Abstract
The aim of this article is to investigate the narrative proposal of the film Deslembro, by Flávia Castro, which associates the maturing trajectory of the character Joana with the political events in Brazil during the military dictatorship. Daughter of militant parents, still very young, she is forced to go into exile in France with her mother, due to the political disappearance of her father. When the Amnesty Law is enacted, they return to Brazil and the girl, now a teenager, finds herself in a country of which she has very few memories. The text seeks to understand how the dimensions of the young woman’s maturation process - the transition to the teenager, the discovery of the country and the search for information about her father - are expressed in the language of the film.
Keywords: coming-of-age drama, Brazilian military dictatorship, political disappeared, Brazilian cinema, family and politics.
Introdução
A cinematografia brasileira tem levantado nas últimas décadas, sob diversos modos, a temática da ditadura militar no país, ocorrida entre os anos 1960 e 1980. São perspectivas múltiplas que nos ajudam a aprofundar a discussão e não perder de vista a necessidade de combater as ameaças e práticas totalitárias, tão recorrentes ainda em nosso tempo.
O filme Deslembro, de Flávia Castro, propõe sensível abordagem do tema a partir da perspectiva de uma jovem, Joana, nascida no Brasil, mas que passa a morar na França com a mãe após o desaparecimento político de seu pai. Ao retornarem em seguida à proclamação da Anistia (ocorrida no final dos anos 1970), a garota, inicialmente resistente ao país, passa a se conectar cada vez mais com os acontecimentos de sua infância e família, o que a leva também à descoberta de informações desconhecidas de seu pai e por consequência, do passado recente brasileiro.
Na análise desenvolvida neste artigo, procuro compreender como a linguagem do roteiro e da cena, em especial os elementos espaço-temporais presentes na ação, revelam o processo de amadurecimento de Joana – a descoberta de sua juventude cada vez mais articulada à descoberta de um país. Entre outros procedimentos, os rápidos flashbacks de Joana sobre sua infância em meio a cenas familiares no Brasil, além do maior número de planos abertos no contato da jovem com a cidade do Rio de Janeiro, permitem mostrar cinematograficamente a dialética da ação de Joana, dividida entre seu universo íntimo e o universo da História social brasileira.
O horizonte que se amplia
Joana, no decorrer do filme, encontra aos poucos pontos de conexão entre os seus sentimentos e os fatos de sua vida e do país. Nesse processo, a relação com o espaço é decisiva: seus horizontes de consciência e de percepção se ampliam na medida em que ela aceita tomar contato com a cidade e a natureza. O espaço em suas diversas dimensões – desde o espaço íntimo e o circundante ao espaço público e ao nacional – cria sentidos para as questões da jovem.
Se considerarmos que o espaço geográfico é social, produto e produtor de relações sociais, é possível afirmar que a protagonista se descobre e ao mundo, em grande parte ao rever na adolescência pessoas, situações e lugares da cidade que volta a conhecer/habitar: o Rio de Janeiro.
Lugares articulam a vivência local e mundial, a lembrança pessoal e a social. Segundo Ana Fani A. Carlos, “[...] o lugar se apresentaria como o ponto de articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade concreta, enquanto momento. É no lugar que se manifestam os desequilíbrios, as situações de conflito e as tendências da sociedade que se volta para o mundial” (Carlos 2001 a, 22). No entanto, não se trata apenas de fenômenos sociais, mas também da relação entre eles, os seres e os seus corpos: “O lugar é a porção do espaço apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores [...]” (Carlos 2001b, 17).
No início do filme, quando Joana ainda mora na França, ainda bastante introspectiva, as cenas apresentam lugares que representam a sua fuga do espaço público visível, como os cômodos da casa, um telhado e o cemitério: ela sobe no telhado para ler e conversar com o vizinho, leva amigas para visitar o túmulo de Jim Morisson, além de rasgar o passaporte brasileiro na privada do banheiro, num plano fechado. São lugares que escondem, ocultam e refletem seu mundo intimista e o pensamento marginal dela - não se veem no filme os espaços públicos de Paris, como bulevares.
