Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

African cinema and decolonial imaginary: about africanfuturism in the short film Afronauts

Cinema africano e imaginário decolonial: sobre Africanofuturismo no curta-metragem Afronauts

Edmilson Forte Miranda Júnior

Departamento de Línguas e Culturas (DLC) da Universidade de Aveiro (UA), Portugal

Abstract

This paper uses Homi K. Bhabha’s (2013) concept of Postcolonial – added to the contributions of W.E.B. Du Bois (2016), Aimé Cesaire (1978) and Frantz Fanon (2008) – to analyze the short film Afronauts (Bodomo, 2014) directed by Nuotama Frances Bodomo. The work of Gayatri Spivak (2010) is also used to discuss how the postcolonial affects subalternized peoples and its connection with the historical condition of black peoples in Diaspora as described by Paul Gilroy (2001); a dialogue is thus established with the diasporic and decolonial art studied and produced by Kobena Mercer (1994) and Grada Kilomba (2014). The methodology is based on Nnedi Okorafor’s Africanfuturism, to understand the decolonial aspects present in a film based on a true story. In this sense, Glissant’s (1997) concept of imaginary supports the presentation of the following thoughts: Aníbal Quijano’s (2005) concept of coloniality of power; the critical border thinking proposed by Walter D. Mignolo (2018); and Ramón Grosfoguel’s (2009) decolonial epistemic perspective. Concepts that organize the perception of the short film as a decolonial cultural expression and allow discussing the likely implications that Africanfuturist works have on the imaginary in dispute in the contemporary cinematic medium.

Keywords: Africanfuturism; Cinema; Decoloniality; Postcolonialism; Short film

Intenções

Este trabalho utiliza o conceito de Africanofuturismo1 (Okorafor, 2019) para analisar o curta-metragem Afronauts (Bodomo, 2014) numa perspectiva decolonial. Pretende-se apresentar parte do caminho de investigação que desenvolvo no doutoramento em Estudos Culturais da Universidade de Aveiro. A pesquisa utiliza-se dos autores e pensamentos aqui descritos para fundamentar a análise de narrativas com características afrofuturistas e africanofuturistas, buscando mapear a emergência de bandas desenhadas brasileiras cujo protagonismo seja assumido por personagens negras. Pretende-se, com isso, analisar o contexto no qual as narrativas dessas obras se apropriam do discurso pós-colonial e decolonial numa mudança de perspectiva sobre o que o negro representa.

Para tanto, utilizo uma metodologia baseada no conceito de “pesquisador cambono” (Simas & Rufino, 2019, pp. 39–40), termo tomado da macumba para relacionar aspectos próprios daquele que “opera, na interlocução, com todas as atividades que precedem os fazeres/saberes necessários para as aberturas de caminhos” (Simas & Rufino, 2019, p. 37). Ou seja, na prática de terreiro, o cambono é aquele que “atua como um ‘faz tudo’” (Simas & Rufino, 2019, p. 37). Aplicado à investigação que desenvolvo: agir como cambono é cruzar conceitos, referências e fatos para abrir caminhos de pesquisa, e, desse modo, produzir sentidos orientados pelos conhecimentos provenientes dos objetos pesquisados. Na encruzilhada, o cambono encontra seu caminho, “lança de corpo aberto para os cruzamentos e alinhava suas narrativas acerca dos conhecimentos na mesma medida em que as vive sob a lógica das encruzilhadas” (Simas & Rufino, 2019, pp. 39–40).

Pretendo então me colocar como um pesquisador cambono no cruzamento entre os conceitos de Africanofuturismo (Okorafor, 2019), Afrofuturismo (Dery, 1994; Eshun, 2003; Yaszek, 2013) e pensamento decolonial (Bernardino-Costa et al., 2020). A construção do texto também segue a lógica da encruzilhada, atravessando a descrição da narrativa do curta-metragem com os conceitos e pensamentos dos autores indicados. A ideia é assumir o Africanofuturismo como chave de leitura e lente focal, buscando em Afronauts (Bodomo, 2014) e no contexto histórico no qual se insere, relações decoloniais entre crítica cultural, revisão do passado e especulações sobre o futuro.

