Abstract
This paper aims to understand experimental cinema and its relation to the media ecology field of studies. Experimental audiovisual works can be understood as ambients, as something that surrounds us or, to sum up, as a wrap of our senses. Always having the film itself as object – structuralist cinema for example – the experiment is the message to homage McLuhan’s, founding father of media ecology, famous aphorism. By linking the works of experimental artists but also extending them through new ways of conceiving visual and audiovisual works such as gifs and glitches, this paper tries to establish some conceptual ground to relate experimental cinema and a media ecological point of view, bringing possibilities to rethink media and cinema with the lenses of technology, aesthetic and media literacy.
Keywords: Experimental cinema, media ecology, gifs, glitch art, cinema of attractions.
“A ideia é que o homem é condicionado pelo ambiente e que “ambiente” para o homem contemporâneo é a rede intermidiática”
(Gene Youngblood)
Introdução
Autopoiesis é um termo que corresponde a um sistema organizado fechado em si, auto-referenciado e auto-suficiente, configurado por uma circularidade. De certa forma, é um conceito que bem se associa a poética do loop, essa “engrenagem narrativa” (MANOVICH, 2001) que move parte da cena audiovisual contemporânea. Um sistema que produz e mantém a si mesmo criando suas próprias partes. O corpo humano, como um sistema biológico, funciona numa lógica autopoiética. Contudo, há de se pensar um prolongamento dessa estruturação para além do escopo fisiológico. O homem participa ativamente de sua construção como sujeito social, o que implica também no papel de estipulação e reconfiguração de sua própria imagem. Essa formação se adapta de modo não linear a partir da estrutura relacional com os meios em que se insere. Os efeitos da mídia tão bem estudados por Marshall McLuhan são efeitos no corpo físico e no corpo social e a arte experimental nos fornece as possibilidades para pensar como a mídia nos educa sensorialmente.
Com o surgimento do virtual, essa dinâmica ‘autopoiética’ sofre uma guinada. Palavras como “liberdade”, “verdade”, “memória”, “história”, entre outras, são redefinidas a partir da inserção e cooptação da tecnologia. Vigora uma sensação distorcida de controle e consciência na medida que nos projetamos nas mídias. Isso é fruto de uma usual primazia do conteúdo, que, ao ser exposto, sobrepõe a percepção do suporte no qual essa mensagem é vinculada.
Nesse sentido, o constante debate dentro do ramo das artes de forma e conteúdo é retomado pelo viés da tecnologia. Geralmente, há uma predileção do conteúdo sobre a forma na imersão nos meios virtuais. McLuhan reformulou esse debate ao trazer destaque ao suporte, a forma, com seu famoso aforismo: “o meio é a mensagem”.
Nesse sentido, segue a teoria da ecologia das mídias, que visa desvelar ‘as regras do jogo’ no campo tecnológico ao compreender as mídias como ambientes. Dentro desse contexto midiático, o universo artístico toma novos rumos, traçando a linha do pioneirismo através do experimental. “A diferença entre o cinema experimental e o outro cinema é que o primeiro experimenta, enquanto o outro encontra, em virtude de uma necessidade diferente da do processo fílmico.” (DELEUZE, apud PARENTE 2000, p. 86). Essa necessidade se refere em nossa discussão ao fato de as mídias, e a leitura de teorias mais contemporâneas destas, poderem ser melhor investigadas em suas dinâmicas e ambientes quando atravessadas pelo digital. A partir disso, a formulação mcluhaniana de que o conteúdo de um meio é outro meio nos situa em um campo multimídia e interdisciplinar da arte, o qual se auto subverte a todo momento no processo de expansão impulsionado pela tecnologia. Nas linhas que seguem, destrinchamos um pouco mais a estrita relação entre arte e tecnologia por um viés midiático-ecológico.
Ecologia das Mídias e o corpo/máquina que experimenta
“A ecologia das mídias investiga a questão de como os meios de comunicação afetam a percepção, a compreensão, os sentimentos e os valores humanos” (BRAGA, LEVINSON, STRATE, 2019, p. 19). O termo ecologia pressupõe o estudo de ambientes, que, aplicado ao ramo extenso da comunicação, é a proposta de abordagem dessa teoria para a investigação das mídias: compreendê-las como ambientes, em toda sua complexidade. Ou seja, “um sistema de mensagens complexo que impõe aos seres humanos certas maneiras de pensar, sentir e se comportar” (Id., Ibid).
