Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Surviving Images: an analysis of Edipo Re (1967), by Pier Paolo Pasolini

Imagens Sobreviventes: uma análise de Édipo Rei (1967), de Pier Paolo Pasolini

Rodrigo Coelho Pierre Lira1

Universidade Federal do Ceará, Brasil

Abstract

The article intends to analyze the relations between literature, theater and cinema, through a filmic analysis of Pier Paolo Pasolini’s adaptation of Sofocles’ Oedipus Rex. The study is based on the concepts of Nachleben and Pathosformel, by Aby Warburg; and montage, according to Sergei Eisenstein, Philippe-Alain Michaud, Georges Didi-Huberman, Marcel Martin, Vincent Amiel, among others, associating their thoughts with Pasolini’s own personal writings on cinema’s language. The objective of the article is to understand how Pasolini absorbs the elements of Classical Antiquity and transforms them through the resources of the cinematographic language, in a dialogue between cinema and other arts.

Keywords: Adaptation, Cinema, Literature, Montage, Pier Paolo Pasolini.

Introdução

Cinema e literatura mantêm uma relação de proximidade desde as produções dos primeiros filmes. A arte cinematográfica apropriou-se dos fundamentos das estruturas literárias para criar suas próprias narrativas, em específico o formato do romance do século XIX (Vanoye e Goliot-Lêté 2012, 24). Mesmo antes que longas-metragens começassem a ser feitos, eram comuns no cinema as pequenas narrativas que emprestavam estruturas e gêneros já populares na literatura, tais como os faroestes (como O Grande Roubo do Trem, 1903, de Edwin S. Porter), a ficção-científica (Viagem à Lua, 1902, de Georges Méliès) e as comédias (como as dirigidas por Charles Chaplin e Buster Keaton, entre outros).

Entretanto, a relação entre essas duas artes não pode ser reduzida a uma mera mimese. Não podemos perder de vista que não são apenas as formas literárias que constituem elementos formativos da arte do cinema: teatro, pintura, fotografia, música; o cinema se apropriou de atributos de diversas outras artes já bem estabelecidas antes dele mesmo, principalmente da herança literária e teatral (Bazin 2014, 113).

Essa apropriação, por outro lado, acarreta também em uma transformação dessas outras artes, a partir do momento em que temos as imagens em movimento associadas pelas técnicas específicas da construção fílmica, tais como a montagem. Em seu ensaio Teatro e Cinema, André Bazin (2014) afirma:

Só há teatro com o homem, mas o drama cinematográfico pode dispensar atores. Uma porta que bate, uma folha ao vento, ondas que lambem uma praia podem aceder à potência dramática. (ibid., 179)

Este artigo busca investigar a multiplicidade de referências artísticas imbuídas no cinema, mais especificamente a influência da literatura, por meio da análise da adaptação homônima da obra Édipo Rei, de Sófocles, por Pier Paolo Pasolini, em 1967. A análise empreendida não terá como objetivo perceber uma suposta “fidelidade” ao texto original, no que concerne aos eventos e ações presentes na dramaturgia. Mais do que analisar as diferenças técnicas e práticas entre essas duas mídias (literatura e cinema), busca-se entender o pathos que existe na relação entre as duas, o porquê delas permanecerem a se fundir e também a se dissociar.

Também será investigada a sobrevivência de obras da antiguidade na modernidade: por que um texto produzido há milênios permanece a estimular a imaginação humana e a influenciar artes como o cinema, invenção social do fim do século XIX? O que há em uma obra como Édipo Rei (mas poderíamos falar também de Antígona, Medeia, etc.) que faz com que um artista moderno, como Pasolini, do século XX, se debruce sobre suas ideias, absorvendo-as de acordo com seus próprios preceitos?

Cineastas como Pasolini, que se apropriam de materiais já pré-existentes, não traduzem os aspectos da literatura e do teatro para o cinema, mas os transformam. Nessa transformação, o que permanece e o que é rompido? A absorção de motivos da antiguidade não se faz de modo linear, para ilustrar ideias do passado, mas para mostrar como tais ideias podem se atualizar no presente.