Assumindo uma abordagem comparativa, o texto inicia relacionando Africanofuturismo e Afrofuturismo. A seguir, é descrita a história do filme. Cruzo os momentos da narrativa com o conceito de imaginário de Glissant (1997), fundamentado pelo conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano (2005) e de pensamento crítico de fronteira proposto por Walter D. Mignolo (2018); as noções de Epistemologias do Sul e Ecologia dos saberes trazidas por Boaventura de Sousa Santos (2019); e a perspectiva epistémica descolonial de Ramón Grosfoguel (2009). Conceitos que utilizo para afirmar o curta-metragem Afronauts (Bodomo, 2014) como uma iniciativa decolonial africanofuturista. A crítica Pós-colonial contribui para o entendimento da proposta decolonial, discutida a partir da fala de Homi K. Bhabha (1998); somada à contribuição de precursores do argumento: Aimé Cesaire (1978) e Frantz Fanon (2008).

Africanofuturismo e Afrofuturismo

Por Africanofuturismo me refiro ao termo cunhado por Nnedi Okorafor (2019) para distinguir seu trabalho, trata-se de uma “subcategoria da ficção científica (...) especificamente e mais diretamente enraizada na cultura, história, mitologia e ponto de vista africanos”, a qual ramifica-se na diáspora negra e “não privilegia ou centraliza o ocidente” (Okorafor, 2019, p. 1). Okorafor é uma premiada autora nigeriana-americana de romances de ficção cientifica e fantasia, que também escreve contos e bandas desenhadas (Death, 2022). Seu trabalho se destaca como uma imaginativa proposta política que discute racismo e o futuro de nossa sociedade a partir de ideias inspiradas por autores como Sylvia Winter, Donna Haraway, Octavia Butler, Frantz Fanon, Achile Mbembe e Grada Kilomba.

Por Afrofuturismo me refiro à expressões estéticas marcadas por uma contundente crítica sobre a questão racial, cujo termo é cunhado nos Estados Unidos (Dery, 1994) e se espalha como uma cultura de resistência em diferentes países. Segundo Yaszek (2013), podemos entender o Afrofuturismo como “uma ficção especulativa ou ficção científica escrita por autores afrodiaspóricos e africanos” (Yaszek, 2013, p. 1) que por quase duzentos anos dramatizaram a questão racial, inventando um futuro brilhante para pessoas de cor vivendo um mundo tecnocultural, futuro que surge de mudanças científicas e sociais (Yaszek, 2013, p. 1). Trata-se de um “movimento estético global que abrange arte, cinema, literatura, música e estudos acadêmicos” (Yaszek, 2013, p. 1).

Kodwo Eshun (2003) permite localizar o Afrofuturismo diretamente inserido dentro da perspectiva decolonial, principalmente pelo modo como coloca a relação entre o movimento e a modernidade. Ele compara uma fala da escritora Toni Morrison ao pensamento de Nietzsche, mostrando como “os sujeitos africanos que experimentaram captura, roubo, seqüestro, mutilação e escravidão foram os primeiros modernos” (Eshun, 2003, p. 288). A experiência afrodiaspórica de “falta de moradia, alienação, deslocamento e desumanização” (Eshun, 2003, p. 288) é justamente o que mais tarde Nietzsche definiria como a condição moderna por excelência. Na análise que faz do Afrofuturismo, Eshun percebe o discurso da modernidade intrinsecamente ligado à colonialidade (Mignolo, 2005, p. 1), e também indica que a denúncia dessa realidade “deve ser estendida ao campo do futuro” (Eshun, 2003, p. 288).

