AVANCA | CINEMA

Escrita de argumento com atores: uma prática experimental em análise

Nuno Tudela

Escola Superior de Media Artes e Design do P.PORTO, Portugal

Abstract

Within writing for film fiction, the building of characters can still prove to be the basis and starting point for the defining and construction of a narrative structure. The film character has the function of allowing the screenwriter to evolve into fantastic universes without disobeying the principles of verisimilitude.
However, there are new paths of narrative research, based on collaborative processes with actors that give substance to lived experiences and the consequent materialization in film.
The Cinema of João Canijo mirrors this symbiosis between the author and the actor and that has evolved to a debugging of the process in his last films. Inspired by Canijo’s working style, this essay aims to analyze, step by step, a methodological proposal to write a screenplay and the built of characters, based upon improvisation sessions with actors and recorded on video, sustained on a practic based research.

Keywords: Screenplay, Characters, Actors, Writing, Method

Introdução

A criação de personagens e a escrita de um argumento estão intimamente ligadas. No entanto a criação das personagens também pode ser fruto de desenvolvimento colaborativo, a partir do momento que o ator ou a atriz entram no processo de construção do filme. Mas o que para uns representa o ponto de partida, outros preferem criar as personagens à medida que o enredo se vai desenvolvendo.

Quando a ideia original está determinada, existem globalmente duas categorias de argumentistas:os que escrevem a partir de uma personagem e os que se inspiram numa situação. (Parent-Carrière, 2014, 80)

Normalmente o autor do argumento cinematográfico encontra um método de trabalho que vai conduzindo o processo de criação das personagens a partir da existência prévia de um enredo ou é deste que que as personagens se desenvolvem. Como Parent-Carrière questiona “Por onde começar, a personagem ou o enredo?” (Ibid.), o argumentista deve tomar uma decisão. Ou deixa que o conjunto de ações ‘moldem’ a personagem, ou deixa que a psicologia da personagem ‘conduza’ a história. Esta dicotomia de escolha normalmente pende para uma hegemonia da criação das personagens antes do enredo. Mas alguns autores como John Cassavetes ou mais recentemente Mike Leigh, encetam métodos de trabalho particulares, onde as personagens são criadas e trabalhadas a partir do ator escolhido e não o contrário. Há um choque com o paradigma, o ‘modelo dominante de Hollywood’ para o cinema de ficção narrativo, ou seja, a necessidade da realização de castings para o papel.

Numa perspetiva da realização, segundo Michael Rabiger, e partindo do princípio que as personagens surgem primeiro que o enredo, o objetivo de uma audição é encontar a personagem:

The object of auditioning is to find out as much as you can about the physical, psychological, and emotional make-up of each potential cast member so you can commit yourself confidently to the best choice. (Rabiger 2003, 266)

O que alguns diretores preferem é escolher primeiro o elenco e criar o enredo a partir da seleção de atores. Isto permite que, com o elenco, e num regime de criação colaborativa, se desenhe o perfil das personagens e se construa a história.

Em Portugal alguns realizadores/argumentistas já experimentaram métodos próprios de trabalho, dando prioridade à escolha dos atores, deixando que o texto dos diálogos surja como resultado da sua influência ou colaboração, muitas vezes fruto de um trabalho de improvisção. Marco Martins, Pedro Costa ou João Canijo, cada um praticando o seu estilo próprio de mise-en-scène, conseguem resultados notórios, normalmente tendo como aliado privilegiado o tempo de maturação de ensaios (Martins) ou um contacto íntimo e prolongado ainda que com a aparente ausência de uma plano de preparação (Costa). Mas no exemplo de Canijo, que ao experimentar aquilo a que muitos chamam método, “de ensaios longos com atores, que constroem com o realizador as cenas que compõem o filme” (Ribas 2011, 3) que iremos analizar e procurar inspiração para seguir um modelo de trabalho baseado na prática.

Um “método” em permanente transformação.