Embora ela tenha sido obrigada a conviver com realidades nacionais diferentes, já que seu padrasto é chileno, sua mãe é brasileira e se exilaram na França, não gosta quando descobre que vai voltar ao Brasil: deixa claro para a mãe que não quer ir “para esse teu país de merda [...] Não é lá que se mata e se tortura?”. Ao chegar no Brasil, no aeroporto, atrás da porta de desembarque semiaberta, olha a mãe, Ana, feliz por abraçar os amigos, que carregam uma faixa em que se lê “ANISTIA” e fazem um protesto contra a ditadura. De onde está, Joana vê a porta automática se fechar. Nesse momento de transição de vida da jovem, ela se encontra num aeroporto, um não-lugar, que pode simbolizar o sentimento de não pertencimento da jovem a esse país ao qual ela retorna.
Essa sensação é também reforçada pelos diálogos inusitados da família, que no dia a dia alterna três línguas diferentes: a jovem no início fala francês e não português, ao contrário da mãe; já o padrasto, Luís, chileno, quase sempre fala em espanhol, idioma que traduz muito da tradição de resistência política latino-americana. Essa multiplicidade de línguas na família, se por um lado, pode nos fazer pensar sobre como a luta pela liberdade percorre o mundo, por outro lado, a contradição também evidencia como é complexo conhecer-se e compreender sua cultura, suas origens, seu espaço – qual seria mesmo o lugar de cada um de nós?
Além das significações pessoais e sociais de cada elemento espacial para a protagonista, também é preciso considerar a abordagem dos planos, que evidenciam cinematograficamente a integração da jovem com o mundo externo. Se o aeroporto traz um plano que a oculta/separa da mãe e do Brasil, no decorrer da vivência da garota no Rio de Janeiro é possível perceber que os planos abertos e integrados ao ambiente da cidade passam a ser mais frequentes que na França, embora convivam ainda com os fechados.
Nos primeiros dias na cidade, Joana repete o seu universo de resguardo: a família reside inicialmente na casa de uma amiga da mãe, onde além de uma cena pouco iluminada, é possível perceber pelas ações e pelos planos como ela se protege do ambiente externo: vê-se o ponto de vista da menina, que da janela do apartamento olha para fora e para baixo; de repente, a imagem gira, embaça-se e ouve-se um barulho, pois o seu irmão pequeno, Leon, quebra um objeto. A dificuldade de olhar para fora e a interrupção do fluxo deste contato pelo barulho dialogam sensorialmente com a resistência e o conflito da jovem com o que pode conhecer lá fora.
Um novo passo na integração de Joana com a cidade é a visita à Floresta da Tijuca com a família, proposta pela mãe, que apelidou o passeio de “turismo afetivo”. Depois de um tempo de visita, começa a chover e o padrasto encontra um abrigo sob uma pedra para se protegerem da água. Joana, a princípio, parece querer se isolar, mas quando os irmãos vão brincar na chuva, ela decide ir também e se diverte. Como num ritual de passagem, ela se integra à natureza, num plano aberto do ambiente e que revela os corpos inteiros. A água, presente em diversas cenas do filme, nesta parece permitir uma reintegração e redescoberta vital do seu lugar de origem, como se voltasse ao útero, úmido e revitalizador. Em seguida, ainda sob a garoa, ela olha uma gota de chuva que cai numa planta: se por um lado essa ação resgata o espaço íntimo da protagonista, por outro enxerga-se o seu mundo pessoal em contato com a vitalidade do mundo natural, em um clima e uma terra com a qual não está acostumada, mesmo que sua de origem.