Se faz necessário observar que há uma diferença crucial entre os meios virtuais e não virtuais: o pleno entendimento do contexto e lócus que nos encontramos. Por exemplo, ao adentrar um tribunal, é esperado certas maneiras de se portar, vestir, etc., que são completamente distintas de uma sala de aula ou uma ida à praia, e assim por diante. Há uma compreensão de contexto associado a expectativas de comportamento, normas explícitas e formais assimiladas pela inserção em determinado ambiente – algo que o cinema narrativo sempre nos mostrou muito bem. Entretanto, essa percepção imediata propiciada pelo convívio social se torna difusa quando transferida para meios midiáticos que lidam com a experimentação.
As imagens passam a não ter mais relações com eventos e fatos, elas tornam-se eventos e fatos de natureza instantânea e variável. Tornam-se por vezes representação confusa, na medida que sua referência é o código binário e não mais a analogia. A tecnologia, que se tornou midiática, pode destruir o espaço real em proveito de “um tempo real”, provocando um sentimento de perda corporal. PARENTE (2000) chama a atenção que o cinema do corpo é uma das tendências do cinema experimental. O corpo como ambiente, no qual suas atitudes estão sempre passando por um espetáculo, como nessa tendência do experimental ou no cinema moderno, que na atualidade se transformam na rede intermidiática que experimentamos hoje em dia nas plataformas do Instagram e do Tiktok, por exemplo.
A imagem corporal continua tendo um papel fundamental na constituição dos sujeitos. Nessa outra possibilidade de mediação pelas mídias tecnológicas, sob uma perspectiva de Braga, “o real fica preso nos meios que nos darão a possibilidade de determinar, com precisão, o próprio real, o qual é produzido por estes próprios meios. A estrutura do real é, assim, a estrutura dos meios.” (BRAGA, 2007, p. 49).
Nesse sentido, as concepções de poder sobre os corpos, por exemplo, são reconfiguradas na medida que absorvem a capacidade de alterar o significado das coisas, impulsionado por um novo parâmetro da realidade (o caráter experimental das primeiras obras de David Cronenberg, por exemplo, ilustrariam bem essa medida). Sobre esse parâmetro, Neil Postman discorre:
As novas tecnologias alteram a estrutura de nossos interesses: as coisas sobre as quais pensamos. Alteram o caráter de nossos símbolos: as coisas em que pensamos. E alteram a natureza da comunidade: a arena na qual os pensamentos se desenvolvem. (POSTMAN, 1994, p. 29)
Contudo, a estrutura dos meios digitais em sua fundação é dependente da expressão do fenômeno corporal. Wanda Strauven (2021) pensa atualmente já uma arqueologia do touch screen, por exemplo. Não há como imaginar a tecnologia como um corpo isolado assim como não é possível pensar os efeitos dos meios de forma isolada.
A auto percepção de nosso corpo a sensação de que vivemos em um corpo é uma precondição indispensável para a invenção das mídias, as quais podem ser chamadas de corpos técnicos ou artificiais desenhados para substituírem corpos através de procedimentos simbólicos. [...] Nesse caso, na verdade, animamos as mídias com objetivo de experimentar imagens como algo vivo. (BELTING, 2006 p. 39)
Na sociedade contemporânea se concretiza a interdependência entre humano e máquina. Stockinger (2005), ao levantar hipóteses voltadas para o campo da comunicação acerca da tecnologia, pelo viés da teoria autopoiética lembrada no início desse artigo, leva a crer que essa interdependência não reside mais no campo fictício. Isso decorre a partir do momento que estruturamos um sistema de comunidade e infraestrutura técnica baseado na tecnologia que se torna indispensável para a vida do homem moderno. “Ambos, sistema humano e sistema tecnológico co-evoluem, isto é que tanto a rede (técnica) evolui como ambiente-meio das atividades sensórias do homem, enquanto este evolui por poder se erguer além das suas limitações biológicas” (STOCKINGER, 2005, p. 66). Assim, incrementa-se a autodependência na relação mutuamente regulável de mídia e humano. Em síntese, a frase de Andy Warhol “Eu preferia ser uma máquina” é mais e mais passível de discussões na cena experimental.