Em entrevista para a página web das Lessons in Film, Art and Multimedia, do projeto pedagógico da Universidade Lusófona1, João Canijo admite não se tratar propriamente de um método particular nem único; “o método tem a ver só com o trabalho com os atores para desenvolvimento e construção dos personagens.” (Vale 2012), Aquilo a que o realizador se refere começa a ganhar expressão e importância em filmes como Ganhar a Vida (Canijo 2000), onde Rita Blanco interpreta a uma portuguesa em França depois de ter passado um periodo de convívio com a comunidade portuguesa em França; segue-se Noite Escura (Canijo 2004) tendo sido proporcionados ‘estágios’ aos atores em ambientes de casas de alterne e depois, em Mal Nascida (Canijo 2007) nos quais os atores viveram em traz-os-montes em situações próximas do contexto da história. E quando questionado se os atores reescrevem os diálogos com ele, Canijo concorda que sempre fez isso

“(...) mas até ao Mal Nascida tive sempre um argumentista (...) com quem escrevia um argumento e depois usava. Era um trabalho de colaboração, sempre foi. (...) E chegávamos a sete, oito versões, que eram depois trabalhadas, em termos de diálogos, com atores.” (Pereira e Dias 2006, 124).

Mas foi em 2006, num desafio feito ao realizador pela direção do Festival Temps d’Image, onde tem a oportunidade de fazer um verdadeiro laboratório de criação: duas atrizes, Rita Blanco e Vera Barreto, establecem um aceso diálogo entre ‘mãe’ e ‘filha’, filmado em vários ensaios improvisados num apartamento de Lisboa e posteriormente montados com o mínimo de cortes possíveis. Durante o Festival, no palco do Centro Cultural de Belém, as atrizes interpretam o texto da conversa, no mesmo momento que o público assistia ao filme projetado:

(...) estão, em simultâneo, em grande plano numa tela a fazer da mesma mãe e da mesma filha. A mãe e filha só existem, contam, por causa das actrizes: antes do texto, que foi sendo criado por elas ao longo dos ensaios, antes mesmo das personagens, a ideia era ter Rita Blanco e Vera Barreto em palco. As duas foram-se conhecendo durante o processo. Definiram-se os temas, eliminaram-se e acrescentaram-se coisas e as personagens foram-se aprofundando: começou de uma maneira tipificada e foi “melhorando”. (Henriques 2006, )

O processo segue com a reescrita dos diálogos, pelo qual o realizador organiza os temas conversados e depois são retrabalhados pelas duas atrizes, numa constante contrução das “personagens”.

Acima de tudo, acrescenta João Canijo, as actrizes “foram reagindo uma à outra enquanto personagens” (...) E explica: “Dependem das circunstâncias e das pessoas e não vale a pena impô-las”. Rita Blanco completa: “Os actores são pessoas e é fundamental que estejam bem claras as suas escolhas em cada trabalho que fazem”.

O filme aparece para mostrar o processo e é ainda “uma partida que lhes fiz e que só me interessa a mim”, diz o realizador: a ideia é o espectador escolher ouvir em alguns momentos o filme e noutros o que se passa em palco. João Canijo vai, aliás, transformar o filme numa curta-metragem. Chama-se Mãe Há Só Uma. (id., ibid.)

Nos filmes seguintes, o processo ensaiado na curta-metragem vai evoluir. Em Sangue do Meu Sangue (Canijo 2011a), o realizador proporciona ao elenco uma residência artística no bairro do Padre Cruz, tendo mantido os atores em personagem a habitarem no próprio local onde o filme viria a ser feito, a viverem o dia-a-dia, o ambiente e o contexto da história. E pedindo-lhes que estivessem em personagem, todo o tempo.

É um processo com várias fases e entre cada fase tenho de digerir e transcrever tudo o que me interessa. Para ter um papel feito para a fase seguinte, e assim sucessivamente... por isso demora tempo. Mesmo depois das improvisações com os atores há uma reescrita. É aqui que entra a minha manipulação. A partir do momento que escolho, entre o que me interessaestou a fazer uma escolhaque não é a dos atoresm que é a minha; a partir do momento quem que depois das improvisações escolho e reescrevo as frases que me parecem melhores, estou a manipular o que eles fazem. O que não impede que tudo lhes seja profundamente inerente e genuinamente deles. (Câmara 2011, 5)

Os atores são também responsáveis pela escrita do argumento. Canijo revela que as personagens surgiram primeiro e que procuraram o tipo de história que interessaria a cada uma delas contar. Citando Ingmar Bergman, “tem que haver um conceito fundador, e o conceito fundador era o amor incondicional.” (Pereira e Dias 2006, 124) Esta fase de procura leva três meses e sessenta horas de gravações, levando-o à estrutura do argumento. A fase seguinte, já com a estrutura feita, foi dedicadas a conversas com o elenco e à discussão do que se passava em cada cena. E surge outra versão do argumento.

