Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

From the verses to the stages and from the stages to the screens: The Intertextuality process in the film “O Auto da Compadecida” (2000)

Dos versos aos palcos e dos palcos às telas: O processo intertextual do filme “O Auto da Compadecida” (2000)

Laura Brandão do Brasil

Universidade Federal Fluminense, Brasil

Eduarda Pereira de Paula

Universidade Federal Fluminense, Brasil

Mariana Cordeiro de Souza

Universidade Federal Fluminense, Brasil

Lucia Maria Pereira Bravo

Universidade Federal Fluminense, Brasil

Abstract

The film Auto da Compadecida (2000), by Guel Arraes, is an adaptation of the play, which has the same name, written by Ariano Suassuna in 1955. Before reaching the screens of the movie theaters “O Auto da Compadecida” had already been converted to other compositions, as in films and tv shows. Therefore, far beyond being an adaptation based in a single hypotext, the movie end up incorporating characteristics of differents semiotics systems, recovering, specially, the traces of popular northeastern culture, particularly the cordel’s literature - a typical popular literature from the brazilian northeastern region, illustrated by xylography and written in verses. The script by Guel, in collaboration with Adriana e João Falcão, derives from this succession of textual transformations in this trajectory by different semiotics systems, demonstrated in verses, stages and screens. This article aims to analyze the movie script in transtextual perspective according to the theories of languages presented in the book Palimpsests by Gérard Genette. For this purpose, we describe the distinct narrative options that composed the script, in order to approach the adaptive process of the movie based on the classification presented by Genette. Our objective is to analyze the elements that construct the transmutation of the narrative structure of cordel and theatrical narrative in the screenplay of the film, the stylistic transformations and the way that the transtextual relationship of the hypertext under analysis occurs.

Keywords: Auto, Intertextuality, Gennet, Hypotext, Hypertext.

Introdução

O filme “O Auto da Compadecida” (2000), direção de Guel Arraes, foi uma produção com importante impacto cultural para a história do cinema brasileiro, atraindo um público de mais de 2 milhões de espectadores. A adaptação originária da obra de Ariano Suassuna para o audiovisual estreou primeiro como série de TV, na rede Globo de televisão - empresa produtora da série e do longa-metragem. Essa empresa brasileira é uma referência do audiovisual no país, tendo como carro chefe as telenovelas que influenciam no impacto cultural que a produtora possui, incluindo catálogos que são transmitidos internacionalmente e que alcançam grande repercussão no território nacional.

Por sua vez, de acordo com os pesquisadores Alexandre Figuerôa e Yvana Fechine, o diretor Guel Arraes ocupa um lugar de destaque na TV Globo, tendo participado da produção de cinco novelas, seis minisséries, seis séries de televisão, entre diversos outros programas de variedades. Toda sua trajetória dentro da produção televisiva serviu como base para suas criações como roteirista contribuindo para o processo adaptativo do roteiro da peça para a série de televisão (Figuerôa, 2008). Por consequência, a popularidade do “Auto da Compadecida” (2000) esteve diretamente ligada à proximidade do enredo da adaptação com as histórias melodramáticas presentes nas telenovelas, o que facilitou o reconhecimento e familiaridade do telespectador com a narrativa que foi construída (Laia, 2011).

A peça nordestina de teatro “O Auto da Compadecida” (1956), de Ariano Suassuna, também gerou grande sucesso de público, tendo sido adaptada diversas vezes em variados estados brasileiros. Para elaborar a peça, Suassuna utilizou como referência três contos de cordel, em processos de aglutinação, para compor a narrativa; processo este também utilizado para a adaptação cinematográfica que iremos analisar, como já foi ilustrado por Guel em entrevista à ALEXANDRE e YVANA::

Para fazer O Auto, reli tudo do Ariano, inclusive para incorporar no próprio roteiro, porque há vários elementos de outras peças na adaptação. (...) Então, para adaptar O Auto, eu acabei usando um pouco do próprio método de Ariano para construir a peça. Como ele, usei elementos de outras peças aparentadas. (2008, p.301)

Para a produção da peça, Ariano Suassuna realizou o encontro entre suas vivências e os folhetins de cordel. Em duas entrevistas concedidas pelo autor - uma para a professora Irley Machado em 1999 e a outra para o Apresentador Jô Soares em 2000 -, ele relata que os dois personagens principais de sua peça foram baseados em pessoas reais que passaram por sua vida, sendo, João Grillo um jornaleiro “astucioso, vil, brincalhão” (2010), chamado assim pela semelhança com um personagem da literatura de cordel que possuía esse mesmo nome; e Chicó um contador de histórias e mentiroso assumido da cidade de Taperoá, no Estado da Paraíba.

Junto a isso, Ariano utilizou os cordéis “O cavalo que defecava dinheiro”, “Testamento do Cachorro” e o “Castigo da Soberba” como base de seus enredos. A junção desses dois aspectos resultou na obra conhecida como “Auto da Compadecida” que exprimiu nos palcos e, anos depois, nas telas, características marcantes do nordeste brasileiro, em especial da literatura de cordel.

Os folhetins utilizados por Ariano são parte de uma forte cultura literária iniciada na região Nordeste do Brasil que hoje está presente em diversas feiras espalhadas por todo o país. Eles estão pendurados com pregadores de roupa, espalhados pelo chão, ou dispostos nas bancas das feiras, dividindo a cultura do sertão nordestino (Grillo, 2013).