A partir do estreitamento dessa relação, é questionável o nível de consciência e controle que possuímos ao navegar pelas redes. Nesse intuito de experimentar imagens como algo vivo, como apontado por Belting, é feita uma projeção da realidade como a conhecemos para os sistemas operacionais. “O desejo de retirar a fronteira entre o virtual e o real está iminente em todos os esforços tecnológicos da nova mídia” (STOCKINGER 2005, 65), e também se insere nas configurações da imagem fotográfica, ao tomarmos por exemplo a noção de aparelho de Flusser (2002), e cinematográfica, ao pensarmos o softcinema de Manovich.
Há uma compactação de tempo e espaço nas mídias que, somado à amplitude de possibilidades que elas promovem, faz com que os usuários tenham uma atenção mínima e dispersa para as condições dos meios em que navegam. Quando a novidade da tecnologia enquanto meio é associada ao cotidiano (talvez toda a história do cinematógrafo tenha sido essa), sua percepção material e impacto se tornam invisíveis, subjugados ao conteúdo que viabiliza/apresenta. Dessa forma, surge um conflito na maneira que utilizamos essas mídias pois, apesar de absortos, as compreendemos como máquinas, e não ambientes, já que suas especificações são mais frequentemente implícitas e informais. A ecologia da mídia, segundo Neil Postman, busca tornar essas especificações explícitas. Para o autor, a mídia transforma a percepção, compreensão sentimentos e valores humanos (POSTMAN, 1994). Como na perspectiva da ecologia das mídias, “qualquer ato comunicacional está necessariamente situado em um suporte material que formata/configura a mensagem e a própria atividade comunicativa” (BRAGA, LEVINSON, STRATE 2019, 21). O cinema e demais artes experimentais propõem em uma perspectiva ecológica dos meios uma investigação dessa dimensão material para gerar obras imateriais, mnemônicas e novas experiências para quem participa de sua fruição. Artistas como Rosângela Rennó, André Parente, Roberta Carvalho e coletivos como Bull.Miletic e United Vj’s são alguns exemplos de um universo que lida com real e virtual, material e imaterial em suas obras.
Fluido, material, espectatorial...
“As atividades comunicativas são caracterizadas [...] pelas circunstâncias materiais de apropriação dos meios” (BRAGA, LEVINSON, STRATE, 2019, p;21). No campo das artes, comumente o conteúdo e sua forma eram percebidos como um só, sem distinção. Essa percepção seguia uma falsa ilusão de liberdade total nas artes, ignorante dos condicionamentos do meio. Para McLuhan, “é como se houvesse uma margem ilimitada de espaço entre a mais completa utilização da forma pelo artista e o máximo de que o material é inatamente capaz”. Através disso, o artista “[...] fez sua natureza bruta (do material) fundir-se facilmente com sua concepção” (apud BRAGA, LEVINSON, STRATE 2019, p. 43).
No caso do cinema, a própria palavra assume duas significações: a cadeia de produção cinematográfica e o espaço expositivo. Essa configuração modela o imaginário do que seria cinema, a partir de uma visão performática da experiência cinematográfica (a sala escura, a tela grande, uma história de narrativa linear, etc.).
A escultura se torna nesse sentido uma forma de arte essencial para pensarmos a discussão material que a ecologia das mídias nos convida. No campo da escultura ocidental, Rodin e Brancusi foram revolucionários ao questionar a tradição e imprimir uma marca. Auguste Rodin, ao imprimir a materialidade do suporte na obra e sua base, ressalta o meio em que a arte é instaurada, desvelando a associação típica e “fidedigna” ao real, além de desviar o foco da narrativa, da história, para as possibilidades do material; que abrange novas interpretações para a obra como um todo e também comunica por si só – origem, tempo, erosão. Ademais, havia uma incapacidade na antiguidade de abstração. Até Rodin, nenhum ser humano foi feito faltando parte (as que visualizamos atualmente antes dessa época foram deterioradas, e não moldadas nesse intuito). Nesse sentido, ele instaura uma potência de participação ao espectador - tão revivida na cena digital audiovisual contemporânea -, em enfrentamento à contemplação passiva. O público é instigado a completar o sentido da obra que, através do desmonte escultórico, da falta de uma narrativa identificável e do foco na materialidade, não é mais mastigada para o espectador. A estátua morre e nasce a escultura.
Figura 1 – Auguste Rodin. Male Torso. 1887. Bronze, 60 x 30 x 25 cm. Petit Palais.