Numa terceira fase com as cenas escritas, improvisámos as cenas. Isto durou cerca de quatro meses. Do improviso, montámos as gravações, e eu escrevi a versão pré-final do argumento. Essa versão ainda foi discutida e corrigida com as personagens – já não eram os actores. A partir de 19 de Abril de 2010 vamos ter o mês de ensaio final, que consiste em apurar as cenas. (ibid., 124-125)

Parte do porcesso ficou registado no documentário Trabalho de Actor, Trabalho de Actriz (Canijo, 2011b), onde o realizador revela alguns momentos chave de conversas, das improvisações para a construção das personagens e dos ensaios que os atores mantiveram durante os dois anos, tempo que durou todo o processo.

No projeto seguinte, É o Amor (Canijo 2013), num tom híbrido e indefenido que balança entre a ficção e o documentário, Canijo integra a atriz Anabela Moreira na comunidade das Caxinas, num processo idêntico ao de um estágio profissional, permitindo que a atriz conviva na experência diária com as vendedoras de peixe - as atrizes–sociais com quem contracena no filme. Este contacto expressa-se tanto a nível profissional como na partilha de outras experiências, de caráter mais pessoal com as mulheres e seus familiares, em Vila do Conde. Canijo dá também uma pequena câmara de vídeo à atriz, que vai em simultâneo registando testemunhos da sua esperiência profissional e emocional, numa espécie de diário pessoal íntimo.

Esta experiência com recurso à tecnologia, feita em 2013, evolui e dita regras mais elaboradas e complexas no processo utilizado no projeto seguinte, Fátima (Canijo 2016), mas já previsto cinco anos antes:

Vou continuar com o meu método, mas noutro escalão: fazer a mesma coisa mas com um argumento à partida, mas desconstruindo-o. O argumento vai ser apropriado pelas atrizes à maneira delas, com as transformações que elas criarem, mas a partir de uma ideia germinal muito forte para cada uma delas. (Câmara 2011, 6)

Na verdade, o argumento foi sendo escrito, graças a uma comunicação diária que as atrizes estabeleceram com o realizador, ao enviar-lhe diariamente videos feitos com telemóveis, durante peregrinações reais, infiltradas em grupos de peregrinos verdadeiros e depois noutras, peregrinações mais curtas e encenadas, aqui realizadas em conjunto, como ele avança na entrevista dada em Fevereiro de 2016:

Canijo: (...) desses diários, feitos por cinco atrizes, (...) já tenho duzentas e cinquenta páginas de argumento. (...) e dessa romaria de maio de 2015, é como se fosse uma improvisação geral do argumento. E daí sai o argumento definitivo. E depois transcrevo tudo...

Filipe Vale: E como é que a partir desse texto constróis o argumento, de facto, do filme?

JC: (...) Neste momento das duzentas e cinquenta páginas já posso estruturar aquilo por cenas. Quando as outras quatro (atrizes) que faltam forem em outubro, fico com o mosaico completo. Depois é colar o puzzle. E depois, na “peregrinação falsa”, segue-se mais ou menos o guia daquele puzzle. (...) E claro que, durante cinco dias que vão ser de “peregrinação”, vão-me sair cerca de quinhentas páginas... Dessas quinhentas páginas limpo e... Fico com o argumento. (Vale 2012)

Durante o processo, o texto sofre um retorno ao longo da sua criação, transformando-se. Numa análise possível de percurso do texto, podemos observar as seguintes fases: a) as atrizes gravam as suas performances e impressões. Enquanto intérpretes, improvisam uma situação vivida e real. Dos seus testemunhos; b) o autor do argumento ‘transcreve’ os textos e diálogos recebidos dos registos; c) outros registos são acrescentados ao texto anterior, a partir de outros testemunhos e experiências reais; d) estes elementos são ‘editados’ com o texto anterior; e) o texto resultante é devolvido às atrizes que o vão reinterpretar numa nova situação vivida, desta vez encenada, mas semelhante às situações reais; f) do novo registo, vai ser escrita a versão final do argumento.