Os cordéis registrados nos folhetins, particularmente os citados, foram de grande importância para a criação da peça e consequentemente do filme. Porém o cordel é um tipo de literatura que ganha vida quando se está fora do papel, através da oralidade, uma vez que manifesta-se nas cantorias e repentes, sua essência está na oralidade e na poesia dá voz:

Os versos são criados para serem ditos, declamados em voz alta. É a voz que será capaz de atrair ouvintes que, mais adiante, comprarão os folhetos e, a partir daí, lê-los. (Fonseca, 2011).

A oralidade possui grande importância na construção da narrativa, tanto da peça quanto do filme. Foi valorizada na elaboração dos diálogos, influenciando fortemente a composição de personagens como Chicó e João Grillo, que muitas vezes lançam mão do recurso da narração como caminhos na construção do enredo. Ademais, percebemos a importância conferida ao ato de narrar, pelas opções feitas na transmutação do texto de Ariano ao de Guel.

Embora nem todas as narrações existentes na peça tenham sido transpostas à linguagem cinematográfica, sofrendo processos de mudança de estilo, aumento e reduções, muitas se mantiveram idênticas ao texto original, como forma de demonstrar a herança da cultura cordelista do nordeste brasileiro, representada no texto original de Suassuna.

Pretendemos abordar neste artigo questões acerca do roteiro do filme “O Auto da Compadecida” (2000) de Guel Arraes, a partir do processo de diálogo que se estabelece entre diferentes textos, desde as adaptações até a obra final sob estudo. Analisaremos possíveis relações presentes nesse processo com os estudos de linguagem feitos por Gérard Genette1. Abordaremos a Intertextualidade entre as obras, considerando as perspectivas intersemióticas que cada etapa traduz, - dos versos proclamados à peça e da peça ao audiovisual - cada qual com seu próprio de sistemas de signos.

A partir dos fundamentos tratados no livro Palimpsestos de Genette, analisaremos a transmutação da linguagem de cordel e teatral para a linguagem cinematográfica, estudando os elementos originários mantidos, os novos elementos inseridos e os elementos interpostos que permitiram a adaptação. Recorreremos também a outros autores como Robert Stam2, para nos auxiliar quanto a essas diferentes linguagens semióticas que as obras percorrem, principalmente na translação da obra para a linguagem audiovisual.

A relação de hipotexto e hipertexto entre as diferentes obras presentes no filme

A construção do longa “O Auto da Compadecida” percorreu um longo caminho que perpassa os versos proclamados, artes cênicas e até mesmo por diferentes formatos audiovisuais, já que antes de seu lançamento na telona, fora serializado para a televisão.

Para elucidarmos as diferentes etapas de cada um desses processos de trasladação de um texto a outro, iniciaremos utilizando os conceitos de Hipotexto e Hipertexto, definidos por Gérard Genette em seu livro Palimpsestos (1982). Esses conceitos nos ajudam a abordar a relação entre dois textos literários, ou não literários, que referenciam de forma direta ou indireta um ao outro, a denominada Hipertextualidade. O texto originário chamaremos de Hipotexto, entendendo-o como obra imprescindível para a criação da obra subsequente, a que chamaremos de Hipertexto.

Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto). (...) Ela pode ser de uma outra ordem, em que B não fale nada de A, no entanto não poderia existir daquela forma sem A, do qual ele resulta, ao fim de uma operação que qualificarei, provisoriamente ainda, de transformação, e que, portanto, ele evoca mais ou menos manifestadamente, sem necessariamente falar dele ou citá-lo. (1982, p. 18)

No debate sobre os diferentes aspectos em que um texto se relaciona, Genette define a Intertextualidade:

Quanto a mim, defino-o de maneira sem dúvida restritiva, como uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro.(1992, p. 14)

É certo que a literatura tem, durante muitas décadas, bebido da fonte das histórias clássicas, inclusive das histórias que se tornaram populares através da oralidade. Aqui, pensaremos em como a literatura está interligada a esse uso de referências para formular algumas de suas maiores obras, dentro do conceito que Genette chamou de hipertextualidade.

Pode ser que a hipertextualidade seja utilizado de maneira mais tímida em algumas obras, em usos como o de inspiração para construção de personagens; outras, organizam a mudança de estilo ou formato, mas mantêm a mesma estrutura narrativa - como se observa nas adaptações de livros para o cinema mas que também pode ocorrer entre obras do mesmo formato, dentro dos diferentes tipos de audiovisual ou em adaptações teatrais, por exemplo.

“Autoral, apenas, é a forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e reescreverá” (2004): é o argumento de Bráulio Tavares para defender as recriações de Ariano, que evocam Shakespeare para justificar a utilização dos textos populares orais na dramaturgia. Tal como o autor inglês, em peças populares como Romeu e Julieta, “O Auto” de Suassuna é baseada em diferentes contos populares que antes de se fazerem presentes na obra do escritor brasileiro, ainda não havia registo na linguagem escrita.

Assim, para discorrer sobre temas mais universais acerca da humanidade, como a fome, a morte, a moral e religião, é natural que os textos tradicionais sejam transformados em textos contemporâneos. Essa reutilização nos permite apreciar as histórias antigas, mantendo-as vivas. Importante afirmar que, apesar da conceitualização para obras literárias, Genette não exclui a possibilidade dessas relações ocorreram para entre diferentes sistemas semióticos, como partindo da literatura para o audiovisual - as transformações estilísticas.

Na interface literatura-cinema essa perspectiva foi muito bem trabalhada pelo teórico de cinema Robert Stam, segundo ele

Pode-se considerar, portanto, que o intertexto da obra de arte inclui não apenas outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, mas todas as “séries” no interior das quais o texto individual se localiza (2003, p. 226).