Assim como Rodin abala e reconfigura a tradição da escultura ao trazer o debate sobre a materialidade e do suporte em que se modela a obra, o cinema experimental descaracteriza a tradição; insere a forma cinematográfica em outros patamares de análise levando ao questionamento de o que é e o que pode vir a ser cinema. Pois, “tão logo o artista transgride a lei de seu meio, percebemos que há um meio para obedecer” (BRAGA, LEVINSON, STRATE 2019, p. 44).
A partir do famoso aforismo de McLuhan “o meio é mensagem”, podemos ter pelo menos 3 leituras básicas. A primeira é que, “independente do conteúdo ou ‘mensagem’ explícita, um meio tem seus efeitos peculiares na percepção das pessoas, constituindo uma mensagem em si mesmo” (Id., Ibid., p. 32). Peguemos como exemplo o telefone, que, na sua própria existência, reconfigura a relação com o tempo e espaço. Apesar de o próprio meio ter sido uma inovação, e ela em si conter a mensagem de sua materialidade e possibilidade de romper barreiras geográficas para estabelecer um diálogo em tempo real, essa reconfiguração é subtraída pelos usuários, que concentram sua atenção no conteúdo da chamada, ignorantes do meio.
É importante também ter em mente um segundo entendimento do termo, a ideia de que o meio transforma seu conteúdo. Exemplo disso é a diferente experiência que assistir um filme no cinema ou na televisão proporciona.
Cada tecnologia traz consigo um bias que condiciona o sentido do que é transmitido por meio dele. E esse condicionamento do sentido faz com que cada meio, ou cada mídia, seja, ele mesmo, parte do campo significante. (Id., Ibid., p; 33)
Tal experiência, considerando obras mais experimentais, é reconfigurada significativamente quando, por exemplo, um grande esforço em um filme experimental se transforma em estética para uma vinheta para a tela mosaicada da TV.
A terceira interpretação do aforismo é que toda tecnologia cria um novo ambiente, “lugares simbólicos, onde as pessoas interagem e ações sociais acontecem” (Id., Ibid.). A proposta de “a partir do cinema, pensar também o homem como extensão do ambiente por ele criado tende a nos colocar no interior da discussão contemporânea sobre o imaginário tecnológico” (OLIVEIRA FILHO, 2017, p. 21); nesse sentido possibilita ao cinema experimental perpassar outros arranjos midiáticos. Todo filme experimental e suas ramificações, cinema estrutural, cinema expandido e, hoje em dia, gifs animados, por exemplo, são transições; passagens do cinemático para outras artes – fotografia, arte sonora, performance.
Outro aforismo importante desenvolvido por Marshall McLuhan que pensa esse caráter fluido que propomos nesse momento é “o usuário é o conteúdo”. Os humanos servem como, da mesma forma que determinam, o conteúdo de todas as mídias por sua capacidade de interpretar tudo o que se manifesta. Além de criarem a maior parte dos conteúdos nos meios interativos mais antigos e da internet. De certa maneira, pensar o usuário nesse sentido “atesta uma circularidade programação - produção - consumo sempre instável, mas que tende à integração funcional e afetiva do consumidor como dispositivo” (MATTELART, MATTELART, 2001, p. 154)
A atenção do espectador, usuário de cinema sobretudo dos primórdios, é impulsionada pela curiositas, essa cobiça do olhar (GUNNING, 1995, p. 56) como definida por Santo Agostinho. As dinâmicas de espectatorialidade mudaram ao longo dos anos, passando pelo contraponto de atenção e distração, passividade (em certos graus), interatividade e atividade.
