Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

I´m Not Here: dialogues with Agnés Varda

Eu Não Estou Aqui: diálogos com Agnés Varda

Veronika Kleve

Universidade de Aveiro - DeCA, Portugal

Paulo Bernardino Bastos

Universidade de Aveiro - DeCA, Portugal

Instituto de Investigação em Design Media e Cultura [ID+], Portugal

Abstract

This work follows the artistic processes between 2019 and 2021 during a Master’s course in Contemporary Artistic Creation, that unfolded into “I’m not here”. A short documentary in which, from a conversation with her nephew, the director revisits losses that crossed her family. Like Cirandinha, a classic restaurant that used to be the local of family reunions in Copacabana.

Dialogues established with the artist Agnés Varda add to the narrative built in the film in the construction of this reflective portfolio that takes the form of an article. In addition, Giorgio Agamben’s notions about contemporaneity and profanation are evocated to deepening the reflections of the author’s trajectory in the last 3 years.

Keywords: Agnés Varda, Documentary, Arts, Women, Memories, biography

Introdução

“Talvez tenha chamado vossa atenção o fato de que as observações que estou a ponto de concluir só imponham ao escritor uma exigência, que é a reflexão: refletir sua posição no processo produtivo.”

Walter Benjamin

O presente texto, que toma agora forma de artigo acadêmico, é uma reflexão sobre a minha trajetória, acadêmica, pessoal e profissional tendo dois recortes específicos. O temporal,leva em conta o período de 2009, quando comecei a entender a arte como meu campo de atuação e vivência até dezembro de 2021 quando defendi a minha dissertação de mestrado. O outro recorte é o que escolho chamar aqui de diálogo, embora durante todo a minha trajetória haja um atravessamento por diversos artistas, como Adriana Varejão, Rosana Paulino, Aline Motta e outras, é inegável que a cineasta Agnés Varda é minha principal referência artística.

Em 2009, ainda no meio da formação em psicologia, me deparei com o descontentamento frente à expectativa de exercer tal profissão. Com a convicção de que ter um diploma de graduação ainda era algo indispensável, decidi por me formar no bacharelado e, paralelamente, iniciei meu

curso de edição e montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. A decisão de me aproximar do audiovisual vinha, ao mesmo tempo, de um fascínio antigo pelo cinema e de uma carência de vislumbrar um produto do meu ofício que fosse objetivamente circunscrito.

A prática da montagem, aliada com as teorias de cinema, me propuseram o que eu não enxergava na psicologia, uma atividade laboral que envolvia tanto um fazer “manual”, concreto, como uma elaboração teórica/ conceitual/ artística/ subjetiva. Entre 2010 e 2011, trabalhei como assistente de montagem em filmes documentários de diretores como Eduardo Coutinho, Daniela Broitman e Dorrit Harazim e, embora a edição de imagem me fosse muito mais palatável do que a psicologia, ainda havia uma inquietação.

Em 2012, fui chamada para um trabalho de produção executiva, tendo até 2018 trabalhado essencialmente com produção cultural e audiovisual. A dinâmica da produção, diferente da psicologia e até mesmo da edição, quase sempre se descola completamente da possibilidade de produção de subjetividades e se transforma em uma atividade mecânica e burocrática. No meio de 2017, me vi soterrada por planilhas de orçamento, inscrições em editais, cronogramas, análises de contratos...

A concretude que vislumbrei, agora, estava tomando forma de pesado dispositivo de dessubjetivação, instrumento de processo de assujeitamento, entendido por se forjar de opção livre, como domínio não violento dos indivíduos, o impelindo a uma entrega enganosamente racional e coibindo desejos. Sobre a dessubjetivação na contemporaneidade, Agamben (2005) nos traz:

Um momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação mas o que acontece nesse momento é que os processos de subjetivação e os processos de dessubjetivacão parecem reciprocamente indiferentes e não dão lugar a recomposição de um novo sujeito, se não em forma larvar e, par assim dizer, espectral. Na não-verdade do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade. (Agamben,p.15)

Em mim, foi o entendimento de imprescindibilidade da independência financeira e da manutenção da qualidade de vida de classe média brasileira aos 30 anos, que retardou minha ruptura com a lógica contemporânea de atropelamento do sujeito desejante. Não é à toa que, embora haja uma consciente e concreta descontinuação do meu estilo de vida, a decisão seja por romper, mas, ainda assim, escolher um caminho, o acadêmico, socialmente legitimado.

No encontro a partir de fevereiro de 2019, com um mestrado de artes, essencialmente voltado para a criação, fui instigada a deslocar o meu olhar, imergir em questões autobiográficas e, assim, experimentar novas formas de habitar o mundo. Não que a arte, e seus sabores, me fosse indiferente até ali. As fotos do meu avô, as pinturas da minha avó, a música clássica sempre presente na casa do meu pai, os livros de arte na mesa da sala, os fins de semana em exposições com a minha mãe e as idas frequentes ao cinema sempre foram motores. As viagens também quase sempre foram ancoradas nas idas aos museus.

Mas, foi na metodologia participativa da cadeira de LECA (Laboratório de Experimentação e Criação Artística), e na generosidade e colaboração do professor e dos meus colegas de turma, que encontrei terreno fértil e seguro para me autorizar a explorar as minhas inquietações através da prática artística.

As aulas, tanto de LECA-II como LECA-I, foram regidas pelo professor, e posteriormente meu orientador, Paulo Bernardino Bastos. Em mesas dispostas de forma que todos pudessem se olhar, os alunos eram provocados a compartilhar seus processos e experimentações, permitindo que estudantes e professor contribuíssem com indagações, indicações de referência teórica e artística e críticas, transformando, assim, o espaço da aula em um lugar de construção coletiva.

Nesta mesma cadeira, fui orientada a acompanhar o desenvolvimento dos meus trabalhos com registros (escritos, fotográficos, filmados...) que deviam, após a apresentação, compor um portfólio reflexivo. O portfólio reflexivo, diferente do portfólio de artista, que expõe os melhores trabalhos de um artista ou coletivo, é um documento que pode ser materializado de diversas formas como: vídeos, cadernos de anotações, textos acadêmicos, álbum de fotos, site. E que, a partir da concepção de Idália Sá-Chaves (2004), no âmbito das artes, se constitui como uma estratégia pedagógica, que possibilita tanto ao professor uma avaliação contextualizada das produções dos alunos, como aos alunos um exercício contínuo de construção crítica de conhecimento. Além de delineamento e reflexão de soluções e questões singulares ao seu próprio modo de criar e de saber.