Para fins de pesquisa e esclarecimento do método utilizado ao longo do artigo, abordaremos primeiramente o caso da peça (“Auto da Compadecida”) e da série de televisão (O Auto da Compadecida). Através da relação direta e declarada das duas obras, em que uma (a peça) serve como base para a outra (série) pensaremos a primeira como Hipotexto (texto A) e a segunda Hipertexto (texto B).

Apesar de ter sido primeiramente desenvolvida para o formato audiovisual serializado, a obra “O Auto da Compadecida” repercutiu com êxito ao se tornar um filme de longa metragem, e esta é a segunda relação que abordaremos neste trabalho.

De acordo com os conceitos apresentados acima, a relação entre a obra serializada e a cinematográfica se definiria por: A série estaria como texto original (texto A), agora Hipotexto nesta relação, e o filme, como o texto derivado (texto B), Hipertexto nesta relação.

É comum trabalhar a transposição de uma obra literária diretamente para um novo formato - seja ele serializado ou o longa -, mas, aqui, não poderíamos deixar de considerar o processo interposto entre o primeiro texto (a obra dramatúrgica escrita por Suassuna) e o produto final. Sendo o longa um produto direto da série, não podendo ter existido sem considerarmos a lógica narrativa na qual ele foi primeiro pensado para acomodar. Assim, consideramos como objeto de nosso estudo o longa “O Auto da Compadecida”, como Hipertexto resultante de diferentes e múltiplos processos, acompanhando o desenvolver da sua construção narrativa a cada texto.

O Auto é uma transcrição brasileira dos contos populares antigos, aqui a inspiração partiu dos cordéis. Para que construísse uma narrativa simples, divertida, que se comunicasse com o povo, Suassuna transforma o texto em prosa em uma estrutura narrativa teatralizada, que pouco possa se falar sobre apropriação ou imitação, já que parte de narrativas milenares, onde se pode encontrar referências em muitas ambientações clássicas.

De maneira mais direta: qualquer texto que tenha dormido com outro texto, dormiu também, necessariamente, com todos outros textos com os quais este tenha dormido (Stam, 2003 ,p.226).

E em “O Auto da Compadecida”, a transtextualidade entrelaça linguagem oral, literatura regional, textos dramatúrgicos e audiovisual produzindo significados peculiares, que resgatam traços da cultura brasileira, notadamente da região do nordeste.

Para que estudemos a construção dessas narrativas, precisamos, antes de mais nada, entender quais são as referências que moldaram nosso hipertexto - o filme. Em alguns casos, de maneira indireta e em outras, de maneira direta - em alusão ou plágio. Começaremos, então, em sua origem histórica e em como as questões morais dos textos clássicos influenciam as histórias contadas pela contemporaneidade.

O Auto da Compadecida e os textos que “lemos” nele

“Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos.”
Gérard Genette, 1982, p.7

Textos clássicos que percorrem milhares de anos em diferentes formatos estão presentes dentro do enredo que constrói a história dos moradores da cidade de Taperoá, assim como os cordéis que são preservados na memória popular do nordeste brasileiro. Na obra fílmica de Guel, os ideais trazidos nas obras de Ariano Suassuna, estão presentes não só no espírito, mas no próprio processo de composição transtextual da obra de Suassuna.

Além da peça “Auto da Compadecida”, outras duas produções de Ariano compuseram a estrutura do texto que posteriormente virou o filme. Da peça “Torturas de um coração” (1951), foram extraídos personagens como Vicentão, o homem mais valente da cidade e que todos temem, e Cabo Setenta, militar da cidade de Taperoá, assim como a origem da trama envolvendo o amor de Rosinha, a filha do Major Antônio Moraes, protagonista da história de amor do filme.

Na peça “Auto da Compadecida” (1955), a personagem de Rosinha não existe, pois Antônio Moraes não tem uma filha, e sim um filho que somente é citado durante o espetáculo. Já no filme, Rosinha possui grande relevância para o desenvolvimento do enredo, uma vez que a sua chegada à Cidade de Taperoá muda completamente o rumo da história. Os planos criados por João Grillo passam a ter o objetivo de fazer com que ela e Chicó se casem - não só pelo grande amor que o amigo sentiu pela moça, mas também pela herança presente em um cofre no formato de uma porca deixada pela tia-avó de Rosinha.

A história da porca também foi retirada de uma outra peça de Ariano Suassuna, “O santo e a porca” (1957), como demonstrado pelo próprio Guel em entrevista com Pedro Bial (2017):

Para você ver como as ideias viajam, essa história do dinheiro guardado na porca do avarento, ela vem de Plauto, que é um comediógrafo romano da época do império (...) é, também, o tema de uma peça do Ariano que chama “O santo e a porca” de quem nós roubamos para colocar na própria obra dele (...).Toda essa trilha vem do “Santo e a Porca” (que, do mesmo modo) vem de Plauto. (Arraes, 2017)

Ariano utilizou uma história presente na dramaturgia greco-romana, passando ao contexto nordestino dos anos 50. A peça “O santo e a porca” passa a ser vista como uma “apropriação paródica da “Aulularia”3.

Esse não é o único exemplo de história que percorreu séculos até chegar às telas dos cinemas brasileiros com o longa de Guel Arraes. Na composição da peça “Auto da Compadecida”, Ariano utilizou um folheto do poeta popular Leandro Gomes de Barros intitulado “O testamento do cachorro”. Entretanto, essa mesma história, com algumas diferentes nuances, possui sua origem em uma lenda oriental do século V, tendo sido frequente na literatura medieval4 e entre os romanceiros nordestinos.

Além disso, segundo o professor e pesquisador em Estudos Clássicos e Medievais Juan López, é possível, também, perceber uma forte aproximação do texto de Ariano com os romances pícaros espanhóis5 pela “aguda crítica social dirigida aos diversos estamentos da sociedade”, além dos “traços de conformação do pícaro” presentes no personagem João Grillo.

