Abstract
Portugal has had a relationship with cinema for about 100 years, however, research on the work of costumes (or wardrobe) is practically non-existent, relegated to the second or third plane in national cinematography, where the highlight is on the director (Souza, 2019). Over time, the country has had and still has professionals who have stood out in the sector, such as Vera Castro, Jasmim de Matos Carvalho, Laurinda Farmhouse, Maria Gonzaga or Carla Figueiredo, who are joined by current fashion design names such as José António Tenente, Storytailors, Filipe Faísca or Valentim Quaresma, professionals who have a punctual relationship with this segment, except José António tenente who decided to close his fashion brand to dedicate himself fully to the creation of costumes for various performing arts projects. This work intends to explore an example of costume production work through the study of the Storytailors project, a work carried out for the preview, in Portugal, of the film “Alice in Wonderland” by Tim Burton. Thus, it is intended to understand how a pair of fashion designers interpreted the director’s imagination and recreated the universe of history, also being these true storytellers through art in the creation of the costumes. The work methodology consists of a mixed methodology, non-interventionist and interventionist. Initially, in a non-interventionist methodology, the bibliographic research. In a second phase, in an interventionist methodology, the study will focus on the work of the author brand Storytailors.
Keywords: Design de Moda, Arte, Figurinos, Cinema
Introdução
O trabalho de pesquisa que aqui se apresenta surge com a forte convicção de que o trabalho de idealização e criação de figurinos é de extrema importância para o reforço da mensagem que o realizador pretende transmitir ao seu público na narrativa que se propõe apresentar.
Perceber como se interrelacionam as funções do realizador e do figurinista para a coerência da narrativa é um dos principais objetivos deste estudo. Porém, outros objetivos se revelam igualmente importantes, à medida que o estudo se vai desenvolvendo tais como: perceber a importância do figurino para o reforço do imaginário do realizador e compreender a ligação da dupla de designers portugueses, Storytailors, com a linguagem estética e narrativa do realizador Tim Burton.
A metodologia de investigação adotada trata-se de um estudo de caso recorrendo a uma metodologia mista, intervencionista e não intervencionista.
É uma metodologia não intervencionista numa primeira fase em que a revisão bibliográfica para enquadramento teórico dos temas de figurino, narrativa e cinema.
A metodologia intervencionista é iniciada numa 2ª fase do estudo com a realização de um inquérito por entrevista para recolha de informação pertinente à concretização do estudo de caso.
Preparou-se uma entrevista estruturada que se realizou a um dos designers da dupla Storytailors. Esta entrevista permitiu perceber quais as ideias que estiveram na base da escolha das propostas de figurinos apresentadas na ante-estreia do filme Alice do outro lado do espelho.
A última parte desta investigação permitiu a identificação de algumas conclusões pertinentes e que respondem às questões e objetivos inicialmente delineados.
O figurino e a narrativa
O figurino é a capa que veste o corpo de quem interpreta - o que o veste, o que o destapa, o que o calça, o que o maquilha, como se penteia -, de forma a que o actor, cantor ou bailarino, possa trabalhar a personagem definida por quem a idealiza. O figurino sustenta e valida sobre o carácter, sobre o estado de alma, os valores do nível social, o lugar, o espaço e o tempo a que pertence determinada personagem (Castro, 2020). Na verdade, o corpo de quem interpreta está intrinsecamente associado à forma como a personagem é trabalhada, i.e., “o corpo físico, emocional e intelectual, cuja personalidade influencia a roupa assim como esta influencia o intérprete: estão condenados a ser inseparáveis e, por isso, é imperioso entenderem-se” (Castro, 2020, p. 35). Cada responsável pela criação do figurino, figurinista profissional ou designer de moda, alberga uma linguagem própria que se pode demonstrar na forma peculiar de interpretar os detalhes ou como elimina os excessos ou ainda como combina formas, texturas, volumétricas ou cores. O trabalho do figurinista recai na maneira como lê o papel desta ou daquela personagem, dando-lhe contexto harmonioso ou desarmonioso face às múltiplas linguagens estéticas nos distintos contextos criados pelos autores. Na verdade, o figurino assume o papel de uma segunda pele, expressão da autoria de Alexander Tairov, citado por Vera Castro na sua obra: Magnólia, A Pele de Vera Castro (2020, p. 35). Importante destacar o facto de existir liberdade de interpretação por parte do figurinista, circunscrito a um eixo de manobra que pode ter distintas latitudes, dependendo sempre de quem veste e de quem dirige. “O figurino é uma escrita ao serviço de um propósito que o ultrapassa; mas se a escrita é demasiado pobre ou demasiado rica, demasiado bela ou demasiado feia, ela já não permite a leitura e falha a sua função. O figurino deve, também encontrar essa espécie de equilíbrio raro que lhe permite a leitura do acto teatral, em o sobrecarregar de valores parasitas; ele precisa de renunciar a todo o egoísmo e a todo o excesso de boas intenções; é necessário que passe despercebido, mas também é preciso que exista: os actores não podem, apesar de tudo, ir nus” (Barthes, 1977). O figurinista é o “responsável pela criação de roupas e acessórios seguindo o perfil dos personagens propostos pelo autor e/ou diretor (…). O figurinista pode desenhar todo o guarda-roupa ou optar por um mix de peças criadas por ele, em composição com outras já disponíveis no mercado” (Sabino, 2007, p.66).