O Africanofuturismo se diferencia do Afrofuturismo quando estabelece seu foco na criação de histórias que “se passam na África com personagens africanas” (Hodapp, 2021, p. 2). Okorafor reconhece o potencial afrofuturista de “enfatizar a negritude global” (Hodapp, 2021, pp. 1–2), no entanto, sua postura critica o modo como o Afrofuturismo centraliza a negritude na experiência afro-americana, o que marginaliza outras experiências de negritude, em específico aquelas centradas em África. Ou seja, o “afrofuturismo convenientemente reivindica a auto-referência da ficção científica africana como sua própria, ao mesmo tempo em que defende uma ideologia que é quase exclusivamente diaspórica, mesmo quando se insere em discursos de Negritude” (Hodapp, 2021, p. 5). Revela-se aí uma proposta que articula efeitos do “imaginário moderno/colonial” (Mignolo, 2005, p. 1) para a criação de alternativas de futuro comprometidas com a questão racial – assim como o Afrofuturismo –, mas que apresenta uma perspectiva genuinamente africana, a qual enriquece o debate acerca das disputas que se estabelecem no imaginário contemporâneo a respeito do racismo e outros efeitos do colonialismo (Bernardino-Costa et al., 2020; Cesaire, 1978). Nesse sentido, o curta-metragem Afronauts (Bodomo, 2014) contribui para esse debate, porque apresenta a visão de um fato histórico, diretamente relacionado ao racismo instituído no imaginário e nas estruturas de poder do mundo “moderno/colonial” (Mignolo, 2005, p. 1).

Afronauts e o imaginário do mundo moderno-colonial

O curta-metragem de 14 minutos, escrito e dirigido pela diretora ganense Nuotama Bodomo, trata de um fato histórico ocorrido na Zâmbia nos anos 1960. Edward Nkoloso fundou a Academia Nacional de Ciência, Pesquisa Espacial e Filosofia da Zâmbia, e anunciou que iria chegar na Lua antes dos norte-americanos ou dos soviéticos. A escolhida para o primeiro voo do Programa Espacial da Zâmbia foi uma jovem de 17 anos chamada Matha Mwambwa. Em uma fazenda a 11 quilômetros da capital, os candidatos a afronautas treinavam diariamente, rolando dentro de barris e simulando gravidade zero em um baloiço (Siebrits, 2020). Tratava-se de um desafio às grandes potências internacionais num dos períodos mais críticos da guerra-fria.

O filme começa com o seguinte texto: “Inspired by true events. 16 July 1969. The Zambia Space Academy hopes to beat the USA to the moon. Their astronaut is 17-year-old Matha Mwamba”. A seguir, ouve-se ao fundo uma voz com o aspeto distorcido de som transmitido por uma antiga frequência de rádio ou TV. A voz descreve os astronautas da missão que levou os norte-americanos à lua e encerra o trecho de áudio indicando: “next stop: the moon”. A tela preta é substituída pela visão de cinco homens adultos em uma imagem em preto e branco e desfocada. Em foco apenas a protagonista: em primeiro plano ergue-se Matha, interpretada por Diandra Forrest. Ela está de costas, mas logo vê-se que é uma mulher negra e albina. Já no início do curta-metragem destacam-se duas escolhas que deixam claro a proposta crítica do filme: a opção por uma protagonista mulher negra albina e a escolha de filmar em preto e branco. Essa combinação enfatiza os traços étnicos da personagem ao mesmo tempo em que demonstra como reconhecemos esses traços apesar da cor da pele. A opção por não filmar em cores indica o tom e reforça a mensagem que o curta-metragem traz: a inciativa do programa espacial zambiano representa a disputa pelo poder no imaginário que desvaloriza a pele negra.

Por imaginário entende-se aqui o sentido da palavra descrito no livro de Edouárd Glissant, Poetics of relation (1997, p. xxii), isto é, o conjunto de “todos os modos que uma cultura tem de perceber e conceber o mundo” (Glissant, 1997, p. xxii). Nesse contexto o imaginário não seria, como se percebe no senso comum: uma imagem mental consciente; tampouco, o sentido lacaniano, de algo irrepresentável, da ordem da alucinação e em contraste com o real.