I - Das sobrevivências

Para se entender a absorção de motivos da antiguidade em épocas e artes futuras, é essencial falar sobre o pensamento do historiador da arte alemão Aby Warburg, mais especificamente de seus conceitos nachleben e pathosformel, associados ao seus estudos das obras de arte renascentistas.

De acordo com Teixeira (2010), uma das questões mais caras a Warburg é a da pós-vida (ou sobrevivência) de elementos da antiguidade clássica na arte renascentista:

(...) mais precisamente os modos com que certos motivos característicos da arte e literatura pagãs foram retomados nos séculos XV e XVI (...), não necessariamente como tópicas figurativas, mas como forças psíquicas ativadas pela memória cultural. (Teixeira 2010, 136)

Antes tomada como um exemplo de um ideário apolíneo, racional e cristão, a partir de Warburg o Renascimento passa a ser entendido “(...) como um período de transição, marcado por uma atmosfera de aturdimento psíquico (...)” (ibid., 137). A arte renascentista, logo, é representativa:

(...) da coexistência de duas concepções de mundo distintas, entendidas, todavia, como polos não necessariamente antagônicos: a visão de mundo pagã, associada à cultura greco-latina tão admirada na Renascença, e a visão de mundo cristã, arraigada entre os italianos dos séculos XIV, XV e XVI. (ibid., 137)

Essa busca por entender dicotomias a partir de uma relação de complementaridade, e não de oposições excludentes, é muito importante para o pensamento de Warburg. Uma dicotomia particularmente cara a ele é aquela estabelecida entre o apolíneo e o dionisíaco, em que este:

(...) representaria o desequilíbrio e o excesso (hybris) (...), enquanto o apolíneo remeteria à harmonia das formas, ao equilíbrio (...) (ibid., 139-140)

Para Warburg, ambos os elementos coexistem na arte renascentista e seus estudos enfatizam o elemento dionisíaco desta cultura, em que:

(...) as energias psíquicas conservadas da Antiguidade constituíam forças estéticas motivadoras das representações pictóricas e esculturais, numa efetiva pós vida das Pathosformeln antigas (...). (ibid., 140)

Podemos entender Nachleben, portanto, como um conceito associado à ideia da sobrevivência, enquanto as pathosformeln são as fórmulas passionais deslocadas pelas mais diversas épocas que permitem tal sobrevivência. Ainda para Teixeira (2010):

A própria noção de ‘fórmula’ sugere a necessária dimensão repetitiva do fenômeno (...), com ênfase nos processos de transmissão (...) das imagens primordiais que condensam tais energias. (ibid., 142-143)

Tais imagens primordiais transmitidas culturalmente, cujas pós-vidas são mantidas devido a energias passionais de grande carga simbólica, podem nos ajudar a compreender os fenômenos das adaptações da literatura antiga para o cinema e o porquê delas permanecerem a estimular tantos artistas.

II - Imagem e Palavra

A relação entre imagem e texto não é alheia ao pensamento de Warburg, visto que sua análise de pinturas renascentistas perpassa pelo conhecimento da literatura mitológica da antiguidade. Essa conexão, entretanto, não se expressa em uma relação causal e hierárquica, em que o texto determina as imagens, mas em uma perspectiva de correspondências.

Lissovsky (2014), ao discorrer sobre a confrontação entre forças contraditórias como as apolíneas e as dionisíacas, expressas no elo entre Renascimento e Antiguidade, afirma que:

(...) se as fontes escritas eram cruciais para a ‘reconstrução histórica’ destas tensões, elas eram ainda mais essenciais porque expressavam, na sua relação com o figurativo, uma tensão civilizacional profunda entre imagem e texto. (Lissovsky 2014, 307)

Essa conexão entre texto e imagem, portanto, não é meramente descritiva, mas traços das pathosformeln.

