Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Performative body and psyche. Approaches to transdisciplinary research methods: transpersonal psychology and ritual-performance.

Corpo performativo e Psique. Aproximações aos métodos de investigação transdisciplinares: psicologia transpessoal e performance-ritual.

Sónia Carvalho

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

ID+ Instituto de Investigação em Design Media e Cultura, Portugal

CIEBA, Centro de investigação e de Estudos em Belas-Artes, Portugal

Paulo Bernardino Bastos

Universidade de Aveiro | DeCA

ID+ Instituto de Investigação em Design Media e Cultura, Portugal

Abstract

This article aims to point out transdisciplinary research processes, within the scope of an ongoing artistic research project, called performative research - “Transpersonal Body”, with a methodology guided by the practice and verification of transpersonal psychology, that is, as an intuitive and integrative investigation.
We will weave relationships between the performative processes (through the very experience of a physical and sensitive doing, which necessarily produces a transformation of “behavior”), the ritual performance, and the analysis of transpersonal experiences, as contributions to the represent(action) of the body and rite, in the study of symbols and archetypes of the feminine spiritual universe in the context of contemporary art and culture.
We will analyze in more depth the video-performance “The Gnome”, 2021, as a case study generated from the tale “A Menina Sem Mãos”, which deals with the initiation of women into the subterranean forest, based on the ritual of resistance. The video brings together elements of the order of both individual and collective mythologies, namely it incorporates certain synchronous forces of the “Wild Mother”.
This is an artistic investigation, of the transpersonal order, which aims to contribute to an individual, ethical and collective change, understanding by “science” the spiritual knowledge and practice in its entirety, intending to demonstrate how technology (image and moving images) can to contribute to the transforming experience of the symbolic dimension in the fields of Art, Technology and Spirituality.

Keywords: Transpersonal Research/Performative Processes, Body, Myth/Ritual, Female, Image/Video

Introdução

Pretende-se neste artigo expor o projeto prático e teórico de investigação artístico transdisciplinar de doutoramento em belas-artes, especialidade em pintura — “Corpo Transpessoal” — em curso, e que se desenvolve no seguimento de uma investigação performativa (performative research), com uma metodologia guiada pela prática (practice lead research) e pela verificação da psicologia transpessoal, de maneira a contribuir para a pesquisa em arte e no contexto académico atual e de reflexão crítica:

(…) it is urgent to reflect on the specificity of artistic research, whether it is institutionalized or not; in such contexts the differences and similarities with other forms of research should also be explored. (…) In the fact, art knows the hermeneutic questions of the humanities; art is engaged in an empirically scientific method; and art is aware of the commitment and social involvement of the social sciences. It seems, therefore, that the most intrinsic characteristic of artistic research is based on the continuous transgression of boundaries in order to generate novel, reflexive zones.1

Posto isto, é desde uma prática transdisciplinar — da performance ao vídeo, da meditação à pintura — que o projeto proposto procura questionar o sentido da represent(ação) do corpo transpessoal e numinoso, como meta-perspetiva, e da verificação de novos modos operacionais, no contexto da arte contemporânea sustentável. De acordo com Strelow “interdisciplinaridade e transdisciplinaridade” são características típicas de projetos de arte baseados numa estética ecológica.2 Num primeiro momento, iremos desenvolver no artigo a análise das metodologias adotadas da psicologia transpessoal, denominadas por investigação intuitiva e integral, aliadas aos métodos mais “tradicionais” de investigação artística em atelier enquanto campo expandido3 e que têm como prioridade o impulso para contribuir para uma mudança individual, ética e coletiva.

Esta metodologia “laboratorial”, visa contribuir para aprofundar e validar o tema de pesquisa, nomeadamente, conjugar a dimensão humana com a sua transcendentalidade, desvinculando-se do objeto artístico como produto final per si, para pensar o fazer arte com um propósito experimental, desde um ponto de vista reflexivo, como forma de investigação e objeto de conhecimento:

“The first is self-reflexibity. The purpose of the juxtaposition of art criticism and artwork at the doctoral level would presumably be to reach a pitch of sophistication in the description and evaluation of one’s own art, on the reasonable grounding assumption that improving self-reflexivity is a central purpose of graduate study. 4

Por outras palavras, de acordo com os estudos de James Elkins (2009), a prática artística atual tornou-se um objeto “dinâmico” e desafia muitos artistas contemporâneos a encarar os seus projetos como formas de pesquisa transmedia, estabelecendo um vínculo entre arte e metodologia, de forma inovadora e construtiva, para explorar outros modos de conhecimento e de experiência artística interdisciplinares e até mesmo transdisciplinares, com impacto direto nos modos de representação e apresentação da imagem, ou imagens em movimento.

É neste contexto que se explora o cruzamento do corpo performativo com a imagem e a tecnologia digital, como metalinguagem, desde uma perspetiva antropológica do corpo, do estudo dos símbolos e arquétipos do universo espiritual feminino — com implicações numa noção mais expandida da represent(ação) do corpo e da pintura e no modo como as novas tecnologias permeiam o empoderamento feminino, a aprofundar neste artigo num segundo momento, tomando como caso de estudo específico o vídeo-performance “The Gnome”, 2021. 5

1. Processo de criação em investigação artística transpessoal — metodologias transdisciplinares.

Assistimos a uma mudança de “visão egocêntrica para heliocêntrica”, no contexto da arte e cultura contemporâneas, que vai além do conhecimento da natureza exterior, mas, e sobretudo, uma maior consciência do universo interior. Do mesmo modo que o conhecimento e a prática espiritual na sua totalidade são entendidos por “ciência”, desde o ponto de vista da psicologia transpessoal; a performance é para esta investigação, o “lugar” — site-specific — do estudo da psique, do comportamento e da espiritualidade, onde o mito tem um profundo lugar no devir6 — de acordo com Campbell, “os mitos servem precisamente para nos conduzir a um nível de consciência espiritual.”7

Para tal, é integrada à praxis uma rotina de prática meditativa (Yoga, exercícios de respiração e corrida), entendida como proto-performance, enquanto pesquisa “viva” do corpo e das experiências transpessoais, para a construção de uma gramática visual própria.