Sendo minha primeira incursão, tanto no papel de artista como frente à ideia de portfólio reflexivo, construí, ao longo da disciplina, um caderno de anotações, de onde, posteriormente, selecionei trechos e juntei com fotos, tanto do processo como de obras de referência. Este primeiro portfólio acompanhou o processo de experimentações que deu origem a instalação , silêncio...

, silêncio... é uma instalação composta por balões brancos, linhas vermelhas e uma narração do trecho do conto Perdoando Deus (1998) de Clarice Lispector. Foi apresentada na exposição espaçotraçotempo, no Museu de Aveiro - Santa Joana, em maio de 2019, como requisito para aprovação das disciplinas de Leca II e PIA. Na mesma exposição foi apresentado o trabalho 80/13, elaborado no âmbito da cadeira de Videoarte e que investiga o meu luto frente à perda do meu pai.

É deste primeiro exercício de reflexão, possibilitado pela construção de um portfólio reflexivo, que começam a se manifestar minhas principais inquietações no que diz respeito à capacidade da arte de afetar um outro indivíduo/sujeito, além do seu próprio criador.

Como é possível partir de um fragmento autobiográfico para criação de uma obra/trabalho, e este fragmento ser capaz de atravessar outras pessoas, estabelecendo conexões com as suas próprias identidades? O que se dá nos trabalhos artísticos que nos torna tão próximos a eles? Como que ao ver, experienciar uma obra, isso se torna também parte de mim?

Partindo da análise dos efeitos das obras de Agnés Varda sobre mim, aposto na intenção profanadora (Agamben, 2007) como sendo o lugar onde se funda a possibilidade de identificação do outro.

Conjugo a essa idéia, a definição de método cartográfico como posto por Virginia Kastrup e aqui equacionado por Moura e Hernandez (2012), “um movimento atencional, concentrado na experiência, na localização de pistas e de signos do processo em curso” (p.02). Este caminho não tem uma direção pré-definida, mas uma orientação que leva em conta o percurso de investigações e experimentações, os efeitos do processo de pesquisa e a própria autora, eu.

A cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção do conhecimento) do próprio percurso da investigação [...] Mergulhados na experiência do pesquisar, não havendo nenhuma garantia ou ponto de referência exterior a esse plano, apoiamos a investigação no seu modo de fazer: o know how da pesquisa. O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho” metodológico. (Passos e Benevides, 2009, PP. 17-18)

Além disso, lanço mão do formato de carta como método de escrita complementa incluindo de fragmentos escritos por mim durante todo o trajeto do mestrado. Em alguns momentos escrevo diretamente para Agnés Varda, artista belga radicada na França e única mulher por trás da nouvelle vague francesa. Em outros o destinatário da carta é, como no filme, oculto e múltiplo, considerando também uma dupla atuação minha como remetente e destinatária.

Ao longo do artigo dialogo com a Varda principalmente a partir de três dos seus filmes: L’opera Mouffe (1958), As duas faces da felicidade (1965) e Daguerreotypes (1975) ao mesmo tempo que me debruço sobre a minha própria produção artística, com foco no curta-documental Eu não estou aqui (2021).

Nos últimos três anos, me dediquei à pesquisa de temas que abrangem as questões da memória, história, biografia, luto e gênero, desaguando no filme “ Eu não estou aqui”. O filme, que vem sendo gestado há 10 anos, revisita perdas que atravessaram a história da minha família. Como com o Cirandinha, restaurante clássico de Copacabana, que era refúgio da família, fechado em 2016, e que é o ponto de partida de uma conversa com meu sobrinho, Valentim, de 3 anos. A partir de rastros de lembranças e de uma entrevista informal com Vicente, ex-garçom do Cirandinha, eu (re)elaboro e revisito lutos pessoais e coletivos.

Para as Considerações Finais, escrevo uma carta à Violeta, filha imaginada a quem transmito minhas descobertas dessa trajetória.

Agnés Varda

Figura 1. Varda em cena.
Still do documentário Visages-Villages.

Tardei em escrever essa carta. Desde que cheguei a Portugal pensei em te escrever, pegar um avião, ir bater na sua porta, pedir um abraço, agradecer… tardei!
Nunca tive ídolos, não fui das adolescentes que chorou por artistas, ficou horas na fila de shows… Você foi o mais perto disso, cheguei a dizer nos meus rabiscos: quero ser Varda, saber o exato tom entre o clichê e o sensível, ser política sem ser dura, ser artista. Obrigada por ser inspiração.

Escrevi este fragmento de carta em 29 de março de 2019, dia do falecimento de Agnés Varda. Estava morando há um pouco mais de dois meses na cidade do Porto e a notícia me chegou cortante. Era minha primeira vez no continente europeu e a proximidade me fazia fantasiar com um dia, como em um único movimento, eu me levantaria, iria até o aeroporto, compraria uma passagem e, em algumas horas, estaria na Rua Daguerre.

Em Daguerréotypes, documentário dirigido por Agnés Varda em 1975, a diretora observa os pequenos comércios de um trecho da Rua Daguerre. Na época, Varda, que morava nessa rua, decidiu que filmaria a, no máximo, 90 metros da sua casa. E, como diz no filme, a busca era não por filmar o que lhe parecesse mais pitoresco ou fora do comum, mas pelo contrário, o interesse era por observar aqueles estabelecimentos os quais ela própria frequentava.

Figura 2. Daguerréotypes.
Detalhe da placa da Rue Daguerre, no filme.

A passagem da minha rua para a praça do Bairro Peixoto também funciona como uma pequena viagem no tempo, o som das crianças brincando, o chafariz... O cheiro da areia me faz sentir a textura áspera nos pés. Há 4 anos voltei a cruzar as grades que delimitam os espaços dos brinquedos e das crianças....

