiculavam alguma mensagem simbólica a ser decifrada; apenas se apresentavam enquanto ícones cinematográficos. É exatamente a iconicidade da imagem sem frase que garante o seu reconhecimento imediato pelo espectador, a oferecer-lhe o deleite do voici.

Figura 5 – Detalhe de alegoria da Unidos da Tijuca, 2011. Fonte: Wigder Frota. Acervo pessoal.

Outro exemplo do emprego da imagem cinematográfica sem frase na obra de Paulo Barros pode ser encontrado no desfile da Unidos do Viradouro em 2019. O artista propunha apresentar as imagens do desfile como o folhear de um livro de histórias infantis para desenvolver o enredo Viraviradouro, que abordava as histórias contadas pelas avós a seus netos.

Figura 6 – Componente fantasiado como Motoqueiro Fantasma, Unidos do Viradouro, 2019. Fonte: Wigder Frota. Acervo pessoal.

As imagens de maior êxito do desfile novamente foram retiradas do imaginário cinematográfico. Além de um carro alegórico em referência aos filmes da franquia Piratas do Caribe (2003 a 2017), cujo destaque principal fantasiava-se como Jack Sparrow, havia outra alegoria cujo elemento principal era um componente fantasiado como a personagem de Nicolas Nage em Motoqueiro Fantasma (2007). O destaque descia a alegoria por uma rampa e atravessava uma ala cuja fantasia reproduzia o figurino usado por Michael Jackson no clipe da música Thriller.

Tais imagens foram apresentadas no desfile não por corresponderem a imagens da literatura infantil, mas por haverem sido retiradas de superproduções hollywoodianas que possibilitaram o reconhecimento imediato e maximizaram o deleite e o prazer sensorial do público. De igual modo, o zumbi de Michael Jackson, embora não pertença à cinematografia, compõe o imaginário imagético e cultural da hipermodernidade, sendo este o principal motivo de estar inserido nas visualidades daquele desfile.

A imagem carnavalesca na hipermodernidade

Cumpre ainda analisar determinadas tensões da hipermodernidade que afetam a produção da imagem carnavalesca e, consequentemente, como ela se apresenta enquanto palimpsesto da imagem-movimento.

O fenômeno através do qual cinema e escolas de samba se relacionam de forma referencial deve ser entendido como desdobramento da hibridização que caracteriza a hipermodernidade transestética e que envolve sincrônica e globalmente as tecnologias e a arte, o capital e a cultura, o consumo e a estética.

O período marca o advento do capitalismo artista, fenômeno que promove uma espécie de interpenetração entre o artístico e o econômico através de processos inéditos de hibridização que alcançam também as indústrias culturais, como o cinema e o carnaval e que desestabiliza as antigas hierarquias artísticas (Lipovetsky e Serroy 2014, 36). Para ilustrar, cito o convite aceito por Jean Paul Gaultier, em 2019, para assinar o figurino de umas das alas do desfile da Portela: a fantasia criada pelo estilista reproduzia o design do consagrado perfume Le Male em um enredo que homenageava a cantora brasileira Clara Nunes.

A hibridização transestética apresenta-se, assim, como operação capaz de atender ao consumidor que busca experiências hedonistas e sensíveis, de forma incessante, renovada e surpreendente, ao estilizar as produções para “responder às demandas crescentes de arte, de beleza, de experiências estéticas em todos os domínios da existência” (Lipovetsky e Serroy 2014, 65).

O capitalismo artista localiza-se no centro da “escalada da superficialização da imagem” processo hipermoderno pelo qual as imagens fragmentam-se, multiplicam-se e se dispersam simultaneamente, sem exigências narrativas, passando a ter como finalidade única o impacto espetacular, midiático e mercantil (Lipovetsky e Serroy 2019, 309), a remeter apenas a si mesmas e operar, desta forma, sob a função imagem sem frase.