Se no início do filme, os planos mais fechados apresentam o contato visual e corporal de Joana com os objetos e o ambiente, planos mais abertos tornam-se mais comuns no decorrer da ação no Rio de Janeiro, mesmo que de modo não linear. Alternam-se constantemente esses planos abertos e fechados no movimento de processar as vivências da jovem, que sofre um movimento contraditório de exteriorização e interiorização: por exemplo, em planos close ou detalhe, ela observa, toca ou reage aos objetos da casa da avó e se interioriza; ou então, corre de desespero ao brigar com a mãe; num plano geral, Joana senta-se no estacionamento do prédio em que a família habita na cidade, vê uma foto do pai, mas em seguida passa a um close ao observar rachaduras numa grande rocha ao fundo, como uma metáfora de seu estado interior.
O processo de olhar para dentro e fora de si continua no decorrer da ação de Joana e amplia o seu amadurecimento pessoal, mas também permite que se aproxime das informações de seu passado.
A memória que se reconstrói
Um segundo ponto fundamental na transformação da trajetória de Joana é o seu envolvimento com o passado familiar, que por ter ligação direta com o universo político, cria aos poucos na garota um outro olhar sobre o país.
A partir do contato com situações e elementos e objetos da cidade, da natureza, do universo artístico e da família, Joana aciona imagens e lembranças da primeira infância que, mesmo contraditórias, criam sentidos possíveis de memória individual e social. Essa retomada do seu passado é permeada de sensações e percepções íntimas: o filme destaca com frequência a relação entre o tempo interior da jovem e o espaço externo.
Nesse sentido, destaca-se no filme um tempo interno, que processa os acontecimentos externos de modo subjetivo e num ritmo diverso ao da ação convencional. Para Jean-Pierre Ryngaert, o tempo, numa de suas possibilidades de enfoque dramatúrgico, “[...] tem uma dimensão metafórica equivalente àquela do espaço. Pode assim existir um tempo próprio a cada personagem, que traduz suas preocupações e os choques das diferentes subjetividades”
(Ryngaert 1996, 92).
No movimento de rever sua subjetividade, a personagem a princípio tem dificuldade de assimilar valores historicamente importantes na formação de nosso país. Um primeiro elemento muito característico do modo de vida brasileiro e da sua “estrutura de sentimento”, com o qual Joana se depara pouco tempo após a chegada ao país, e que de certo modo começa a abrir caminho para as suas lembranças da infância, é a cena em que ela e o irmão estão na sala da casa enquanto é transmitida uma novela nacional na TV. Joana observa inicialmente - não por muito tempo - a ação da trama: nela, uma personagem reclama da dificuldade de sobrevivência econômica e o seu parceiro afirma que por ela, ele é capaz até de ficar milionário. No Brasil, desde os anos 1950, e principalmente a partir dos anos 1960, a novela de televisão se apresenta como um gênero que passa a criar uma imagem melodramática do Brasil – e que de certo modo, guia muito nossa mentalidade e nossas relações de classe e de trabalho. Num país subdesenvolvido, explorado por potências e empresas mundiais, com uma das maiores desigualdades sociais do mundo, em que o povo luta diariamente para ao menos conseguir sobreviver, a meta de ascensão social a qualquer custo, inclusive para uma suposta obtenção da felicidade amorosa, mostra-se como um importante valor propagado pelo melodrama – ao contrário do que buscaram pessoas como os pais de Joana, cujos valores de libertação política foram talvez os principais responsáveis pela sua união. O melodrama, segundo Patrice Pavis, também apresenta personagens “... claramente separadas em boas e más [...]; elas são poços de bons ou maus sentimentos, de certezas e evidências que não sofrem contradição. Seus sentimentos e discursos, exagerados até o limite do paródico, favorecem no espectador a identificação fácil e uma catarse barata” (Pavis 2001, 238-239). A contradição da família de Joana é também a contradição da formação brasileira: como enxergar o mundo de modo libertário e complexo, se historicamente na nossa mídia é muito forte a propagação de valores maniqueístas e, por outro lado, a educação libertadora é sempre tolhida pelos longos períodos de ditadura?