De acordo com Michaud (2007), Warburg, ao comparar as pinturas de Botticelli com a produção poética contemporânea ao pintor, tentou não catalogar um léxico das iconografias clássicas preservadas na cultura visual e literária do Renascimento, mas entender como os pintores e poetas do período expressavam a sua originalidade ao se emprestar de variadas formas de identificação com o passado. Nesse sentido, o essencial é tentar compreender quais questões os artistas põem a si mesmo ao interpretarem formas ancestrais (Michaud 2007, 67).

Ainda sobre os célebres estudos que Warburg fez sobre a obra Botticelli, Michaud (2007) diz que o historiador julga que o artista buscava representar primeiramente não os conteúdos narrativos ou contos lendários da Antiguidade, mas a forma imediatamente visível em que a existência de indivíduos apareciam para ele, um repertório para representar uma energia ativa. A partir disso, podemos perceber que existe uma forte conexão entre texto e imagem no Renascimento e, logo, na própria metodologia de análise warburguiana (ibid., 80).

Tal relação é expandida por Michaud (2007) ao trazer o conhecimento de Warburg para o campo dos estudos cinematográficos. O autor afirma que, ao final do século XIX, cineastas e historiadores da arte se utilizavam de procedimentos comuns em distintos campos do saber, revelando uma orientação semelhante, expressa pela interseção entre filme e texto, que muda todo um paradigma discursivo. Assim, o cinema passa a ser visto menos como espetáculo e mais como uma forma de pensamento; enquanto a história da arte, menos como uma busca direcionada ao conhecimento do passado e mais à sua transmissão para tempos futuros (ibid., 40).

Ao vermos o cinema para além de seu aparato técnico e material usual, por uma ótica que visa a questão da inter-relação entre transparência, movimento e impressão, podemos descobrir na arte cinematográfica as mesmas categorias que Warburg se utilizou para estudar a história da arte (ibid., 39).

III - Movimento e Montagem

A chave para entender a aproximação do cinema com a história da arte proposta por Warburg repousa na questão do movimento e também na da montagem. A ideia de movimento para o autor é muito presente tanto na análise figurativa das pinturas renascentistas quanto para conceber suas noções muito particulares de história.

A partir da concepção de Warburg a respeito da organização de sua biblioteca pessoal e também do seu Atlas Mnemosyne, Didi-Huberman (2013) afirma que podemos perceber “(...) até que ponto a movimentação constituiu uma parte essencial de seu referido ‘método’.” (Didi-Huberman 2013, 19). Ainda para o autor:

(...) é evidente que o ‘movimento’ não é uma simples translação ou narração de um ponto a outro. Esse movimento são saltos, cortes, montagens, estabelecimentos de relações dilacerantes. (ibid., 24)

São constituídas por “(...) coisas que são, ao mesmo tempo, arqueológicas (fósseis, sobrevivências) e atuais (gestos, experiências).” (ibid., 25). Portanto, podemos concluir que a ideia de movimento para Warburg está diretamente associada aos seus conceitos de pathosformel e nachleben: é o que garante o deslocamento e a sobrevivência das fórmulas passionais da cultura ao longo de vastos períodos históricos e artísticos.

Figura 1 - Prancha 46 do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg (Fonte: Warburg Library 2).

Michaud (2007) traz esses conceitos para pensarmos a história do cinema, ao associar a permanência da ideia de movimento em Warburg aos processos formativos da linguagem cinematográfica. É dada especial atenção aos chamados pré-cinemas, como os experimentos de William Dickson (kinetoscópios), Marey (cronofotografia) e Louis Daguerre (daguerreótipo). De acordo com o autor, o método de Warburg, da análise de figuras estáticas em 1893 até a montagem do Atlas Mnemosyne, a partir de 1923, é baseada em uma estética do movimento que foi expressa ao final do século XIX com o nascimento do cinema. Warburg abriu a história da arte para a observação de corpos em movimento no mesmo momento em que as primeiras imagens capazes de captá-los começaram a ser difundidas (Michaud 2007, 39).