Sobre improvisação

Qualquer metologia sustentada em sessões de improvisação precisa de um periodo de tempo prolongado de trabalho de pesquisa, juntando atores e diretor em sessões de ensaios, anteriores à filmagem. Para o ator contemporâneo, há muitas formas e modelos de improvisação que podem ser utilizados e podem ser agrupados em dois tipos distintos;

The first is for the actors and director to choose circumstances that are similar but not the same as the situation of the play. (...) The second type of improvisation has to do with the actors continuing the logical sequence of events and the actual meaning of the play as set down by the author. (Easty 1992, 112)2

No primeiro caso, permite-se a descoberta de fugas ao foco e do pensamento lógico por parte dos atores envolvidos no projeto; no segundo enceta-se um tipo de improvisação que permite ao ator, usando as suas próprias palavras, envolver-se diretamente com o sentido real do texto, antes de qualquer processo de memorização do mesmo. Este, permite também proporcionar uma escuta e reação mais espontânea na contracena, como acontece no dia-a-dia.

Cruzamentos improváveis.

Cruzar Syd Field, considerado por muitos o guru dos seguidores do modelo narrativo clássico, com Konstantin Stanislavski, o autor que revolucionou o modelo clássico de interpretação para teatro poderá parecer um pouco contraditório. No entanto, se consideremos uma frase-chave do americano, na qual defende que “The essence of character is action—action is character. Film is behavior, right; what a person does, and not necessarily what he/she says, is who he/she is.” (Field 2005, 206) Cruzando este princípio, que a personagem é o resultado das suas ações e o Método da Ação Física de Stanislavski, na qual o ator explora o seu interior para trazer a ação visível, teremos uma base para a experimentação, sustentada na ação. Por outro lado, levar-se-á a cabo um modelo sustentado em improvisção, dando espaço e liberdade ao interprete para participar criativamente na criação da personagem através da ação.

It is impossible separate an experience from its phisical expression. Stanislavski realized that when an actor on stage executes only physical movements, he violates the psychophysical union and his performance is mechanical, dead. (Moore 1984, 18)

Acrescenta que “it is impossible to build a character only with the body.” (ibid.) e que não se pode subestimar a importancia do treino do corpo do ator. O corpo fornece uma grande quantidade de informação visual. E através de sessões de ensaio filmado, poderá experimentar-se um fluxo de trabalho com atores que pode ser esquematizado da seguinte forma:

Estímulos (Argumentista) -> Ações (Atores) -> Respostas -> Análise / Escrita (Argumentista) -> Novos Estímulos -> Novas Ações (Atores) -> Análise / Reescrita (Argumentista)...

Este esquema poderá prolongar-se em novas sessões de trabalho, que retornam sempre ao ponto “análise”, promovendo de imediato uma reescrita do texto do argumento - e por aí adiante.

Réplicas

Num sentido mais alargado do termo, replicar, para além de significar contestar pode também significar reproduzir por repetição3, que, por sua vez, é a expressão que os franceses usam para ensaio 4.

O termo é aqui utilizado nos dois sentidos: enquanto uma reprodução do processo que Canijo vai experimentando e transformando, nas suas variantes; mas também utilizado pela importância que o momento do ensaio representa para a experiência pedagógica que trazemos a análise. Sob o pretexto da realização de um módulo de escrita com atores, para a Pós-graduação de Escrita em Argumento da Escola Superior de Media Artes e Design no final de 2018, início de 2019, decidiu-se experimentar um cruzamento entre a escrita e a direção, de forma que os formandos fugissem a um processo mais convencional de criação narrativa e de desenvolvimento das personagens. Na base de trabalho, foi adaptado o modelo de escrita Instant Story de Michael Rabiger, proposto na sua obra Developing Story Ideas (Rabiger 1998, 21-28). Trata-se de uma tarefa de grupo, usada em sessões de formação, para grupos de quatro alunos e através da elaboração de cartões impressos correspondentes a categorias, uma por cada letra da sigla CLOSAT:

These journal observations will be used to play “Instant Story” in class, and they will be a bank of ideas for your writing. It will speed retieval of particular items if you tag each with one or more of these “CLOSAT” categorizations in the margin:

C = description of Characters who could be used in the story.

L = interesting and visual Locations.