Alice no país das maravilhas – o filme
Tim Burton nasceu em Burbank, Califórnia, em Agosto de 1958, filho de Jean Rae, dona de uma loja de acessórios para gatos e de William Reed Burton, funcionário do Parque Burbank. Criança e jovem tímido, passava o tempo a desenhar e a ver filmes antigos. Após terminar o ensino obrigatório, foi estudar para o California Institute of the Arts e após se licenciar começou a trabalhar na Disney. O seu talento chamou a atenção desde o primeiro momento, o que o tem mantido entre os mais importantes realizadores da sua geração, em Hollywood. Ao longo da sua carreira como realizador, que se estreia em 1982 com a curta-metragem Vincent, Tim Burton foi criando um estilo próprio composto por estilos como o “fantástico, estranho e o maravilhoso” (Todorov, 1980, p.15), a partir dos quais Tzvetan Todorov criou os “subgéneros transitivos: ‘fantástico-estranho’ e ‘fantástico-maravilhoso’” (Resch apud Todorov, 1980, p.20), termos que definem a estética de Tim Burton. O seu trabalho define-se nos universos da fábula, fantasia e contos de fadas, suportados pela estética do gótico e do Expressionismo alemão, o que faz com que Burton seja um realizador moderno, visionário, arrojado. As histórias que conta têm uma componente surreal, avant-garde e expressionistas, num romantismo e fascínio que pode assemelhar-se ao macabro (Melo, 2011). A peculiaridade na forma como conta as histórias inspiradas em assuntos profundos, melancólicos e violentos, mas de forma leve e atraente, temas personificados nos atores que escolhe para protagonizarem os seus filmes, focando-se na solidão e isolamento social, “do sentimento de não pertencer a este mundo e à procura pela sua identidade verdadeira” (Melo, 2011, p. 115). As suas histórias são narrativas de constante luta entre o belo e o feio, a felicidade e a infelicidade, o grotesco e o deslumbrante, estéticas suportadas na construção dos figurinos para cada personagem. Em comum o cinema de Tim Burton apela ao imaginário criativo para salvar “os heróis burtonianos, sejam eles monstros multifacetados, frankensteinianos, incompreendidos, solitários, que esculpem nos arbustos ou no gelo, personagens que inventam histórias irreais sobre si mesmos, dirigem filmes de qualidade duvidosa, cortam gargantas ou sobrevivem no imaginário e perigoso País das Maravilhas” (Melo, 2011, p. 119). Na construção da narrativa para o filme Alice do Outro Lado do Espelho, Burton adaptou a história original de Lewis Carroll, apresentando uma Alice adulta, que regressa intencionalmente ao País das Maravilhas vinte anos após a sua primeira visita, com o propósito de salvar os seus habitantes da maléfica Rainha Vermelha e no seu regresso a casa acaba por perceber que não se pode casar com o seu noivo, revelando uma crise identitária por parte da personagem principal, denominador comum com a versão original da história (Gregório, Sousa, 2011). A construção dos figurinos para este filme esteve a cargo de Colleen Atwood que, em entrevista à revista WWD a 4 de Março de 2010, à jornalista Amanda Fitzsimons, passou pelo principal processo de não ter nenhuma relação com os guarda-roupas de outros filmes sobre a Alice no País das Maravilhas, e acima de tudo transformar a imagem dos protagonistas para que a construção das suas personagens entrasse no imaginário quer do autor da história quer do realizador. E para essa construção a figurinista recorreu às ilustrações de John Tenniel e Lewis Carroll que integravam as edições iniciais, em 1985.