Por sua vez, a análise da ideia de movimento no pensamento de Warburg nos leva inevitavelmente à sua concepção de montagem, expressa em seu Atlas enquanto um “(...) conhecimento-montagem (...)” (Lissovsky 2014, 315), que reflete:

(...) seu entendimento da cultura como espaço de memória, no qual símbolos visuais e outros funcionam como um arquivo de memórias justapostas. (Rampley 1999, 112 apud Lissovsky, 316)

De acordo com Reinaldo e Reis Filho (2019), a montagem para Warburg:

(...) ofereceria um método dinâmico de apreensão das obras, uma maneira mais pertinente de compreender a temporalidade das imagens, com suas sobrevivências (...) (Reinaldo e Reis Filho 2019, p. 12)

Propicia, assim, “(...) um conhecimento não mais em linhas retas e corpos fechados, mas um saber em extensões (...).” (ibid., 12). Ainda sobre esse conceito, afirma-se que:

Princípio formativo dos ideogramas, dos haikais, das composições visuais múltiplas (...), a montagem opera por relações de coexistências e múltiplas temporalidades. Numa palavra: montar é pôr em relação, é combinar e recombinar, fugindo de uma lógica linear, sintática, discursiva. Em contraponto a um pensamento linguístico e causal, portanto, somos confrontados aqui com um saber essencialmente aberto e imprevisível, que joga com temporalidades anacrônicas e desconexas, com o rearranjo e a variação contínua dos seus termos. (ibid., p. 11-12)

Os princípios formativos do Atlas de Warburg encontram paralelo também com o pensamento de Walter Benjamin, mais especificamente em sua obra Passagens, em que a noção de montagem também é muito importante. Sobre essa conexão, é dito:

Contemporâneos do cinema e das vanguardas históricas, ambos viam nessa técnica moderna por excelência uma nova via heurística, uma ‘ferramenta’ que permitia a criação de formas totalmente singulares de ‘apresentar’ e ‘expor’ o pensamento filosófico, formas não-lineares, não discursivas e que se caracterizavam por colocar o movimento no centro do processo de pesquisa e de escrita acadêmicas. (ibid, p. 11)

Ao tentar definir a metodologia de trabalho de Warburg, Didi-Huberman (2013) curiosamente a compara a uma “(...) montagem de atrações (...)” (Didi-Huberman 2013, 21), fazendo referência ao pensamento do cineasta, montador e teórico soviético Sergei Eisenstein. De acordo com Martin (2005), é a montagem que constitui:

(...) o elemento mais específico da linguagem fílmica (...). (...) é a organização dos planos de um filme segundo determinadas condições de ordem e de duração. (Martin 2005, 167)

Para esse autor, a montagem pode ser dividida em duas categorias, a montagem narrativa e a expressiva. A narrativa consiste de uma ordenação baseada na lógica cronológica, cujo maior objetivo é fazer avançar a ação dramática; enquanto a expressiva visa, por meio do choque entre duas imagens e justaposições de planos, exprimir uma ideia ou um sentimento, visando sensações de ruptura. A montagem de atrações de Eisenstein seria justamente um exemplo de montagem expressiva (Martin 2005, 169).

Já para Amiel (2007), a montagem cinematográfica pode ser definida de acordo com três categorias: a narrativa, que se estabelece por procedimentos de planificação e de elementos que garantam a continuidade (raccords) e a transparência; a discursiva, cujas articulações são baseadas na descontinuidade e confrontação entre imagens; e a montagem por correspondências, uma espécie de variante mais radical da discursiva, também baseada na descontinuidade, mas ainda mais sugestiva e abstrata (Amiel 2007, 19).

Essa exposição permite uma leitura mais flexível sobre o processo de montagem que a de Martin, pois escapa de uma percepção dualista e permite observar pontos de contato entre as três categorias. Para Amiel, Eisenstein se encontra mais presente na categoria da montagem discursiva, em que as relações de ruptura e descontinuidade da montagem visam uma construção de mundo (Amiel 2007, 54).

