Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Ashes in the Pantanal (2021): socio-environmental and educational issues

Cinzas no Pantanal (2021): questões socioambientais e educativas

Keyla Andrea Santiago Oliveira

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Brasil

Talita Carla Farina

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Brasil

Abstract

This article aims to discuss the Brazilian short film Ashes in the Pantanal (2021), lasting 3 minutes and 21 seconds, in its aesthetic devices, and bets on its constitution as an emancipated filmic work. The work depicts the great fires that occurred in the Pantanal in 2020. The film by filmmaker Mariana Marques and animated by Tiago Franco, produced in stop motion, used scenarios and characters made in origami by artist Elder Alves, requiring more than 350 team working hours. The short film was financed with funds from the Aldir Blanc Law, with the mediation of the Municipal Department of Culture and Tourism (Sectur) and the Municipality of Campo Grande - Mato Grosso do Sul. This work is linked to the research Cine childhood: critical perspectives of cinema – education, UEMS (State University of Mato Grosso do Sul), and the study and research group GECCAE (Group of Critical Studies in Culture, Art and Education). The theoretical contribution of film analysis undertaken here is linked to Critical Theory theorists, especially Adorno (2003), Adorno and Horkheimer (1985), Horkheimer (1939), Benjamin (1994), Fraser and Jaeggi (2020) and cinema, Tarkovski (1998), Vanoye; Goliot-Lété (1994). The choice of the film Cinzas do Pantanal is due to the strong appeal that the production presents to the preservation of this rich Brazilian biome that suffers year after year with fires during the drought period. The film analysis will permeate both the audiovisual techniques used and the socio-environmental and educational issues related to the theme.

Keywords: Cinema, Film analysis, Childhood, Education, Environment.

Introdução

O contexto do curta metragem Cinzas do Pantanal (2021)

Cinzas no Pantanal nasceu da sensibilidade criativa da cineasta Mariana Marques e do diretor de animação Tiago Franco frente à catástrofe dos incêndios que atingiram o Pantanal no ano de 2020.

Cerca de 30% do bioma pantaneiro foi consumido pelas chamas, causando danos ambientais, econômicos e sociais devastadores. Além de uma riquíssima e exuberante biodiversidade o Pantanal é lar de diversas comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas como os: Kadiwéu, Guató, Boe-Bororo, Parecis e Umutina, essas comunidades foram duramente atingidas pela catástrofe ambiental de 2020.

Estudo liderado por Walfrido Tomas, da Embrapa Pantanal em conjunto com outras 14 instituições brasileiras e internacionais estimam que quase 17.000.000 (dezessete milhões) de animais vertebrados foram mortos devido os incêndios. Dados levantados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) contabilizaram 22.116 mil focos de incêndio entre janeiro e dezembro de 2020.

Segundo os pesquisadores, a ação humana como o desmatamento e o uso inadequado do fogo (usado para limpar o pasto) em conjunto com as mudanças climáticas, (estudo aponta que em 2020 o bioma registrou uma queda de 40% do volume de chuva e um aumento médio de 2ºC na temperatura na região, desde 1980), foram fatores cruciais para a catástrofe.

Imagem 1: Primata morto pelo incêndio. Autor: Lalo de Almeida/ Folhapress

Com o intuito de fomentar a conscientização e preservação ambiental, o curta metragem Cinzas no Pantanal se destaca pela forma como foi construído, utilizando o papel como matéria prima. Em curtas metragens, percebemos que o enredo gravita em torno de um único tema, ou problema; evitam-se normalmente temáticas periféricas, que alongariam a história em detalhes dispensáveis e não preponderantes para o que ele se dedica a destacar. É como se o foco não pudesse se perder, se derramar para além do foi projetado ali, para o benefício dos contornos que se quer colocar.

Em Cinzas no Pantanal, a centralidade da história se localiza num fato: o Pantanal antes em harmonia é dominado pelas chamas e retoma sua normalidade posteriormente.

Papéis recortados e origamis, a arte milenar da dobradura, realizada pelo mestre em origami Elder Alves, dão vida à fauna e à flora do bioma pantaneiro. Foram necessárias mais de 350 horas de trabalho para produzir e editar o curta-metragem. O trabalho minucioso contou com diversas mãos e olhares atentos, analisando desde os movimentos dos animais às cores e natureza exuberantes, sendo empregada a técnica Stop Motion para sua criação.