Ademais, atualmente, tudo está regido hiperbolicamente pelas lógicas do espetáculo, do divertimento, da teatralização e do show business. O hiperespetáculo deixa de ser organizado segundo referenciais de sentido; buscam-se somente o divertimento e o prazer imediato dos consumidores. Não há mais significado nas imagens dos espetáculos, “apenas uma finalidade econômica que leva cada vez mais longe a busca de efeitos para seduzir e divertir um número crescente de consumidores” (Lipovetsky e Serroy 2014:190).

Desta forma, as imagens, produzidas e reproduzidas hiperbolicamente e de forma globalizada e multiplicadas pela onipresença das telas, tornaram-se superficiais, prescindindo de uma leitura semiótica aprofundada. O mesmo fenômeno alcançou também as imagens produzidas pelas escolas de samba.

Para aprofundar-se no significado de uma imagem, é necessário proceder-se ao scanning, ou seja, permitir à vista vaguear pela superfície da imagem, seguindo tanto as suas estruturas quanto os impulsos do observador, de forma que o resultado compreenda a síntese das intencionalidades do produtor e do receptor (Flusser 2009, 8). Entretanto, na era hipermoderna, vemos diariamente um número cada vez maior de imagens, tornando-se impossível demorar o olhar em cada uma delas. Ademais, mostra-se difícil proceder a um scanning aprofundado durante o desfile de uma escola de samba. Desde a década de 1960, instituiu-se no regulamento dos desfiles a previsão de um tempo máximo para cada apresentação, o que impôs uma nova temporalidade aos desfiles.

Tomemos como exemplo os desfiles de 2020: cada agremiação dispôs de 70 minutos para se apresentar. Considerando o formato processional de um desfile com aproximadamente 25 alas, cada ala demoraria cerca de 2,8 minutos em frente a um espectador localizado em um ponto fixo. Isto se desprezarmos cerca de 5 alegorias, além dos demais segmentos de uma escola de samba, como casais de Mestre-Sala e Porta-Bandeira e Comissão de Frente – ambos correspondem a quesitos de julgamento, sendo obrigados a parar para apresentar-se em 4 cabines de jurados.

Como se não bastasse, a quase totalidade do público presente ao Sambódromo não dispõe de informações que lhes permitam o aprofundamento dos significados latentes nas visualidades carnavalescas. Para tanto, faz-se necessário conhecer a sinopse do enredo, além do roteiro de desenvolvimento do desfile – conhecido como livro Abre-Alas – que somente é disponibilizado para os julgadores, os espectadores privilegiados do espetáculo, capazes de conjugar as informações textuais e visuais para analisar adequadamente como se articulam o dizível e o visível em um desfile.

Portanto, torna-se cada vez mais difícil para quem assiste presencialmente aos desfiles, proceder a uma análise profunda das imagens apresentadas pelas escolas de samba. Assim, os palimpsestos da imagem-movimento mostraram-se uma escolha estética eficaz para promover o reconhecimento imediato das visualidades carnavalescas.

Conclusão

Dentre as diversas transformações que operaram sobre as imagens na hipermodernidade, destaca-se o processo de hibridização. A hibridização não apenas promoveu a interpenetração entre arte, cultura e capital, como também possibilitou o encontro de visualidades até então consideradas heterogêneas e inconciliáveis, como as imagens artísticas e as imagens econômicas. As indústrias culturais entrecruzaram-se não só com as demais indústrias, mas também entre si, como ocorreu na relação entre o cinema e o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.

O fenômeno de hibridização entre a indústria cinematográfica e o carnaval carioca acentuou-se a partir dos anos 1980, quando os enredos das escolas de samba abriram-se às relações de intertextualidade com os roteiros de cinema, o que levou os carnavalescos , gradativamente, a apropriarem-se de imagens retiradas de filmes para inseri-las sob as visualidades apresentadas nos desfiles.

Os palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento apresentam-se, como demonstrado, conforme quatro diferentes planos estéticos, que a seguir resumo.