No decorrer da pesquisa, aliados aos métodos de investigação artística, são analisadas metodologias da psicologia transpessoal - denominada por investigação intuitiva e integral com o propósito de apoiar a prática artística em curso. Esta metodologia contribui para aprofundar e validar o tema de pesquisa e reflete-se no objeto artístico “laboratorial”, o que afeta a criação da imagem e a sua relação com outras formas de produção visual.

Figuras 1 e 2 – “Do corpo de trabalho e da espiritualidade prática (Invisibilidades) – Shamanism Role”, Sónia Carvalho, 2019. Figura 2: “Do corpo de trabalho e da espiritualidade prática (Invisibilidades) – Play with a square”, Sónia Carvalho, 2019.

As figuras 1 e 2 resultam do contexto de pesquisa intuitiva enquanto proto-performance, constituindo-se como proto-imagens. Enquanto objetos artísticos, além de documento, a estes registos está-lhes imbuído o potencial de se adaptar às circunstâncias possíveis de serem apresentadas, mediante a intenção comunicativa que as próprias imagens comportam.

À performatividade intrínseca ao projeto de investigação, os modos operativos expostos caracterizam-se pela semelhança aos princípios do investigador transpessoal no domínio das competências dos quais se destacam três pontos8:


a) Trabalhar com intenção: Ter consciência e propósito e demonstrar intenção, de maneira a facilitar a realização dos objetivos de estudo.

Neste estudo de caso, é aplicada a investigação intuitiva para analisar a performance como dispositivo para que aconteça a experiência espiritual, pela qual o corpo arquétipo sintetiza na sua individualidade uma determinada energia universal – o todo — o real transpessoal. Assim também, o investigador integral, no decorrer da investigação, aplica muitos métodos complementares de conhecer, ser e fazer, com base no corpo — ferramenta essencial —, incluindo formas de conhecimento convencionais, intuitivas, em estados ordinários e não ordinários de consciência, formas analíticas/lineares e não analíticas/não lineares de trabalhar os dados, bem como formas alternativas de expressar as descobertas (temas, narrativas, metáforas, símbolos, expressões criativas, etc.).


b) Acalmar e desacelerar: Meditar, acalmar, preparar o foco, reduzir o “ruído”, abrir espaço para a mudança, permitir observações internas mais completas e subtis. É importante preparar o corpo no seu todo para dedicar mais atenção às visões internas e externas, bem como promover a imaginação espontânea e guiada.


c) O jogo (Play) e as artes criativas: Fomentar a curiosidade, a criatividade, a visão interna, proporcionar novidade, e estimular o entusiasmo e o sentido de exploração.

Acalmar e desacelerar, fatores essenciais enquanto proto-performance, para a analise da “experiência” do estudo do corpo, e se complementa com o play enquanto facultas praeformandi — para a execução da “potência” da imagem.

Como metodologia subjacente ao processo criativo em primeiro explora-se uma rotina de prática meditativa, como referido, para preparar o corpo e o estudo da consciência e estados não ordinários (holotrópicos), para a realização duma pós-produção, desde uma verdadeira necessidade9. São realizados registos fotográficos/videográficos de uma determinada ação corporal, onde o play é intrínseco à performatividade, e se verifica que o lúdico potência o gesto e expande a sensibilidade e, tal como acontece nos mudras, no Yoga, canaliza determinados arquétipos.

De acordo com John Haule, tendo por base o estudo de Jung, o arquétipo é um padrão universal da espécie, é em si um “programa vazio” que precisa de ser experienciado para preenchê-lo, e é normalmente vivido através do envolvimento do sistema nervoso autónomo e das hormonas, que resulta numa experiência emocionalmente poderosa e até mesmo numinosa.

With the publication of Symbols of Transformation, Jung (1967) advanced the ideas that humans were in fact spiritual beings, with layers of consciousness that include our inherited evolutionary animal and tribal natures and ancestry. He asserted that transformations of libido or creative life energy include not only biological and social drives but transpersonal, ontological, and teleological agendas as well.10

Como tal, podemos dizer que as dinâmicas corporais referidas, despertam uma memória arcaica que parece estar armazenada no nosso corpo, quando libertamos por certos mecanismos, tais como nos mudras e ássanas orientais, do mesmo modo como descrito em determinados passos de dança e gestos rituais de tribos primitivas — para estes funcionavam como uma enciclopédia religiosa (Harner, Michael, 1990, p. 7). Produzem obrigatoriamente uma transformação e preparam o corpo no seu todo, com implicações reais tanto para a experiência da performance com significado, assim como promoverem o autoconhecimento, o desenvolvimento pessoal e por suposto a cura.

“When healing is understood as a transformative process of making whole, it also finds connection with complementary and alternative health concepts, and can be applied broadly to healing the earth, as well as to its many inhabitants”.11

Este processo convoca uma das investigações de Schechner sobre os estudos performativos, cujo objeto de estudo é o “comportamento” como processo de transformação12 — através da experiência do fazer físico e sensível, numa jornada rumo à individuação, no contexto da prática artística. Que resultam em material de arquivo para uma análise (imaterial e material) e aplicabilidade posterior, tal como acontece numa investigação integral, também é recolhido dados quantitativos e qualitativos, para o desenvolvimento do tema de investigação e da sua compreensão.

Do mesmo modo, este método de pesquisa também se situa num dos princípios pilares de uma investigação integral, nomeadamente em como é que uma “sessão” de pesquisa pode contribuir para acrescentar conhecimento para a disciplina, desde benefícios clínicos, educacionais, entre outros, ao crescimento psicoespiritual e à oportunidade de que ocorra uma mudança transformadora no investigador, nos participantes e nos eventuais leitores (do “objeto” de estudo).