Por fim, devemos ir sempre ao próprio Eisenstein (2002) para tentar compreender suas concepções acerca da montagem cinematográfica. Ele traz suas próprias definições de montagem, dividindo-as em cinco categorias: métrica; rítmica; tonal; atonal; e intelectual. Sobre as primeiras quatro categorias, ele afirma:

(...) são métodos de montagem. Elas se tornam construções de montagem propriamente ditas quando entram em relações de conflito umas com as outras (...). Dentro de um esquema de relações mútuas, ecoando e conflitando umas com as outras, elas se movem em direção a um tipo de montagem cada vez mais fortemente definido, cada uma crescendo organicamente a partir da outra. (Eisenstein 2002, 84)

A partir disso, podemos compreender que tais categorias possuem uma relação progressiva em complexidade, mas com possibilidade de coexistência e intercalação, podendo todas elas estarem presentes em um mesmo filme. Sobre essa progressão, Eisenstein (2002) afirma que:

(...) a transição da métrica para a rítmica ocorreu no conflito entre o comprimento do plano e o movimento dentro do plano. A montagem tonal nasce do conflito entre os princípios rítmicos e tonais do plano. E finalmente - a montagem atonal, do conflito entre o tom principal do fragmento (sua dominante) e uma atonalidade. (ibid., 84).

E onde cabe a quinta categoria nesse esquema, a montagem intelectual, que configura a maior contribuição de Eisenstein ao pensamento cinematográfico? Para o autor, ela é:

(...) uma forma completamente nova de cinematografia - a realização da revolução na história geral da cultura; construindo uma síntese de ciência, arte e militância de classe. (ibid., 87)

Uma forma de cinema a ser vislumbrada no horizonte, em processo de desenvolvimento revolucionário. O tipo anterior de montagem, a atonal, traz elementos dissonantes em um âmbito sensitivo, em que o processo intelectual é uma decorrência direta de um estímulo físico. A intelectual, por outro lado, deve trazer essa dissonância para o campo das ideias.

Tais pensamentos encontram muitos paralelos com as apropriações da técnica da montagem por Warburg, pois nele:

(...) a montagem se caracteriza justamente por acolher o dispersivo e o lacunar, por privilegiar não os encadeamentos, (...) mas os intervalos (...) (Reinaldo e Reis Filho 2019, 14)

É importante salientar que o diálogo entre tais pesquisadores-artistas se faz presente não apenas no campo formal, no modo como eles se dispunham e encadeavam suas imagens, mas também nas suas sensibilidades. Para Stam (2003):

(...) no inspirado ecletismo de Eisenstein, uma abordagem tecnicista redutora (...) coexistia com outra abordagem quasi-mística que enfatizava o pathos e o ‘êxtase’ (...) (Stam 2003, 56)

Para além desses aspectos, Eisenstein também punha a imagem e a palavra em relação. Há em seu pensamento um desejo em estudar o cinema dentro de um campo de referências múltiplas, em interseção com outras artes, sendo consciente dos processos históricos e artísticos que desencadearam a arte cinematográfica. Sobre a relação entre cinema e literatura, mais especificamente, Eisenstein (2002) afirma que:

Como herdeiros literários, frequentemente usamos as imagens e linguagens culturais das épocas anteriores. Isto naturalmente determina em grande parte a cor do nosso trabalho. E é importante notar os fracassos no uso de tais modelos escolhidos. (Eisenstein 2002, 113)

Nisso, podemos observar a crítica de Eisenstein quanto às más apropriações realizadas pelo cinema da literatura. Ele valoriza tal conexão quando há uma afinidade formal e sensitiva entre as duas e não algo da ordem da mera descrição e reprodução do conteúdo narrativo. Entretanto, ele claramente não exclui a relação entre ambas.

Sobre isso, Stam (2003) afirma que “(...) em lugar de ‘purificar’ o cinema, Eisenstein preferiu enriquecê-lo por meio de um cruzamento sinestésico com as outras artes (...)” (Stam 2003, 56). Ainda, diz que a teoria de Eisenstein possui uma base multicultural, com interesses que vão da escultura africana ao teatro de sombras chinês, ao kabuki japonês e às formas indígenas americanas, que seriam, para o cineasta soviético, relevantes para a formação de um cinema moderno (ibid., 56-57).