Storytailors: o figurino e o filme
João Branco e Luís Sanchez criaram a marca Storytailors em 2001, após concluírem os estudos em Design de Moda na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Durante o curso perceberam ter universos estéticos comuns, o que os levou a unir esforços, amadurecer ideias e avançar com um projecto cujo nome refletisse o conceito de moda dentro e fora de Portugal. O nome surge dos interesses que ambos partilhavam, da história universal, histórias de pessoas, metáforas, construção do vestuário, alfaiataria e, obviamente, moda, levando-os a duas palavras inglesas - story e tailors - que em conjunto faz a palavra Storytailors.
Fruto das pesquisas e inspirações que partilham, criaram uma forma muito própria de contar as suas histórias com um cunho libertador, assumindo-as em capítulos através de cada colecção realizada. A linguagem metafórica, implícita em cada peça de vestuário, é a sua forma de comunicar. Começaram por apresentar o seu trabalho na ModaLisboa e posteriormente no Portugal Fashion, plataformas de moda em Portugal. Pontualmente, levaram também o seu trabalho além-fronteiras, apresentando noutras cidades como Paris, no âmbito do Portugal Fashion Internacional. Consequentemente, as peças Storytailors marcaram presença assídua nos editoriais das mais prestigiadas publicações nacionais e internacionais. Em 2006, instalam-se no centro de Lisboa, no Chiado, com loja e atelier na Calçada do Ferragial 8, até ao ano de 2020, altura que a marca deixou de ter espaço comercial. As suas criações estenderam-se também a outras áreas artísticas. Desenvolveram figurinos para teatro e dança - de destacar os trabalhos desenvolvidos para os Teatros Nacionais D. Maria II, em Lisboa, e S. João, no Porto, o Teatro Municipal S. Luiz e a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Em termos de guarda-roupas salienta-se o trabalho desenvolvido com os artistas musicais: The Gift, Amália Hoje, Mísia e Yolanda Soares. Os Storytailors criaram peças para desafiarem o tempo e as estações, para ajudar quem as usa a tirar o máximo partido do acto de vestir.
O universo fantasioso foi sempre um ponto de distinção desta marca face a outras no mercado nacional, e prova disso mesmo acabou por estar patente no convite que esta dupla teve por parte da empresa de telecomunicações NOS, aquando o lançamento do filme Alice no País das Maravilhas - Alice do Outro Lado do Espelho, de Tim Burton (2016). Segundo um dos designers da dupla Storytailors, Luís Sanchez, o convite “foi feito pela diretora da NOS para uma acção promocional do filme Alice do Outro Lado do Espelho, que teria lugar num palácio. Sugerimos ser no Palácio Foz nos Restauradores [Palácio Foz ou Palácio Castelo Melhor, concebido no século XVIII, cuja construção se arrastou até meados do século seguinte], em Lisboa, por acharmos que tinha tudo a ver com o briefing. Tivemos total liberdade para delinear este evento segundo o universo Storytailors e Tim Burton” (Figuras 1 e 2).
Figuras 1 e 2 – Palácio Foz nos Restauradores [Palácio Foz ou Palácio Castelo Melhor, concebido no século XVIII, cuja construção se arrastou até meados do século seguinte], em Lisboa
No desafio feito à marca foi dada a oportunidade de escolherem entre duas a quatro personagens do filme, e a opção recaiu na Alice e no Time, com liberdade “criativa total, sendo que todos os desenhos tinham de ter a aprovação da Disney, não havendo a possibilidade de se assemelharem aos existentes no filme” (Sanchez, 2022). Um dos factores de importância criativa esteve na procura de materiais que fundamentassem a ideia de cada peça idealizada, como é o caso do casaco da personagem Time que tinha de ter uma leitura óbvia sobre o tempo. Assim, surge um casaco de cauda composto de polo com fragmentos de espelhos em dourado velho; outro pormenor importante foi a aplicação de mecanismos de um relógio nas peças - casaco, chapéu e calças -, destacando-se no nas costas do casaco a aplicação de um relógio antigo, nas calças rodas-dentadas bordadas e no chapéu cartola a aplicação de um mecanismo relojoeiro com números das horas e ponteiros suspensos (Figura 3).