Esta pesquisa vincula-se ao grupo de pesquisa e estudo GECCAE, Grupo de Estudos Críticos em Cultura, Arte e Educação, ligado à Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e encontra-se alinhada à análise fílmica das produções audiovisuais no âmbito escolar, com o objetivo de estabelecer um diálogo crítico entre o cinema e a escola, sob a perspectiva da Teoria Crítica.

O curta Cinzas no Pantanal é financiado com recursos da lei Aldir Blanc (edital Morena, Cultura e Cidadania), por intermédio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (SecTur) e da Prefeitura Municipal de Campo Grande/ MS. Dirigido por Mariana Marques, o curta foi vencedor do Prêmio ABCA de Melhor Curta de Animação Brasileiro na I SACI - Semana de Animação e Cinema Infantil. O júri oficial da mostra competitiva é formado por Isabela Silveira, produtora cultural; Célia Catunda (SP), diretora de séries; e o encenador teatral Beto Andreetta, que também concedeu menção honrosa a “Cinzas no Pantanal”.

“Cinzas no Pantanal” participou de outros eventos internacionais como: Animae Caribe International Animation & Digital Media Festival e do Biophilia International Film Festival – México e no Hsin-Yi Children’s Animation Awards –Taiwan.

Com temática urgente, a obra cinematográfica de apenas 3 minutos e 21 segundos articula com brilhantismo a narrativa de sofrimento, resistência e esperança, sendo uma aula sensível e criativa sobre conscientização e preservação ambiental. Ela desdobra-se em três momentos bem marcados: temos de início uma introdução, momento mais longo, com quase 1 minuto e quarenta e cinco segundos de duração, sublinhado pela apresentação dos animais e plantas típicos da região, tudo na mais perfeita harmonia; o clímax da obra se mostra em seguida, o ápice da destruição e sofrimento, acabando nos exatos 2 minutos e trinta segundos de filme. É o desenvolvimento da tragédia em seus pormenores. Após isso, dá-se início ao desfecho, à conclusão das intempéries e à transformação do que havia sido perdido como que para sempre, mostrando a força da natureza e sua capacidade de renovação.

Pela riqueza da obra fílmica dirigida por Marques, pode-se facilmente dialogar com outro valente do Mato Grosso do Sul, o grande poeta pantaneiro Manoel de Barros, com sua poesia criada na singeleza e urdida na beleza das águas, das árvores e dos animais da região

Desde o começo do mundo água e chão se amam
E se entram amorosamente e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios.
E nascem pássaros pra habitar as árvores.
As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das suas lesmas.
As águas são a epifania da criação.
Agora eu penso nas águas do Pantanal.
Penso nos rios infantis que ainda procuram declives para escorrer.
Porque as águas deste lugar ainda são espraiadas para alegria das garças.
(Barros, 2010).

Aqui vemos a engenhosidade da linguagem simples que se casa com significados infinitos, realçando, assim como na obra cinematográfica, a magnitude da natureza, a sabedoria das águas e dos elementos naturais em se misturar, e se abraçar e dar guarida à vida nas suas diferentes formas e cores. Nota-se a generosidade da fluidez dos rios, que alimentam e divertem, e se dobram aos encantos do demais seres, fazendo brotar alegria e magia em suas formações variadas, desde o nascimento até onde desembocam e viram pequenos fios de esperança, como também nas chuvas, que renovam e fazem viver o que dantes se tinha por perdido.

Desenvolvimento

A construção audiovisual de Cinzas no Pantanal

Cinzas no Pantanal foi escrito e dirigido por Mariana Marques. A direção de animação é de Tiago Franco, a direção fotográfica de Bruna Barbosa, a música é de Marcos Assunção, a edição é de Pedro Melo e Elder Alves é o mestre em origamis.

Stop motion foi a técnica escolhida para construir o curta-metragem. Ela consiste na disposição de uma sequência de fotografias de um mesmo objeto, havendo em cada uma dessas fotografias pequenas modificações, para que, quando postas em “ação”, criem a sensação de movimento. Purves analisa que:

‘Stop motion’ pode ser aplicado a qualquer animação, já que o processo é basicamente o mesmo. Algo é manipulado, mexido de forma incrementada pela mão, e a imagem é capturada, quer seja um boneco, um desenho, areia, massinha, imagem de computador ou recortes. […] Quando as imagens são colocadas em sequência em uma velocidade apropriada, o olho se ilude achando que algo se moveu de uma maneira continua, mas na verdade isso não aconteceu (Purves, 2008, 9)