Depois desse batismo de Joana num modo ficcional fundamental e já tradicional de representação do país, o passado invade a casa: o padrasto continua envolvido com a luta política em São Paulo e depois no Chile; já a menina é impedida de fazer uma excursão com a escola até Ouro Preto por não possuir o atestado de óbito do pai, desaparecido político. Nesse ambiente, as lembranças surgem no inconsciente de Joana. Imagens como os pais e ela num carro, em fuga da polícia e com o vidro embaçado de chuva; um passaporte e um revólver; uma boneca de infância, além das vozes do pai e da mãe a chamar Joana quando criança passam a povoar seu imaginário, não apenas dentro da casa. São lembranças fragmentadas, ela não consegue perceber a princípio o que foi ou não real, mas isso a impele a buscar mais informações dos fatos familiares.
No processo de resgate do passado paterno, tem papel central a personagem da avó, Lúcia. Em sua casa, Joana se sente mais à vontade para mostrar seus sentimentos e reflexões, e aos poucos pesquisa e se depara com um universo familiar que estimula suas lembranças. Ela ouve sons, encontra objetos, lê livros do pai e pode conversar – já que a avó se interessa pela vida da menina, ao contrário da mãe, sempre envolvida com o universo da luta revolucionária ou da sobrevivência. A convivência com a avó é prazerosa para a jovem e permite que ela tenha vontade de se conectar com o passado. Lúcia lhe mostra uma caixa com todos os documentos e recortes de jornais encontrados em sua jornada para descobrir mais informações sobre a prisão do filho; num deles, Joana encontra uma reportagem cujo título é ‘Estado desmantela importante “aparelho” subversivo’. Na foto da reportagem, ela vê sua boneca no chão, juntamente com papéis e livros jogados; algumas cenas depois, a mãe lhe revela que após a saída delas duas do Brasil para a Bolívia, a casa foi denunciada e invadida: assim a polícia chegou ao seu pai.
O contato com a arte também amplia o horizonte de Joana. Em meio à turbulência da adaptação ao Brasil, a princípio ela reluta em aprofundar sua relação com a cidade e as pessoas: numa cena anterior, a mãe chama as crianças para uma festa na casa de família conhecida, mas a menina replica que precisa arrumar suas coisas. A mãe insiste que ela precisa sair um pouco do quarto, então Joana aceita. Já na festa, apresenta-se mais um importante fato para seu amadurecimento e apropriação do universo brasileiro: ela conhece o jovem Ernesto, com quem se envolve amorosa e sexualmente. Ele é filho de um exilado que assim como o pai de Joana, foi detido no DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, órgão criado durante o período ditatorial de Getúlio Vargas e responsável por prender e realizar torturas de militantes políticos durante a ditadura militar. Os dois jovens passam a compartilhar obras artísticas, num caminho de apropriação de seus corpos, do amor e da cultura brasileira e mundial. Ela gosta de rock; ele, de música brasileira. Ela é apaixonada por literatura e entre outras obras, eles leem juntos, enquanto fumam maconha, um poema de Fernando Pessoa, em que está contida a palavra que dá título ao filme – deslembro:
Deslembro incertamente. Meu passado
Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,
Está confusamente deslembrado
E logo em mim inobservado flui.
Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.
Só há de meu o que me vê agora —
O Campo verde, natural e mudo
Que um vento que não vejo vago aflora.
Sou tão parado em mim que nem o sinto.
Vejo, e onde o vale se ergue para a encosta,
Vai meu olhar seguindo o meu instinto
Como quem olha a mesa que está posta.