As características picarescas de João Grillo também foram percebidas na pesquisa do professor Mário Guidarini. Ele ressalta a semelhança da estrutura do “Auto da Compadecida” com a da Commedia Dell’Arte italiana, que explorava os

tipos fixos e tipologias, além da comicamente a tradição do brio e a presença de espírito. Características igualmente pertinentes aos pícaros, João Grilo e Chicó (2006).

Segundo o professor mestre em filosofia, “Ariano (...) reescreve e contextualiza gêneros medievos por meio de produtos culturais populares nordestinos.” (2006).

A pesquisadora Luisa Folch ressalta a presença de fortes características do Auto Sacramental espanhol no “Auto da Compadecida” (1955). Segundo ela, a liberdade que se dava ao uso de alegorias para a representação dos dogmas religiosos tornava os Autos Sacramentais livres de qualquer compromisso com o real.

Tudo é possível no auto sacramental, tudo pode contribuir à ação dramática: o pensamento, a música, a poesia, os milagres, os anacronismos e as mais diversas fusões culturais; tudo, porque o auto sacramental situa-se num espaço intemporal: o espaço da abstração e da Fé. (2009).

Dessa mesma forma, ocorre na peça de Ariano a fé transpassando qualquer barreira, construindo o arranjo dramático através da comicidade, além de perpassar muitos outros aspectos da trama, influenciando ações, a construção moral dos personagens e a inclusão da lógica maniqueísta, separando-os em bons e maus, explorados e exploradores, honestos e corruptos.

A associação do popular com o erudito não foi um encontro restrito às criações de Ariano. Manifestou-se, na década de 70, no nordeste brasileiro, uma vertente artístico-cultural intitulada Movimento Armorial, que possuía o objetivo de preservar a cultura popular por meio do resgate de estruturas eruditas. Ao lado do escritor Raimundo Carrero, Ariano foi o fundador desta corrente ideológica, realizando obras como “Romance da pedra do reino” (1971), uma peça importante deste Movimento e a criação do “Auto da Compadecida” (1955), que permanece relevante 67 anos depois.

Através de interdiscursos culturais medievos, Ariano explora outros aspectos artísticos teatrais que podem ser aplicados às narrativas populares cordelistas ao transportá-los para uma nova linguagem.

Texto e encenação passam pelas vozes, gestos, movimentos dos atores, luzes e sons. Rubricas do texto organizam linguagens verbais e não verbal, tom de voz, ações, gestos dos atores, cenários e marcações, figurinos, maquiagens, penteados, sons e ruídos intervenientes e intermitentes na orquestração de mensagens simultâneas em diferentes ritmos. (Guidarini, 2006)

Da mesma forma, ao passar as peças para o audiovisual, Guel Arraes transporta as histórias de Ariano para uma nova linguagem criando sua identidade artística. A composição cênica do filme, envolvendo elementos próprios da direção de arte e da fotografia - como tipos de plano, enquadramento, ângulos, iluminação, movimento de câmera – e a cuidadosa trilha sonora - com efeitos sonoros, trilha com músicas típicas da região e a esmeradíssima trilha de falas - são competentemente articuladas em ritmo e dinâmica de cortes recuperando com grande expressividade a mistura de traços da cultura nordestina de cordel, o teatro renascentista, os romances pícaros espanhóis, o teatro ibérico e vicentino6, a dramaturgia clássica romana e o movimento Armorial.

Transestilização: A mudança de estilo entre peça e audiovisual

Como o próprio nome indica claramente, a transestilização é uma reescrita estilística, uma transposição cuja única função é uma mudança de estilo. (...) A transestilização raramente se encontra em estado livre, mas ela acompanha inevitavelmente outras práticas, como a tradução (Genette, 1982, p. 71)

Assim, de acordo com Genette Transestilização é a mudança no estilo que ocorre ao passar o texto de uma peça (O Auto) para filme (“O Auto da Compadecida”), e até mesmo para a mudança entre série e filme, a qual nosso objeto também sofre. Isso porque consideramos que cada ponto na estrutura da obra se qualifica isoladamente como um elemento de estilo, da mesma forma que a mudança estrutural se enquadra. A tradução de uma obra de um sistema de signos a outro implica necessariamente a mudança de estilo, em que se incluem as contribuições do autor a esse novo texto (hipertexto) que utiliza uma outra linguagem diferente do primeiro (hipotexto).

A “Tradução” de um texto pode ocorrer quando se precisa achar o mesmo significado em uma nova língua, da mesma forma que pode ocorrer quando os autores precisam transpor um tema ou texto para uma nova linguagem, que, independentemente da língua que seja, precisará ser transformado por meio de aumentos e reduções - conforme Genette classifica e abordaremos pouco mais adiante.

Em sua teoria linguística, presente no livro Palimpsestos, Gérard Genette separa em dois principais pontos as práticas hipertextuais, sendo elas o processo de transformar ou imitar o hipotexto. Dentro dessas duas distinções, ele classifica a Paródia e o Travestimento como processos de transformação textuais, enquanto os de imitação teriam a Pastiche e a Charge como seus principais tipos.

Ao retornarmos às origens e percorremos a trajetória para a construção da obra final estudada, deparamo-nos com uma cadeia complexa de textos que possuem longas referências com distintas origens, conforme elucidamos acima. As transformações de textos clássicos e a imitação e representação da linguagem de cordel são a base da estrutura criada para o desenvolvimento dessa narrativa, tornando necessário que esse caminho fosse levado em consideração ao analisarmos a obra audiovisual.