Também a investigação intuitiva (psicologia transpessoal) visa como princípios a compaixão, o serviço e a intuição, para a pesquisa e compreensão de “qualquer coisa” sobre a própria vida. Assumindo que a realidade é orgânica e está em constante mudança, os investigadores intuitivos tendem a ter “insights” que rompem com as teorias pré-estabelecidas e a expressar trajetórias que emergem de descobertas que sugerem formas novas ou mais aprimoradas de ser no mundo. Por conseguinte, para além de ampliarem os conhecimentos sobre uma determinada disciplina, área ou assunto, muitas vezes contribuem para que ocorra uma mudança na própria vida. Nos relatórios de pesquisa desta ordem, o tema de uma determinada investigação intuitiva alinha-se com propósitos futuros, incluindo um forte impulso magnético para a mudança individual, ética e coletiva.

Em jeito de consolidação dos princípios acima referidos, enquanto investigação artística transpessoal, podemos posicionar este estudo na estrutura de Braud13, como uma abordagem quantitativa, em função dos quatro tipos de experiências:

  1. A natureza da própria experiência;
  2. Como a experiência pode ser descrita (concetualizada, interpretada e compreendida) e como os seus significados podem se alterar ao longo do tempo;
  3. Como é que a experiência se desenvolve, que características podem acompanhá-la e quais as condições que a podem facultar ou impedir;
  4. Quais são os resultados da experiência?

Braud sugere esta estrutura como um guia para organizar vários tipos de perguntas sobre o estudo das experiências transpessoais e respetiva relação com o desenvolvimento humano, alinhadas com quatro objetivos principais de uma investigação científica: descrever, explicar, prever e dominar o tema da pesquisa em causa. Por conseguinte, citando Slager:

After all, research implies an organized manner of approach, a systematic treatment of information, and a significant contribution to the information and knowledge economy. Furthermore, research could imply ethical responsibilities such as better understanding or improvement of the world. Does that help define a characteristic element of such research? One could say that each form of research seems to be focused on how to formulate methodology. (…) After all, an operational form of research seems to satisfy the most basic research criteria: it focuses on the importance of communication; it foments a critical attitude; and it leads to autonomous research.14

Conclui-se que esta metodologia se revela fundamental na produção artística e resulta em matéria de análise, tal como acontece nos métodos quantitativos — na abordagem de experiências transpessoais — é possível encontrar padrões, de maneira a apoiar a investigação, integração e teorização dos resultados. A aproximação do processo criativo — modus operandi transdisciplinar — ao ritual abre espaço para escavar mitos e arquétipos, sobretudo o da “mulher selvagem” (aqui em foco), para gerar todo um material simbólico sobre um corpo prenho de potencia cósmica, e ir além da sua própria materialidade para trabalhar no plano das mitologias individuais e coletivas.

A escolha do media/suporte vai ao encontro da intenção comunicativa que a própria imagem exige para se adaptar às circunstâncias em que deve de ser apresentada/ou performada — a desenvolver, em particular, na análise que se segue do processo criativo do vídeo-performance “The Gnome”.

2. Corpo performativo e psique: “The Gnome”, vídeo-performance e o conto “A Menina Sem Mãos” — análise do processo criativo e metodologias transdisciplinares.

Será feita uma análise da simbiose entre o caso de estudo em foco, o vídeo “The Gnome”, com os métodos de investigação intuitiva e respetivos processos criativos para a sua realização. A situar, o método de abordagem da investigação intuitiva da psicologia transpessoal, envolve um método interpretativo das partes e do todo de textos, conhecido por Círculo Hermeneutico. E que consiste em cinco ciclos de interpretação em torno da intuição do investigador, integrando a compreensão intelectual à medida que a investigação se desenvolve — correspondente ao item a) da análise abaixo de cada ciclo. Este processo irá ser estudado paralelamente por etapas com a investigação performativa da execução do vídeo — e que corresponderá ao item b) de cada ciclo também.

1. Ciclo 1: Esclarecer o tema de investigação através de um diálogo imaginário.

a) Nesta fase embrionária, o tema de estudo surge dos interesses e paixões, que poderá ir além das disciplinas da área de pesquisa e despontam averiguações intuitivas. É selecionado um corpo de textos, e um arquivo pluridisciplinar do tema, que inclui: fotografias, pinturas, colagens, esboços, símbolos, letras de músicas, textos sagrados, entrevistas, registos de sonhos, relatos de experiências transformadoras significativas, etc.

Assim que o texto é identificado, inicia-se uma rotina profunda de leitura e de um processo de diálogo imaginário constante com este; a partir do qual são livremente registados pensamentos, ideias, impressões, visões, intuições, entre outros. Esse processo termina quando a tensão criativa se resolve e despoleta um foco magnético, concreto, viável e promissor.


b) Em jeito de contextualização, a realização do vídeo “The Gnome” surgiu a convite da artista e investigadora Maria Manuela Lopes, no seguimento do concerto ao vivo de piano da composição musical de Modest Mussorgsky – Pictures at an Exhibition: A Remembrance of Viktor Hartmann, no âmbito do projeto “Pian_Ar Livre: Quadros de uma Exposição”, no contexto do festival Viver ao Vivo Com Tempo no Centro15 , de 10 a 11 de Julho, 2021, em Celorico da Beira.

Antes de mais, Pictures at an Exhibition: A Remembrance of Viktor Hartmann, é uma peça para piano composta por Modest Mussorgsky, 1874, em memória de seu amigo, Viktor Hartman, pintor e arquiteto, falecido precocemente. Após a sua morte foi realizada uma exposição retrospetiva das suas pinturas, na galeria de São Petersburgo a partir da qual, Mussorgsky escolhe dez quadros e compõe uma música para cada um, onde explora a corrente folclórica russa e a autenticidade do estilo de piano, com uma sonoridade austera e caótica.

Posto isto, é desde a escuta impressiva da segunda trilha da sinfonia de Mussorgski, com o nome “The Gnome”, como leit-motiv, para a criação da imagética do vídeo, a descrever:

A música gira e para, contida, descontrolada, abre espaço aos silêncios, embora meditativos, guiam numa contemplação sombria e aguçam a “visão interna”. Os ritmos ora abruptos, ora incertos, de acordes tempestuosos, com peso, obscuros e malévolos, na interpretação de Hartmann revelam um gnomo em particular — possivelmente um poderoso Kobold — um “furão” mal-humorado!

