Abstract
Walking in urban spaces as an artistic practice gains aesthetic value, revealing a sensorial component of the human experience in spaces, consequently adding to them a symbolic charge (Careri 2015). Cinema as a form of art has often aesthetically explored images of emblematic cities as a visual technique for the construction of narratives. The pace and movement of wandering through urban landscapes is the gear for the development of the plot and from this perspective, the concept of exploring the urban landscape through walking as an aesthetic practice of fruition can be seen as the skein thread that conducts the storyline, which is then explored through various visual frames attributing symbolic and artistic value to the scenes.
In this sense, this paper aims to conceptually analyze the relationship between walking and different narratives as an aesthetic and symbolic central theme in the following films: “Before Sunrise” by Richard Linklater (USA-Austria, 1995), “Lost in Translation” by Sofia Coppola (USA-Japan, 2003) and “Passerby” by Eryk Rocha (Brazil, 2010). This movie choice seeks to contemplate different geographies and timeframes focused on walkability as a form of artistic expression over the urban landscape, where the narratives are constituted. Wandering through a city stands out as a pivotal element between the urban landscape and the film development through the director’s eyes.
Keywords: Cinema, City, Urban Landscape, Walkability, Flanerie
Introdução
La marche est une traversée des paysages et des mots (Le Breton 2001, 14)
As palavras de David Le Breton evocam a experiência de caminhar como condição humana que estimula a expressão sensorial como um meio intelectual (Le Breton, 2001). Neste contexto, caminhar na cidade vem sendo abordado por diferentes vertentes do conhecimento, especialmente a Arte, oferecendo debates sobre a prática estética da relação das pessoas com o ambiente da cidade.
É vasto o conjunto de obras que exploram a experiência sensorial e estética na caminhada. Pela perspetiva artística, caminhar nos espaços urbanos ganha valor simbólico, revelando-se uma componente sensorial humana no espaços (Careri, 2015). Alguns movimentos artísticos ofereceram experimentações, obras e manifestos através do ato de caminhar, no quadro de reflexão sobre as transformações dos cotidianos e vida social das cidades.
A poesia de Baudelaire reagiu ao advento da modernidade, ao promover a figura do Flaneur no século XIX. A expressão artística deste poeta manifesta o olhar crítico da personagem que deambula pela cidade como um anónimo na multidão, apreendendo cenas e detalhes do cotidiano da cidade industrial (Benjamin 1994). No século XX, artistas dadaístas propuseram as deambulações em grupo a conversar por dias consecutivos. Essa experiência conduziu ao manifesto surrealista, o que indica, mais uma vez, a prática estético- intelectual da caminhada (Careri, 2015).
Em evolução, a Internacional Situacionista em meados de 1950 revê criticamente as deambulações surrealistas, com a Teoria da Deriva, uma reflexão sobre efeitos psico-geográficos do contexto urbano nos indivíduos. A Deriva vem superar as Deambulações Surrealistas ao propor experimentações pedonais especificamente para a cidade – as errâncias urbanas (Careri, 2015). A Deriva Situacionista propõe reflexão sobre a reprodução de espaços genéricos, sem identidade, que foram igualmente definidos como não-lugares (Marc Augé, 2009).
Ainda neste propósito, a Deriva apresentou o caminhar como um método de exploração da cidade em conjunto, em meio a conversas, com sujeição às situações imprevistas. A Internacional Situacionista fundamenta-se na apologia à Cidade Lúdica em contraposição à Cidade-Espetáculo, estritamente utilitária, não participativa e vista como artificial (Jacques, 2005). A crítica busca resgatar o sentido humano, espontâneo de vivenciar a cidade. Implicitamente, havia o anseio por uma alternativa para o modelo urbano, cuja vida social sujeita-se naturalmente à construção de aventuras e eventualidades possibilitadas por um percurso a pé.
Neste Contexto, o ato de caminhar proporcionou experimentações artísticas e reflexivas sobre a cidade, conduzindo ao resgate da ideia da Caminhabilidade em contextos urbanos. O conceito de Caminhabilidade é amplamente difundido a partir da década de 1990 como uma qualidade urbana presente em ambientes construídos que favorecem o andar a pé (Speck 2012; Moura, Cambra, e Gonçalves 2017; Vale, Saraiva, e Pereira 2016).