No início do cinema havia um enfoque para o ato da exibição. Prevalecia a inovação do projetor e da imagem em movimento do que uma narrativa. Aliás, esse cinema precede o domínio da narrativa. Contemporâneo aos teatros de mágicas, as exibições cinematográficas muitas vezes eram acompanhadas por um showman que guiava a plateia pelas cenas (além dos próprios filmes que já direcionavam a atenção do espectador para determinados acontecimentos dentro do plano pelos movimentos dos atores, puxando uma veia do teatro – até essa concepção da direção do olhar ser refinada posteriormente através da montagem). Tom Gunning desmitifica a crença de ingenuidade do espectador e mergulha sobre as formas e impactos que implicam na configuração da recepção cinematográfica do público. Sobre a considerada primeira exibição, o filme “A chegada do trem à estação” dos Lumière, Gunning aponta:
Se os primeiros espectadores gritaram, era para certificar-se do poder do aparato de eliminar toda sensação prévia e arraigada de realidade. Essa vertiginosa experiência da fragilidade do nosso conhecimento do mundo diante da ilusão visual produzia aquela mistura de prazer e ansiedade que os fornecedores de arte popular rotularam de “sensações” e “emoções”, e nas quais fundaram uma nova estética das atrações. O trem correndo não produziu apenas a experiência negativa do medo: ele criou a forma, particularmente moderna, do entretenimento da emoção. (GUNNING, 1995, p. 55)
O cinema entra na categoria de arte catártica, estimulando o espectador através de diversos sentidos. A crescente urbanização do século XIX, acompanhada das intensas jornadas de trabalho e da efervescência do consumismo, provocou um anseio por imagens e atrações. Nesse contexto, de forma análoga à aspectos da vida moderna, o público no cinema das atrações opera na lógica da “extinção da experiência e sua substituição pela cultura da distração” (Id., Ibid., p. 58). Essa operação vale para os experimentos audiovisuais contemporâneos, pois de forma semelhante, como observa BAPTISTA (2010), o próprio youtube pode ser de fato pensado como cinema de atrações. O caráter efêmero, sensorial e espetacular da cultura das atrações é bem sintetizado pela brilhante Miriam Hansen (in memoriam):
[...] o cinema surge como parte de uma cultura emergente do consumo e do espetáculo, que varia de exposições mundiais e lojas de departamentos até as mais sinistras atrações de melodrama, da fantasmagoria, dos museus de cera e dos necrotérios, uma cultura marcada por uma proliferação em ritmo muito veloz – e, por consequência, também marcada por uma efemeridade e obsolescência aceleradas – de sensações, tendências e estilos.
(HANSEN, 2001, p. 498)
Mesmo distraída, a plateia é uma peça fundamental para a concretização do cinema. O filme se instaura como tal na medida que é visto e reformulado de acordo com as experiências prévias do espectador. O cinema é como o rio heraclitiano. No cinema, assim como no rio, entramos e não entramos, somos e não somos... Além disso, a percepção é entrelaçada à subjetividade, de forma que ninguém vê um filme da mesma forma que outrem. Dessa maneira, o filme ganha e agrega sentido com o espectador que, mesmo distraído, se constitui como interator ou participador como pensava suas obras o genial Hélio Oiticica.
Em certa medida, é preciso algum grau de distração para ter atenção, posto que há muitos estímulos no mundo contemporâneo. Nesse sentido, a distração é uma medida protetiva do assédio de imagens e informações. Caso contrário, seria impossível estabelecer uma atenção focalizada, toda atenção seria dispersa.
A vista distraída a qual o público de cinema foi habituado é confrontada ao se deparar com cinemas de vanguarda ou experimentais, que instigam o espectador a sair de sua situação passiva de contemplação. Obras do campo das artes visuais como a “Fonte” (1917) de Duchamp e as latas de sopa Campbell de Warhol não entregam no trabalho em si o significado e instigam o público a completá-lo, assim como “Um cão Andaluz”(16’, 1929) de Luis Buñuel e “Line describing a Cone” (30’, 1973) de Anthony McCall. No mais, também são produzidas obras sem o intuito de significar alguma coisa numa esfera racional, e cabe ao público enxergar ou não algo no exposto, como a performance “Sometimes Making Something Leads to Nothing” (1997), na qual Francis Alÿs empurra uma pedra de gelo pelas ruas da Cidade do México até o gelo derreter.
Em “inventa alma” (2020, site interativo concebido para a exposição virtual Olha Geral Quarentena), Rêzi de Souza (Renata Spolidoro) coopta o espectador para um percurso digital no qual ele é o próprio guia. Adentramos esse universo de forma fragmentada, subjetiva, em um caminho moldado por nossas escolhas – que não nos oferece a visão do todo. A proposição se formata em um duplo: na medida que vislumbramos e construímos a “alma” de Rêzi – através da projeção feita para as telas e a concretização da obra no e a partir do espectador – a artista também nos visualiza, como descrito no painel de entrada: “deixa eu ver sua alma. me deixa inventar sua alma. inventa alma.” Nesse contexto, a discussão entre consciência e interatividade entra em jogo no panorama da arte expandida através do digital.