Varda, que estava grávida do seu segundo filho durante as filmagens, faz o que Rodrigo Lemos chama de sinfonia do homem comum.

A sinfonia de uma metrópole é a sinfonia do comércio de bairro. Forma-se dos seus gritos, suas conversas, seus barulhos. É na lojinha da esquina que se desenrola uma parte considerável do teatro quotidiano ― não é por nada, aliás, que cenas com o fechar e o abrir das cortinas de ferro pontuem o filme. (LEMOS, 2021)

É no seu olhar, no meio da efervescente década de 1970, para uma rua que ainda estabelecia um outro ritmo e tipo de vida social - de singelezas cotidianas como a limpeza de um corte de carne, ou mesmo a apresentação de um mágico que parecia perdido naquele tempo -, que Varda carimba seu cinema político não panfletário, capaz de abordar questões sociais sem perder o olhar sensível para o dito “comum”.

No entanto, sair por aí filmando conflitos e manifestações não era a sua intenção. Quando filmou um protesto, como os do Black Panthers, nos Estados Unidos, escapou do formato do cinema direto e se interessou menos pelo flagrante do evento e mais pelas relações com as pessoas que filmava, pelos detalhes dos corpos, gestos, movimentos e falas de homens, mulheres e crianças negras (como veremos adiante). Seu objetivo, portanto, não era produzir filmes panfletários ou com mensagens que carregavam significados fechados, mas sim levantar questões, especialmente aquelas que lhe fossem caras, que de alguma forma relacionavam a sua experiência as de outras pessoas ao redor. (MACHADO, 2019, pp. 172-173)

Anos antes, sentada ao lado da minha mãe, vi sua aureola vermelha e branca adentrarem em uma sala de cinema do Rio de Janeiro, sessão de “As Praias de Agnés” no Festival do Rio. Foi minha mãe que me passou a ternura pela sua figura, ela ama as que envelhecem. Na minha casa, há anos habita uma foto gigantesca de Louise Bourgeois, minha mãe olha e ri com delicadeza, os olhos dela, mesmo por trás dos óculos grandes, se duplicam de tamanho. Assim como quando ela me conta que na juventude foi 7 vezes à cinemateca do MAM assistir “As Duas Faces da Felicidade”. Eu gosto mais das memórias das sensações do que dos fatos, não tenho ideia do que você falou naquele dia, mas lembro do seu filme entrar na minha pele e se expandir.

Figura 3. As Praias de Agnés.
Imagem digital do cartaz do filme.

Em As Duas faces da Felicidade, François e Therése vivem uma vida simples, descomplicada e feliz, junto aos seus filhos Gisou e Pierrot, na cidade de Fontenay. Um dia, François conhece Emilie em um posto de correios e inicia com esta uma apaixonada relação extraconjugal. Certo de que o amor pelas duas mulheres não são excludentes, François busca compartilhar com as duas a felicidade (Le bonheur, nome do filme em francês). Surpresa com a felicidade do marido, durante um dos seus passeios ao parque, enquanto seus filhos dormem, Therése questiona François. Embora ache que a esposa não o entenderá, François conta então sobre a sua nova paixão e garante à Therése que sua relação com Emilie apenas engrandece a sua felicidade. Therése parece então aceitar, sem muitas questões, o caso do marido, uma vez que isso o deixa mais feliz.

Minutos depois, no filme, somos apresentados para uma realidade diferente. Após acordar de um cochilo, François não encontra Therése, e parte com os filhos em busca da esposa pelo parque. É então que se depara com pessoas retirando o corpo de uma mulher do lago: é Therése. François, agora viúvo, discute com familiares sobre a situação dos filhos após a morte da mãe, ele decide cuidar sozinho dos filhos, porém, nas cenas seguintes, vemos que Emilie, agora sua esposa, assume as tarefas realizadas por Therése.

Para contar essa história, Varda busca na pintura, principalmente a impressionista, sua inspiração. Na primeira cena do filme, ainda durante os créditos iniciais, é possível reconhecer o uso das cores puras, aqui realizado pela predominância das cores primárias. A construção de um cenário idílico, solar, e até mesmo um foco difuso, que remetem ao universo impressionista.

Figura 4. Os girassóis do parque.
Cena de As duas faces da Felicidade.

Durante todo o filme, a diretora nos presenteia com imagens harmônicas, solares, cores vivas, sensualidade... É como uma isca. Varda apresenta imageticamente uma realidade bela e perfeita, sem atritos, e o espectador é, dessa forma, então, convidado a se entregar a esta suposta leveza e perfeição. Existe, porém, neste estado de suspensão que o espectador se encontra, um incômodo, que é construído a partir de dois dispositivos, a trilha sonora e a atmosfera.

No artigo “A música preexistente do repertório clássico em filmes de Agnés Varda dos anos sessenta” (2018), Luiza Beatriz Alvim faz uma análise de como a música de Wolfgang Amadeus Mozart atua de forma estruturante para a narrativa. A partir de um levantamento cena-a-cena, a autora demonstra que há uma repetição de trechos iguais da melodia, tanto para cenas de Emilie como de Therése, o que leva a uma aproximação entre as duas personagens. Ao mesmo tempo, a apresentação de diferentes versões pontua os afastamentos e mudanças. Alvim também aponta a visão da própria diretora do filme na escolha da música que, segundo ela, Mozart era para Varda um músico que tocava a felicidade mesmo no dilaceramento.

Com base no que nos traz Luiza Alvim, podemos, então, levantar um ponto nevrálgico do filme: qual o interesse de Varda em criar esse movimento de aproximação e afastamento entre essas mulheres? Existe aqui uma questão clara: Varda busca construir, a partir dessa brincadeira, um retrato do papel da mulher na sociedade e uma crítica à utilização que o homem, no caso François, e a sociedade fazem desse papel (ALVIM, 2017).