Desta forma, a Caminhabilidade emerge enquanto uma qualidade urbana enfraquecida no modernismo. Contudo a presente abordagem a enfatiza como necessária para desenvolvimento artístico, intelectual, coletivo e cultural dos habitantes. Portanto, estimular o caminhar na cidade fomenta ideações e reflexões assentes na fruição de paisagens urbanas caminháveis.
Nesta condição, as paisagens urbanas são elementos urbanos relevantes para a Caminhabilidade, contribuindo para a fruição do percurso a pé (Cullen 2009). A Caminhabilidade em ambientes urbanos possibilitaria situações e narrativas urbanas enquadradas em cenas cinematográficas, tendo a experiência sensorial de caminhar como componente chave para expressão artística de um enredo de um filme.
Portanto, o conceito de Caminhabilidade é explorado pelo campo artístico do Cinema quando possibilita construções de narrativas, estabelecendo como elementos: o ambiente com paisagens urbanas caminháveis como cenário; e as pessoas caminhantes, como personagens. A partir dessas duas componentes, o ato de caminhar conduz o desenvolvimento de enredos, diálogos, sonoridades, cuja expressão podem ser dotadas de valor simbólico, pela perceção sensorial do narrador/realizador.
Este trabalho enfatizará conceitualmente a relação do Caminhar com a fruição da Paisagem Urbana, explorada através da experiência sensorial no campo artístico do Cinema. A análise se direcionará a três filmes em que o ato de caminhar se destaca como um elemento expressivo e permeador de narrativas.
A paisagem urbana e a fruição do caminhar: elementos para expressão artística
O caminhar na cidade, enquanto um ato de fruição (fruitio) transcende a ação utilitária, se definindo um valor estético, sem finalidades imediatas. Assim, o fruitio pressupõe a ideia de apreciação, ou mesmo, sentimentos de satisfação, alegria e prazer, decorrentes dos elementos sensoriais (Oberg, 2007).
Portanto, a abordagem do caminhar pela perspetiva do cinema, envolve analisar a relação do sujeito/ personagem com a paisagem urbana.
O campo da Arquitetura e Urbanismo define Paisagem Urbana como “a arte de tornar coerente e visualmente organizado o emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o ambiente urbano” (Cullen 2009, 135). E define ainda:
Se me fosse pedido para definir o conceito de paisagem urbana, diria que um edifício é arquitetura, mas dois seriam já paisagem urbana, porque a relação entre dois edifícios próximos é suficiente para libertar a arte da paisagem urbana (Cullen 2009, 135)
Auguste Choisy, anteriormente, em um estudo sobre o “Pitoresco” na Grécia Antiga (Choisy 1899) chega a um conceito próximo ao de Cullen. O autor conceitua que um conjunto de edifícios se caracteriza como paisagem quando as massas individuais se equilibram no conjunto visual. Logo, compreende-se que a construção da paisagem urbana, bem com sua apreensão pressupõem uma relação sensorial entre o espaço construído e o sujeito. Neste, sentido, o caminhar proporciona a descoberta e desfrute de diferentes sentidos humanos, sobretudo o visual.
A paisagem urbana reforça o valor artístico quando um grupo de construções sugere a possibilidade de criar uma arte diferente (Cullen 2009). Neste sentido, a implantação do conjunto arquitetónico intenciona harmonizar os pesos dos volumes das construções, formando imagens equilibradas, belas e particulares. As imagens conferem um caráter pictórico ao longo de um percurso a pé, direcionando o olhar da pessoa para a descoberta dos enquadramentos visuais.
Neste enquadramento, Gordon Cullen define o conceito de visão serial, no qual a leitura visual da paisagem urbana promove uma sucessão e sentimentos inesperados que conduzem ao caminhar de um transeunte. Assim, chega-se à relação entre o Caminhar e o Olhar. O olhar das pessoas direciona o andar para um percurso ou desvia para outro trajeto.
Abordagens do campo da psicologia apontam igualmente o ato caminhar como prática intelectual. James Hillman no texto Walking caracteriza essa relação olhar-caminhar como o “andar com os olhos e o andar com os pés” (Hillman 1980, 4).
(… ) it was considered essential that both the eye and foot be satisfied: the eye to see, the foot to travel through, the eye to encompass the whole and know it, the foot to remain within it and experience it (Hillman 1980, 4).