O = curious and evocative Object.

S = loaded or revealing Situation.

A = unusual or revealing Act.

T = any Theme that intrigues you or that you see embodied in life. (Rabiger 1998, 12)

Propôs-se aos formandos que desenvolvessem um argumento a ser escrito em regime colaborativo, com um conjunto de atores que iriam trabalhar as personagens através de improvisações sujeitas a estímulos, dados pelos formandos. Os estímulos iriam obedecer a uma base construída a partir do padrão das seis categorias, inspiradas no trabalho preparatório a que Rabiger designa de “The Writer’s Journal” (Rabiger 1998, 33).

Sessão 1: PLOSAT

A sigla parece um nome misterioso, de uma empresa obscura, saída dum filme da saga 007 mas não é mais do que o resultado da tradução aportuguesada da sigla “CLOSAT”, usada por Rabiger (ibid.), na sua proposta Instant Stories, para a construção de personagens. Na adaptação da designação do processo de escrita para histórias instantâneas para o português, a letra “C” transforma-se em “P”, fazendo corresponder esta categoria a Personagem. As restantes letras da sigla irão ser mantidas, nas suas correspondentes: Local, Objeto, Situação, Ação e Tema (PLOSAT).

Nesta primeira sessão de trabalho, os formandos/argumentistas preencheram os cartões com dados escritos de forma sintética, alimentando livremente cada categoria. Foi-lhes pedido que cada um criasse um cartão por cada personagem, apenas com traços básicos, motivados a partir da simples observação de uma fotografia de rosto de cada ator.

Figura 1 – Cartões PLOSAT criados pelos formandos. A verde, os que foram utilizados, resultado de uma escolha cega.

Há duas formas de aproximação a um casting, formulado em duas questões: “1. Can this actor play the father in my script? (…) 2. What kind of father would this actor give in my film?” (Rabiger 2003, 266). No caso da primeira, parte-se do princípio que a personagem está criada e o ator será escolhido em função de parecer certo ou errado para o papel; No presente caso, preferiu-se adotar um princípio que obedecesse à segunda questão, já havendo uma referencia física do ator, tornando-o num colaborador ativo na construção da personagem.

O trabalho com Atores

Character should not be confused with caracterization, which consists of the observable qualities and traits of an idividual. (…) With the exception of gender and age, physical traits are largely unimportant in a screenplay. (Gurskis 2007, 24).

Para a criação das personagens, os critérios para a escolha dos atores que colaborariam nesta experiência iriam ter como princípio o escalão etário e o género, tal como Gurskis sugere. No entanto, o grau de formação e a experiência profissional poderiam trazer a oportunidade de se trabalhar com diferentes níveis de exigência e complexidade, de forma a proporcionar um conjunto de variáveis simples mas distintas. Os atores contratados foram três: duas atrizes, uma mais velha, de 40 anos de idade, com uma maior experiência profisisonal em teatro cinema e televião e uma outra, mais nova, de 24 anos, recém formada em interpretação de teatro, com uma menor experiência de interpretação em cinema; e um ator de 26 anos de idade, com alguma experência em palco e também para câmara. Mas, sobretudo, depositou-se uma clara confiança nas suas capacidades de improvisação. Seguramente eles trariam à experiência a mais valia necessária ao sucesso da formação. Além disso, havia à partida uma garantia: para os atores também iria ser um desafio motivante.

O desenvolvimento de personagens pretendia-se que resultasse de um processo de criação colaborativo entre autores/formandos e os atores.

Ultimately, a character is defined by the choices made during the course of the screenplay’s action.” (ibid., 25)