Figura 3 – Personagem Time: figurino construído pelos designers Storytailors
No caso dos coordenados para a personagem Alice, os Storytailors depararam-se com um desafio mais complexo, uma vez que idealizaram dois vestidos: um com “contornos mais românticos e outro com contornos mais girly e simultaneamente futurista” (Rito, 2022, in entrevista ao designer Luís Sanchez). No primeiro vestido, “criámos padrões originais a partir de todas a referências visuais do universo da história que foram impressos (sublimados) em tecido, depois plissado em quadrículas e voltado a imprimir. Isto criou-nos uma ‘malha temporal’ que se distorce com a elasticidade do plissado. O corte do vestido é algo a que chamamos de “corte em espiral”, é um corte que circula o corpo e é inspirado na espiral de Fibonacci. Temos uma Alice romântica com um vestido longo que se distorce com o passar do tempo (Figura 4).
Figura 4 – Personagem Alice: um dos vestidos construído pelos designers Storytailors
O segundo vestido é um vestido espelhado, inspirado nos espelhos venezianos, composto por vários painéis espelhados. Para este vestido o desafio dos materiais foi maior. Não encontrávamos nada na indústria da moda e decidimos procurar na indústria do cinema. O vestido foi construído com duas telas refletoras utilizadas para iluminar as filmagens. O material teve que ser encomendado na esperança de poder ser cosido em vários fragmentos, painéis (Figura 5).
Figura 5 – Personagem Alice: as duas peças construídas pela dupla de designers Storytailors
Do convite ao evento, que decorreu no dia 21 de Maio de 2016 (Figura 6), os designers tiverem um mês para idealizar, encontrar os materiais, confecionar as peças e apresentá-las numa iniciativa que tinha como ambiente o contexto da história, i.e., a Alice e o Time receberam os seus convidados para um chá com o propósito de os levar numa viagem “alucinante pelos meandros do Palácio Foz” (Rito, 2022, in entrevista ao designer Luís Sanchez).
Figura 6 – Figurinos em exposição no dia da estreia do filme
Uma questão fulcral neste projecto era perceber até que ponto os designers conseguiam emergir no universo fantástico quer da história criada por Lewis Carroll quer do realizador Tim Burton. A escolha da marca Storytailors acabou por ser adequada aos requisitos da empresa responsável por esta iniciativa, uma vez que o trabalho destes designers sempre se pautou por um estilo que conjuga universos muito especiais, ou seja, esta marca trabalha estéticas que navegam entre o gótico, o fantástico, o barroco ou o punk. Também foi importante o facto, segundo reforça o designer Luís Sanchez, conhecerem e gostarem da estética cinematográfica do realizador Tim Burton, facilitando a ingressão pelo seu mundo de contornos visuais muito próprios (Figura 7).
Figura 7 – Os atores convidados pela marca: Joana Barbosa ,em Alice, e Raminhos, em Time
Considero que as peças seguem a linha estética do criador. Prova disso foi o encanto dos convidados que se sentiram totalmente envolvidos e transportados para um mundo mágico. Muitos disseram, posteriormente, que os coordenados e as personagens estavam melhores do que as do filme. Caso para dizer que a roupa inspirou os actores nos seus papéis, Joana Barbosa em Alice e Raminhos em Time (Figura 7). Penso que é esta a magia do cinema, dos figurinos, da moda e dos Storytailors (Rito, 2022, in entrevista ao designer Luís Sanchez).
Conclusão
A partir da pesquisa realizada conclui-se que a função de realização de figurinos para um filme, teatro, dança ou outra forma de representação não deve ser atribuída sem se ter em consideração o trabalho já realizado anteriormente. Desta forma conseguimos perceber a linguagem e a estética de quem propõe ou cria a proposta para vestir cada personagem.
Nesta função, o designer desprende-se de uma linguagem idiossincrática para se embeber do universo imaginário do realizador que cria toda a narrativa do filme.
Em algumas situações esse universo de que falamos, associado à narrativa do realizador conjuga-se no imaginário criativo de quem concebe as propostas de figurinos.
No caso em estudo, a estética e linguagem do realizador Tim Burton está totalmente encaixada no imaginário da dupla de designers escolhida para a conceção das peças aqui apresentadas – Storytailors, os Contadores de Histórias através das peças de vestuário que criam.
Notas finais
1alexandra.cruchinho@ulusofona.pt
2p6463@ulusofona.pt
3Luis.sanchez@ulusofona.pt
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