Assim, o caminhar enquanto uma experiência de fruição consiste igualmente em fator de bem-estar. Esta condição depende da qualidade da paisagem urbana e do potencial de imaginabilidade do trajeto caminhado. Ainda por esta abordagem, a apreensão visual do percurso a pé pode ser uma experiência de fruição e meditação, como de monotonia, cansaço ou medo. Logo, um caminho poderá tornar-se cansativo quando não há variação de imagens ao longo do trajeto; ou quando o olhar não é captado para explorar algo diferente (Hillman 1980).
... The foot should never travel to it by the same path which the eye has traveled over before (Hillman 1980, 5).
Portanto, a relação da Paisagem Urbana com o percurso caminhável desperta nos transeuntes sentimentos de orientação, pertencimento, identidade, curiosidade, conferindo àquele local, atributos que estimulam à fruição em caminhar, em parar e, assim, situações cotidianas ou eventuais são construídas.
Neste caso, a relação da qualidade da paisagem urbana como a fruição da cidade conduz à experiência da leitura visual no quadro do percurso a pé. Por consequência, os sentimentos proporcionados pela paisagem urbana percorrida a pé podem incitar narrativas expressas pelas artes da pintura, desenho, fotografia e cinema.
A definição de Gordon Cullen contribui para a perceção da paisagem urbana por meio do enquadramento visual a pé. No entanto, somente a leitura visual não representa, por completo, as possíveis formas de perceções da paisagem urbana caminhável.
Caminhar na cidade envolve igualmente a perceção sonora. Desta forma, explorar cinematograficamente o caminhar na paisagem urbana poderá envolver a perceção sonora. Le Breton afirma que a caminhada é uma forma de capturar a sonoridade do ambiente através do próprio silêncio (Le Breton, 2001).
Este raciocínio transcende a conceito da paisagem urbana como um equilíbrio de construções arquitetónicas para acrescentar os sons, ruídos de pessoas, animais, máquinas em variadas atividades urbanas que enaltecem a vida na cidade. Portanto fruir a paisagem urbana envolverá a combinação de sentidos humanos, entre eles a visão e a audição.
Nesta condição, imagens e sons são elementos de destaque no campo cinematográfico, explorados pela expressão visual, como pela sonora. Os dois sentidos combinados podem produzir, ainda nos imaginários de espectadores, perceções de olfato e texturas existentes nos cenários urbanos. Pelo domínio da sonoplastia, a música e sons são objetos de técnicas de efeito simbólicos na expressão de sentimentos e caracterização de cenário cinematográfico.
Sugere-se, portanto, que pelo campo da Arquitetura, a relação de construção visual da paisagem urbana, poderia se aproximar do enquadramento visual da câmera do realizador nas cenas de um filme. Por esta aproximação, o conceito da construção e leitura visual sequêncial da paisagem urbana, proposta por Gordon Cullen determinaria a caminhada fruitiva. Da mesma forma que James Hillman propõe a fruição do percurso caminhável determinado pelo Olhar, ou seja, a apreensão visual da paisagem urbana com foco na experiência sensorial das pessoas.
Por outro lado, David Le Breton acrescenta outros sentidos na relação humana com espaço proporcionada pela caminhada. Neste âmbito, a Sonoridade combinada com enquadramentos visuais constitui-se como elementos com valores simbólicos na expressão artística das películas.
A presente conceituação almeja enquadrar o caminhar como método de expressão artístico, intelectual e cultural assente na experiência da fruição da paisagem urbana. Dessa forma, um diálogo entre os conceitos da paisagem urbana com o “caminhar fruitivo” atravessa abordagens interdisciplinares das artes, literatura, Arquitetura, Sociologia, Saúde e Psicologia para se apresentar como um elemento explorado no Cinema.
O caminhar nas narrativas cinematográficas: filmes
Nos contextos dos filmes, a ação de caminhar se destaca por diferentes abordagens na construção dos enredos. O movimento sob a dimensão do peão sugere a expressão e a linguagem. Esta secção vai analisar conceitualmente a relação de “Caminhar” com “a Fruição da Paisagem Urbana” como fio encadeador de narrativas artísticas exploradas pelo cinema.
No contexto cinematográfico, os enquadramentos visuais e efeitos das sonoridades podem expressar a perceção dos transeuntes. O modo de enquadrar visualmente a experiência de caminhar em uma cena de cinema determina, ainda, a posição do narrador no contexto narrativo. Complementarmente, o sentido sonoro humano tem papel importante na perceção do cenário urbano caminhável.