François, quando indagado por Emilie se ela e Therése são o mesmo, responde: “Therése é como uma planta vivaz, e você [Emilie] é como um animal em liberdade, e eu gosto da natureza”. Esta passagem de um diálogo entre François e Emilie, retirado do filme, evidencia o que Varda busca criticar, que a mulher, enquanto esposa, tem/deve ter uma postura tímida e domesticada, como uma planta, imóvel. Enquanto a amante assume uma postura carnal, intensa e selvagem, como um animal. Além disso, quando, no filme, Therése é rapidamente substituída por Emilie em todas as suas tarefas, (de cuidar dos filhos a arrumar a casa), isso corrobora com a ideia desses papéis estanques que a mulher muitas vezes é obrigada a exercer.

O segundo dispositivo que Varda utiliza para manter um certo incômodo é exatamente a estabilidade dessa atmosfera de cenário irretocável, que inicialmente é exposto, ao apresentar uma crítica ao machismo velado da sociedade. Ela o faz de forma sutil, leva o espectador a acreditar que tudo está bem, não há nenhum tom de tristeza, nem na música, nem nas cores e nem na atuação dos personagens. E é isso, essa aparente falta de tristeza, que incomoda.

Nesse sentido, há também algo importante de somar nesta análise, a única que sofre consequências ruins é Therése. Embora não seja explícito o motivo de sua morte, parece ter cometido suicídio. Aí também está outro incômodo, a dúvida que circunda sua morte. Dúvida que só se coloca para o espectador como um vazio, sem nenhuma repercussão na história, nem mesmo um possível sentimento de culpa por parte de François.

Figura 5. Cena final de As duas faces da felicidade.
Still do filme “As duas faces da Felicidade”.

Já agora, depois da sua morte, Varda, minha mãe veio me visitar enquanto eu fazia o mestrado. Aproveitamos para conhecer Amsterdam e, num dia de chuva torrencial, enquanto percorríamos um museu, fomos surpreendidas por uma obra do JR.

Figura 6. The Secret of the Great Pyramid.
Instalação JR- 2019- Paris/França.

Na publicação do artista estava escrito: “Eu terminei esta obra para você Agnés Varda, você amava pessoas, colando e ilusão... S2 Tenho certeza que você pode ver. Eu fiz algo que pode ser visto do céu. Prometido, eu não sabia que era para você”. Nossos olhos se encheram, eu gosto da cumplicidade de uma emoção que chega ao mesmo tempo em duas pessoas. Do que vimos nos museus de Amsterdam, apenas a caveira fumando de Van Gogh nos atingiu coordenadamente como as palavras de JR.

Figura 7. Caveira com cigarro aceso.
Van Gogh, 1885/1886.

No documentário de 2017, Visage-Village, a octogenária Agnés Varda, na companhia do artista visual JR, junta suas paixões pelas questões da imagem, principalmente os retratos. No filme, eles viajam por pequenas cidades da França, munidos de um caminhão que imprime fotografias gigantes, fotografando e expondo imagens de pessoas comuns pelas cidades. No percurso, a amizade dos dois artistas se intensifica a partir de surpresas, provocações e risos frente às suas diferenças.

Enquanto estive na Europa, não fui à França. Talvez, depois de sua morte, senti que seria uma perda de tempo, Louvre, Torre Eiffel, Museu do Orsay... duvido serem tão interessantes como você.
Voltei ao Brasil em dezembro de 2019 para uma pausa, que a princípio duraria apenas até setembro de 2020, quando retornaria para Portugal para terminar o mestrado. A pandemia do Covid-19 me prendeu num Brasil distópico, onde um governo de direita trabalha contra o povo, a miséria nos assombra e a esperança tornou-se item escasso. Seus filmes, como sempre, foram porto seguro nesses tempos duros. Revisitei sua obra e encontrei em L’Opera Mouffe impulso para retomar um projeto há anos parado.

Em L’opéra Mouffe (1958), o primeiro documentário autoral de Varda, a cineasta parte dos questionamentos que viveu durante a gestação da sua primeira filha para fazer uma escrita imagética e sensorial sobre a condição humana.

A década de 1960 foi, na França, um período de intensa movimentação no campo político e econômico. O país experimentava um crescimento impulsionado pelas políticas adotadas na década de 1950, com a criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE), mais comumente chamada de Mercado Comum Europeu. E vivia ainda uma adaptação e celebração das reformas sociais realizadas nas duas décadas anteriores, como a conquista do voto pelas mulheres, realizada no ano de 1945.

Embora o filme aqui em questão tenha sido realizado anteriormente aos protestos de maio de 1968, é também atravessado pelo contexto político mundial que o propiciou. Outra questão histórica importante foram os protestos contra a brutalidade do governo norte-americano no Vietnam. Os Estados Unidos da América (EUA), que haviam saído da Segunda Guerra Mundial como a grande potência, estavam agora em guerra com o Vietnam.

Todo esse contexto propiciou a construção e surgimento da Nouvelle Vague, um movimento do cinema francês que, a partir do ano de 1954, iniciou uma contestação ao cinema clássico comercial e buscou usar, a partir da uma reiteração de um princípio neorrealista, o cinema como ferramenta de transformação do mundo. Entre os aspectos mais reveladores da Nouvelle Vague está a escolha das filmagens a serem realizadas em locações do dia-a-dia dos franceses, explicitando uma nova concepção de espaço, historicidade e de relação com a realidade imediata (Manevy, 2006, p. 244).

É nessa possibilidade de trabalhar de forma crítica às questões do cotidiano e da atualidade criada pela Nouvelle Vague que Varda consegue se manter sempre contemporânea. Sobre o contemporâneo no diz Agamben:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspetos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009, p.59).

Em L’opera Mouffe, Varda recorre a diversos elementos em busca de uma construção narrativa fragmentada, se assemelhando a um caderno de anotações.

O que é um caderno de notas? Aquele em que se fazem observações ligeiras, desenhos nos cantos das páginas, em que se escrevem memórias, pensamentos, ideias. Num caderno de notas não se tem o compromisso nem com a coerência nem com a fluidez de um texto que tenha um objetivo pré-estabelecido. Divaga-se.
O filme se apresenta como uma sucessão de imagens que lembram o livre pensar em suas proliferações de ideias, formando um fluxo que não se encadeia por uma história com começo meio e fim no sentido tradicional de uma trama. São, antes, segmentos que ao se relacionarem entre si revelam uma gama de sentidos e possibilidades de compreensão. (Yakhni, 2011, pp. 28-29)

Ao nos alertar, já no início do filme, para a informação de que do documentário é construído a partir do seu olhar durante sua primeira gravidez, condição única do sexo feminino, a diretora nos coloca uma questão inicial, a dualidade vida e morte. Esta dualidade é rapidamente corroborada em um dos primeiros cortes do filme, onde a imagem de uma barriga de grávida é acompanhada imediatamente por uma imagem de uma abóbora tendo suas entranhas escavadas.