O palimpsesto representativo opera segundo uma relação aristotélica, condicionada à verossimilhança e ao ordenamento causal da narrativa; através dele, se emprega determinada produção cinematográfica para representar por semelhança as imagens literárias produzidas pelo texto contido na sinpose. Simbólico é o palimpsesto que promove o choque de elementos heterogêneos para transmitir metaforicamente uma mensagem contida na sinopse do enredo, que articula o visível e o dizível sob a função frase-imagem para convocar o espectador à sua decifração e a uma tomada de consciência sobre determinado tema. Chamo de palimpsesto indexical a imagem cinematográfica cuja potência permite uma associação de ideias capaz de comunicar uma presença na ausência, apesar de sua total dessemelhança com o objeto indicado na imagem carnavalesca. Finalmente, o palimpsesto ostensivo apresenta uma imagem cinematográfica cuja presença se desdobra em mera apresentação de si e renuncia a qualquer significação oculta para obter o seu reconhecimento imediato enquanto imagem destinada a despertar sensações e promover o deleite dos espectadores, sem estar necessariamente subordinada à mensagem textual da sinopse.

A passagem de um modelo a outro ocorreu de forma gradual nas últimas décadas. Com efeito, na década de 1980, a imagem cinematográfica era normalmente utilizada nos desfiles das escolas de samba como um palimpsesto representativo, correspondendo a uma espécie de ilustração do texto da sinopse. Isto se explica pela própria vinculação das produções hollywoodianas à lógica aristotélica que impõe a representação por semelhança. Mas, aos poucos, os carnavalescos começaram a explorar a metáfora nas imagens carnavalescas, sendo identificados, na década seguinte, casos de palimpsestos simbólicos da cinematografia nos desfiles.

Entretanto, a hipermodernidade assiste à revanche das imagens, um processo que se caracteriza pela perda da ideia de representação, por uma crise dos significados e renúncia à função simbólica, que conduziu à produção de imagem que visa tão somente a própria imagem.

Os desfiles apresentados por Paulo Barros catalisam essas tensões imagéticas da hipermodernidade. O artista foi extremamente hábil em identificar a dificuldade crescente do público em decifrar as imagens carnavalescas até então apresentadas, e propôs exibir imagens cinematográficas de identificação imediata, desprovidas de uma significação oculta a ser desvendada pelos espectadores. Dentre outras escolhas estéticas, apropriou-se da lógica hiper, criou enredos cujas narrativas prescindiram de exigências cronológicas e introduziu palimpsestos indexicais e ostensivos da cinematografia em sua obra.

Mais do que terem sido devoradas pelo cinema, as escolas de samba fagocitaram as imagens cinematográficas. Os palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento, portanto, ao mesmo tempo em que consolidam e transmitem a memória das imagens cinematográficas integradas ao inconsciente estético, operam como estratégia de atualização dos desfiles das escolas de samba na era do hiperespetáculo e de sua manutenção na cultura popular carioca e brasileira no carnaval da hipermodernidade.

Notas finais

1A expressão corrente “mundo do samba” “circunscreve um conjunto de manifestações sociais e culturais, emergentes nos contextos em que o samba predomina como forma de expressão musical, rítmica e coreográfica”, cujas instituições mais expressivas são as escolas de samba (Leopoldi 2010, 61).

2Terceira fase da modernidade, definida como “uma espécie de modernidade ao quadrado ou superlativa”, possibilitada por “uma tríplice metamorfose que diz respeito à ordem democrática-individualista, à dinâmica do mercado e à tecnociência”, ocorrida em função da estetização hiperbólica do mundo a partir dos anos 1980 (Lipovestky e Serroy 2009, 49).

3As gravações foram suspensas, motivo pelo qual as imagens somente se tornaram conhecidas em 1993, com o lançamento de It’s All True – Based on an Unfinished Film by Orson Welles.