Essa técnica foi criada no século XIX em Paris na França e, segundo Purves (2011), foi uma falha que acarretou o a evolução do procedimento. Segundo o autor, quando o ilusionista e cineasta Georges Méliès (1861-1938) estava filmando na rua uma de suas produções, sua câmera travou por alguns segundos, gerando um corte, e em seguida voltou a filmar. O cineasta percebeu, então, que poderia usar de cortes e montagens para criar efeitos em suas produções. Essa técnica traz os princípios básicos para a criação de animações. Meliès era um criativo incansável, para conseguir fazer suas “trucagens” mágicas empregava diversas estratégias para ludibriar o espectador, como a movimentação da câmera, o recorte e sobreposição do material fílmico (negativos) para gerar os efeitos visuais que desejava.

Os filmes feitos em Stop motion demandam muito tempo para serem feitos devido à minúcia do trabalho, por ser uma técnica essencialmente artesanal e pelo fato de a montagem ser realizada quadro a quadro.

Imagem 2: foto da produção do curta-metragem ‘Cinzas do Pantanal”.
Foto divulgação.

O filme começa, ainda nos créditos iniciais, com os sons diegéticos da natureza pantaneira que, de tão variados, remetem à ideia de diversidade e imensidão, dialogando com o imaginário do público. O filme não dispõe de falas e a sua falta não é sentida, devido à excelência com que foi construído o enredo da história.

A primeira imagem da película é uma árvore com um grande buraco em seu centro, servindo de abrigo a um casal de Araras-Canindé. Até 1 minuto 43 segundos, temos a apresentação da fauna e da flora, com destaque para as araras azuis citadas, as capivaras com seus movimentos curtos e saltitantes, os bois atrás de algumas cercas, o tucano que pousa na madeira cercada e nos leva aos demais animais: o jacaré, os macaquinhos fazendo traquinagens nas árvores, o tatu bola, a cobra coral. Tudo sendo mostrado em giros de 180 e 360 graus, como se mantido em uma base em espiral que se mexe e nos mostra cada recanto construído. Os animais pantaneiros são apresentados de forma dinâmica, ricos em movimentos e peculiaridades. O tatu-bola, por exemplo, usa de sua expertise para fugir da cobra; o jacaré vagueia pelas águas e toca uma flor de ipê amarelo caída na água do riacho, tendo origem na própria árvore apresentada segundos antes em sua plenitude e exuberância.

Os movimentos pensados em sua mínima minúcia se sucedem e são acompanhados da viola vibrante, até que a trilha sonora ganha gravidade.

Imagem 3: Ninho das araras. Foto divulgação.

A vida selvagem que encantava na tela, em sintonia com a leveza e a agitação gostosa da viola, combinada com a vasta flora do bioma pantaneiro, está para mudar. Apresentam-se também bois de criação, e é justamente junto a eles que o fogo inicia, espalhando-se com rapidez; as chamas encurralam os animais que correm aturdidos com tamanho infortúnio. O som da queimada do fogo se espalha, os bois denunciam seu rastro, urrando sem ter como fugir por causa das cercas. As chamas tornam-se intensas, colorindo o cenário de vermelho, amarelo e laranja numa profusão em primeiríssimo plano. Até as rãs e sapos do riacho se inquietam, pulam para dentro das águas buscando refúgio, enquanto o ipê rosa, em primeiro plano, localizado mais à direita da tela, é consumido pelo fogo. Ele é devassado do caule às flores e a música acompanha em velocidade os acontecimentos.

Uma onça-pintada surge em meio ao fogo, seu rugido de dor e desespero é ouvido. A mudança de cena nos traz em seguida um cenário de desolação: a vegetação outrora exuberante está devastada, corpos de animais são vistos (o tatu-bola outrora brincante e esperto jaz morto). A cor marrom impera na paisagem de galhos e folhas secas esturricadas, de caules retorcidos, pelados, em nada parecidos com resplendor esverdeado de antes.

Imagem 4: Onça-pintada cercada pelas chamas. Foto divulgação

Imagem 5: Tatu-bola morto pelo fogo. Foto: print screen.