Para além disso, Varda escancara sua narrativa autorreferenciada e poética, que a permite transitar no limiar entre o objetivo e subjetivo, real e imaginário... Construindo, a partir de uma composição de sons e imagens, uma trajetória não linear e atemporal que flerta sempre com o onírico.

Desse modo, é possível evidenciar que o gesto de criação deste ensaio cinematográfico realiza um movimento que possibilita tanto para Varda quanto para as outras personagens reviverem e testemunharem a sua própria experiência. A realizadora evidencia que não se trata apenas de esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente.
Ao transmitir essa experiência tecida “na substância da vida vivida”, mostra a possibilidade de estabelecer uma relação entre a infinitude do acontecimento lembrado e a finitude do acontecimento vivido. (Oliveira, 2014, p. 142)

Varda, ao criar um universo próprio, que brinca com as possibilidades dos tempos e realidades, entrega ao espectador uma obra tão delicada e sensível quanto com uma visão crítica e apurada da condição humana. Ao construir esse caderno de notas audiovisual, transita entre a ficção e o documentário, construindo, dessa forma, uma obra que parte de sua experiência/vivência pessoal e que se desdobra a partir de fragmentos da vida de outras pessoas, fazendo, assim, a interlocução entre suas singularidades e a condição humana coletiva.

Eu Não Estou Aqui

Sento na mesa para te escrever uma carta, mais uma. A vista da janela prende minha atenção. De repente sou tomada pela sua lembrança, quantas vezes você parou em frente a essa mesma janela? Talvez, o morro verde, que é o meu respiro entre os prédios, tenha sido a sua última inspiração.

Figura 8. Eu não estou aqui

Era 2010 e eu vivia de forma intensa o luto da perda do meu pai (1938-2006) e da minha avó materna (1925-2007), ao mesmo tempo em que decidia iniciar uma carreira no audiovisual. Naquele ano, enquanto colaborava em um filme de um amigo, surgiu a ideia do meu primeiro filme, um curta-documentário sobre um restaurante chamado Cirandinha.

No meio do furdunço da Av. Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, o Restaurante e Confeitaria Cirandinha, aconchego da minha família aos domingos, era uma viagem no tempo... Suas toalhas beges, seus fiéis garçons e suas comidas eternas garantiam ao espaço um ar de anos 1960. O Cirandinha era memória viva, existência concreta de um tempo passado.

Antes que eu me esqueça, falo, filmo, fotografo… Eu já não sei dizer o que a gente viveu, eu quase não lembro de situações, as que me lembro é porque me foram contadas. Eu lembro de picolé de limão, ice cream soda, Torrada Petrópolis. Lembro também das alcaparras. Lembro da barba, que só se foi dias antes da sua partida, quando você pediu para enfermeira raspar. O seu rosto vazio, o nosso susto. Lembro de, sentada com a Julia na escada da portaria de casa, esperar você nos buscar, às quartas-feiras de noite. A gente sempre descia antes e esperava, “quantos carros passam até o papai chegar?”.

Em 2020, após o primeiro ano do mestrado em Aveiro, revisitando a história da minha família, a ideia do filme voltou, agora, como forma não apenas de comemorar o restaurante, mas de elaborar o luto e revisitar as memórias. De volta ao Brasil, mergulhei na elaboração do projeto O Filme que eu não fiz.

Em dezembro deste mesmo ano, no âmbito da Lei Aldir Blanc, fui contemplada no edital Retomada Cultural da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, garantindo, assim, recursos financeiros para a produção do projeto.

O filme que surgiu como Cirandinha, após o fechamento do restaurante, transformou-se em O filme que eu não fiz. Depois das filmagens, e no processo de edição, este título já não fazia mais sentido. Havia sim um filme que não havia sido feito, um que eu entrevistava os frequentadores do restaurante Cirandinha, seus vários garçons e seus donos, onde cada canto do restaurante era filmado, suas mesas, seus pratos. Mas o filme que eu havia feito não era esse.

Outro dia eu estava trabalhando e o Valentim perguntou “Ah, você está trabalhando no quê?”, e aí eu expliquei “Ah Valentim, estou fazendo um filme sobre um restaurante, ia muito com seu avô, com o vovô Ralph, com a sua mãe, com a Tia Jô”. E ele perguntou “eu também?”, “Não Vale, foi há muito tempo, você ainda não tinha nascido”, “A gente pode fingir que eu estava lá também?”.

Eu não estou aqui foi um título sugerido pela minha irmã mais velha que, durante uma conversa, relembrou a frase que nossa outra irmã dizia em hebraico “Ani ló pó”, literalmente “eu não estou aqui”, em hebraico. A construção da frase “eu não estou aqui”, embora gramaticalmente correta, impõe uma impossibilidade física: não há uma relação possível do corpo senão o de agora estar aqui. O aqui e o eu, embora relativos, funcionam como parâmetros um para o outro. O aqui só se constitui a partir da presença de quem o enuncia, assim como o eu não tem outro lugar para estar quando se autolocaliza.

No filme, como nas memórias e fabulações, uma possibilidade imagética de coexistência de tempos distintos se apresenta, tornando possível estar em um lugar onde o corpo não está. No Cirandinha do filme, eu posso levar o Valentim para experimentar milkshake e waffle em cima de uma toalha bege e conviver um pouco com seu avô e sua bisa. Posso, novamente, brincar na pracinha, conversar com o Vicente, antigo garçom de lá, e estar novamente com os que já partiram...