Levando em consideração o desafio que se apresenta quando um texto literário precisa ser transladado para uma obra audiovisual, analisaremos as escolhas que se fizeram necessárias, de acordo com a preferência dos roteiristas, para que o tema se mantivesse fidedigno a intenção da obra. Analisaremos abaixo esse processo adaptativo, de maneira a analisar as escolhas que precisassem serem feitas, para estarem de acordo com as demandas artísticas do novo formato ou simplesmente escolhas que fossem compatíveis com o estilo dos roteiristas.

Aumentos e Reduções

Aumentar ou reduzir uma obra consiste em compor uma nova produção, mais longa ou mais breve que a original. Todavia, no decorrer deste processo de Transtextualização, o tamanho (extensão) do texto não é a única afetada, pois essas mudanças podem provocar alterações nas suas estruturas e no teor da obra. Segundo Genette, essas alterações variam de acordo com cada caso, podendo ser classificadas em dois ou três tipos fundamentais de alterações redutoras ou ampliadoras.

Para esta pesquisa, iremos nos debruçar em dois pares de sistematização de aumento e redução textual propostos por Genette, sendo estes, respectivamente: a Extensão e a Excisão, e a Expansão e a Concisão.

Extensão - Edições maciças

“Muitas obras nascem graças à centelha que surge após o encontro feliz entre dois ou mais elementos, tomados de empréstimo da literatura ou da “vida”(...) histórias se misturam, ou mais prcisamente se alternam e se entrelaçam em cena” (Genette, 1982, p. 105)

Para os acréscimos que acontecem quando obras se “juntam” e se “complementam”, que são adicionadas de forma maciça ao Hipertexto, Genette denomina Extensão. É uma prática muito utilizada no processo de adaptação para o audiovisual, mas também está impregnado no DNA da construção do roteiro da peça. A estrutura da peça é composta de muitos enredos que foram “emprestados” para construir “O Auto”, de tal forma que é quase impossível determinar sua origem ou qual história se complementa a outra.

Trata-se – escreveu ele – de temas em geral antigos, os mais ingratos e mais impraticáveis, que comporiam uma ou duas cenas no máximo, e não toda uma tragédia. A tais eventos, deve-se adicionar sentimentos que os preparem. (Gennet sobre fala de voltaire, 1982, p. 101)

Apesar de uma história de sucesso considerável com a peça, ao ser transpassado para o audiovisual, viu-se a necessidade de complemento de ações e personagens; a maioria deles devido a falta de “romance” e heróis melodramáticos. Uma das (poucas) personagens femininas, Rosinha, não existe no texto da Hipotexto (a peça) e foi inserida no Hipertexto tanto por razões melodramáticas, quanto para que o enredo se tornasse mais completo e robusto. Para que a trama se encaixasse dentro dos padrões melodramáticos usuais para o telespectador brasileiro, um dos aspectos mais fortes do gênero precisaria compor a trama - o romance. Essa necessidade gerou muitas outras ramificações e por consequência adições: Seu romance com Chicó, transformou o personagem em um herói romântico, mesmo que ainda sirva como alívio cômico pela maior parte da trama, mas também é a escolha responsável pela inserção de outros dois personagens, “Vicentão” e “Cabo 70”, além de servir de motim para que a trama se desenvolva.

É interessante notar que esses personagens surgiram de Hipotextos diferentes, tornando difícil definir que um Hipertexto tem somente um Hipotexto como origem - Neste caso, que somente o “O Auto” seria Hipotexto do longa “O Auto da Compadecida”.

Desde a literatura, até as primeiras adaptações no teatro, diferentes autores copiam, se baseiam e adicionam novos fatores de diferentes histórias para que montem um novo texto, que não podemos deixar de chamar de texto completo, já que é uma nova história em plenitude e que, inclusive, pode passar a ser hipotexto de outros textos (hipertextos).

Esse é um dos caminhos que percorre “O Auto da Compadecida”, em que os personagens de diferentes cordéis de Ariano Suassuna foram integrados à trama de “O Auto” de tal forma inserido que esses personagens não mais possam ser considerados de maneira independente.

A trama do nosso hipertexto (O longa) é a junção de diferentes hipotextos (os quais apresentamos ao longo deste artigo) de tal forma que não podemos o definir como advindo de um só lugar nem pensar este novo texto como partes de outros e, sim, como uma versão completa por si só que herda de muitas outras literaturas para formar a sua própria linguagem.

A hipertextualidade é apenas um dos nomes dessa incessante circulação dos textos sem a qual a literatura não valeria a pena.
(Genette 1982, 9)

Excisão - Cortes Maciços

O segundo caso que estudaremos é o da Excisão, em que ocorrem os cortes chamados de “puros” ou maciços, em que ações, personagens, lugares, fatos ou até mesmo um arco narrativo completo são suprimidos do roteiro da nova versão criada. É comum que possamos observar esse tipo de redução onde há troca de meio - Da peça para o audiovisual - mas também é possível encontrar na relação entre textos/obras produzidas em uma mesma linguagem como notamos que acontece entre a série e o filme “O Auto da Compadecida”, os dois sendo produtos audiovisuais.

Não é possível reduzir um texto sem diminuí-lo, ou, mais precisamente, sem dele subtrair alguma parte ou partes. O procedimento redutor mais simples, mas também o mais brutal e mais agressivo à sua estrutura e sentido, consiste então numa supressão pura e simples, ou excisão, sem nenhuma outra forma de intervenção.” (Genette 1982, 78)

Sem que haja nenhuma outra forma de intervenção ou alternativa paliativa à retirada do personagem, a primeira e maior corte puro e simples que percebemos ao analisarmos a peça como Hipotexto e a série como Hipertexto seria a falta do personagem “Palhaço”. Na peça, ele possui um papel de destaque, responsável por apresentar e conduzir a trama para o público no teatro, sendo também um fato imprescindível para a transmissão da sensação do circo, manifestação típica da cultura popular, e de que um grande espetáculo circense está para começar.