A partir da conceituação, apresente análise explora esteticamente a relação visual do caminhar na paisagem de cidades que permeia as diferentes narrativas contadas através das lentes cinematográficas nos filmes: “Antes do Amanhecer” (Before Sunrise) de Richard Linklater (EUA-Austria,1995), “Encontros e Desencontros” (Lost in Traslation) de Sofia Coppola (EUA-Japan, 2003) e “Transeunte” (Passerby) de Eryk Rocha (Brasil, 2010).
Antes do Amanhecer
A película Antes do Amanhecer (Before Sunrise) de Richard Linklater (EUA-Austria,1995) parte da premissa de encontros e situações espontâneas e transitórias, possibilitadas pelas deslocações de pessoas. Neste contexto, caminhar se apresenta como meio com o qual as personagens se permitem conhecer, ao que concomitantemente, desvendam lugares da cidade de Viena, em um intervalo de tempo.
O movimento é o elemento que alimenta o enredo desde a cena inicial. Intencionalmente, a primeira cena apresenta a deslocação sobre os trilhos de um trem, seguindo para o corredor de circulação no interior do comboio. O elemento “dos trilhos do comboio” evoca a simbologia do movimento e da transitoriedade de uma viagem entre cidades. Por outro lado, o comboio enaltece os variados momentos partilhados entre pessoas, num intervalo de viagem (Fig. 1).
Figura 1 – Céline e Jesse caminham pela estação de comboio de Viena (Antes do Amanhecer 1995)
Dentro da ideia de movimento, ao desenvolvimento da narrativa do filme é mobilizada pela ação de caminhar dos personagens, uma vez que desperta sentimentos e reflexões sobre os lugares por onde transitam. O enredo da película apela à espontaneidade da descoberta, refletida no diálogo entre os personagens Jesse, um rapaz jovem viajante americano e Céline, uma jovem estudante francesa, residente em Paris.
Os dois personagens conhecem-se no comboio para Viena, cidade que para ambos é uma paragem intermediária para seus respetivos destinos finais. Jesse deve permanecer seis horas em Viena antes do seu voo para Nova Iorque, enquanto Céline somente continuaria a viagem de comboio para Paris, onde reside. O encontro e a afinidade entre os personagens incitam que Jesse sugira a Céline que fique mais umas horas com ele em Viena para que, assim, possam conversar e percorrer a cidade.
Dessa forma, a paragem intermediária em Viena introduz a circunstância da brevidade associada à possibilidade de estórias construídas numa situação de trânsito entre lugares. A conjuntura momentânea é a fonte que instiga o enredo fundamentado no passeio transitório dos personagens por Viena. A caminhada constrói uma sequência de situações partilhadas, nas quais eles permitem descobrir a si próprios através dos sentimentos suscitados pelo percurso (Fig. 2). A sequência remete à Deriva Situacionista, acrescentada do conceito de Visão serial de Gordon Cullen.
Figura 2 – Céline e Jesse caminham por Viena (Antes do Amanhecer 1995)
O percurso a pé, no contexto do filme, proporciona, para além de caminhar, parar, conversar, observar, refletir e partilhar. Caminhar consiste, assim, no fio condutor que alimenta os diálogos que abrem a intimidade que fundamenta a relação entre os personagens.
A condição do caminhar na trama cinematográfica assemelha-se às abordagens que destacam o percurso a pé como método de experimentação e inspiração artístico-intelectual (Careri, 2015). O percurso a pé permite observar criticamente as paisagens cenas urbanas de Viena, evocando à flanerie. De modo semelhante, o acaso, a que os personagens se sujeitam ao caminhar, remete à Deriva Situacionista, apelando à ideia da experiência do território da cidade como um território lúdico. Nesta condição, a curiosidade alimenta a caminhada fruitiva e a construção de aventuras (Careri, 2015).
Por outra visão, filme dialoga com o pensamento de David Le Breton ao propor o ato de caminhar como prática de fruição e estímulos sensoriais. O filme enaltece a espontaneidade da descoberta e do deleite de Viena através da relação dos personagens e sentimentos que lhes são impelidos. Implicitamente, a película incorpora a crítica ao modelo de vida urbana assente na velocidade para apresentar a uma alternativa de cultura que valoriza o tempo para a fruição e perceção sensorial do espaço a caminhar (Le Breton, 2001).