Desço a rua, cada centímetro percorrido uma nova lembrança, a casa do meu pai, a da minha avó. Aqui, agora, mora você, o mais novo integrante da família. Ali uma família libanesa vende especiarias. Naquele quiosque branco da esquina, o moço, que vende ovo e frango, sempre nos deseja um “Bom dia”. Do outro lado da rua, a tal padaria, que sua mãe, quando começou a ler, bravamente disse “apoloxi”. Descemos mais um pouco, o furdunço da Nossa Senhora fica mais presente, eu gosto do furdunço. Do lado da loja dos bichos, os deliciosos pasteizinhos da Suprema fazem falta. Salões de beleza, loteria, lojas.

Assim como Varda, em Daguerreotype, inicio a construção do curta a partir da delimitação do espaço. Eu não estou aqui foi filmado em um perímetro de Copacabana ancorado em quatro pontos: A) Meu apartamento na Rua Santa Clara; B) O supermercado Diamante, que se localiza no endereço do extinto Cirandinha; C) A pracinha do Bairro Peixoto; e D) A Sinagoga Kehilat Yaacov.

Figura 9. Mapa Copacabana

A escolha dessa delimitação parte do próprio universo do filme. Por se tratar de memórias, principalmente as da minha infância, esse dispositivo tem algumas implicações. Por um lado, remete a um limite imposto pela própria infância, onde o mundo costuma ser experienciado apenas pelas micro-vivências e pouca circulação pela cidade. Em termos específicos, este perímetro define o meu pequeno espaço da infância, moradora da Rua Santa Clara desde que nasci, meu dia-a-dia era baseado nesse percurso de menos de 5km entre a casa da minha avó e o Cirandinha.

Grandes espelhos. Mesas de madeira com cadeiras de madeira arredondada com forro de couro/courino bege. O mel do waffle era servido em um pequeno bule de “alumínio?”. Toalhas de mesa branca por baixo e bege por cima. Sempre o mesmo cardápio, preto com a logo em branco. Banheiro com mármore branco, bem pequeno e sempre fedendo! Sempre os mesmos garçons, terno bege, blusa branca e gravata preta. Na frente um grande balcão de salgados, máquina de coca cola, copos de papel com a logo do Cirandinha em vermelho. Entrando, do lado direito, os espelhos e mesas pequenas, do lado esquerdo um balcão com bancos beges que viravam, mas eram desconfortáveis. No fundo, normalmente, mesas grandes, de comemorações. Sempre foi um pouco a extensão de casa, um lugar muito familiar e acolhedor. Minha família sempre foi de pessoas gordas, meu pai e minha avó eram gordos, temos uma relação íntima com a comida, com comer bastante. Aos domingos, íamos lanchar no Cirandinha, sempre foi o nosso programa de final de tarde em que as filhas e netos se sentavam em volta do meu pai. Meus sobrinhos eram bem pequenos, lembro de ser uma certa bagunça, era festivo, agitado. Pratos brancos com detalhe em verde. Não lembro nem do chão e nem do teto. O salão era longo.

Valentim nasceu em 2017, um ano depois do Cirandinha fechar, e 10/11 anos depois da morte do meu pai e da minha avó, respectivamente seu avô e sua bisavó. Embora eu tenha outros sobrinhos, Vale chega quase 16 anos depois do Julian, sobrinho mais novo até então, quando estou na porta dos 30 anos, e muito mais próxima de uma relação com crianças de tia/ mãe do que de prima/ irmã. Seu nascimento vem carregado de sentido e esperança, uma nova vida que, depois de perdas e lutos, aponta para o futuro. Valentim também é a possibilidade de perpetuar, por mais uma geração, nossa história. Assim como eu, Valinho mora na Santa Clara e frequenta a pracinha do Bairro Peixoto.

Figura 10. Valentim

Durante todo o processo de desenvolvimento do filme, trabalhei com a importância de que a narrativa partisse de uma idealização das minhas próprias memórias de infância, mas não sem levar em conta os desconfortos e confrontos impostos pela realidade. A pandemia, a relação do restaurante com seus funcionários, a morte, o nazismo e o bolsonarismo são pontos de amarração importantes, que me permitiram construir uma narrativa que transita pelo sonho e pela realidade, que flutua, mas que também se ancora.

Figura 11. Eu não estou aqui – frames (a).

Figura 12. Eu não estou aqui – frames (b).

Meu interesse pelas questões sociais e políticas brasileiras, e o conhecimento prévio de que o Vicente, assim como todos os outros funcionários do restaurante, só soube do fechamento do restaurante ao chegar e encontrar o local, (no qual trabalhava há mais de 30 anos), já destruído, me levou a questionar a importância de incluir um contraponto à minha história.

O Vicente foi garçom do Cirandinha durante mais de 30 anos... Quando eu tive a ideia [2009] do filme eu estava trabalhando com um amigo, com o Marx, e eu falei da minha vontade de fazer um filme sobre o Cirandinha, e ele, “bom, meu tio é garçom do Cirandinha”, - na época o Cirandinha ainda estava aberto. O Cirandinha acabou, as coisas foram ficando mais difíceis, e quando eu voltei a falar sobre o filme com o Marx a história do Vicente foi voltando, e agora sobre um outro ponto de vista, o de quem tinha visto o Cirandinha acabar depois de quase 30 anos de trabalho. (Kleve, 2021)

Falar das memórias do Cirandinha a partir apenas das minhas lembranças de frequentadora, ou das lembranças de outros frequentadores, era permitir que uma única narrativa fosse contada. Como frequentadora, a história possível de se contar seria apenas uma história idealizada, de um lugar com comidas gostosas e de vivências agradáveis. A narrativa de quem tornava possível aquela minha vivência seria apagada e contada apenas por um olhar enviesado.

Na entrevista com Vicente, ele conta como as condições precárias do trabalho o fizeram desenvolver diversas doenças como diabetes e pressão alta, além de ter que pagar mais de meio salário-mínimo por seu uniforme. E, no final, ter que enfrentar uma depressão por ver o restaurante, ao qual se dedicou quase toda uma vida, fechar sem prévio aviso.