Glissant compreende o potencial transformador do imaginário, “o pensamento na realidade se expande no mundo. Informa o imaginário dos povos, suas variadas poéticas, que depois transforma, ou seja, neles seu risco se realiza.” (Glissant, 1997). O autor vai além ao explicar sua “Poética da Relação”, pois aponta uma função reveladora do imaginário: “somente uma poética da Relação, ou seja, um imaginário, que nos permitirá ‘compreender’ essas fases e essas implicações das situações dos povos no mundo de hoje, nos autorizará talvez a sair do confinamento ao qual estamos reduzidos.” (Glissant, 2005, pp. 28–29).

Nesse sentido, o Africanofuturismo será assumido aqui como um indício de mudança no imaginário colonial/moderno (Mignolo, 2012, p. 3) e uma expressão do pensamento decolonial. Pensamento que questiona as epistemologias formadoras da matriz hegemônica no pensamento ocidental, a “matriz (colonial) criada por uma minoria da espécie humana” que “rege a vida da maioria da espécie humana” (Mignolo & Walsh, 2018, p. 114).

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De volta ao curta-metragem, as primeiras ações da protagonista são erguer-se e seguir correndo por entre os homens que a observavam em segundo plano. Após sua passagem os homens a seguem. Sua condição de elemento central na trama se estabelece nesse ponto, logo no primeiro minuto do filme. Na cena seguinte, os homens cantam repetidamente e em uníssono o nome da protagonista indicado no texto do início: “Matha, Matha”. Acontece um corte e lemos em letras brancas sobre a tela preta: “Bouyancy Training”. O treino de flutuabilidade necessário dentre as habilidades que um astronauta deve possuir. Aquele que coordena o treino pede que não parem de erguê-la no ar. Usando um capacete militar essa personagem, interpretada por Hoji Fortuna, representa Edward Nkoloso, fundador do programa espacial da Zâmbia (Siebrits, 2020).

Seguimos nos treinos, Matha aparece em marcha vigorosa e com um semblante de esforço. Vemos novamente um letreiro: “Weightlessness Training”. O corte nos passa para a visão desorientadora do horizonte a girar na tela. Percebe-se a seguir que vemos de dentro de um tambor rolando por um barranco. O treino consistia em colocar Matha dentro do tambor para simular o desequilíbrio que a falta de gravidade provoca. O corte retorna à marcha, à qual agora percebe-se, é o signo da repetição dos treinos à qual Matha é submetida.

Mais um letreiro: “Preparation for Isolation”. A câmera foca em um gato nas mãos da protagonista enquanto ela calça seu sapato, referência aos gatos cuja iniciativa do programa espacial zambiano pretendia levar ao espaço como parte dos experimentos. O esforço de Matha dialoga com a banda sonora, incisiva e pesada. Ouve-se também a voz dos homens que repetem: “Matha, Matha”. Mais um corte mostra o texto: “The Bantu 7 Rocket”. No alto de uma encosta vê-se um foguetão que parece ser construído com material precário. Matha está sentada no lado oposto e parece cansada ao olhar para o foguetão. Aí se encerram os primeiros 2 minutos e 30 segundos do curta, é quando surge o título: Afronauts.

O tom e a proposta do filme se mostram nesses primeiros minutos. A questão racial se mostra no estranhamento causado pela aparente precariedade das condições nas quais Matha realiza seus treinos para tornar-se uma afronauta, muito diferentes dos recursos aos quais um astronauta norte-americano ou um cosmonauta soviético tinha acesso na época (Siebrits, 2020).