Considerado um psicopompo — um mensageiro entre a força da alma e os seres humanos — tem a capacidade extraordinária de realizar objetos fabricados com metais preciosos para fins mágicos e dons psíquicos, normalmente usados para substituir partes do corpo mutiladas, quer físicas ou espirituais, por membros de prata, ouro ou madeira. Esta caraterística convoca de imediato o conto “Menina Sem Mãos”, bem como a necessidade de re-ativar o chapéu cerimonial “Nahoui Ollin”, 2018-2021, para a represent(ação) videográfica e performativa. Como tal, verifica-se que esta criatura é a chave fundamental (e, portanto, é identificado o “texto”) para que o “novelo comece a desenrolar” a perceção, a intuição e, por suposto, a investigação practice lead research, em análise no próximo ciclo.

2. Ciclo 2: Reflexão sobre o corpo de textos selecionados e o respetivo desenvolvimento interpretativo preliminar.

a) Feita a revisão da literatura, o investigador reúne um conjunto de textos, que aportam várias perspetivas sobre teóricos e empíricos sobre o tema, para novamente por meio do diálogo imaginário, discernir e destrincar o alcance das referências encontradas. Normalmente este processo interpretativo preliminar da informação recolhida assemelha-se mais a um método criativo como o brainstorming, do que um processo formal.


b) A este ciclo corresponde a análise do conto “A Menina Sem Mãos”, tendo por base o livro de Clarissa Pinkola Estés, “Mulheres que Correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem”, bem como, o enquadramento do “adereço” do chapéu cerimonial “Nahoui Ollin” e respetiva importância a assinalar. Este objeto surge como prolongamento da investigação do projeto teórico e prático transdisciplinar de mestrado, “URBA FEAT: análise do processo criativo — Entre o Céu e a Terra16, que apesar de aparentemente anacrónico à pesquisa, foi determinante para o desenvolvimento do modus operandis do “Corpo Transpessoal”, e se relaciona com a metodologia intuitiva.

Figura 3 e 4 – Vídeo still do vídeo “The Gnome”, Sónia Carvalho, 2021 (Fonte: própria).

De uma forma resumida, o conto consiste na história de um moleiro, que em tempos difíceis e por avareza, vende (sem saber) a filha ao diabo, em troca de riqueza material. Protegida por um saber ancestral, ela consegue escapar, mas perde as mãos, que lhe são amputadas por um machado de gume prateado. E foge da família, numa longa jornada iniciática, rumo ao submundo, guiada por um espírito vestido de branco, um nobre jardineiro, um mago e o rei.

A Menina Sm Mãos é um conto que trata da iniciação das mulheres à floresta subterrânea, a um mundo muito abaixo das raízes das árvores e está dividido em sete ciclos, tendo por princípio o ritual da resistência, como arquétipo da Mulher Selvagem — numa jornada rumo à psique feminina.

Por mundo subterrâneo entende-se o submundo do conhecimento feminino, impregnado de linguagem e sabedoria instintivas, inatingível ao ego. A menina faz várias descidas e ao completar cada estágio, dá-se o processo de transformação que a leva a um outro, cada vez mais profundo, mais agreste; que precede às fases de perda (nigredo) sacrifício (rubedo) e renascimento (albedo)17, num ciclo continuum de Vida/Morte/Vida.

Na psicologia arquetípica, os elementos de um conto popular referem-se às descrições da psique de uma mulher e das suas experiências. O contrato do pai da menina com o Diabo — da venda desta — em troca de riquezas, diz respeito ao primeiro estágio e às “más” escolhas, em prol de uma situação aparentemente mais vantajosa, pela qual se renuncia à natureza selvagem, mesmo sem se saber:

uma escolha deficiente possa ser vista como um ato patologicamente autodestrutivo, é muito frequente que essa escolha venha a constituir um acontecimento determinante que traz agregada uma boa oportunidade de restabelecer o poder da natureza instintiva. (…) de modo a introduzir a mulher nas profundezas da natureza selvagem18.

No estado de adormecimento psíquico em que a menina se encontra, jaz uma apatia, e o rio que outrora fluía, está agora parado e apodrecido — inerte. À falta da energia e de impulso, junta-se a perda e a traição do acordo, para marcar o início de uma extensa jornada à selva subterrânea, como ritual de passagem, com o propósito de recuperar a natureza instintiva.

Nesta etapa, a menina encontra-se em casa à espera do tempo que o Diabo acordou para a vir buscar e que corresponde ao segundo estágio (o desmembramento). Um tempo simbolizado na história por um período de três anos, caraterizado pelas mulheres por um estado de tédio, de incerteza, de falta de criatividade nos vários domínios, de falta de concentração: “Só o tempo, e espera-se que não demore muito a chegar a altura, nos levará até ao abismo do qual precisamos de cair, saltar ou lançarmo-nos”19 em .

A este momento da história revelam-se vislumbres das antigas religiões noturnas. A menina veste- se com uma túnica branca, banha-se e desenha um círculo de proteção mágico no chão à volta de si mesma — são antigos rituais das Deusas, próprios do pensamento sagrado. As ações da menina são executadas num estado de hipnose, como se estivesse atenta às instruções vindas de uma voz de um outro tempo — uma voz que acompanha e apoia na descida psicológica e a protege da força diabólica. Não obstante, são-lhes amputadas as mãos, com um machado de gume prateado, ou seja, perde a capacidade física de agarrar, segurar, de se ajudar a si mesma e aos outros. E deste modo se completa o sacrifício, físico e espiritual, que, na antiguidade simbolizava a descida à selva subterrânea e à iniciação da dimensão do submundo.

A cor prateada do machado, concretiza mais um elemento arqueológico do antigo feminino selvagem e remete para a cor da lua e do mundo espiritual. Bem como o próprio machado da deusa, da antiga religião minoica, que sinalizava o caminho ritual para os lugares sagrados.

A amputação das mãos (psíquicas), apesar da aparente tragédia, esta nova versão do corpo será a via para ampliar outros poderes, em busca do Eu selvagem.