Com a cadência da música sempre acompanhando o drama das imagens, surge de costas, centralizado, em primeiro plano, com close-up, uma figura humana pela primeira vez: um homem pantaneiro, de chapéu na cabeça. Ele se vira, seu semblante é de tristeza, e escorre por seu rosto uma lágrima. Como num passe de mágica, nuvens se formam no céu. Primeiro são nuvens brancas que vão escurecendo até culminar em gotas de chuva. Em seguida, a dor e o sofrimento dão lugar à esperança. Uma nova toada é dada ao som da viola, que vai se suavizando até o encerramento da película. O crescente dos acordes acompanha as gotas generosas que, ao caírem no chão, fazem brotar de novo o verde e permitem o retorno tranquilo da arara azul. A chuva abundante lava a terra sofrida e renova a vida no Pantanal. Conforme as gotas caem, a vegetação vai renascendo, as araras retornam para seu ninho e o plano da imagem vai abrindo, retomando a cena de exuberância apresentada no início da obra. De forma quase que onírica, o Pantanal renasce e pulsa de forma intensa, trazendo o acalanto. A música então fica lenta, e nas últimas notas aparece a tela azul. Com o desfecho da melodia e imagens, os sons diegéticos apresentados nos créditos iniciais retornam e acompanham os créditos finais.

A sonoplastia é ricamente trabalhada e apropriada, pois revela a identidade musical da região. A música de Marcos Assunção traz o tom do enredo, tendo como instrumento principal a viola caipira. A escolha pelo papel como matéria-prima base da produção visual foi uma grande ideia, pois, assim como o papel pode ser facilmente danificado por sua essência altamente inflamável, a natureza também pode. As dobraduras foram brilhantemente confeccionadas e conseguiram dar vida à história com esmero.

Essa filmografia é um exemplo de como o cinema pode trazer à luz temas relevantes e reflexões profundas. As dores geradas pelos incêndios que assolaram o Pantanal em 2020 poderiam ter sido evitadas, visto que as ações da indústria do capital e seu desrespeito pela natureza contribuíram para o desmantelamento da ordem natural do planeta, favorecendo o aquecimento global, o desmatamento e a diminuição da biodiversidade.

Horkheimer (1939) tinha a clara visão de como o capitalismo manipula a sociedade, promovendo ações para a dependência dos trabalhadores e manutenção das forças hierárquicas opressoras

A sociedade burguesa se transformou num sistema totalitário que se estabilizou por causa do medo dos oprimidos. Esse sistema segue as leis da economia de mercado e é sustentado pela burocracia que é quem decide sobre a vida e sobre a morte dos homens. Ela extermina muitos deles – os judeus, os homossexuais e os que pensam diferente dela. (Adorno e Horkheimer, 1985, 21).

Com a natureza humana mais expropriada, sofrem também as flores, as folhas, as águas e os animais. Eles também precisam se vergar ao peso do capital, já que o sistema capitalista enxerga na natureza não humana uma fonte inesgotável de riquezas, a qual poderia ser explorada ad eternum sem reposição ou cautela. Fraser e Jaeggi (2020) argumentam sobre isso. Em uma de suas contradições e paradoxos mais brutais, o capitalismo destrói o que o sustenta, criando uma fissura irreparável entre natureza humana e não humana, desintegrando uma ligação que é da essência dessa relação.

Estruturalmente, o capitalismo supõe (na realidade, inaugura) uma divisão aguda entre o domínio natural – concebido como fornecedor gratuito e não produzido de “matérias-primas”, disponível para a apropriação – e um domínio econômico – concebido como uma esfera de valor, produzida por e para seres humanos. Junto com isso, há um fortalecimento da distinção preexistente entre “humanidade” – vista como espiritual, sociocultural e histórica – e “natureza” (não humana) – tomada como material, dada objetivamente e a-histórica (Fraser e Jaeggi, 2020, 52).

Estruturalmente falando, portanto, a destruição da natureza é um dos pilares que sustentam o capitalismo. Dito de outro modo, é preciso enxergar nesse incêndio e nas suas consequências um fenômeno que não é contingencial, mas necessário para o seu funcionamento, o que dá o tom grave para a análise. Destruir é um dos motes do capitalismo, sem limites para esse tipo de ação, é uma condição de fundo que possibilita a economia se manter assim como ela foi pensada, existindo sempre, em prejuízo para a vida e para os seres que atravessam seu caminho colocando-se como empecilho para seu progresso e desenvolvimento.