...foi uma passagem muito dura.... eu, graças a Deus que deus me abençoo, eu podia ter entrado em depressão... porque aí o cara se desespera, mexe com a cabeça, fica difícil, muito difícil o cara se encontrar. Eu cheguei no Cirandinha com 35 anos de idade, eu saí de lá com 60 e poucos anos, quer dizer, cansado, doente. Eu não entrei com diabete, eu não entrei com doença de coração, eu não entrei com hipertensão e saí com tudo isso lá de dentro (Braga, 2021- FILME)

Embora não tenha ido para o corte final do filme, minha conversa com Vicente também rondou o tema da pandemia. Vicente, que só tirou a máscara para um gole de café na xícara do Cirandinha, contou que perdeu parentes e amigos e que já estava com a primeira dose da vacina no braço.

303 era o número do prédio em que morei até os 19 anos, 303, apartamento 501. Hoje fui olhar os números do Covid no Brasil, 303 mil mortos, o presidente diz que é mimimi, os nossos dias sim vão se tornando cada vez mais raros. Respiro. O coração aperta à noite e o choro dos que me acompanham se torna inevitável... Nos resta pouco e a gente continua vivendo.

Em março de 2021, os números de mortos por Covid-19 no Brasil ultrapassavam os 300 mil. Se por um lado a Lei Aldir Blanc surgiu para garantir sustentação econômica do setor cultural durante uma grave crise política, social e sanitária, por outro, os prazos curtos para execução e prestação de conta impunham aos contemplados o desafio de produzir em meio à pandemia.

Quando efetivamente comecei a trabalhar no roteiro do filme em janeiro de 2021, já estávamos em quarentena há quase 10 meses e era inevitável pensar como seria o atravessamento da realidade pandêmica no curta. Alguns pontos eram óbvios, até mesmo pelo caráter intimista do filme, a equipe deveria ser pequena e obedecer aos protocolos de covid estabelecido pelo SICAV.

Mas como seria lidar com imagens documentais que buscavam remeter a memórias e lembranças com a presença cortante e tão atual das máscaras? A decisão por fazer as entrevistas e as cenas externas com Valentim de máscara foi a primeira a ser tomada, não apenas pela segurança dos entrevistados, mas também pela imediata contextualização temporal que sua imagem traz.

Por outro lado, as cenas de interação entre mim e o Valentim, em ambiente interno, por não trazerem riscos para nossa saúde, uma vez que a convivência já era diária, e por representarem um lado onírico do filme, foram filmadas sem máscaras.

No filme, a narração em tom de confissão e sem um interlocutor claro também se coloca como elemento de transbordamento do que há dentro, às vezes em diálogo, às vezes em contraponto ao que é exposto, - na fala do Vicente, na imagem do supermercado que hoje toma lugar do Cirandinha, ou mesmo na brincadeira da pracinha.

A máscara, como símbolo do caos sócio-político brasileiro, teve ainda um outro papel importante. No primeiro take filmado da cena em que desço a Rua Santa Clara em direção ao supermercado Diamante (alegria compartilhada), a fiz sem máscara. O intuito inicial era que minha presença, descalça e sem máscara, no meio da rua, trouxesse um descolamento entre eu e a realidade a minha volta.

Ao chegar na esquina da Rua Santa Clara com a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no sinal para atravessar, fui abordada por uma senhora que reclamava ao ver os policiais retirando os vendedores informais das calçadas, e dizia: “Nem os camelôs tão podendo trabalhar, é? Aff Maria, vai haver uma colisão no país viu, brigar guerra, tirar o presidente Bolsonaro”. Achei que ela estava a favor do impeachment do atual presidente e me animei, “É, tem que tirar o Bolsonaro mesmo”, só para, então, receber uma resposta feroz da senhora e agora também de sua amiga, que bradavam que o Bolsonaro estava fazendo um ótimo trabalho e que, caso ele saísse, o Brasil viraria uma Venezuela e eu me arrependeria.

Naquele exato momento percebi que foi a falta da máscara no meu rosto no meio da rua que fez com que ela me identificasse como uma aliada. Coloquei a máscara e refilmei toda a minha decida pela Rua Santa Clara com ela.

Quando você entrou na casa da mamãe para tomar café, antes de ir trabalhar, a primeira coisa que eu falei foi “não vai com essa blusa”. Uma blusa bordô com duas estrelas amarelas bordadas uma em cada ombro.

Figura 13. Estrela de David.
Aplique de tecido com formato de estrela de David escrito “judeu” em alemão, usada pelos nazistas para identificar pessoas de origem judaica.

Em 2016, um golpe político articulado pelos setores de direita culminou no impeachment da primeira presidente mulher do Brasil, Dilma Roussef. Assim como seu antecessor, Lula, Dilma pertencia ao Partido dos Trabalhadores (PT), partido reconhecido por suas pautas sociais de esquerda, defesa do Movimento Sem Terra, luta pela democratização da educação, segurança alimentar, entre outras. Como parte do golpe, e por consequência dele, o sentimento anti-PT cresceu, assim como a adesão a pautas conservadoras, como a defesa pela família tradicional, armamento da população civil...

Junto com o fortalecimento de um candidato à presidência declaradamente de direita, os episódios de violências, principalmente contra minorias (LGBTQIA+, negro, mulheres...) se intensificou, tornando-se corriqueiras as falas e ações homofóbicas, racistas e misóginas. Quando, durante a campanha eleitoral de 2018, vi minha irmã usar uma blusa que me remeteu às histórias contadas por meus avós sobre a Alemanha nazista, precisei pedir que ela não a usasse.

Daquela vez, eu que tinha puxado a conversa e o papo era - que tipo de monstro tinha compactuado com o nazismo? Pessoas normais, ela disse. Gente que sorria bastante, tomava cerveja e abraçava os filhos. Gente desatenta, que se encantou pelos ares de ordem e supremacia e embarcou no projeto do Führer. Gente que prestou seus serviços, suas ideias, suas mãos para matar milhões de outras pessoas. Gente que dormia tranquila depois de fazer isso.
Mas, a pergunta que mais importava, segundo ela, era outra. Que tipo de gente resistiu à tentação de ser ariano? (BERG, 2009)

No filme, a partir da minha “visita” à sinagoga Kehilat Yaacov, a qual frequentei na infância e da qual meu avô materno era chazan, crio uma ligação entre a Alemanha nazista e a ascensão da direita no Brasil. Ao mesmo tempo que narro trechos do texto da minha irmã sobre a conversa que teve com a nossa avó, é possível escutar o áudio das passeatas que aconteceram entre 2016 e 2018 em apoio ao atual presidente, Jair Bolsonaro, e que tiveram como palavra de ordem “Ele sim, ele sim”.