É importante ressaltar que o filme “Antes do Amanhecer” é realizado em 1995, década em que renasce a ideia da Caminhabilidade no espaço público da cidade. A Caminhabilidade surge em crítica ao paradigma cultural urbano da cidade centrada no uso do carro, tráfego rodoviário e dentro de espaços privados dos shopping-centers). O filme Antes do Amanhecer contribui para ideia de que a cidade caminhável possibilita viver situações cotidianas e eventuais nos espaços públicos. O filme mostra a riqueza cultural que existe na partilha da cidade centrada no humano, através da vida urbana a pé.
Segundo Le Breton, o ritmo lento de caminhar na cidade é visto como anacrónico no modelo de cultura contemporânea que enaltece os deslocamentos e as atividades urbanas sob a lógica da velocidade do carro (Le Breton, 2001). Assim, o filme oportunamente propõe uma crítica à cultura moderna funcionalista que preza pela velocidade, urgência eficácia, resultados voláteis. Nesta lógica, o ritmo ralentado da vivência da cidade centra-se na condição humana como uma alternativa.
A crítica à Velocidade da vida contemporânea associa-se os valores da efemeridade aplicados nas relações humanas no espaço. Dentro deste enquadramento, a obra retoma o conceito da Transitoriedade na cena com a Cartomante. A figura da vidente que lê o destino representa um contraponto a ideia do acaso. Figura da Cartomante afirma em tom de clarividência que todos são poeira estelar do Universo. Ou seja, todos são partículas ou pontos que definiram um “Todo” (Fig. 3).
Figura 3 – Cena da cartomante (Antes do Amanhecer 1995)
Intencionalmente na cena seguinte, os personagens caminham e observam um cartaz de divulgação de uma exibição de Georges Seurat. Céline analisa as imagens do estilo impressionista pontilhista de Seurat. Nestas obras, o Seurat define as formas e sombras através da expressão de um conjunto de pontos, o que evidencia a abstração impressionista da linha e dos planos. Celine observa as figuras humanas de Seurat e afirma: “I love the way the people seem to be dissolving int the background” (Fig. 4). Ou seja, simbolicamente, os pontos definidores das formas dissipam-se, tal como nas palavras da Cartomante.
Figura 4 – Cena em que Céline analisa as imagens do cartaz da exibição de George Seurat (Antes do Amanhecer 1995).
Celine ainda completa “His human figure are always so transitory” (Fig. 5) evocando a ideia da efemeridade da condição humana. A ideia da Transitoriedade intencionalmente revela que a passagem e a permanência das pessoas espaço é temporário. O diálogo suscita a natureza breve da circunstância do encontro de Jesse e Céline em Viena.
Figura 5 – a natureza transitória das figuras humanas de Seurat (Antes do Amanhecer 1995)
Por fim, os enquadramentos das cenas durante a sequência de situações que se passam em Viena relevam o olhar do realizador sobre a paisagem urbana, o que dialoga com o conceito de Visão Serial de Gordon Cullen. Neste contexto, os personagens compõem a paisagem urbana capturada nas cenas.
No final da película, ao amanhecer, os personagens seguem para seus destinos separadamente, uma sequência dos enquadramentos visuais dos lugares que incitaram diálogos e sentimentos entre Jesse e Céline é mostrada em sequência. (Fig. 6, 7 e 8).
Figura 6 – Praça em que encontram a Cartomante (Antes do Amanhecer 1995)
Figura 7 – Rua em que Céline e Jesse passam momentos a conversar (Antes do Amanhecer 1995)
Figura 8 – Local por onde os personagens percorrem (Antes do Amanhecer 1995)
Os lugares vazios ao amanhecer ratificam a ideia da transitoriedade humana no espaço da cidade. As pessoas são transitórias, contudo o espaço permanece. Entretanto, permanecem a espera de outros olhares, personagens e enredos. Por fim, o filme aborda os sentimentos suscitados por meio de caminhar como fruição da paisagem da cidade de Viena na expressão da transitoriedade humana.
Encontros e Desencontros
Ao contrário de “Antes do Amanhecer “(Linklater 1995), “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation) de Sofia Coppola (EUA, Japão, 2003) mantém, em relação ao espaço urbano e ao cotidiano, um alienamento e ao mesmo tempo, um desejo profundo de encontro. Os personagens Charlotte e Bob transitam em um não-lugar (Augé 2009), uma tipologia de vazio urbano que será simbolicamente transposta para os estados existenciais. O Não-lugar existencial é expresso na solidão e na fraca identidade dos personagens com a cidade em que se passa a narrativa, destacada pelo cenário do Hotel.