O som da transmissão de rádio retorna, ouvem-se notícias sobre uma missão com astronautas. Vemos um acampamento feito com material desgastado, pneus em primeiro plano, uma barraca, uma bóia, latas e uma bicicleta ao fundo. O frame seguinte mostra a bicicleta sobre uma rocha, nela está amarrada uma lona com o foguetão e uma seta para a lua desenhadas com traços rudimentares. Em uma ampliação do plano vemos a sinalização precária de uma placa feita de pano à frente do acampamento: “Nkoloso Space Academy”. A seguir vemos um jovem sentado no chão que olha para o céu por objetos de metal que parecem ser círculos com estrelas. No céu, as nuvens passam e vemos a lua surgir, o som da transmissão é substituído por uma música incidental que conduz uma sequência dentro da barraca no centro do acampamento. Um dos membros da equipe dança conforme a música enquanto outro estuda a engenharia de foguetões em um livro. Materiais metálicos são manipulados sob a atenta supervisão do chefe da operação que segura uma lanterna. Ao longe vemos o foguetão, dentro dele Matha permanece concentrada. Um corte leva para o terreno à noite onde a protagonista surge, vestida com o uniforme de afronauta, um close up mostra seu rosto apreensivo dentro da redoma transparente.

Figura 1 – Afronauts (Bodomo, 2014) 4min06s.

Uma voz feminina à chama, retornamos para dentro do foguetão e percebemos que Matha estava sonhando com seu passeio lunar. O gato, candidato à tripulante de uma das missões, deixa o espaço onde Matha está por uma abertura na base do foguetão. Exausta, a personagem deixa o instável foguetão e encara uma mulher que lhe ajuda a levantar-se enquanto diz: “stubborn girl”. A obstinação de Matha encontra-se com a repreensão da personagem que, embora não seja explícito, atua como mãe severa, que não concorda com as ações da protagonista. Entre o sonho e a intervenção dessa figura materna, conhecemos mais sobre a subjetividade de Matha, supostamente endurecida pelo fardo de tornar-se a primeira afronauta.

Figura 2 – Afronauts (Bodomo, 2014) 4min31s.

É Grada Kilomba (2014), quem afirma que a questão racial interfere diretamente nos processos de subjetivação2 dos sujeitos negros. Segunda ela “no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente ter”. (Kilomba, 2014, p. 176) Essa separação, consequência dos efeitos históricos da colonização, está impressa no pensamento vigente. Ainda que africanos experimentem realidades diferentes das de seus irmãos em diáspora, o racismo instituído atua no processo de desenvolvimento da identidade dos sujeitos. Afronauts (Bodomo, 2014) contesta e resiste a esse pensamento, expondo-o como consequência da colonização. Essa exposição, entremeada na narrativa, também constrói – por meio da denúncia – uma consciência a partir da qual seja possível imaginar, pensar e implementar realidades positivas para o futuro da Zâmbia, estendidas para o futuro dos outros países da África e de seus descendentes em diáspora. Evidencia-se o Africanofuturismo (Okorafor, 2019) numa narrativa cujo tema e protagonismo é inteiramente africano.

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De volta à tenda vemos uma sequência que estabelece a dinâmica entre as personagens: os homens bêbados recebem Matha cantando seu nome, o chefe a olha com orgulho e a mulher que a carrega também a leva para um sítio reservado onde cuida de seu pé e fala sobre como aqueles homens não se importam com Matha. Cansada, Matha responde perguntando por que a mulher à incentivou a participar daquilo se está tão certa do que diz.

Figura 3 – Afronauts (Bodomo, 2014) 6min07s.

A situação precária das instalações do acampamento e a dinâmica entre as pessoas ali presentes reúnem o contexto de onde é possível perceber a iniciativa de levar Matha à lua como um iminente fracasso. Uma situação semelhante ao modo como a ideia de um país africano chegar à lua antes dos russos e norte-americanos foi recebida pela opinião pública durante os anos 1960-1970. Coloca-se aí um exemplo claro do lugar reservado no imaginário ocidental para um grupo de pessoas de origem africana. Trata-se da imposição de uma estrutura racial de dominação, o que Aníbal Quijano chamou de colonialidade do poder: a “imposição da idéia de raça como instrumento de dominação” (Quijano, 2005, p. 136). Quijano refere-se à diferença colonial, instaurada no processo de construção do imaginário moderno/colonial (Mignolo, 2012). a diferença colonial teve início quando “missionários espanhóis julgaram e classificaram a inteligência e a civilização humanas” (Mignolo, 2012, p. 3), que “foi um momento inicial na configuração da diferença colonial e na construção do imaginário atlântico; que se tornará o imaginário do mundo colonial/moderno” (Mignolo, 2012, p. 3).