Este é um tempo em que tudo o que valorizamos perde o encantamento. Jung recorda-nos o termo utilizado por Heráclito, enantiodromia — que significa inverter a corrente, refluir. Mas esta inversão pode ser algo mais que uma regressão ao inconsciente pessoal; pode ser um retorno sincero aos antigos valores exequíveis, a ideias mais profundamente sustentáveis. Se entendermos este estágio de iniciação à resistência como um passo atrás, devemos também considerá-lo um passo de dez léguas para trás e para baixo no reino da Mulher Selvagem.20

O conto segue-se numa jornada rumo às várias camadas da psique e da concretização de tarefas espirituais, “onde nem tudo o que parece é” com a interferência constante do diabo enquanto predador natural da psique feminina contra naturam. No seguimento das feridas e perdas durante este processo, a menina sofre várias transfigurações, de mendiga (pedinte do alimento para o espírito), a lobo solitário, para casar com o rei (símbolo da renovação das ações e leis que administram a psique feminina, bem como da capacidade de colocar na prática o conhecimento interior profundo) para renascer com a herança dos dois mundos, do físico e do invisível.

O rei demanda que sejam feitas umas mãos de prata para a menina — mãos espirituais com a capacidade de agir no mundo subterrâneo. E é nesta fase que adquire competências, a psique está mais consciente:

Se o símbolo da mão no mundo superior é um radar sensorial relativamente ao estado emocional dos outros, a mão simbólica do mundo subterrâneo pode ver no escuro e através do tempo.21

É desde este lugar liminar do processo ritual que o chapéu de cerimónia é solicitado como veículo simbólico para a “viagem subterrânea”22. Este objeto transitório (Winnicott, apud Schechner, 2006)23, surge no contexto na criação de um personagem fictícia e liminar — URBA, DJ e Xamã (metade mulher, metade animal, com cornos de veado e olhos de vidro) — do projeto transdisciplinar de mestrado, “URBA FEAT: análise do processo criativo — Entre o Céu e a Terra”, e da construção da sua imagem pública, num processo multimodal e performativo, que não poderia deixar de ser aqui evocado.

Muito sumariamente URBA FEAT cruza a imagem, o som e a performance, com a antropologia, no contexto pós-digital e visa a análise do processo criativo como reflexão crítica. Inscreve-se nos arquétipos culturais que definem o ritual, através dos conceitos antropológicos como o xamanismo, a liminaridade e a performance, num triângulo concetual que relaciona URBA FEAT com o pensamento de Vítor Turner, Richard Schechner e Wassily Kandinsky.

Enquanto objeto artístico expande-se a uma série de atuações e performances de URBA, à encenação dos adereços que a caraterizam, assim como, em colagens digitais e vídeos para a divulgação nas redes sociais, num featuring continuum entre o digital e o analógico.

O chapéu de cerimónia, aqui em estudo, surge por extensão das ilustrações digitais da personagem URBA, para a existência tridimensional e multidisciplinar, de acordo com a linha de pensamento de Hans Ulrich Obrist (2015):

(…) a geração de artistas pós-digitais, habituados à internet e á tecnologia computacional, são claramente influenciados/inspirados pelo digital, embora muitas vezes desenvolvam o seu trabalho em materiais tácteis. Estes artistas oscilam entre o digital e o analógico, com total fluidez, movendo-se livremente entre disciplinas, tal como entre formatos media.”24

Figura 5 - “URBA”, Ilustração digital, Sónia Carvalho, 2011.
Figura 6: “URBA FEAT PROTORRAGIO”, registos fotográficos de proto-performance, por Rui Tibério, 2012.

A indumentária do xamã surtia como metáfora dos espíritos e dos guias animais, tal como o chapéu de cerimónia, que além de ser um símbolo de força e majestade, permitia a URBA realizar o ofício entre mundos. Este equipamento tem como propósito despertar uma imagem arquetípica do sagrado, de maneira a ativar a experiência de liminaridade e communitas próprias do processo ritual.

A liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são condições em que frequentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte. Estas formas culturais proporcionam aos homens conjuntos de padrões ou de modelos que constituem, em determinado nível, reclassificações periódicas da realidade e do relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura. Todavia são mais que classificações, visto incitarem os homens á ação, tanto quanto ao pensamento.25

Em jeito de conclusão, “URBA FEAT” visa sobretudo uma reflexão sobre a imagem num contexto performativo e antropológico, e na relação a que se propõe na experiência poética do outro. O modus operandi estende-se à prática de processos de meditação, com foco numa rotina de exercícios corporais xamânicos de tensegridade26, como processo performativo de transformação e de desenvolvimento pessoal, metodologia a ser aprofundada posteriormente com o projeto em curso. Evocando o xamanismo como mediador entre os diferentes suportes de atuação, pelo qual se dá a transferência simbólica, no processo da conquista da imagem e das imagens em movimento, como rito de passagem27. De salientar que para os Jungianos, o uso de mitos, cerimónias de iniciação e ritos de passagem, são gatilhos para que aconteça um retorno periódico ao sentido do Self de maneira a promover a saúde psíquica — assim como é o propósito do xamã, o de estabelecer a harmonia e o equilíbrio natural da comunidade.

Agora imbuído de história e mistério, tal como as mãos de prata no conto “A Menina Sem Mãos”, adquire uma aparência mística de uma divindade lunar, em jeito de coroação como rainha do mundo subterrâneo:

Receber mãos de prata representa ser-se investido com as capacidades das mãos espirituais — o toque que cura, a capacidade de ver na escuridão e o dom de ter uma poderosa sabedoria adquirida através da perceção física.28

E alcança um nome próprio, “Nahui Ollin”29 : é mais que uma escultura, é um chapéu cerimonial, com chifres de veado, feito de cartões e revestido de fita-cola prateada, que evoca um ritual arquetípico “qualquer” (hidden).