O Não-lugar associa-se ao que Rem Koolhaas (2014) define como espaço-lixo (junk-space). Este autor, da mesma forma, desenvolve o conceito de espaço-lixo em analogia à cultura massiva de produção e consumo excessivo que prima pela rapidez e volatilidade das formas de estar e absorver a cidade:
O espaço-lixo é pós-existencial, faz-nos não ter a certeza do lugar onde estamos, oculta para onde vamos e anula o lugar em que estávamos. Quem pensamos que somos? Quem queremos ser? (Koolhaas 2014, 90).
As urbes contempladas nesta película, que se estrutura como um longo “vídeo-clip meditativo” são Tóquio e Kyoto. Os personagens situam-se, de certa forma, excluídos da vida cotidiana – o Não-lugar definido por Marc Augé (2009) – em um hotel no coração da cidade.
O hotel incorpora os conceitos de espaço de fluxo transitório. Contudo diferentemente dos outros filmes, o transitório não é explorado como um lugar relacional. Ou seja, o hotel define um espaço-lixo orientado para o trânsito e estandardização rápida e efémera da permanência dos hóspedes. Neste caso, o hotel reforça o Não-lugar pela ausência de identidade das pessoas com aquele espaço e com a cidade em que se insere. Ainda reforçando este enquadramento, o espaço urbano é visitado em diversas cenas através do enquadramento da janela do hotel, mantendo uma distância que os personagens em algumas ocasiões ousam percorrer.
Este distanciamento da urbe, possivelmente mimetize a distância que Charlotte e Bob mantém da existência prática, do dia a dia, assim como de todas as suas alegrias e agruras. No caso de Bob que é ator, devido à natureza intrínseca de sua profissão, ele transita na irrealidade, no mundo do cinema e dos papéis que interpreta. Extremamente adorado no Japão, ele se mostra desconfortável na posição de estrela de Hollywood. Ainda mais por estar na cidade com o único propósito de filmar o comercial do whisky Suntory: “For relaxing times, make it Suntory time”.
Charlotte, por sua vez, acompanha o marido, um fotógrafo de sucesso, em uma viagem profissional. Ela acaba de completar a sua graduação em Filosofia na Universidade de Yale e encontra-se em um limbo existencial, corretamente materializado pelo ambiente do hotel. Ela observa meditativamente a urbe pela janela, com seus eixos e edifícios grandiosos, assim como sua vegetação delicadamente distribuída (Fig. 9).
Figura 9 – Reflexo de Charlotte na janela do quarto (Encontros e Desencontros 2003)
O hotel e seu ambiente neutro, plastificado, impessoal é o ambiente onde estes personagens esbarram-se, mutualmente atraídos pela similaridade de seus vazios emocionais. Encontram-se primeiramente no elevador, onde Charlotte e Bill trocam olhares e sorrisos despretensiosos. Posteriormente no bar, onde reina música easy listening em sintonia com a neutralidade sufocante do hotel, onde mais uma vez eles trocam olhares e Charlotte, numa tentativa de contacto, envia uma bebida à Bill.
Esta dança suave de aproximação é intercalada por eventuais visitas exploratórias de Charlotte à cidade, em uma tentativa de conexão com o mundo real e consigo mesma. O caos organizado de Tóquio (Fig. 10) engole a transeunte Charlotte em sua busca por propósito e significado. Algumas cidades japonesas, neste caso, Tóquio, tem uma característica diferenciadora: templos que originalmente encontravam-se na periferia da cidade, no que seria considerado como campo, foram incorporados à malha urbana (Fig. 11) – engolidos como Charlotte no burburinho e agitação da cidade.
Figura 10 – Caos Organizado Tóquio (Encontros e Desencontros 2003)
Figura 11 – Charlotte no Templo Budista (Encontros e Desencontros 2003)
Desta forma, é possível, repentinamente passar de um contexto agitado e repleto de transeuntes, para o espaço religioso de um templo. No filme, este aspeto é enfatizado, uma vez que, Charlotte adentra a área do templo antes do horário de abertura das diversas lojas de oferendas integrantes da estrutura arquitetónica do templo. O conjunto é composto pelo templo em si e um conglomerado de edifícios que dão suporte às atividades religiosas complementares relacionadas. Dessa forma, pode-se inferir que a experiência de conexão de Charlote com o espaço templo apresenta um contraponto ao Não-lugar representado pelo Hotel.