Isso é revigorado através dos projetos do grupo ARTEK [Lab], fundado por Jaime de los Ríos. O grupo explora diversas vertentes artísticas perpassadas pelo cinema em sua concepção expandida, como as obras “MARE NOSTRUM”, “Autopoética”, “OPEN ARCH” e “REACTIVE ENVIRONMENT VJ_SYSTEM”, se utilizando de multi projeções, softwares de VideoMapping, entre outros. É possível vislumbrar essas e outras obras dentro de um espectro de “instalação-filme” que expande o cinema para lugares além da sala de exibição, construindo uma situação-cinema. Sobre isso, desenvolve Natália Aly:
Expandindo sua poética para o espaço, a obra torna-se um processo de reflexão diante da realidade de cada indivíduo que o experimenta. Na contramão do cinema comercial, aqui a imagem em movimento é apenas um dos ingredientes de construção da obra — junto com o espaço e o espectador. É um cinema que ultrapassa a narrativa convencional, a tela única, a trilha-sonora formatada. O resultado é uma de um situação-cinema que se desenrola no ambiente de fruição,por isso o espectador pode construir sua própria experiência cinematográfica.
(ALY, 2012, p. 61)
Como um último exemplo, os dispositivos “Visorama”, utilizado na instalação “Figuras na paisagem” (2010), ou o experimento “Circuladô” (2010-2014), ambos de André Parente, são fundamentais. No primeiro, André recria a experiência do cinetoscópio de Edison, criando um aparato óptico que traz imagens panorâmicas, mas ao mesmo tempo mostra o que o espectador vê para o espaço expositivo. No segundo, coloca o espectador para rodar um dispositivo e influenciar no rodopio das imagens dispostas em um zootrópio gigante. O usuário torna-se, para voltarmos a McLuhan, mensagem de um experimento.
Figura 2 – “Visorama”, de André Parente
Figura 3 – “Circuladô”, de André Parente.
O espectador nesses exemplos participa ativamente no processo de recepção ao interagir com uma obra, produzindo dessa forma multilinguagens e interpretações através de um único, ou de um conjunto, de produtos audiovisuais. O espectador, em sua posição, expande, estende, por si só completa o processo artístico tendo a consciência disso, pois mesmo com toda a abertura das obras, umas são mais abertas que outras...
Conclusão: O cinema como arte experimental e híbrida na era da complexidade
“Os meios de comunicação contemporâneos, (...) parecem evoluir no sentido de uma hibridação, que vulgarmente tem sido nomeada como convergência das mídias” (PEREIRA, 2006). A complexidade que os meios assumem ao agregar funções no decorrer do aprimoramento de sua estrutura tecnológica acarreta em um problema metodológico de catalogação, no qual o discernimento entre mídias se torna nebuloso.
De volta ao exemplo do telefone, agora celular, é perceptível que o aparelho não possibilita mais apenas a função que o caracterizou: a chamada telefônica. O mesmo aparelho permite ligações (sua função original), ouvir músicas (o que antes se restringia a rádio e a atividade presencial), ver filmes, séries e afins (a partir do surgimento do streaming), a troca de mensagens (que assume e reposiciona a função das cartas e do e-mail), jogar jogos e o acesso à internet, que multiplica suas possibilidades somado, evidentemente, à mobilidade. E, para o que nos interessa, agrega-se a isso tudo o tornar-se um dispositivo para experimentação audiovisual.
O cinema, em especial o experimental, segue em certas medidas a mesma problemática metodológica de catalogação que os aparatos multimidiáticos. De certa maneira, o cinema já nasceu interdisciplinar e por isso complexo — sendo até hoje, e cada vez mais, necessária a pergunta “o que é o cinema?”.
Cecília Almeida Salles aponta que novas artes/correntes artísticas surgem a partir de traços ou características de outras – similar ao processo científico de surgimento de novas disciplinas a partir da limitação de outras áreas prévias, possibilitando dessa forma a quebra e construção de paradigmas. A autora prossegue:
Muitos críticos e criadores discutem a questão de que não há criação sem tradição: uma obra não pode viver séculos futuros se não se nutriu dos séculos passados. Nenhum artista, de nenhuma arte, tem seu significado completo sozinho. Assim como o projeto individual de cada artista insere-se na tradição, é, também, dependente do momento de uma obra no percurso da criação daquele artista específico: uma obra em relação a todas as outras já por ele feitas e aquelas por fazer.