4A relação completa de filmes pode ser consultada em http://www.atlantidacinematografica.com.br.

5O título provisório do enredo atesta a intertextualidade com o filme Close encounters of the third kind (1977), seja na sua tradução brasileira – Contatos imediatos de terceiro grau – ou portuguesa – Encontros imediatos de terceiro grau.

6A tradução brasileira fala em “ser-aí-sem-razão”. O verbo francês être pode ser traduzido em português como ser ou estar. O sentido que Rancière o utiliza parece-me indicar não uma essência, mas uma presença desmotivada, motivo pelo qual optei por “estar-aí-sem-razão”.

Bibliografia

Aristóteles. 2008. Poética. Traduzido do grego por Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Barros, Paulo. 2013. Sem segredo: Estratégia, inovação e criatividade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.

Barros, Paulo. 2008. É de arrepiar. Rio de Janeiro: LIESA. http://liesa.globo.com/2008/por/03-carnaval08/03-carnaval08_principal.htm. Acedido em 03 de abril de 2021.

Becker, Howard S. 1977. Mundos artísticos e tipos sociais. In: Velho, Gilberto, org. 1977. Arte e sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 9-26.

Benjamin, Walter. 1985. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.

Cabral, Sérgio. 2011. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli Editora: Companhia Editorial Nacional.

Deleuze, Gilles. 1983. Cinema 1: A imagem-movimento. São Paulo: Ed. Brasiliense.

Dias, A. M. P. 2016. “É fantástico, virou Hollywood isso aqui”: Os processos artísticos pós-modernos nos carnavais de Paulo Barros. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Dubois, Philippe. 2014. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify.

Farias, Júlio César. 2007. O enredo de escola de samba. Rio de Janeiro: Literis Ed.

Flusser, Vilém. 2008. O Universo das Imagens Técnicas. Elogio da Superficialidade. São Paulo: Annablume.

Flusser, Vilém. 1985. Filosofia da caixa preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec.

Genette, Gérard. 1989. Palimpsestos: la literatura en segundo grado. Madri: Taurus.

Jesus, Leonardo Augusto de. 2021. Palimpsestos Carnavalescos da Imagem-movimento. Comunicação apresentada no ENEIMAGEM 2021 – VIII Encontro Nacional de Estudos da Imagem, 10-28 de maio.

Jesus, Leonardo Augusto de. 2021. “De Roliúde ao Sertão – Um estudo prático dos palimpsestos carnavalescos da imagem-movimento” in Anais do 3º Cine-Fórum UEMS –Cinema, Literatura, Sociedade E Debate - O Último Ato! https://anaisonline.uems.br/index.php/cineforumuems/article/view/7616. Acedido em 09 de abril de 2022.

Lage, Renato. Lage, Márcia. 2011. Salgueiro apresenta: O Rio no cinema. Rio de Janeiro: LIESA. https://liesa.globo.com/2019/por/18-outroscarnavais/carnaval11/enredos/salgueiro.html. Acedido em 03 de abril de 2021.

Leopoldi, José Sávio. 2010. Escola de samba, ritual e sociedade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Lipovetsky, Gilles. 2004. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Ed. Barcarolla.

Lipovetsky, Gilles. Serroy, Jean. 2009. A tela global: Mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina.

Lipovetsky, Gilles. Serroy, Jean. 2014. A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras.

Peirce, Charles S. Semiótica. 2017. São Paulo: Perspectiva.

Rancière, Jacques. 2009. O inconsciente estético. São Paulo: Ed. 34.

Rancière, Jacques. 2012. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto.

Rancière, Jacques. 2012. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes

Rancière, Jacques. 2013. A fábula cinematográfica. São Paulo: Papirus Editora.

Rosa, C.B; Cardoso, C.F.S. 2013. Semiótica do espetáculo: um método para a História. Rio de Janeiro: Apicuri.

Simas, L; Fabato, F. 2015. Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos enredos. Rio de Janeiro: Mórulo.