Para as autoras supracitadas, o ritmo natural que coordenava nossas vidas foi interrompido, não conseguimos mais segui-lo, uma vez que a preponderância da vida, ainda mais aquela que se distancia do campo, se concatena mais aos ritmos industriais, manufatureiros, orientados ao lucro. A atividade humana voltada a essa dança do capital, que produz sua própria crise, já que destrói a fonte primeira de suas mercadorias, também está fadada a se extinguir, já que os bens ecológicos comuns, nesse movimento de predação, encontrarão seu fim.

Se pensarmos com Krenak (2019) essas questões envolvendo a relação do homem com mundo natural, veremos que

a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade. [...] A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes de sua terra, de sua mãe (KRENAK, 2019, p. 22)

Com as queimadas sofrem essas gentes e os animais, os mais prejudicados da dança do capital, que não entendem nada e nem poderiam, pois são feitos de uma sintonia com a terra, com a água e com o ar; do fogo aproveitam a boa potência, mas não o usam para a destruição. Uma cosmologia difícil de entender para quem já perdeu há tempos essa sensibilidade de se sentir uno com o mundo, com a fauna, com a flora e com tudo que nos cerca e não foi criado artificialmente pela mão humana.

O cinema e suas ricas possibilidades formativas

A escolha do filme Cinzas do Pantanal se dá pelo forte apelo que a produção apresenta à preservação desse rico bioma brasileiro o qual sofre ano após ano com as queimadas durante o período de seca. A análise fílmica permeia aqui tanto as técnicas audiovisuais empregadas quanto as questões socioambientais e educacionais relacionadas com o tema.

Analisando as reflexões que o cinema pode provocar, Duarte (2002, p.56) ressalta a “influência mútua que cinema e sociedade exercem entre si”, observando que, assim como o cinema pode perpetrar na sociedade a repetição sistemática de determinados padrões, ele pode, também, influenciar criticamente o público que o consome, se lhe forem apresentadas temáticas e formas de expressões transversais ao engodo industrial. O cinema Arte geralmente percorre esse caminho, o que torna sua veiculação e entendimento mais complexo, pois não atende ao padrão imposto pela Indústria Cultural massificadora.

O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. [...] o industrialismo coisifica as almas [...] As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele só se determina como coisa, como elemento estatístico, como success or failure. (Adorno e Horkheimer, 1985, 35).

A ordem desenvolvida por essa dominação anula a singularidade do indivíduo, observando que a semiformação obscurece e acomoda o sujeito em sua subserviência.

O cinema, nesse sentido, é importante para a formação social e a disseminação de conhecimentos; por meio do cinema, podemos conhecer outras culturas, paisagens, línguas, ampliando assim nossa percepção de mundo. Por meio do cinema, também podemos pensar criticamente, refletir sobre fenômenos sociais. Adorno já anunciava a possibilidade de um filme emancipado, mas aquele capaz de retirar a ação coletiva da ideologia do sistema capitalista que cria o cinema vinculado à máquina, à técnica, ao caráter coletivo de arrebanhar as pessoas em conjuntos às salas escuras de projeção. Desse modo, “o filme emancipado terá que arrancar o seu carácter coletivo a priori aos mecanismos dos efeitos inconscientes e irracionais e pô-los ao serviço da intenção emancipadora” (Adorno, 2003, 187).

Oportuno também lembrar aqui das palavras do incrível cineasta Tarkovski (1998), que convoca o artista da produção audiovisual a criar obras de impacto, que tragam verdades diferentes das da ciência, com suas finalidades práticas, conclamando para uma sensibilidade adormecida no consumo de obras de fácil digestão.

Creio que um dos mais desoladores aspectos da nossa época é a total destruição na consciência das pessoas de tudo que está ligado a uma percepção consciente do belo. A moderna cultura de massas, voltada para o “consumidor”, a civilização da prótese, está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual (Tarkovski, 1998, 48).

Vemos como fundamental nossa relação com a natureza, e a diretora, em questão, em poucos minutos, consegue nos conectar com a existência desse bioma que somos também nós em essência, que nos remete a aspectos de conscientização importantes acerca de nosso lugar no mundo diante das mazelas que nós mesmos criamos.

As instituições com potencial de formação como a escola têm o dever de apresentar e dialogar com os estudantes sobre os diversos temas que insurgem na sociedade, provocando assim a reflexão sobre os motes que nos estruturam, dividem e ancoram.