A história continua, as ciladas psíquicas também, numa peregrinação sagrada. Estés diz que:

(…) se uma história é a semente, nós somos a terra que a acolhe. (…) Na realidade, o simples facto de escutarmos uma história deixa-nos mais plenas de conhecimento.30

Sucedem-se uma série de símbolos, imagens, arquétipos, tesouros, torturas, provas das ideias psíquicas, etc, a aprofundar, que compõe um rico glossário para a construção da imagética a desenvolver.

Apesar da finalização do conto ficar aqui em aberto, a descrição feita até então permite consolidar os vetores da trilogia concetual para o planeamento da ação/espaço/tempo, nomeadamente: a jornada como iniciação, o corpo como guia sensitivo de perceção interior, e a união consciente com a mente profunda do Eu selvagem/intuitivo, através do ritual do esforço e da resistência.

3. Ciclo 3: Recolha e análise descritiva de dados.

a) O Ciclo 3 tem duas fases: Primeiro, o investigador recolhe dados originais ou de arquivo. Em segundo lugar, o investigador apresenta uma análise descritiva dos dados31, que convida os leitores a tirar as suas próprias conclusões sobre eles antes de ler as interpretações do pesquisador nos Ciclos 4 e 5. Inicialmente pode ser usado uma grande variedade de procedimentos analíticos, desde transcrições de entrevistas editadas, retratos de participantes, retratos históricos, ilustrações e outras expressões artísticas, estudo de caso, grupo focal, etnografia, teoria fundamentada, heurística, narrativa e pesquisa fenomenológica empírica também poderiam ser adaptados ao Ciclo 3. As descrições resumidas dos dados deverão de ser tão explicativos o quanto possível, permitindo que os leitores leiam as análises e cheguem às suas próprias conclusões antes da interpretação do pesquisador no Ciclo 4.


b) O arquétipo da mulher selvagem, impresso em toda a história da Menina Sem Mãos, é o foco a ser esgravatado através do corpo sutil performativo como dispositivo de perceção interior. Partindo do pressuposto que os mitos são responsáveis pela dinâmica de uma sociedade e os símbolos “permitem-se” ser apreendidos e classificados, é a performance ritual a responsável por ativar estes gatilhos e restaurar as formas da alma:

Grande parte da cultura feminina foi verdadeiramente enterrada durante séculos e pouco mais temos do que indícios do que existe por baixo. Às mulheres deve ser dado o direito de investigarem sem que as interrompam antes mesmo de terem começado as escavações arqueológicas. Trata-se de viver uma vida plena de acordo com os nossos próprios instintivos.32

Feita a interpretação simbólica e mítica procedeu-se à realização de vários desenhos rápidos como estudos para as ações e os planos.

Figura 7 – Desenhos rápidos de estudos da ação e dos planos (storyboard), para a realização das gravações do vídeo, acompanhados de recolha de textos do livro “Mulheres que Correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem”, de Clarissa Pinkola Estés, 2016.

Figura 8 – Desenhos rápidos de estudos da ação e dos planos (storyboard), para a realização das gravações do vídeo, acompanhados de recolha de textos do livro “Mulheres que Correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem”, de Clarissa Pinkola Estés, 2016

Os planos de ação situam-se em dois espaços, ao estúdio e à floresta.

O estúdio, remete para um lugar sem referências, entre mundos, como metáfora do núcleo arquetípico do mito de Perséfone no conto e, da descida ao submundo, potenciado pelas cores preto e branco, como mensageiras dos ciclos de descida e regressos.

A floresta é o lugar por excelência do terreno sagrado arquetípico da iniciação de uma mulher e das várias fases de vida — física, espiritual e emocional, que se relaciona com os poderes da mudança do seu corpo e da psique instintiva da Mãe Selvagem.

Conforme vamos ficando mais velhas, podemos sentir e ver de forma assombrosa o movimento da alma no interior do corpo-psique.33

Ambos os espaços proporcionam o contexto físico e psíquico para que a concretização das dinâmicas corporais. Os gestos vão além da estrutura do guião e são conduzidos pelas imagens mentais induzidas in loco, pelo conto e pelo poder do mito, para ativar um processo de perceção interno de consciência universal, e do numinoso, a registar pela câmara.

Pode observar-se como a ação da performance possibilitou “um diálogo com a própria vida”, em resposta desde uma mudança de perceção, bem como contribuiu para a ativação do arquétipo da mulher selvagem.

Não obstante, dizer que a interpretação da simbologia contida nas imagens, nos gestos performativos, assim como nos processos internos da psique e respetivos ecos, continuam em modo de entendimento e de descodificação — mantendo a caraterística alquímica enquanto facultas praeformandi.

Figuras 9 e 10 – Desenhos Vídeo Stíll do vídeo “The Gnome”, Sónia Carvalho, 2021

4. Ciclo 4: Transformação e clareza na interpretação.

a) Segue-se o ciclo 4 também com duas fases. Primeiro, o investigador apresenta várias perspetivas do Ciclo 4, no seguimento dos dados recolhidos no Ciclo 2 e 3 (modificados, removidos, reescritos, expandidas etc.), em detrimento de uma visão e compromisso pessoais, para o desenvolvimento, compreensão, e conclusão do tema de estudo. Em segundo lugar, o investigador compara e articula perspetivas encontradas no Ciclo 2 e do Ciclo 4.


b) Posto isto, após o discorrer de todo o processo de estudo do caso, segue-se a edição do vídeo, orquestrada pela trilha “The Gnome”, da sinfonia de Mussorgski. E resulta em material qualitativo em análise como “relatos subjetivos” na primeira pessoa, da profundidade das experiências proporcionadas pela investigação prática, dos processos performativos e das dinâmicas corporais.

5. Ciclo 5: Revisão de literatura e integração da informação recolhida.

a) No Ciclo 5, tal como acontece convencionalmente no final de uma investigação, o pesquisador intuitivo faz uma revisão da literatura, e reavalia à luz dos que foi encontrando no estudo.


b) Para finalizar, de acordo com as abordagens de pesquisa qualitativas são adequadas para investigar as questões da natureza das experiências transpessoais e como as experiências são concetualizadas, interpretadas e compreendidas, especialmente por aqueles que as vivenciam. Posto isto, apresentamos abaixo o vídeo-performance para acesso no qrcode, de maneira a permitir ao leitor ter uma experiência com significado e assim plantar a semente transformadora.