Charlotte percorre como peão a animada e irreverente Tóquio transmitida pelo filme: ao atravessar uma rua, ao circular no metro, em templos e lojas, ao deambular pela urbe em movimentos leves e delicados na busca de algo intangível. A trilha sonora propositadamente contrasta à sonoridade e à interpretação neutral apresentados pela cantora do bar do hotel. E é assim que ao conectar-se com Bob, ela o introduz à urbe irreverente.
A partir do momento que este relacionamento se desenvolve e toma corpo, também os personagens, arriscam-se aos poucos no “mundo real” da cidade, em restaurantes, bares, até serem perseguidos pelas ruas da cidade. Emblematicamente, este romance platônico e irreverente, finaliza quando Bob à caminho ao aeroporto, ao avistar Charlotte a caminhar pelas ruas, salta do táxi e vai ao seu encontro.
Figura 12 – Cena final Charlotte e Bob em meio aos transeuntes (Encontros e Desencontros 2003)
Transeunte
Ao contrário dos momentos fora do dia a dia dos filmes anteriores, onde os personagens estão em viagem, o personagem de Transeunte (Passerby) de Eryk Rocha (Brasil, 2010) situa-se imerso no cotidiano. Ele transita em atividades corriqueiras que se desenvolvem no seu perambular pela cidade do Rio de Janeiro, em particular no centro desta urbe. É através destes percursos aos lugares que visita que a narrativa e história de vida do transeunte se apresenta ao espectador. Este, segue o personagem como a sua sombra, tantas vezes retratada (Fig. 13).
Na primeira cena, ao mostrar o personagem Expedito caminhando pelo cemitério, em direção à campa de sua esposa. Assim, descobre-se que é viúvo e que, de certa forma, sofre por esta perda, já que seu cotidiano inclui este passeio ao cemitério, espaço no qual não se configura como lugar relacional (Augé 2009) no contexto da vida urbana.
Figura 13 – A sombra do personagem (Transeunte 2010)
Entretanto, ao acompanhar o movimento de Expedito, verifica-se várias inscrições, vê-se fotografias, lê-se datas de nascimento e morte e aguarda-se a chegada do personagem à a campa da esposa. Este recurso de narrativa, ao transformar o espectador em personagem, aproxima-o dos percursos e locais visitados, assim como das emoções e sentimentos do próprio espectador projetados no personagem.
Na saída do cemitério, o transeunte emerge da multidão e aos poucos apresenta-se a sua corporalidade. Ao mesmo tempo, a cidade materializa-se em elementos de arquitetura – gradis, calçada, esquadrias – que compõem, como quebra-cabeça, o ambiente urbano transitado (Fig. 14).
Figura 14 – Ambiente Urbano Calçada à Portuguesa (Transeunte 2010)
Assim, neste observar constante de detalhes urbanos, que se chega ao apartamento do personagem, um exemplo clássico de arquitetura modernista em meio à malha urbana (Fig. 15). A densidade habitacional do edifício mais uma vez faz com que o personagem se perca na multidão, no anonimato, onde mergulha novamente.
Figura 15 – Edifício em meio ao ambiente urbano (Transeunte 2010)
A cidade, em eterna reconstrução, palimpsesto de diversas camadas físicas temporais (Harvey 1996), apresenta-se em eterna ebulição e materializa-se, mais uma vez, através de uma cratera em frente ao edifício onde o transeunte habita. A cratera causa certa curiosidade, representando o vazio na vida do personagem. Em sequência, sua realidade de reformado é apresentada em mais uma caminhada, desta vez ao Serviço de Segurança Social. Ao informar seus dados ao atendente, informa o espectador seus detalhes pessoais. Agora que Expedito está reformado, aos 65 anos, o que fará? O que surgirá da imensa cratera em frente ao edifício onde habita?
Figura 16 – Esquadrias Edifício (Transeunte 2010)
Figura 17 – Caixas de Correio (Transeunte 2010)
Figura 18 – Cemitério Catedral (Transeunte 2010)
Partimos em nova caminhada. A fotografia transita do macro ao micro em composições de extrema delicadeza, ao justapor em cenas sequenciais, o alçado do edifício com suas esquadrias regulares (Fig. 16), as caixas de correio do edifício (Fig. 17) e mais adiante as sepulturas do cemitério da catedral (Fig. 18). Este recurso que será utilizado em diversas ocasiões, numa brincadeira com geometrias similares em escalas distintas.