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De volta ao interior da tenda os homens continuam a embebedar-se e a comer. Matha tem o olhar fixo e é observada por Nkoloso, o qual se aproxima dela e faz um gesto acolhedor sobre sua cabeça, em seguida ele se aproxima de seu ouvido para dizer:

Meu corpo maltratado é Forte / Vejo que veio bem em você / Vejo que veio bem em você Matha / Vejo aquela força com você / Quando te perguntarem Matha / Diga-lhes Matha / Mãe dos exilados / Diga-lhes que todos entraremos / Não imponha o cristianismo a todos eles Matha / Não imponha os estados-nação a todos eles (Bodomo, 2014, 8min27s)

Figura 4 – Afronauts (Bodomo, 2014) 8min27s.

A personagem reproduz a ambição de Nkoloso: levar seus afronautas para Marte. Eles deveriam levar o cristianismo para os marcianos, mas não deveria ser algo imposto. Nesse ponto, Afronauts (Bodomo, 2014) coloca em diálogo o fantástico da situação real com a poética de sua narrativa fantástica. No entanto, é no desafio imposto pela nação zambiana às superpotências que se apresentam os efeitos do colonialismo histórico, ainda atuantes. Por que parece fantástico a pretensão da Zâmbia de superar os programas espaciais dos EUA e da União Soviética? A resposta está no imaginário partilhado pela sociedade ocidental moderna (Glissant, 1997), imaginário cuja ousadia zambiana também desafia ao propor uma sociedade nova.

O poeta surrealista Aimé Cesaire, em seu Discurso sobre o colonialismo (1978), já denunciava os efeitos da colonização como causadores de grande parte da desigualdade social contemporânea. Sua ideia é a de uma sociedade nova, livre dos efeitos da colonização. “Não é uma sociedade morta que queremos fazer reviver. (...) Não é tampouco a sociedade colonial que queremos prolongar, (...) É uma sociedade nova que precisamos criar, com a ajuda de todos os nossos irmãos escravos, rica de toda a potência produtiva moderna, cálida de toda a fraternidade antiga.” (Cesaire, 1978, p. 36). Proposta que vai ao encontro do que constrói o psiquiatra e ensaísta Franz Fanon em seu livro Pele negra, máscaras brancas (2008). Para a compreensão da realidade de seu tempo ele propõe um estudo clínico, na intenção de “sacudir energicamente o lamentável uniforme tecido durante séculos de incompreensão” (Fanon, 2008, p. 29). Fanon descreve a necessidade de uma “desalienação em prol da liberdade” (Fanon, 2008, p. 191). Liberdade para a humanidade de negros e brancos.

Para tanto, a arquitetura de seu trabalho situa-se na temporalidade, algo que acaba por concordar com a questão colocada pelo filme, isso porque Afronauts (Bodomo, 2014) desafia a visão imposta a respeito do povo negro, como um povo destinado à precariedade. Assim, o curta-metragem assume um fato histórico para imaginar uma mulher negra como o primeiro ser humano enviado numa viagem espacial. A ficção científica reúne a realidade do passado com a tecnologia futurista. Segundo Fanon, todo “problema humano exige ser considerado a partir do tempo. Sendo ideal que o presente sempre sirva para construir o futuro.” (Fanon, 2008, p. 29). Sua proposta se apoia no confronto da realidade histórica com seus efeitos, na denúncia e enfrentamento dessas questões. Nas suas palavras: “O futuro deve ser uma construção sustentável do homem existente. Esta edificação se liga ao presente, na medida em que coloco-o como algo a ser superado.” (Fanon, 2008, p. 29). Nesse sentido, Fanon também imagina uma sociedade nova, construída quando se assume a invenção na existência Nesse sentido, Afronauts (Bodomo, 2014) se apresenta como a imaginação de uma nova sociedade, ao mesmo tempo em que denuncia a estrutura colonial que sustenta o imaginário ocidental contemporâneo. Portanto, o curta-metragem assume o lugar de uma expressão decolonial centrada em África, com personagens africanas e produzida por uma cineasta africana.