Do mesmo modo que nos relatórios de pesquisa desta ordem, o tema de uma determinada investigação intuitiva alinha-se com propósitos futuros, incluindo um forte impulso magnético para a mudança individual, ética e coletiva.

Fig. 11 - Qrcode de video-performance “The Gnome”, 2’30’’, Sónia Carvalho 2021. Ficha técnica: Sónia Carvalho, artista plástica/performer; Mariana Vasconcelos, filmmaker; Joana Moreira, interpretação da trilha musical “The Gnome” da sinfonia de Mussorgski para piano: “Pictures at na Exibition: A Remembrance of Viktor Hartmann”.

Figura 12 - Vídeo Stíll do vídeo “The Gnome”, Sónia Carvalho, 2021

Assim também este método de pesquisa se situa num dos princípios pilares de uma investigação integral, nomeadamente em como é que uma “sessão” de investigação — neste caso de estudo, de forma a potenciar a experiência.

Além da visualização do vídeo-performance “The Gnome” per si, o mesmo foi instalado no espaço FISGA, juntamente com a peça “Nahui Ollin” — pode contribuir para acrescentar conhecimento para a disciplina (psicologia transpessoal e arte contemporânea), desde benefícios clínicos, educacionais, entre outros, ao crescimento psicoespiritual e à oportunidade de que ocorra uma mudança transformadora no investigador, nos participantes e nos eventuais leitores do relatório.

Figuras 13 e 14 - Instalação do vídeo “The Gnome”, Sónia Carvalho, 2021 e da peça “Nahui Ollin”, 2017-2021, Sónia Carvalho, no âmbito da exposição TRANSATLÂNTICO, 2021, no espaço FISGA, Porto.

Podemos concluir que o potencial do vídeo, enquanto ferramenta tecnológica, tem um papel preponderante na construção das narrativas das ações entre o corpo e a imagem. Na medida em que possibilita a criação de novos códigos e significados artísticos, tanto estéticos, quanto comportamentais, incluindo do estudo do feminino, designadamente de como a mulher passa de objeto a sujeito — a fim de ampliar a compreensão histórica da mulher.

Situando este projeto de investigação no domínio da arte eco-político, responsável por criar novos paradigmas culturais, que envolve um sentido de comunidade, uma perspetiva ecológica, e um acesso a fontes míticas e arquetípicas da vida espiritual, tendo como prioridade o impulso para contribuir para uma mudança ética do sujeito e do coletivo. A situar:

Unique to intuitive inquiry as a research method, the intuitive inquirer attempts to express trajectories that emerge from the findings that suggest new or more refined ways of being human in the world. Researches are called to explore topics that require attention by the culture at large and in the hope that they will generate breakthrough insights along the way. Implicitly, intuitive inquires consider, “What does the future ask of us?” In so doing, intuitive inquiry hopes to both continue and break set with established scientific discourse on a topic.34

Considerações finais

Ao longo deste artigo tentámos demonstrar e alegar a importância de uma investigação transdisciplinar — practice-led research —, em particular da simbiose entre a psicologia transpessoal, e os processos criativos, para o estudo do “Corpo Transpessoal”. Assim como, a relevância da aplicabilidade dos métodos de investigação intuitiva e integral, nos modos operativos de criação artística, em específico para a execução do vídeo-performance “The Gnome”.

Salienta-se a exploração das dinâmicas corporais, quer através da meditação, assim como do yoga e da corrida, entre outros, enquanto proto-performance, como fatores essências para a perceção do corpo como recetáculo da experiência do numinoso e dos arquétipos, para a construção de uma gramática visual própria, e para a execução da “potência” da imagem e das imagens em movimento.

O vídeo-performance “The Gnome” é o caso de estudo em análise, que resulta do cruzamento do corpo performativo, com a imagem, e a tecnologia digital — com os métodos transdisciplinares — como possibilitadores de uma noção mais expandida da represent(ação) do corpo universo espiritual feminino. A partir do qual se pretende contribuir para uma vivencia mais profunda da dimensão simbólica, desde a universalidade do poder do mito, e o sentido do sagrado que este exerce, subjacentes ao conto “A Menina Sem Mãos”, como metalinguagem para a criação de uma nova iconografia do feminino.

Posto isto a abordagem científica transdisciplinar encontrada alicerça-se no elemento espiritual e coletivo para a concretização do objeto artístico, no seu sentido amplo, que se estende às qualidades liminares e atuantes do que se entende por performance, com uma orientação mais holística da prática artística e metodológica.

Deste modo, propõe-se o “estado da máquina” como facilitador da construção de mitos e da experiência transversal do ser humano, completando a trilogia Arte, Tecnologia e Espiritualidade.

This work is financed by national funds through the FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., in the ambit of the project UIDB/04057/2020.

Notas finais

1Elkins, James. 2009. Artists with PhDs. On the new Doctoral Degree Studio Art. United States of America: New Academic Publishing. 51.

2Kagan, Sacha. 2013. Art and Sustainability. Connecting Patterns for a Culture of Complexity. Alemanha: Transcript – Independent Academic Publishing. 244.

3Krauss, Rosalind. 1984. A escultura como campo expandido. Rio de Janeiro: PUC-Rio Gávea, N. º1. 87-93.

4Elkins, James. 2009. Artists with PhDs. On the new Doctoral Degree Studio Art. United States of America: New Academic Publishing. 152.

5https://soniacarvalho.com/The-Gnome, acedido em 2 de Maio, de 2022.

6Nomeadamente, permite ao ser humano religar-se à própria natureza e se descobrir uno com o universo.

7Campbell, Joseph e Moyers, Bill. 2020. O poder dos Mitos. Alfragilde: Editora Lua de Papel. 46.

8Anderson, Rosemarie e Braud, William, apud Friedman, Harris L. and Hartelius, Glenn. 2013. The Wiley-Blackwell Handbook of Transpersonal Psychology. Reino Unido: John Wiley & Sons. 171.