(Pessoa 2016, 494)
Joana vive um pleno processo de descoberta, de ampliação de seus horizontes e de aprofundamento em si mesma; não é simples resgatar suas dores adormecidas, nem confirmar facilmente os fatos da história familiar e aqueles do passado nacional oculto pela violência; no entanto, o caminho de ampliação da consciência pode agora se abrir, mediado pela subjetividade, e nisso reside muito da beleza de Deslembro. A diretora e roteirista Flávia Castro, em entrevista à Flávia Pécora, afirma que não quis fazer um filme de época, nem uma reconstituição histórica, mas uma obra atemporal, pois o que se vê no filme, tanto a cenografia quanto as cores, é reflexo do que a personagem sente, do interior dela (Pécora 2019).
As descobertas da protagonista acontecem a partir de uma narrativa bastante sensorial, principalmente pelo uso das múltiplas referências artísticas, que apresentam também uma função narrativa, já que traçam um diálogo entre o nacional e o global, entre o passado e o presente, entre o individual e o social, e nos ajudam a perceber como isso se processa na jovem e na sua relação com o país. Além do constante contato de Joana com a literatura – ela lê em vários momentos do filme – a música é muito presente na ação. Por um lado, Ernesto, que gosta de música brasileira, tem um papel importante na abertura de sensibilidade de Joana para o Brasil, por ser seu namorado. Por outro lado, a aceitação de Joana em aprofundar sua pesquisa sobre o passado de seu pai está muito vinculada ao estímulo artístico de sua avó, que a apresenta os livros de seu pai, mas também gosta de músicas atuais e antigas. Numa cena em que Joana toma banho, a avó ouve uma música de Nelson Gonçalves; a jovem aos poucos a reconhece e se emociona muito. Ao se emocionar com uma referência da infância, sente ainda mais a certeza de que vale a pena resgatar o passado.
Joana submete suas lembranças ao olhar da família e da sociedade e deste modo, sua percepção individual se reelabora, se amplia. Segundo Eclea Bosi, quando as lembranças pessoais são vinculadas ao olhar de um grupo ou da sociedade, elas são revistas e cria-se uma coerência na narração e interpretação dos fatos, uma versão consagrada dos acontecimentos. No entanto, existe uma vivência pessoal da lembrança, filtrada pela subjetividade, de modo que o passado é apropriado qualitativamente pelo sujeito (Bosi 1979, 27-29). Ou seja, Joana, ao fundir seu olhar inicial sobre seu passado aos fatos expressos por documentos ou relatos, precisa também reelaborar sua memória para si, assimilar o que e como as informações se processam em seu corpo, para que de fato a memória seja sua.
Ao se deparar com o passado de seu pai e de sua família, se por um lado ela se sente angustiada, por outro se aproxima da compreensão de seus próprios conflitos e encontra maior sentido em sua visão não convencional do mundo. Por outro lado, seus conflitos, embora muito particulares, não são apenas seus: são também o resultado da História brasileira em sua vida. O filme mostra com muita sensibilidade essa trajetória de apropriação pessoal do passado.
Conclusão: o íntimo que se liga ao país
O processo de amadurecimento da personagem no filme não segue como uma regra fechada os ditames do plot tradicional, clássico, mas parte do princípio do chamado cinema “moderno”, que segundo João Maria Mendes, buscava uma desconstrução narrativa: embora não abandone a ação, foca sua atenção mais no personagem que no desenrolar do enredo, e prima principalmente por um diálogo com o ser humano moderno, ao abordar sua crise existencial e a questão da incomunicabilidade (Mendes 2009, 89-90). Ao buscar um resgate do passado, Joana parece, aos olhos da ação convencional, não estar em movimento, mas o tempo interno da protagonista – um tempo estendido, de sua subjetividade – comanda a ação, de modo que, por mais que haja ações externas evidentes, elas são um trilho que sustenta narrativamente o amadurecimento da personagem. A sua ação interna é o foco da narrativa: ao voltar a viver no Brasil, ela gradualmente aprofunda a relação com a cidade e com o passado familiar – elementos que permitem sua conexão consigo mesma e uma maior compreensão do passado e o presente da sociedade brasileira.
