Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Aesthetic Symbolism and Hybridism in Jean-Luc Godard’s Goodbye to Language

Simbolismo e Hibridismo Estéticos em Jean-Luc Godard Adeus à Linguagem1

Veruza de Morais Ferreira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

Maria Helena Braga e Vaz da Costa

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

Abstract

This work discusses aesthetic symbolism and hybridism in Jean-Luc Godard’s film Goodbye to Language (Adieu Au Langage 2014), regarding the relationship between cinema and painting. Two central questions guide the focus of this article: how does the symbolic construction of Godard’s pictorial way take place?, and Do the pictorial elements present in the film narrative construct meanings and transmit real sensations such as those of the impressionist movement in paintings? The relationship between cinema and painting in Godard’s work is worked here in the context of promoting a dialogue between pictorial art and cinema. Starting from the assumption that films are artistic objects that communicate through symbolic elements, this work discusses the symbolic and hybrid forms in Godard through the analysis of elements such as color and light.

Keywords: Symbolisn, Hybridism, Cinema, Painting, Jean-Luc Godard.

Introdução

Este trabalho tem por finalidade, refletir sobre os processos de significação possibilitados pelo uso da cor e as possíveis relações iconográficas com a pintura tomando como base teórica as reflexões de Jacques Aumont em seu livro O olho interminável: cinema e pintura (2004). A esse trabalho interessa o diálogo existente entre cinema e pintura no contexto de suas relações estéticas. O olhar aqui é direcionado para o filme Adeus à Linguagem (Adieu Au Langage, Jean-Luc Godard 2014), no sentido de associar, de forma investigativa, elementos das artes visuais às narrativas fílmicas. Analisando as noções estéticas neste filme, percebe-se que o uso da cor, por exemplo, possibilita relações estéticas e sensações psicológicas com inúmeras significações poéticas.

Durante o século XX, fortes mudanças sociais, políticas e culturais tornaram a atividade artística mais complexa. Podemos identificar nesse período movimentos artísticos de diferentes conotações. O impressionismo, por exemplo, foi um movimento artístico que explorou de modo sincrônico, a intensidade das cores e a sensibilidade do olhar do artista. O mesmo foi responsável por transformar inicialmente a pintura e seu esboço, no estudo complexo da representação do objeto a ser apreendido e analisado na busca da realidade, na procura pela primeira impressão do momento (Gombrich 1996).

Subsequente à transformação das maneiras de representar, segue uma maior flexibilidade dos modos de ver, emerge a mobilidade, capaz de transmutar toda a forma de ver e observar. Ao ganharem movimento, as imagens concederam maior variabilidade ao olhar, tornando-se intensificadas pela velocidade da representação –, da representação pictórica à representação cinematográfica, o olho humano foi ganhando maior movimento e mobilidade do olhar.

As representações proporcionam um olhar analítico, impregnam leituras diversificadas e instigantes. Na opinião de Dondis (2007, 7), essa experimentação visual humana alcança outros propósitos no momento em que a compreensão do entorno transfigura a maneira que reagimos a essas imagens. Isso se explica pelo fato de que, ao adquirirmos o conhecimento necessário para a leitura e interpretação visual, formamos opiniões críticas sobre as mesmas. Conforme Berger (1972), nossas experiências e conhecimentos podem afetar o modo como enxergamos as coisas, pois a atividade visual tem seu primeiro despertar no cérebro, o qual responsabilizamos pelas informações adquiridas.

Ao vislumbrar uma imagem, se faz necessária a presença da luz, elemento primordial para qualquer leitura imagética. O reconhecimento dos elementos básicos da comunicação visual mencionados por Dondis 2007 –, a cor, a forma, a textura, a escala, o movimento e o contraste –, são alguns dos elementos percebidos pela presença da luz. Visto que a presença da luz não a torna exclusiva pela condição do ver, entende-se que o sistema visual carece de informações que estimulam o entendimento crítico.