(SALLES, 2007, pp. 42-43)
De acordo com Ricciotto Canudo, o cinema seria resultado da composição de duas esferas artísticas, as artes do espaço (arquitetura, pintura e escultura), e a artes do tempo (música, dança e poesia). Nesse sentido, o cinema seria apenas um artifício novo moldado por sistemas de artes preconcebidos. No entanto, a concepção de montagem serviu como ferramenta emancipatória do cinema da situação de ser uma arte agregadora de outras, consolidando sua especificidade através do corte e da organização. Por conta disso, por muito tempo as teorias do cinema coincidiram com teorias da montagem. Anos depois de Canudo, talvez a expressão expanded cinema (1970) de Gene Youngblood seja a que mais dê conta das amplitudes e aberturas do cinema. Estamos às portas da enésima arte com o cinema adentrando os terrenos da realidade virtual e da inteligência artificial. Aí é que o cinema experimental pode nos dar mais lições, podendo funcionar como uma pedagogia audiovisual (portanto uma literacia midiática) ainda a ser muito explorada.
O cinema foi se consolidando como arte e como indústria, se auto-definindo e auto-referenciando, criando dessa forma uma concepção de fazer e receber cinematográfico. Nesse contexto, se instaura uma noção de tradição cinematográfica, a partir da qual se definem outros cinemas em oposição, como o cinema experimental e de vanguarda e a própria concepção expandida, que hoje está, graças ao digital, em fenômenos como os gifs animados, a glitch art e demais anamorfoses que ganham cada vez mais as redes e gadgets.
O cinema experimental bota em cheque a definição e a forma cinematográfica a partir da saída do espaço expositivo convencional e expansão para outros espaços, dialogando e flertando com outros campos artísticos. Na medida que a grande indústria procura cercear e fechar a concepção de cinema em si, uma esfera identificável e consolidada, a arte da imagem experimental promove um rompimento através da acentuação da hibridização das artes para além do espectro tradicional vislumbrado dentro da esfera fixa do filme.
Há muitas artes que são híbridas pela própria natureza: teatro, ópera, performance são as mais evidentes. Híbridas, neste contexto, significa linguagens e meios que se misturam, compondo um todo mesclado e interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada. Nesse território, processos de intersemiose tiveram início nas vanguardas estéticas do começo do século XX. Desde então, esses procedimentos foram gradativamente se acentuando até atingir níveis tão intricados a ponto de pulverizar e colocar em questão o próprio conceito de artes plásticas. (SANTAELLA, 2003, p. 135)
Na teoria da arte, a pergunta “o que é arte?” ecoa desde Platão. Desde Warhol, a pergunta da filosofia da arte vira “o que faz com que dois objetos indiscerníveis do ponto de vista material e óptico possam, no entanto, ser diferentes? Um ser arte e o outro não” (CASTRO, 2014, p. 58). A mesma formulação da filosofia da arte se expande para a teoria do cinema, cujo domínio se torna incerto na medida que opera em fronteiras – arte, indústria, comunicação e tecnologia.
A hibridização nos faz supor que ‘todas as culturas são de fronteira’. E na contemporaneidade, as construções de imagens e imaginários parecem se dar, sim, cada vez mais, nessa região fronteiriça entre artes e comunicação (COVALESKI, 2012, p. 100).
Desse modo, é complexo procurar definir cinema, especialmente o experimental, como algo certo, de significado fechado, em um purismo conceitual ignorante da interdisciplinaridade em que opera. Como propôs PARENTE (2000), falar de experimental é lembrar tendências, cabendo pensar o experimento cinema como uma arte híbrida e complexa.
Há uma constante reciclagem e retomada a ideias e artefatos que esgarçam o limite do que é novo e velho, principalmente em uma cultura que não é baseada em um progresso único e linear. Dessa forma, é cabível lidar com o cinema como uma arqueologia de outros meios, em especial o cinema experimental. Assim, as distinções entre os setores das artes se tornam difusas, na medida em que um campo se apropria de conceitos e artifícios de outros cada vez mais no contexto midiático. Dessa forma, temos um entendimento cada vez mais fronteiriço dos estudos de cinema, fotografia, mídia e artes, áreas que se pautam pela confluência de disciplinas e saberes e, que acima de tudo, aponta para um deslizamento entre imagens, passagens em que o experimento é a mensagem como podemos observar em diversos trabalhos de arte experimental discutidos, remontados e ressignificados.
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