Aos poucos percebe-se que Expedito encontra-se em um momento de transição, e como transeunte, transita pela cidade do Rio de Janeiro, em uma constante procura. Neste percurso, acompanhamos a sua busca por cura e renascimento em uma consulta médica. Mais uma vez ele reitera o seu caráter de peão no diálogo no consultório:
Médica: O senhor tem feito exercício?
Expedito: Não, caminho.
Médica: Na esteira?
Expedito: Não, na rua mesmo.
Ele talvez queira recuperar, não só a saúde física, como também a alegria de viver. Em uma troca constante de modos de transporte – metro, autocarro, comboio – ele transita por locais diversos: lojas, barbeiro, bares, parques, lanchonetes, estádio de futebol (Fig. 19). Este cotidiano urbano é permeado por sons diversos. No início, os sons da cidade, que o situam no momento presente em contraposição ao momento passado do cemitério. Mais adiante, é introduzida a sonoridade da transmissão do rádio de pilha – mais uma vez com notícias do cotidiano e o dia a dia de seus habitantes –seguida de canções diversas, retratando eventualmente os sentimentos, aspirações do personagem. E finalmente, os ruídos amorosos do prazer de estar com alguém.
Figura 19 – Expedito no Autocarro: Voyer / Flaneur (Transeunte 2010)
Nesta busca de reencontrar a alegria, depara-se com diversos acontecimentos: uma roda de samba, discussões entre casais, partida de futebol, mulheres bonitas, corpos. Emoções, e a sensação de estar vivo, em contraposição à morte (cemitério). Expedito finalmente translada os restos mortais de sua esposa do cemitério para a catedral, e surpreende o espectador ao interpretar uma canção no bar que frequenta.
Por fim, o filme retrata a caminhada como representação do percurso de transição de vida que o transeunte Expedito vive. A película enaltece a sensorialidade da condição da vida humana (Breton 2001) através da deambulação pela cidade.
Conclusão
As narrativas urbanas apresentadas nestes três exemplos demonstram diferentes formas de abordagem visual, sonora e roteirística. Estas películas diversas, não só geograficamente, como narrativamente, exploram diferentes abordagens da Caminhabilidade como temática.
Em Encontros e Desencontros e Antes do amanhecer, os personagens estão em cidades alheias ao seu cotidiano, em viagem, em realidades fora do cotidiano de suas vidas. Em Transeunte, pelo contrário, o personagem está imerso em seu cotidiano. Coletivamente, ele é mais um no universo da cidade.
Os personagens-turistas, buscam na cidade o encontro do inusitado em suas vidas monótonas, ou em momentos de impasse. Ao mesmo tempo, verificamos esta gradação em termos de uso do discurso: do falar constante e randómico dos personagens de Antes do Amanhecer, às poucas conversas contidas de Encontros e Desencontros, à quase ausência de diálogos de Transeunte, magnificamente compensada pela sonoridade e concatenação constante entre as imagens do filme.
Pode-se argumentar que a Viena de Antes do Amanhecer, é pano de fundo para conversas, brincadeiras, e se apresenta como moldura da juventude dos personagens. A cidade é retratada tão bela quanto os próprios personagens. Em Encontros e Desencontros, as urbes – Tóquio e Kyoto – são locais de transgressão, de choque, de sedução e de provocação ao marasmo da vida dos personagens imersos no junk space do hotel. Em Transeunte, o Rio de Janeiro é retratado nu e cru, não como cenário ou enquadramento para uma narrativa, mas como personagem em si mesmo. E como Expedito, a urbe é mostrada em sua verdade, não como uma fotografia de “cartão-postal”, mas como espaço vivido diariamente, em eterna transmutação.
Figura 20 – Urbe em Transição e Transeunte (Transeunte 2010)
Bibliografia
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Filmografia
Antes do Amanhecer (Before Sunrise). 1995. De Richard Linklater. EUA-Austria: Prime Video. Streaming.
Encontros e Desencontros (Lost in Traslation). 2003. De Sofia Coppola. EUA-Japão: Focus Features. DVD.
Transeunte (Passerby). 2010. De Eryk Rocha. Brasil: Bretez Filmes. DVD.
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto Estratégico com a referência UIDB/04008/2020.
As autoras são financiadas por bolsas de doutoramento da FCT com as referências UI/BD/152231/2021 e 2021.07021.BD respetivamente.