Tais ideias encontram paralelo também com o pensamento de Pier Paolo Pasolini, expressos não apenas em sua filmografia como também em seus escritos sobre cinema.

Em Cine de Poesía, o cineasta-poeta trabalha a partir da dicotomia entre prosa e poesia, em defesa de um cinema que se aproxime da linguagem poética, algo que revela não apenas uma tendência pessoal como uma tendência artística coletiva associada à modernidade cinematográfica (Pasolini e Rohmer 1970). É uma concepção que será abordada com maior profundidade no decorrer do tópico seguinte.

IV - Oedipus Rex (429 AC / 1967 DC)

Nascido em Bologna, Itália, no ano de 1922, filho de uma mãe professora e um pai tenente, Pasolini revela-se logo um prodígio, poeta precoce, a escrever suas primeiras poesias aos 7 anos de idade (Pasolini 1982, 7). Ao longo da vida, tal ofício é mantido junto ao de cineasta, nunca separados. Na verdade, Pasolini busca uma aproximação entre as linguagens literárias e cinematográficas:

A partir de 1960, Pasolini descobre no cinema um meio expressivo que se revelará extraordinariamente adaptado às suas investigações estilísticas e à sua necessidade de comunicação visual imediata. (ibid., 13)

Para além das aproximações estéticas entre uma linguagem e outra, Pasolini expressa seu gosto pela literatura ao adaptar, ao longo de sua carreira, diversas obras consideradas canônicas, nos entregando interpretações muito particulares da vida de Cristo, em O Evangelho Segundo São Mateus (1964); da era medieval, em Os Contos de Canterbury (1972) e Decameron (1971); da antiguidade do Oriente Médio com As Mil e Uma Noites (1974); e da antiguidade clássica, em Medéia (1969) e Édipo Rei (1967), que será o foco dessa análise.

A primeira sequência de Édipo Rei, de Pasolini, já nos indica que não estamos diante de uma adaptação tradicional, pois o cineasta, de imediato, nos desloca da lógica espaço-temporal do texto de Sófocles. Se na peça a narrativa tem início no palácio de Édipo em Tebas, com a cidade arruinada pela peste, no filme estamos diante do nascimento de Édipo, que se dá em uma Tebas que, na verdade, é a Itália fascista do entreguerras.

Tais informações não são expostas de modo didático, sem apresentações tradicionais de personagens ou locais. Sabemos que estamos na Itália de Mussolini não por uma inserção de texto na imagem, por exemplo, mas pela presença da bandeira italiana do período em alguns planos (Laio, o Pai, é, por sinal, um soldado de Mussolini).

Figura 2 - A bandeira da Itália Fascista (fonte: Édipo Rei 1967).

Nos primeiros minutos, presenciamos o nascimento de Édipo e a relação com sua mãe, Jocasta. Temos imagens de campos verdes, filmados em planos gerais e abertos, onde Jocasta amamenta seu bebê. A câmera, trêmula, percorre as árvores e o céu.

Figura 3 - Édipo é amamentado por Jocasta (fonte: Édipo Rei 1967).

Em seguida, somos introduzidos a Laio, já em um cenário urbano, que encontra seu filho pela primeira vez. Quando ele o olha, Pasolini insere duas cartelas, em uma atitude que remete tanto ao cinema mudo como às estratégias de distanciamento crítico adotadas por cineastas como Jean-Luc Godard, por influência do teatro épico de Bertolt Brecht (Barreto 2017). Curioso que Pasolini rejeite a fala nessas cenas iniciais, sempre presente no texto do teatro antigo, em troca de outros modelos de representação.

Figura 4 - Laio, um soldado de Mussolini (fonte: Édipo Rei 1967).

Já na cena final dessa sequência, Laio, após dormir com Jocasta, vai ao quarto do filho e o segura pelos pés, tirando-o do berço. Daí temos um corte e não estamos mais na Itália fascista e sim nas planícies desérticas da Antiguidade, onde se dará o restante da tragédia. É um gesto que remete às concepções dialéticas de montagem postuladas por Eisenstein: Pasolini une temporalidades e espaços distintos que não possuem relação direta de causa e efeito entre si, mas cujo choque proporciona uma relação simbólica.