O pensamento decolonial surge de olhares sobre as realidades latino-americanas dentro do campo dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais. A decolonização é um diagnóstico e um prognóstico afastado e não reivindicado pelo mainstream do pós-colonialismo, envolvendo diversas dimensões relacionadas com a colonialidade do ser, saber e poder. Assim, “decolonizar” é uma proposta política de “abertura do mundo” (Mbembe, 2014, p. 58) que pretende acolher epistemologias fora do cânone acadêmico de tradição europeia e instituí-las como conhecimento relevante tanto para investigações acadêmicas, quanto para a construção de políticas de transformação social (Bernardino-Costa et al., 2020). O pensamento decolonial propõe um projeto de autonomia humana, no qual, abrir-se para o mundo é pertencer, habitar e criar. É a “luta pela vida” (Mbembe, 2014, p. 59), uma luta que começa no imaginário (Glissant, 1997, p. xxii).

Partindo de Glissant, Mignolo (2005) dá ao imaginário um sentido geopolítico e o emprega “na fundação e formação do imaginário do sistema-mundo moderno colonial” (Mignolo, 2005, p. 1). Ele faz esse emprego porque pretende defender a tese de que “a emergência da ideia de ‘hemisfério ocidental’ deu lugar a uma mudança radical no imaginário e nas estruturas de poder do mundo moderno/colonial” (Mignolo, 2005, p. 1).

Com a noção de imaginário de Glissant, também é possível traçar um paralelo entre o Africanofuturismo exposto em Afronauts (Bodomo, 2014) e o surgimento da ideia de “ocidente” no mundo moderno/colonial (Mignolo, 2005, p. 1). Ambos articulam o surgimento de uma ideia como indício de uma mudança em visões de mundo, que por sua vez, tem implicações políticas.

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Outra vez acompanhamos Matha. Todos a conduzem para dentro do foguetão para a decolagem. A equipe assiste a contagem regressiva e o lançamento, o foguetão decola e explode no céu noturno.

Figura 5 – Afronauts (Bodomo, 2014) 10min34s.

Apreensiva, a mulher que cuidou de Matha antes, se mostra como o ponto realista da trama ao investigar a carcaça e afirmar que está vazia. Nesse ponto, a trama apresenta seu clímax quando indica a derrota da heroína percebida no semblante da mulher.

Figura 6 – Afronauts (Bodomo, 2014) 11min20s.

O aspecto poético toma conta da narrativa em seu clímax e sintoniza a proposta africanofuturista. Ao ouvir que não há vestígio de Matha, a personagem de Nkoloso grita: “to the moon!”. Ele afirma que ela foi para a lua. Diferente dos africanos que sofrem as dores de uma realidade racista, Matha subiu aos céus e tornou-se uma lenda. Um futuro brilhante assume o lugar na história e a protagonista obtém sucesso. A cena seguinte, embalada por uma banda sonoro calma e sutil, revela o destino mágico de Matha, a vemos numa paisagem inóspita, a qual produz uma rima visual com o sonho no qual a protagonista se viu antes, caminhando durante a noite. Agora, ela caminha em meio a luz. O céu claro toma a tela e vemos Matha triunfante. No último frame Matha tem os olhos inquietos dentro do capacete e observa, perplexa, algo que não nos é mostrado. É o fim de Afronauts.