O caminho de amadurecimento de Joana apresenta um forte tom lírico, subjetivo, em fusão com elementos épicos, reflexivos. O lirismo, em termos de linguagem textual, está presente nos poemas lidos, nas canções e, em termos cênicos, nas cenas mais intimistas e solitárias, como as de observação do mar e da natureza. Já o tecido épico do filme se estrutura nas imagens do passado que invadem o pensamento da protagonista e as reflexões sobre a luta revolucionária, presentes em momentos dos diálogos da ação presente ou dos flashbacks, ou ainda em planos sem diálogos, como o do aeroporto, em que ela e o irmão se veem estranhos perante uma manifestação política.
O filme propõe, portanto, uma abordagem que considera a relação entre as questões políticas no sentido macro e o mais íntimo espaço da personagem. Pensa-se sempre sobre o país, mas sob a perspectiva muito própria da protagonista, num momento de descobertas fundamentais sobre si mesma, em seu próprio tempo. Trata-se de um enfoque que maneja o tempo ficcional de modo a não o submeter de modo tirânico à ação dramática tradicional, para que se possa perceber os efeitos do passado no presente dos personagens, mais do que fazer a ação avançar. Evidenciam-se as diferentes possibilidades da memória em cada personagem, inclusive as visões contrárias, de modo que possamos perceber, como espectadores, como é também contraditória a visão do passado em nossa memória coletiva.
Joana se esconde, contesta, se aproxima e se apropria do mundo a partir dessa dialética entre o espaço íntimo e amplo. A narrativa nos leva a um degustar delicado do tempo subjetivo de ação, enquanto procura nos conscientizar de como os efeitos da ditadura afetam a percepção e os sentimentos de uma jovem no seu processo de crescimento e de construção da sua própria identidade.
O filme traz uma grande contribuição para pensar o Brasil, até porque se olharmos para os conflitos da nação na última década, é evidente o quanto faltou para uma parte da população – e não por culpa dela, mas sim do contexto político nacional e global –, além de um conhecimento maior dos fatos históricos recentes e antigos, a possibilidade de entender as suas consequências nas vidas pessoais. Por outro lado, é também evidente o quanto esse desconhecimento produz falta de diálogo político e relações violentas causadas tanto pelo governo atual, quanto pela mídia – o que além de limitar o imaginário brasileiro, diminui sensivelmente as possibilidades de acordos coletivos para os dilemas nacionais.
Deslembro parece refletir nosso amadurecimento ou dificuldade de amadurecimento enquanto nação: quando em um contexto democrático, começamos a nos lembrar do que somos, logo que voltamos a viver uma ditadura oficial ou disfarçada, voltamos a nos deslembrar.
Bibliografia
Bosi, Eclea. Memória e sociedade. 1979. São Paulo: T. A. Queiroz.
Carlos, Ana Fani Alessandri. 2007. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH.
Mendes, João Maria. 2009. Culturas narrativas dominantes: o caso do cinema. Lisboa: Observatório de Relações Exteriores e EDIUAL.
Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. 2001. São Paulo: Perspectiva.
Pessoa, Fernando. Obra poética de Fernando Pessoa: volume 1. 2016. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Ryngaert, Jean-Pierre. 1995. Introdução à análise do teatro. São Paulo. Martins Fontes.
Filmografia
Deslembro. 2018. De Flávia Castro. Brasil: VideoFilmes. DVD.
Webgrafia
PÉCORA, Luísa. Flavia Castro sobre “Deslembro”: “Brasil não fez trabalho político de memória”. 20 de junho de 2019. Mulher no cinema. Disponível em: https://mulhernocinema.com/entrevistas/flavia-castro-retrata-passado-e-presente-em-deslembro-nao-houve-trabalho-politico-de-memoria-no-brasil/. Acesso: 30 abr. 2022