O olho humano percebe o entorno conforme “como” e “o quê” o estimula. A mesma imagem pode possuir inúmeras leituras, proporcional às leituras dos espectadores-observadores de diferentes vivências. Para Joly (2004), a imagem em sua terminologia possui inúmeros significados, no entanto, apesar dessa diversidade, compreendemo-la bem em sua função. Percebemos o que ela representa, de fato ela “[...] indica algo que, embora nem sempre remeta ao visível, toma alguns traços emprestados do visual e, de qualquer modo, depende da produção de um sujeito: imaginária ou concreta, a imagem passa por alguém que a produziu e reconhece.” (Joly 2004,13)

Com o surgimento da fotografia e do cinema no século XIX, eclode simbolicamente uma nova era dominada pela tecnologia que amplia as maneiras ver o mundo. A representação por imagens da realidade em movimento alcança uma grande capacidade técnica. À arte pictórica, as imagens fílmicas agregam sensações atmosféricas e emocionais, o som, e o tratamento técnico, e acrescentam-se novos significados e metáforas.

Nesse contexto, pretende-se discutir a linguagem fílmica e pictórica, que constituem o filme Adeus à Linguagem (Adieu Au Langage 2014), do diretor francês Jean-Luc Godard, apresentando os elementos nos quais as linguagens pictórica e fílmica se assemelham e/ou divergem, refletindo o que chamaremos de híbrido no cinema de Jean-Luc Godard. Este trabalho ainda discute a forma simbólica atuante no hibridismo presente no filme Adeus à Linguagem (2014), explicitando como a maneira estilística própria de Godard articula os elementos pictóricos nesse filme.

O diferencial construído por Godard se baseia na utilização sistemática e significante da cor em seus filmes. Por esse motivo, a análise de Adeus à Linguagem propõe verificar como Godard trabalha elementos pictóricos em sua construção narrativa através da utilização e do significado da cor que é usada com insistência para produzir reafirmações (Costa 1996), o emprego do pictórico no plano narrativo, e construções de significados a partir da imagem.

Ademais, percebe-se uma relação de natureza híbrida no filme. As cores aplicadas de forma combinada sob uma perspectiva pictórica no cinema, sugerem o análogo cinema e pintura. A propósito, para Aumont (2004), há uma conexão entre a pintura impressionista e o cinema de Godard, pois ambos buscam representar sensações reais. As relações de semelhança dos trabalhos de Godard com a pintura podem ser explícitas.

Compreende-se o hibridismo aqui não unicamente mediante as novas estratégias tecnológicas que estão ao dispor dos cineastas na contemporaneidade, mas também por meio da análise estética e das linguagens distintas particulares a cada um. O hibridismo de Jean-Luc Godard é relacionado a uma estética autoral que se compõe explicitamente como uma mistura de linguagens – pictórica e fílmica. Talvez por isso, Godard pode ser considerado um representante relevante para o cinema considerado arte2.

Considerando a relação de semelhança entre cinema e pintura na filmografia de Godard levanta-se as seguintes hipóteses: a primeira é a de que, pode existir elementos pictóricos na narrativa fílmica assim como nas pinturas impressionistas, que se propõem a construir significados pela combinação de matizes cromáticas postas teoricamente pelos impressionistas com a função de se transmitir a impressão do que se vê. Para isto, a sensação torna-se o ponto de partida para essas construções imagéticas que implicam na narrativa fílmica; a segunda, que o cineasta se utiliza de novas possibilidades de produção e manipulação da linguagem cinematográfica, partindo da junção de técnicas aplicáveis de igual valor ao cinema e à pintura para romper com os paradigmas postos anteriormente.

A Cor na Cultura: Aquarelas em Adeus à Linguagem

A expressão hibridismo usada no título do trabalho, referencia o diálogo entre as áreas do cinema e da pintura. Essa estrutura dialógica é base para construção analítica e determinante do título “Entre cinema e pintura” em todos os filmes de Godard. Jean-Luc Godard é um diretor que explora a linguagem pictórica na sua filmografia, por meio de duas vertentes: da pintura citada nos filmes e do cinema que se faz como pintura.