No Brasil, em 26 de junho de 2014 entrou em vigor a Lei 13.306, que: “Acrescenta o § 8º ao art. 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica”, por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais. Essa lei é importante para incentivar a apreciação de produções fílmicas nacionais no ambiente escolar, pois promove o reconhecimento da multiculturalidade brasileira, em toda a sua pluralidade e potência, fazendo com que os alunos se percebam como cidadãos participantes e formadores da cultura. Segundo o artigo 1º da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, formulada pela UNESCO:

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade manifesta-se na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para o género humano como a diversidade biológica o é para a natureza. (UNESCO, 2001).

O acesso à diversidade cultural pode ser alcançado por meio dos filmes, possibilitando a reflexão. A escola, ao promover a apreciação de produções audiovisuais de diferentes grupos sociais e de temáticas variadas, propicia o desenvolvimento de um pensamento social mais agudo. Isso, claro, desde que a instituição escolar exponha obras que divirjam das representações estereotipadas, criadas pela indústria cinematográfica. Assim, proporciona-se a formação de estudantes capazes de pensar criticamente, com uma visão ampla e transigente de mundo.

Quando a educação – tão velha quanto a humanidade mesma, ressecada e cheia de fendas – se encontra com as artes e se deixa alagar por elas, especialmente pela poética do cinema – jovem de pouco mais de cem anos – renova sua fertilidade, impregnando-se de imagens e sons. Atravessada desse modo, ela pode se tornar um pouco mais misteriosa, restaura sensações, emoções, e algo da curiosidade de quem aprende e ensina. (Fresquet, 2013, 19-20).

Busca-se na experiência com o filme uma experiência estética que intercepte a recriação de realidade, propiciando ao estudante um saber sensível em toda a sua complexidade. Concordamos com Vanoye e Goliote-Lété (1994, p.12) “Analisar um filme, não é mais vê-lo, é revê-lo e, mais ainda, examiná-lo tecnicamente” para poder interpretar, analisar e refletir as obras audiovisuais na sua completude e complexidade. Proporciona-se assim um saber sensível ajustado com saberes estéticos, políticos, filosóficos e sociais.

Conclusão

Cinzas no pantanal toca em um drama regional sul mato grossense, que ao mesmo tempo é de todos que têm contato com ele, pantaneiros ou não. A dialética particular e universal se presentifica na medida em que conseguimos entender que a lógica por detrás de ações dessa ordem é a da expropriação da vida, o confisco de bens que são patrimônio da humanidade e que em poucas horas são usurpados e retirados de nossa riqueza natural, que no fim das contas, se quisermos colocar assim, mata um pouco cada um dos seres que habita o planeta.

A beleza dessa produção cinematográfica está em trazer à baila um tema pulsante de denúncia por meio de uma técnica artesanal, da ordem da minúcia, do trabalho que preza pelo aproveitamento do detalhe, um trabalho capaz de gerar uma verdadeira experiência em quem o assiste, já que coloca-se não como mercadoria, não se molda ao lucro, ao comércio, mas está mais próxima da espera, do que germina com o tempo da sabedoria, do sensível, do artístico, do estético, da combinação crítica entre forma e conteúdo, como nos diz Benjamin (1994). Pensando na guerra, o autor fala de como os homens voltam delas pobres de experiências, porque na verdade estão mortos por dentro, não têm o que compartilhar e segredar. As queimadas são um tipo de guerra, aquela travada com a natureza e na qual todos perdem. Segundo ele,

Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra (BENJAMIN, 1994, p. 119).

O desenrolar dessa análise trouxe à luz assuntos urgentes, que tangem toda a sociedade e planeta, uma guerra travada ano após ano com a natureza e que precisa parar. Em 3 minutos e 21 segundos, pudemos refletir sobre a efemeridade da vida. Com a pesquisa, observamos como ações, consideradas comuns, pela sociedade do capital, impactam diretamente no destino e sobrevivência de todos os seres. A obra de Marques escancara uma tragédia que se anuncia todos os anos com a chegada do período de secas, e as acentuadas mudanças climáticas que vêm ocorrendo são o prenúncio.

Porém, a obra fílmica não deixa o tom de terror e medo a consumir: a beleza imagética das cenas, assim como o desenrolar do enredo, promovem o sentimento de esperança, como uma fênix, o Pantanal ressurge das cinzas mostrando a potência desse bioma único, indicando que recomeços são possíveis.

Referências

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https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/incendios-no-pantanal-mataram-quase-17-milhoes-de-animais-vertebrados-em-2020/.