Sessão 2: conversas preparatórias com atores

Nesta segunda sessão de trabalho, as conversas5 que os formandos tiveram com os atores serviram essencialmente para passar os estímulos necessários para que os atores improvisassem. Resultaram de uma escolha aleatória dos cartões das categorias PLOSAT: a Personagem ‘Maria’ terá como traço principal ser ‘uma assassina em série’; a Personagem ‘Joana’ irá apresentar-se como ‘uma atriz falhada suicida’; a Personagem ‘Carlos’, será ‘um bêbado com sede’; o Local passa-se ‘à porta de um bar de strip’; o Objeto relevante na cena é uma ‘conta do telemóvel’; a Situação vivida na cena será durante a ‘noite de passagem de ano’; a ação obrigatória a incluír será ‘festejar com uma dança’ e por fim o Tema que conduz a cena é ‘a grave propagação da existência de vampiros nazis’. Os atores esclareceram algumas dúvidas, em conversa com os argumentistas e autores dos cartões, como a diferença entre a personagem ser ‘atriz suicida falhada’ ou ‘atriz falhada suicida’. Foram definidas as regras básicas para que os atores fizessem as suas improvisações. Os argumentistas separam-se em dois grupos, com o objetivo de vir a criar duas cenas e, dessa forma, proporcionar um trabalho mais próximo e intenso entre os argumentistas e os atores. Um grupo escreveria a cena que se passaria imediatamente antes da meia noite e o outro iria trabalhar sobre o momento logo após a meia noite. A celebração da passagem do ano seria omitida em ambas as cenas. As cenas iriam complementar-se fazendo com que as personagens fossem as mesmas, de uma cena para a outra. Entre as duas cenas haveria um hiato temporal que iria omitir o momento do passar da meia-noite. Essa elipse narrativa seria garantida pela quebra das duas cenas.

Sessão 3: improvisações com registo de imagem e som

Como preparação, procurou-se um local no edifício que simulasse a entrada de um bar de strip. Esta formação aconteceu no inverno e à noite. Por esse motivo, e especialmente por se tratar de um laboratório prático, as condições de produção foram reduzidas ao essencial de forma a se privilegiar um trabalho centrado na interpretação e direção dos atores. O objetivo não era o de recriar com rigor um espaço que representasse o local mas sim registar as performances dos atores em contracena. As improvisações foram gravadas em vídeo com uma simples câmara DSLR, num registo integral e sem cortes, recorrendo a uma escala de plano de corpo inteiro, cobrindo desta forma, no mesmo enquadramento a totalidade do desempenho dos três interpretes. Fez-se também uma gravação audio com um gravador de mão, para proporcionar um registo mais rigoroso e permitir a perceção mais clara dos diálogos que teriam que ser transcritos na integra. A sincronização da imagem e som foi garantida com uma claquete simples6, feita no início de cada gravação.

Na primeira cena, antes da meia-noite, os atores fizeram uma improvisação com cerca de oito minutos e meio de duração; o espaço foi explorado desde o interior do bar de strip mas centrou-se maioritariamnete à porta deste; o objeto foi introduzido mas teve uma importância menor na cena; no final da cena todas as personagens entram no bar de strip para celebrar a meia-noite com a dança que ainda começa no exterior.

A segunda cena, após a meia-noite, durou cerca de cinco minutos e meio e concentrou-se apenas na realção entre as duas personagens femininas, novamente à porta do bar de strip. Por comum acordo dos argumentistas e atores, a personagem ‘Carlos’ foi dispensada da cena.

Sessão 4: análise e transcrição dos registos

Cada par/grupo de formandos garantiu a transcrição dos diálogos da cena que trabalhou. Os dados recolhidos foram transpostos diretamente num ficheiro da aplicação Celtx, seguindo a formatação para um modelo de documento ‘filme’. A prioridade era a de levantar os diálogos integralmente. Os diálogos foram ouvidos com maior clareza através do ficheiro audio realizado com um gravador de mão. Na parte de imagem, o visionamento do ficheiro vídeo permitiu transcrever com mais apuramento as ações e os gestos que os atores experimentaram durante as improvisações. Nestes detalhes, registados pelo vídeo, foram priveligiados momentos com importância dramática de forma que se pudessem desenvolver algumas linhas de ação do argumento.