O que vivemos hoje é luto, um trabalho e uma energia para lidar com o que resta depois da morte, depois do fim. Tem dia, semanas, meses que vão ser de choro, confusão, estranhamento, em outros vamos poder dar umas risadas, ler um livro, conversar e comemorar qualquer pequena vitória. São tempos difíceis onde temos que fazer limonada, caipirinha e torta com 1 ou 2 limões. Mas a gente segue, cheia de dores, cansaços, saudades, perdas irreparáveis, mas a gente segue. E esses que aí estão, atravancando nosso caminho, passarão.

No filme, volto a costurar minha mão. A linha, que na videoarte de 2019 80/13 usei em preto e branco, recebe agora a cor vermelho sangue e tece pela pele da palma da minha mão um caminho.

Figura 14. Eu não estou aqui – mão e costura.

A agulha cruza a minha mão esquerda em um movimento de sobe e desce sob a pele, bordado sem desenho e costura numa mão sem corte, que assim como as obras de Paulino, não precisa ser suturada, mas sofre as consequências de uma força externa que busca juntar dois pontos distintos.

Na ação performática da costura da mão, minha própria mão direita tece a trajetória do dentro e do fora e dos pontos desencontrados. O luto das perdas e as lembranças criam marcas, ao mesmo tempo que as ações do presente e as perspectivas do futuro vibram no vermelho vivo.

Ao fundo, minha voz narra a perda do meu pai enquanto um nigun, que meu pai escutava nos últimos dias de vida como uma canção de ninar, embala a cena.

Mais à frente do filme, o cobrir dos espelhos atua como as cortinas de um teatro se fechando, ao mesmo tempo que retoma a tradição judaica dos enlutados de cobrirem os espelhos nos 7 dias de shivá para que os espíritos não enxerguem seus reflexos e assim possam seguir em paz.

Abacateiro, teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão. (Gil, 1975)

Referenciada em trabalho de videoartistas como Aline Mota,Pippilotti Rist, Letícia Parente e Anna Bella Geiger, as cenas performáticas, que se concentram principalmente no final do vídeo, trazem ao trabalho uma quebra da linguagem documental e uma aproximação à videoarte, buscando, a partir da performance, a elaboração de uma nova camada, que potencializa a sensorialidade e permite um trânsito mais fluído entre a vídeo-performance e o cinema.

Uma tecitura de imagem que desvenda o mais íntimo de mim, ao mesmo tempo que revela histórias que poderiam ser de muitos. Enfatizada por uma paleta de cores que passa pelo vermelho, azul, marrom e verde claro, junto com uma fotografia muitas vezes desfocada e desbotada que ajudam a coexistência de tempos distintos.

No som, a narração se mistura com músicas de origem judaica e ruídos, que constroem o incômodo dos desencontros e desconexões das lembranças e memórias com a realidade.

A verdade é que sou esse caldo todo, lembro para ressignificar saber de onde vim, contextualizar o caminho percorrido e poder estar inteira aqui, nesse momento. As lembranças me permitem elaborar minhas questões, angústias, paranoias. Lembrar também permite fazer o mesmo sem repeti-lo.

Considerações Finais

Querida,

Te chamo assim, Violeta, por te imaginar mulher. Você ainda não chegou mas te enxergo. Escrevo essa carta incentivada a desejar o futuro.
A verdade é que essa história não tem início em 2018, nem mesmo em 2019, essa é uma divisão meramente metodológica, já que não é possível, em um trabalho que transita pelo campo da memória e da subjetividade, fazer uma separação rigorosa e detalhada de tudo aquilo que o perpassa.
Se falo hoje de Agnés Varda, é porque, ao me expandir, me encontro com ela, nossas margens se tocam, mesmo quando apenas delicadamente.
A arte que me serve de inspiração e referência é a manifestação do lugar dela (nosso) na sociedade. Quando se manifesta se desloca de um lugar social imposto de outro. O outro se manifesta, e se manifestando deixa de ser o outro, muda de posição.
Acredito que as artistas com as quais eu me identifico fazem, através da profanação de seu lugar social nas suas criações artísticas, um manifesto. Varda recria personagens mulheres e até a si mesma, mulheres que buscam nas coisas sagradas o mundano para poderem ser elas, e as outras, as protagonistas de novas histórias.
Eu ainda gaguejo. Minhas profanações são também tropeços, restos, vísceras, escolhas equivocadas, silêncio... teve um tempo em que minha a escrita era oculta, uma terceira pessoa que não existia. Ainda me dói a ideia de início, meio e fim.
Aos 33, uma historia já está contada e não sei dizer se é início... meio... fim. Quantas páginas? Quantos caracteres? Quantas palavras?
A dor da escrita se conjuga com a dor da exposição, quem me autorizou a ser artista? Varda? Minha mãe? Minha analista? Meu orientador? Eu mesma é que não fui...
Memória é esse espaço vazio que, aos poucos, vai sendo preenchido. Fragmentos que misturam tempos. Minhas histórias são também suas memórias.
Eu mesma nunca soube falar de mim sem evocar minhas raízes, meus avós fugidos da guerra, a morte do meu pai...
Aprendi há pouco a também evocar o futuro. Me desculpe se Violeta é um nome muito pesado para alguém que apenas flutua, mas há que se ter pretextos fortes para seguir.
Talvez você tenha reparado que repito muitas vezes a palavra inquietações, mesmo na busca profunda por sinônimos, não achei nenhum que traduzisse melhor o que me causa a vida. E estou tão afeiçoada a elas, que me parece não haver motivos para substituas.
Se inquiete também, mas não o faça sozinha. Procure inspirações, aquelas com quem você possa dialogar e se deixar ser atravessada mesmo quando tudo isso só puder acontecer dentro.

Beijos Grandes

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04057/2020.
This work is financed by national funds through the FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., under the scope of the project UIDB/04057/2020.

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