Como na obra audiovisual, o personagem não faria sentido para a proposta pretendida, já que seria necessário a quebra da 4° parede para que o personagem pudesse corresponder a sua proposta inicial. Dessa forma, talvez por provocar uma interrupção arriscada do espetáculo (Stam, 1981) para a inteligibilidade da obra audiovisual e a boa receptividade do público, e, por isso, não se encaixam na proposta de veiculação da obra na nova mídia, ou talvez, por não fazer parte do estilo dos roteirista, enfim, o Palhaço foi retirado do texto, sem delongas ou floreios.

Entretanto, observamos que certas características desse personagem e seu papel na narrativa foram incorporados em outro momento: Ao invés da apresentação do palhaço, os dois personagens principais, João Grilo e Chicó, começam a história apresentando um filme, mas sem saírem de dentro cena, ainda que fazendo alusão ao enredo que está prestes a começar.

A agressão não acarreta, inevitavelmente, uma diminuição de valor: eventualmente é possível ‘melhorar’ uma obra suprimindo cirurgicamente alguma parte inútil e, portanto, nociva. (Genette, 1982, p. 78)

Em muitos dos casos em que ocorrem essa amputação, podemos observar uma “melhora” na nova construção ou simplesmente um hipertexto mais palatável para seu público e popular para a época em que ele será reproduzido.

Esse movimento ocorreu com a retirada de dois personagens da peça, o “frade” e o “demônio”, que possuíam pouco e até mesmo quase nenhum desenvolvimento como personagens e para a trama. Nestes casos, inclusive, os dois personagens poderiam fragmentar as cenas, com interjeições que poderiam ajudar na construção de outros personagens, nestes casos respectivamente do “Bispo” e do “Diabo”. Com a saída destes personagens, a trama se torna menos repetitiva e mais direta, com funções e cenas com mais objetivo e dinâmicas para o telespectador.

Em outros casos, porém, esse corte acontece para que cenas mais duras ou chocantes não influenciem o julgamento do telespectador, tanto em razão do produto como um todo, mas também das relações com os outros personagens. Dentro da linguagem audiovisual, seus roteiristas utilizam diferentes métodos para que seus personagens caiam no gosto do público, fato ainda mais notável quando pensamos em narrativas populares e melodramáticas - comuns no Brasil por conta da popularização das novelas brasileiras e que possuem grande influências tanto da série quanto do longa como já mencionamos.

O que é suprimido nesse caso não é somente aquilo que possa entediar jovens leitores ou exceder suas faculdades intelectuais, mas também, e sobretudo, o que poderia “chocar”, “tocar”, ou “perturbar” sua inocência (Genette 1982, 85).

Podemos pensar o caso da retirada do arco narrativo “O gato que defecava dinheiro”, que apesar de popular entre os telespectadores da peça, por sua criatividade e ousadia, é cortado das adaptações. Em uma linguagem teatral, um gato que defeca dinheiro e um personagem que viola um gato podem passar de maneira mais palatável para o público ou menos violenta já que no teatro o público conta com o imaginário para situações desse tipo. Na peça, simplesmente não veríamos um gato em cena.

Com esta redução, o personagem principal, João Grilo, também se torna um personagem mais carismático - o que no audiovisual é uma necessidade mais latente para o público - e não “manchasse” a imagem nem experiência imersiva das telas, ao não exibir nenhuma imagem chocante ou sensível ao seu público. O que pode ser entendido como uma estratégia para tornar e encontrar acolhida para um público de massa.

Concisão

A segunda forma de redução trazida por Gerard Genette é a Concisão. Ela “tem como norma sintetizar um texto sem suprimir nenhuma parte tematicamente significativa” (GENETTE, 1982, p.86), criando um novo texto que pode não manter nenhuma palavra do texto original. Como veremos posteriormente, na adaptação estudada grande parte do texto original foi conservado tendo poucas ocorrências de concisão na passagem do texto da peça para o audiovisual. Entretanto, esta é uma redução que possui um caráter mais estilístico, diferente do apresentado anteriormente, a excisão, que possui um viés de cortes mais concretos.

Por conta disso, ao analisarmos adaptações de hipertextos que migraram de linguagens diferentes do Hipotextos de origem, as mudanças estilísticas ocorrem naturalmente. Com a adaptação estudada neste artigo precisamos levar em conta que as técnicas usadas no teatro são bem distintas das produções audiovisuais, por conta disso, certas reduções estilísticas são necessárias no decorrer do processo tradutório da obra.

Todavia, uma concisão que pode ser percebida no roteiro da obra audiovisual foi a omissão e, algumas vezes, alteração do comportamento do personagem João Grillo em certas situações. Na peça João Grillo possui algumas reações agressivas afirmando em diferentes momentos que a motivação para suas mentiras era simplesmente por vingança. Já no filme, seu comportamento é mais brando, sem nunca revelar as motivações por trás das mentiras que conta, o que dá, ao final do filme, abertura para a Compadecida justificar suas mentiras como uma forma de manter sua sobrevivência.

Outra forma de Concisão que pode ser percebida nos processos de adaptação do “Auto da Compadecida” (2000) consiste na transição da série de televisão para o filme. Organizar um produto audiovisual de x episódios para encaixar em x minutos de filme, demanda o trabalho de análise do que se pode ser retirado que não reduza o enredo da trama e mantenha o estilo original, sendo basicamente um trabalho de concisão.