Sessão 5: discussão dos resultados e estímulos de retorno

Antes de se fazer uma nova sessão de improvisção com os atores, houve uma reunião onde foram debatidos os resultados obtidos, através da uma análise e escuta dos dados registados. Fez-se o visionamento em conjunto das filmagens e dos ficheiros registados (audio e vídeo). De seguida, os atores fizeram uma leitura dos diálogos transcritos. Todas as dúvidas e as questões levantadas foram discutidas e esclarecidas entre os argumentistas e os atores e foi feita mais uma sessão improvisada, baseada na cena da primeira sessão, tendo sido permitidas alterações, sob um certo limite previamente estabelecido. Neste momento ainda não tinha sido solicitado que os atores decorassem diálogos ou recorressem a qualquer tipo de memorização das cenas. Contudo, seria possível que por já as terem interpretado, os atores ficassem influenciados pelo seu desempenho na primeira versão. Levantou-se então a questão, se ao assistirem ao visionamento das suas performances se poderiam ficar condicionados nas futuras sessões de improvisação. Discutiu-se com os interpretes e a decisão foi unânime. Os atores fariam o visionamento dos resultados, em conjunto com os argumentistas. Confiou-se na capacidade dos atores manterem o distanciamento necessário em relação aos pormenores das suas atuações. Por outro lado, este visonamento iria ajudá-los a reter os objetivos gerais das cenas, uma vez também não iria haver tempo útil para se fazer um trabalho mais profundo sobre a versão atual dos textos.

Sessão 6: novas improvisações registadas com imagem e som

Ainda no mesmo dia, fez-se uma nova sessão de improvisações, depois de discutidos os novos estímulos para a (re)interpretação das duas cenas. Desta vez, assinalou-se como maior destaque o que seria para manter do texto transcrito, apenas em pequenas referências e dar-se-ia de novo espaço aos interpretes para a introdução de novos elementos nas suas prestações/construções. Seria valorizada a contracena, pela escuta e na resposta, entre atores. Como defende Syd Field Acção–reação - é uma lei do Universo.

If your character acts in your screenplay, somebody, or something, is going to react in such a way that your character then reacts—thus creating a new action that will create another reaction.Your character acts, and somebody reacts. Action-reaction, reaction-action (…) (Field 2005, 206)

Nesta sessão, foram registados dois takes por cada uma das cenas, apenas havendo uma breve pausa para indicações e novos estímulos. Isto permitiu aos argumentistas uma reação de retorno imediato ao desempenho de cada ator. As indicações incidiram nos melhoramentos ou detalhes a alterar da primeria para a segunda repetição. Para a segunda cena, ‘após a meia-noite’, seguiu-se o mesmo princípio de trabalho, tendo resultado também dois takes da cena.

Última etapa: Reescrita a partir do segundo registo

Na última fase (não presencial7) do processo experimentado, pediu-se aos formandos, ainda a pares mas já sem o contacto com os atores, que fizessem evoluir o texto mas já com o desenvolvimento de ações nas cenas, criando novas falas. Esta “versão final” 8 já não foi revista ou lida pelos atores.

Conclusão

Na rodagem, no entanto, nada vai ser improvisado, porque a improvisação é uma coisa intuitiva, não é uma coisa reflectida. Portanto não é propriamente uma interpretação, antes uma acção. É só agir. Para um actor e para mim é muito mais interessante ter um artista a interpretar do que a improvisar. (Mendes 2006, 125)

A partir da evolução do método utilizado por João Canijo, no qual a escrita do texto de um argumento pode resultar de um processo colaborativo com atores em fase anterior ao periodo das filmagens, a proposta metodológica de trabalho aqui ensaiada pretende ser um primeiro passo de um pocesso em construção, que irá fazer parte obrigatória e ganhar consistência num estudo mais aprofundado sobre a comunicação entre atores e realizadores. Irá sempre haver uma construção de personagens que vai acontecer e acompanhar a fase de escrita do argumento. Isto inevitavelemente irá condicionar o desenvolvimento da estrutura narrativa e moldar o enredo. No final pretende-se que a escrita do argumento seja resultado de um processo orgânico de retorno criativo e, ao mesmo tempo haja uma participação colaborativa entre atores e o grupo formado entre argumentista e realizador9, sustentando-se em sessões de improvisação documentadas por processos tecnológicos e permitindo que o texto seja construído através de um caminho que balança entre os interpretes e o(s) argumentista(s) num permanente caminho com retorno criativo.

Notas Finais

1 As Lessons in Art, Film, Video and Multimedia são um projecto pedagógico, produzido no âmbito do ESSEMBLE e do KINOEYES | KEM - The European Movie Masters, cujo principal objectivo é disponibilizar ao público em geral os testemunhos, a experiência e o trabalho de vários profissionais de referência não só em Portugal mas em todo o espaço Europeu. Esta colecção, em livre acesso, representa também um contributo para um debate e uma reflexão em torno das artes da imagem em movimento. (texto do site, disponível em https://www.ulusofona.pt/lessons)

2 Embora este exemplo, dado por E. D. Easty, se aplique ao uso de textos para o teatro, segundo o The Method e usado no Actors Studio, pode perfeitamente ser aplicado para textos de cinema, tal como o próprio Actors Studio o tem feito, desde a sua criação.