Figura 7 – Afronauts (Bodomo, 2014) 12min09s.

Figura 8 – Afronauts (Bodomo, 2014) 12min14s.

Conclusões

Afronauts (Bodomo, 2014) representa, por meio de símbolos e alegorias, a história real de um momento em que um país africano desafiou a narrativa estabelecida sobre a África. Uma narrativa construída ao longo de séculos pelo imaginário moderno/colonial, e, atualmente, em disputa com narrativas provenientes de expressões como o Africanofuturismo e o Afrofuturismo. Nesse embate entre narrativas, a lógica colonial ainda presente em práticas contemporâneas é atravessado por culturas de resistência. Para responder a essa dinâmica é que Mignolo levanta a ideia de um pensamento de fronteira, agindo no espaço entre as trocas culturais nessa relação. Como ele mesmo esclarece,

Por “pensamento de fronteira”, quero dizer os momentos em que o imaginário do sistema mundial moderno se quebra. O “pensamento de fronteira” ainda está dentro do imaginário do sistema mundial moderno, mas reprimido pelo domínio da hermenêutica e da epistemologia como palavras-chave que controlam a conceitualização do conhecimento. (Mignolo, 2012, p. 23)

O pensamento de fronteira indica o realojamento dos conhecimentos de comunidades racializadas, do lugar onde foram colocadas – de menor importância –, para um espaço de importância equivalente ao conhecimento canônico valorizado e reconhecido pela comunidade científica, conhecimento cuja origem, normalmente, é europeia ou norte-americana. Propõe-se empregar essas epistemologias desvalorizadas para criar uma nova forma de produzir conhecimento, “epistemologias de fronteira” (Grosfoguel, 2009, p. 74), um conhecimento decolonial, que desreseita a lógica colonial. Como explica Grosfoguel,

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistémica do subalterno ao projecto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem / redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. (Grosfoguel, 2009, p. 74)

Com essa resposta epistémica de grupos historicamente suprimidos, demonstra-se a proposição de uma mudança. Em princípio, aplicável à produção intelectual acadêmica, mas que se mostra também nas práticas artísticas, mais claramente nas práticas em sintonia com a crítica cultural, as práticas de resistência ao “sistema mundo europeu / euro-norte-americano moderno / capitalista colonial / patriarcal” (Grosfoguel, 2009, p. 1). Seria a perspectiva epistémica decolonial, que dialoga diretamente com a ecologia de saberes indicada por Santos, um diálogo entre “saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos” (Santos & Meneses, 2009, p. 7).

Portanto, a ideia central é, como já referi, que o colonialismo, para além de todas as dominações porque é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias das nações e povos colonizados. As epistemologias do Sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologias de saberes (Santos & Meneses, 2009, p. 13) Afronauts (Bodomo, 2014) denuncia essa lógica perversa a partir de um questionamento criado na Zâmbia nos anos 1970: porque parece estranho um país africano disputar a corrida espacial com as superpotências mundiais? A resposta surge junto com a pergunta: porque, desde a colonização, o conhecimento africano foi suprimido e desvalorizado? Algo que agora é desafiado por expressões como o Africanofuturismo, parte de um imaginário resistente, que valoriza a potência do povo africano dentro e fora de África.

Notas Finais

1Todas as traduções são minhas.

2Me refiro aqui a um dos “principais projetos do estruturalismo” (Hall, 2003, p. 177), Como explica Hall quando desenvolve sobre “o descentramento do sujeito” para discutir os “Aparelhos ideológicos de estado” presentes na obra de Althusser. Segundo Hall, “Esse ‘sujeito’ não pode ser confundido com o indivíduo historicamente vivido. É uma categoria, a posição em que o sujeito – o eu das afirmativas ideológicas – é constituído. Os próprios discursos ideológicos nos constituem enquanto sujeitos para o discurso.” (Hall, 2003, p. 177)

Referências bibliográficas

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