Ocorreram, então, a redução de certos diálogos, retirada de cenas que repetiam informações já passadas, regravação de momentos de transição de cenas e a remontagem da obra. Todas essas reduções buscaram manter o formato do enredo da série e seu estilo, tirando o necessário para a realização de uma versão concisa da adaptação inicial.

Expansão

Além do acréscimo de componentes de forma maciça, para Genette, existe uma segunda forma de adicionar diferentes elementos no processo da hipertextualidade, que se chama Expansão. O direto oposto da Concisão, é uma “dilatação estilística”, em que o aumento da obra já existente ocorre para confirmar os preceitos passados no texto original, aumentando frases ou adicionando novos elementos que complementam e valorizam partes do que já foi feito, podendo dobrar ou triplicar certos elementos do hipotexto original.

Como estamos falando de um hipertexto que possui uma linguagem audiovisual que provém de hipotextos da linguagem teatral, a “dilatação estilística” tem uma possibilidade vasta de caminhos para seguir, já que são duas linguagens que possuem recursos retóricos ou narrativos distintos para o desenvolvimento da história.

Como mencionado anteriormente, a decupagem das cenas, planos, luzes, efeitos sonoros, enquadramento, ângulos, direção de arte, trilha sonora, movimento de câmera, cortes e montagem são recursos utilizados para compor a mensagem a ser passada a quem assiste à obra audiovisual, ou seja, podem ser usados para “dilatar estilisticamente” a obra original.

Com essa perspectiva, podemos entender que a adaptação como um todo enquadra-se nessa classificação, pois todas as falas da peça foram incorporadas ao contexto audiovisual, adicionando uma série de detalhes antes não pensados no contexto teatral.

Existem, inclusive, certos elementos, especificamente no “Auto da Compadecida” (2000), que demonstram esse processo de uma maneira muito clara, momentos em que a linguagem cinematográfica passa por caminhos diferentes, partindo de escolhas que possivelmente tenham tido a intenção de confirmar certos aspectos que foram fundamentais na construção dos textos em que a obra foi baseada.

Na peça de Ariano, a narração é uma das ferramentas utilizadas para a contextualização e para a condução do desenvolvimento do enredo. No processo de adaptação houve a escolha da tradução para o audiovisual de uma série de cenas que inicialmente eram narradas. Como exemplos, citamos as cenas em que os patrões de João Grillo e Chicó dão carne passada na manteiga para a cachorra enquanto os dois passam fome; que os mesmos patrões mandam Chicó e João Grillo até o padre pedir para que a cachorra seja por ele benzida, e na introdução do personagem do cangaceiro Severino Aracaju - na peça, sua entrada é somente anunciada no momento em que chega para assaltar a cidade, ao passo que no filme ele aparece em diferentes momentos antes do assalto de fato acontecer.

Todas essas cenas na peça foram narradas por algum dos personagens, diferentemente do audiovisual, em que as cenas destes momentos de fato ocorrem. Portanto, com o uso dos recursos próprios da linguagem audiovisual, foi possível a expansão dessas partes, sem a alteração do enredo e respeitando o tom da peça original.

Contudo, essa não foi a única forma de Expansão presente nesta obra. Do mesmo modo que narrações foram substituídas por recursos diegéticos audiovisuais no hipertexto fílmico, houve momentos em que se optou por mantê-las como em seu hipotexto. Ao analisarmos o processo de hipertextualidade, entendemos que a escolha das narrações que permaneceram foi feita de forma cuidadosa e consciente, pois a elas foram adicionados elementos distintos de quaisquer outros presentes.

O personagem Chicó de Suassuna caracteriza-se por ser um contador de histórias. Substituir essas narrações por representação mimética, por exemplo, poderia comprometer um traço relevante para a construção desse personagem. Por conta disso, houve então a escolha da permanência de suas narrações.

Entretanto, parece que, para Guel Arraes, somente a conservação destas partes do texto não foi suficientemente satisfatória, posto que observamos a escolha da utilização de recursos próprios da linguagem audiovisual que, em nossa opinião, enriquecem o texto fílmico. Pode ser notado quando Chicó na cena do filme, narra suas histórias, a fumaça de seu cigarro cobre a tela de branco e esse efeito cênico encarrega-se de fazer a transição para a cena seguinte, como se assumindo o ponto de vista imaginativo do sujeito-personagem.

Nesta nova cena, entra na tela o personagem de Chicó vivendo suas aventuras dentro de figuras que lembram as xilogravuras presentes na literatura de cordel, demonstrando o personagem introduzido nos desenhos animados. A escolha da inserção de animações em formato de xilogravuras demonstram o reconhecimento obtido pelo diretor com as raízes cordelistas presentes na obra original, e a busca pela permanência dessa valorização na obra feita por ele. Chicó, como dito anteriormente, foi baseado em um mentiroso, contador de histórias que passou pela vida de Ariano na cidade de Taperoá da Paraíba. Portanto esse recurso narratológico, em verdade, mais do que de expor o interior do sujeito-personagem, representa o próprio imaginário cultural do nordeste, presente na obra de suassuna recuperado por guel e revelado pelas escolhas diegético narratológicas do meganarrador. nesse sentido, os recursos retóricos do audiovisual voltam-se para um aumento estilístico de um componente importante do hipotexto de origem, ou seja, faz uma expansão.