3 https://dicionario.priberam.org/replicar

4 https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/r%C3%A9p%C3%A9tition/68384#synonyme

5 Utiliza-se ‘conversas’ reservando-se a expressão ‘dialogos’, para o elemento do argumento cinematográfico a ser desenvolvido.

6 Um dos atores bate com as palmas da mão, registado em simultâneo pela câmara.

7 Os textos foram escritos “em casa” e enviados já terminados.

8 A designação aqui utilizada não deve ser entendida como aquilo que normalmente se designa de final draft; foi reconhecido por todos os participantes que nesta última etapa do processo de formação de escrita com atores, os textos ainda não se encontrariam prontos para serem trabalhados para a realização de um filme.

9 Podendo ser a mesma pessoa.

Bibliografia

Câmara, Vasco. 2011. Entrevista João Canijo in Público P2 de 21 de Setembro de 2011. Pp. 4-6

Carrière, Jean-Claude, Bonitzer, Pascal. 2016. O Exercício do Argumento. Trad. João Carlos Alvim. Lisboa: Texto & Grafia.

Churcher, Mel. 2015. A Screen Acting Workshop. London: Nick Hern Books.

Easty, Edward Dwight. 1981. On Method Acting. New York: Ivy Books.

Field, Syd. 2005. Screenplay: The Foundations of Screenwriting. New York: Random House.

Gurskis, Dan. 2007. The Short Screenplay: Your Short Film from Concept to Production. Mason: Course Technology Cengage Learning.

Henriques, Joana Gorjão. 2006. João Canijo e Rita Blanco improvisam conflito entre mãe e filha no CCB in Ípsilon de 14 de outubro de 2006. Disponível online em http://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/joao-canijo-e-rita-blanco-improvisam-conflito-entre-mae-e-filha-no-ccb-102169

Mackendrick, Alexander. 2005. On Film-making: An Introduction to the craft of the director, New York: Faber and Faber.

Mamet, David. 1991. On Directing Film. New York: Penguim Books.

Mamet, David. 1999. True and False. New York: First Vintage Books.

Moore, Sonia. 1984. The Stanislavski System: The Professional Training of an Actor. New York: Penguin Books.

Parent-Altier, Dominique. 2014. O Argumento Cinematográfico. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Texto & Grafia.

Pereira, Carlos, Dias, Vanessa Sousa. 2013. João Canijo: “O como é muito menos importante do que o porquê” in Mendes, João Maria (coord.) Novas & Velhas tendências no cinema português contemporâneo. Lisboa: Grádiva.

Rabiger, Michael. 1998. Developing Story Ideas. Burlington: Focal Press.

Rabiger, Michael. 2008. Directing: Film Techniques and Aesthetics, Burlington: Focal Press.

Ribas, Daniel. 2011. Identificação de um filme: sobre «Sangue do Meu Sangue». A Quarta Parede. Disponível em http://hdl.handle.net/10198/6878

Filmografia

Ganhar a Vida. 2001. De João Canijo. Portugal: NOS Lusomundo. DVD.

Noite Escura. 2004. De João Canijo. Portugal: NOS Lusomundo. DVD.

Mal Nascida. 2008. De João Canijo. Portugal: Costa do Castelo. DVD.

Mãe Há Só Uma. 2007. De João Canijo. Portugal: Festival Temps d’Image. Curta-metragem.

Sangue do Meu Sangue. 2011a. De João Canijo. Portugal: Midas Filmes. DVD.

Trabalho de Actor, Trabalho de Actriz. 2011b. De João Canijo. Portugal: Midas Filmes. DVD.

É o Amor. 2013. De João Canijo. Portugal: Midas Filmes. DVD.

Fátima. 2016. De João Canijo. Portugal: Midas Filmes. DVD.

Vale, Filipe. 2016. Entrevista a João Canijo in Lessons in Film, Art and Multimedia. Lisboa: Universidade Lusófona. Disponivel online em https://www.ulusofona.pt/lessons/joao-canijo.