9Kandinsky, Wassily. 2002. Do espiritual na Arte. Lisboa: ed. Publicações Dom Quixote, Lda., 5a edição. 21.

10Harner, Michael. 1990. The way of the Shaman: A guide to power and healing. United Kingdom: Editora HarperSanFrancisco. 7.

11Glenn, Hartelius, Roy, Rothe Geffen, J. Paul, apud apud Friedman, Harris L. and Hartelius, Glenn. 2013. The Wiley-Blackwell Handbook of Transpersonal Psychology. Reino Unido: John Wiley & Sons. 32.

12Schechner, Richard. 2006. Performance Studies, An Introduction. Nova Iorque: Routledge/Taylor & Francis Group. 34.

13Anderson, Rosemarie e Braud, William, apud Friedman, Harris L. and Hartelius, Glenn. 2013. The Wiley-Blackwell Handbook of Transpersonal Psychology. Reino Unido: John Wiley & Sons. 165-165.

14Elkins, James. 2009. Artists with PhDs. On the new Doctoral Degree Studio Art. United States of America: New Academic Publishing. 51 - 52.

15https://viveraovivo.pt/, acedido a 2 de Maio, de 2022.

16Carvalho, Sónia, “URBA FEAT: análise do processo criativo — Entre o Céu e a Terra”, dissertação de tese de Mestrado em Desenho e Técnicas de Impressão, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto encontra-se disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/, acedido a 2 de Maio, de 2022.

17Nigredo, rubredo e albedo, correspondem a antigas palavras usadas na Idade Média, para simbolizar as cores, preto, vermelho e branco, em referência aos conceitos de morte e ressurreição. Muto sucintamente, o preto, significa a dissolução de valores antigos, o vermelho, o sacrifício de ilusões, ao branco, está associado à luz remete para a aquisição de novos conhecimentos, valores e realidade.

18Estés, Clarissa Pinkola. 2016. Mulheres que correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Barcarena: Marcador. 445.

19Ibid., 473.

20Ibid., 482.

21Ibid., 500.

22Em termos psicológicos, a “viagem subterrânea” representa os aspetos elementares do espírito, e que habitam a parte mais profunda da psique, em busca de ideias “preciosas” desse submundo: imagens, arquétipos, prenúncios, “tesouros”, angústias, sinais, etc.

23Ou seja, são objetos que não pertencem nem a um espaço, nem a outro — existem num determinado contexto e num tempo definido, onde a ação acontece (processo ritual) — mantendo a qualidade de provisório e de passagem.

24Obrist, Hans Ulrich (2015), apud Pereira, Selma, Fernandes-Marcos, Adérito. 2020. O PROCESSO CRIATIVO NA ERA PÓS-DIGITAL. Uma reflexão crítica baseada na prática artística. Faro: Proceedings of 2nd International Conference on Transdisciplinary Studies in Arts, Technology and Society, ARTeFACTTo2020. 27.

25TURNER, Victor W.. 1974. O processo Ritual, Estrutura e Anti- Estrutura. RJ Brasil: Ed. Vozes LTDA. 155 - 156.

26Conhecidos como “passes mágicos” desenvolvidos até então por índios xamãs, oriundos do méxico e anteriores à conquista Espanhola. Tais movimentos de tensegridade tornaram-se sobretudo conhecidos com o antropólogo americano Carlos Castañeda, nos anos 70, como resultado do contato com o índio mexicano Don Juan Matus. Movimentos descritos pelo antropólogo no livro “Magical Passes: The Practical Wisdom of the Shamans of Ancient Mexico, 1998” como um manual prático dos com o objetivo de redistribuir e canalizar a energia interna.

27Alguns autores defendem o ritual de passagem como um ritual de distanciamento do indivíduo da estrutura social, para que, após o seu retorno, adquira um novo satus, ou seja uma nova posição social relativa à sociedade onde o mesmo se encontra, Arnold Van Gennep (1960) define o ritual de passagem como ritos que acompanham toda a mudança de lugar, estado, posição social e de idade.

28Estés, Clarissa Pinkola. 2016. Mulheres que correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Barcarena: Marcador. 501.

29O conceito “Nahui Ollin” descrito como o quinto Sol (Tōnatiuh) dos quatro movimentos, representa na cosmologia Azteca/Mexicana o movimento cíclico da natureza – vida/morte/vida. “Reza” a lenda que, findo o quarto sol, Nahui Ollin emergiria da terra dos mortos e dos restos de uma matéria remanescente, para iniciar um processo de renascimento da humanidade, após o seu fim catastrófico anterior. Traduz o sentido de comunidade, o conhecimento, a educação, força de vontade, transformação e autorreflexão. Também representa uma deidade que intervém nos assuntos sociais com o propósito de encontrar o equilíbrio, da mente, corpo, espírito e comunidade, mesmo que para isso seja necessário l(ab)uta.

30Estés, Clarissa Pinkola. 2016. Mulheres que correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Barcarena: Marcador. 445.

31A maioria dos investigadores que usam a investigação intuitiva reúne dados empíricos originais, na forma de entrevistas ou histórias de participantes da pesquisa, que atendem a critérios específicos e acrescentam informação ao tema de estudo. Neste caso de estudo é apresentado o vídeo, como documento original e o artigo.

32Estés, Clarissa Pinkola. 2016. Mulheres que correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Barcarena: Marcador. 587.

33Ibid., 525.

34Anderson, Rosemarie, e Braud, William apud Friedman. Harris L. and Hartelius, Glenn. 2013. The Wiley-Blackwell Handbook of Transpersonal Psychology West, Reino Unido: Wiley-Blackwell and Sussex, John Wiley & Sons. 168.

Referências Bibliografias

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Comunicação apresentada em Congresso

Obrist, Hans Ulrich (2015), apud Pereira, Selma, Fernandes-Marcos, Adérito. 2020. O PROCESSO CRIATIVO NA ERA PÓS-DIGITAL. Uma reflexão crítica baseada na prática artística. Faro: Proceedings of 2nd International Conference on Transdisciplinary Studies in Arts, Technology and Society, ARTeFACTTo2020.