Figuras 5 e 6 - Laio puxa Édipo pelos pés (5), que é amarrado e enviado à morte (6) (fonte: Édipo Rei 1967).

Tais imagens surgem sem uma relação clara de continuidade entre uma e outra, inseridas pelo seu valor simbólico e sugestivo, utilizando-se de largas elipses. Isso muito bem representa a visão particular de Pasolini quanto à montagem cinematográfica, um meio para obter:

(...) uma multiplicação de ‘presentes’, como se uma acção em vez de se desenrolar uma única vez diante dos nossos olhos se desenrolasse várias vezes. (Pasolini 1982, 194)

Tal multiplicação acaba, na verdade, por abolir o tempo presente da realidade, apresentando-o de modo impreciso e ambíguo (ibid., 194).

Logo, podemos intuir que, para Pasolini, a coexistência entre passado e presente e a dimensão cíclica do tempo histórico, que garantem as sobrevivências dos mitos da antiguidade, por meio tanto de repetições quanto de rupturas (e aqui podemos relembrar dos conceitos de nachleben e pathosformel de Aby Warburg), é algo que está presente na própria natureza cinematográfica, fundada, por sua vez, pela montagem. Como o próprio afirma:

(...) a partir do momento em que intervém a montagem, ou seja: quando se passa do cinema ao filme (...), sucede que o presente se torna passado (...): um passado que, por razões imanentes ao meio cinematográfico, e não por escolha estética, tem sempre o modo do presente (e é por isso um presente histórico). (ibid., 195)

É essa compreensão que Pasolini demonstra em sua interpretação do mito de Édipo. Ele contraria a lógica narrativa e discursiva da peça, para nos entregar a dimensão da tragédia e seus símbolos. Não estamos diante da narração de Sófocles transposta para um formato cinematográfico, mesmo que os eventos mais importantes do texto original estejam no filme. Estamos, na verdade, diante da sobrevivência que o símbolo de Édipo possui na civilização ocidental, da dimensão atemporal do mito, de suas repetições ao longo da história, persistência que não se dá de modo linear, mas dialético. Por isso, não é absurdo encenar Édipo em um tempo que exista simultaneamente na contemporaneidade e na antiguidade, como Pasolini o faz.

No encerramento do filme, Pasolini retorna seus personagens à Itália, agora não mais a do período entreguerras e sim a de 1967; e Édipo não é mais uma criança alheia à sua profecia, mas um adulto arruinado pelo destino, retornando às paisagens da sua infância. Esse anacronismo entre presente e passado nos revela suas coexistências: o mito vive por entre tempos, sua carga simbólica sobrevive, bem como o trauma que ele invoca. “A vida termina onde começa” é a última fala de Édipo antes do filme encerrar, nos dando conta da dimensão cíclica do tempo histórico.

Figuras 7 e 8 - Em cima, o plano final do filme (7); embaixo, um plano dos primeiros minutos, com Édipo ainda bebê (8) (fonte: Édipo Rei 1967).

Conclusão

O pensamento articulado pelo historiador da arte Aby Warburg pode ser aproveitado pelas disciplinas cinematográficas para além da relação entre literatura e cinema: a aproximação à base conceitual do autor alemão tem muito a contribuir para a própria teoria e histórias do cinema.

É importante para pensarmos menos por oposições e mais por polaridades intercambiáveis, ao mesmo tempo com seus pontos de repulsão e de contato. Desse modo, poderemos entender de modo mais flexível dicotomias muito presentes na teoria cinematográfica, como transparência e opacidade; realismo e formalismo; documentário e ficção; cinema comercial e cinema de vanguarda; clássico e moderno; prosa e poesia; e observar que pontos de contato pode-se ter entre tais conceitos.

Notas Finais

1Estudante de graduação, 8º semestre do Curso de Cinema e Audiovisual da UFC, e-mail: rodrigocopil@gmail.com

2Disponível em:< https://warburg.library.cornell.edu/>

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