Este não é o único exemplo de expansão pela introdução de componentes divergentes que se destacam do restante da produção. No momento do julgamento final de João Grillo, Maria profere um grande discurso em sua defesa. Ela diz:

João foi um pobre como nós, meu filho… E teve que enfrentar as dificuldades de uma terra seca e pobre como a nossa. Pelejou pela vida desde menino. Passou sem sentir pela infância, acostumou-se a pouco pão e a muito suor. Na seca, comia macambira, bebia o sumo do xiquexique, passava fome. E quando não podia mais, rezava. Quando a reza não dava jeito, ia se juntar a um grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral. Humilhado, derrotado, cheio de saudades. E logo que tinha notícias da chuva, pegava o caminho de volta. Animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revia sua terra dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre, mas cheio de fé. Por isso, peço-lhe muito simplesmente que não o condene. (Auto da Compadecida, 2000)

Nesse momento, são passadas imagens de pessoas reais que enfrentam essas dificuldades, trazendo para o público que assiste ao filme a constatação da realidade a que Maria está se referindo.

Além disso, neste fragmento do roteiro, podemos observar uma expansão estilística do texto dito por Maria. Na versão original da obra, Maria apenas diz: “João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.” Ao aumentar esse texto e inserir essas imagens, se tem uma noção mais abrangente da mensagem passada por Maria, que vai além da história de João Grillo, criando uma identificação do público com a história de Jesus, João Grillo e da realidade.

Desta forma, o hipertexto expande as críticas sociais presentes nos hipotextos originais, deixando clara sua correspondência com a realidade, que, como vimos anteriormente, são fortes características da peça de Ariano que procederam dos romances pícaros espanhóis e dos autos vicentinos.

Entendemos que a escolha de utilizar elementos muito distintos se dá justamente para realçar certos aspectos da obra originária e demonstra o olhar cuidadoso no processo de tradução do universo ficcional dramatúrgico de Suassuna para o audiovisual, ora respeitando fielmente as particularidade do hipotexto, ora aventurando-se ao explorar os recursos retóricos da linguagem no novo hipertexto para iluminar aspectos significativos do texto original por meio da expansão. Para fazer este processo mantendo-se dentro das estruturas criadas na obra original, demanda um grande trabalho de pesquisa, que, por certo, não fugiu da atenção de Guel.

Conclusão

No decorrer de seu livro, Gérard Genette relata o quão comum que o público, em sua grande maioria, tenha acesso à versões “definitivas”, que tenha passado pelos processos de hipertextualidade, antes das versões originárias. Curiosamente isto ocorreu com o Auto da Compadecida, que obteve sua popularidade após a obra audiovisual de Guel Arraes. Genette também destaca que ao ter conhecimento da obra, as pessoas procuram a versão primitiva da obra, caso que também aconteceu, já que Ariano Suassuna passou a ser lembrado por esta obra mais do que qualquer outra feita por ele.

Além disso, o autor francês destaca que este processo causa uma falsa impressão de ampliação procedentes da inversão cronológica feita ao se voltar às versões originárias em ordem contrária a suas realizações. Esta falsa impressão de ampliação pode ser experimentada por nós no decorrer da realização deste trabalho, já que nosso primeiro contato foi com o filme, em seguida vimos a série, lemos a peça e por fim, através de longas pesquisas, chegamos a suas referências originárias. Estudar as origens e analisar as alterações presentes na obra de Guel Arraes, nos trouxe olhares mais amplos da mesma obra. Para o autor esta ilusão pode ser benéfica quando ocorre de forma consciente, pois possibilita alcançar uma visão dupla, espontânea e erudita. Esperamos que todos que puderam ler nosso trabalho tenham a possibilidade de poder entrar em contato com esta ampliação ilusória, tendo o benefício de ver outras nuances do filme que vão além do exibido na tela.

Notas finais

1Crítico literário francês, nascido em Paris em 7 de junho de 1930, faleceu em 11 de maio de 2018. Foi um dos principais representantes da análise estrutural e teoria das formas literárias.

2Robert Stam é um teórico de cinema americano que trabalha com semiótica cinematográfica.

3Livro de Plauto (O Velho Avarento), adequado à realidade do sertão nordestino (STACUL, 2017).

4“Os testamentos de animais são frequentes na literatura medieval. O testamento do cachorro se encontra no conto de nº 96 de Les cent nouvelles nouvelles. J. Bedier, em seus estudos sobre as fábulas, assinala uma versão da lenda oriental publicada por Herbelot, Bibliothèque Orientale – (cont.) article Chadi. Encontra-se também esta história contada por Lesage em Gil Blas de Santillane, Livro V, Canto I, Paris, G. F. Flammarion, 1977: 271. Em Fabliaux et contes du Moyen Age, há uma versão chamada Le testamente de l’âne, de Rutebeuf, prefácio e Jean Joubert, traduction, commentaires et notes de Jean Claude Aubailly, Paris, Le livre de Poche, 1987: 30. A este propósito pode-se ver ainda o artigo Le testament cynique de l’Auto da Compadecida de Jean Girodon, Lisboa, Colóquio, Letras, 9, Juin, 1960.” (MACHADO, 2008)

5“...surgido em meados do século XVI, relevante não apenas por sua contribuição estrutural para o desenvolvimento do romance, mas também e,sobretudo, por culpa de seu poder de criar um personagem tipo, representativo do caráter e do modo de ser espanhóis, o pícaro, figura anti-heroica singular que se debate em uma vida errante, de origem humilde, mas buscando ascender economicamente numa sociedade que passa por profundas transformações, resultantes da disputa por poder entre a velha aristocracia e a nascente burguesia mercantil.” (LÓPEZ, 2019)

6Ver mais em Lima, Stélio. 2019. “Resíduos do teatro vicentino na literatura de cordel” in Revista Decifrar Vol. 7,N. 14: 91-110.

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Filmografia

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