Adeus à Linguagem (2014) sugere inúmeras interpretações por meio de lacunas e construções simbólicas do discurso, não permitindo que o espectador veja além de suas ideias. Propositalmente, tudo é dito por meio de metáforas. Em uma entrevista concedida pelo jornal Folha, Godard esclarece o significado do título do filme: “Na Suiça [...], onde eu moro no cantão de Vaud, ‘adeus’ também quer dizer ‘olá’. [...] Quando digo Adeus à Linguagem, quero dizer adeus à minha maneira de falar.”3 A comunicação parece ser a chave para o entendimento do filme de Godard. Na abertura do filme, os créditos iniciais anunciam poeticamente “aqueles que não têm imaginação buscam refúgio na realidade”. Surge a palavra “Adeus” sobrepondo a frase em uma colagem. “Resta saber se o não-pensamento contamina o pensamento”. A palavra “Adeus” sobrepõe novamente a frase. Aqueles que não têm imaginação buscam refúgio na realidade”. (Figura 1). Não seria um desafio posto a nós por Godard de um anúncio da fragmentação e hibridismo diante de sua linguagem complexa?

Figura 01- Sequência poética nos créditos iniciais de Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme

A alternância brusca de planos nas cenas iniciais de Adeus à Linguagem (Figura 02), pode ser tomada como um gesto de ruptura do discurso. “Neste caso, a montagem parece instabilizar ou mesmo inviabilizar as suas funções discursivas. A montagem chama então a atenção para si mesma a partir da forma como parece contrariar a competência interpretativa do espectador e contrariar as próprias premissas de clareza de qualquer linguagem” (Nogueira 2010, 165). Identificamos na estratégica radical posta por Godard uma certa propositabilidade em desestabilizar as ideias do espectador. Mas o que será que Godard pensou ao criar Adeus à Linguagem? Godard explica que o que lhe serviu de inspiração: “Foi escapar da ideia, se possível. Fazer sem ideias demais ou sem ideias preconcebidas”4. Sem delimitação posta por um roteiro definido, o cineasta deixa as ideias fluírem no improviso e na espontaneidade.

Figura 02- Ruptura entre frames em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme

A montagem fragmentada, identificada nesta sequência de planos (Figura 02), utiliza de um recurso paradoxal entre imagens que a princípio não são dialogáveis. O corte brusco com intenção de produzir sentido tem como referência a proposta de Sergei Eisenstein que encontramos no cinema de citações intertextuais. Para autores como Mourão (2006) e Nogueira (2010), as marcas de Eisenstein são encontradas na filmografia de alguns cineastas como Godard. Acreditamos que o recurso de citação intertextual tornou Godard ainda mais próximo da pintura e das outras artes. Ao observarmos novamente a primeira imagem da esquerda para a direita na Figura 02, notamos que a cena assume uma textura visual incomum, possivelmente a essa imagem foram acrescentados filtros para obtenção do efeito de distorção e saturação de cor. Com essas propriedades fotográficas da imagem, reconhecemos o modo de produção pós-fotográfico (Santaella e Nöth 1999), pelo aumento flexibilizado da manipulação de imagens digitais.

Semelhante ao pintor romântico William Turner (1777-1851), Godard parece tentar ser mais abstrato à medida em que a cor se sobressai à forma (característica específica do pintor inglês. Não reconhecemos de imediato o homem abaixado (possivelmente um soldado), buscando proteção dos ataques. Observando o fotograma, podemos encontrar aspectos semelhantes na representação Chuva, Vapor e VelocidadeA Grande Estrada de Ferro Ocidental (Turner, 1844) (Figura 03). A abstração de Turner é tão eficaz que quase não reconhecemos a locomotiva sobre a ponte. Turner eliminou os detalhes se preocupando em expressar a ideia de “velocidade, neblina e ar” com a forma da locomotiva em movimento. O destaque é dado pelos tons de azul e dourado, tons que se misturam meio à abstração da imagem (Strickland 2002).

Figura 03 - Chuva, Vapor e Velocidade (William Turner, 1844).
Fonte: http://www.abcgallery.com/T/turner/turner2

A cor como propriedade fotográfica da imagem pode ter seus efeitos alterados com o tratamento digital. A cor desempenha diversas funções discursivas, dentre as quais destacamos: “a criação da tonalidade emocional de um espaço, a atmosfera dramática de uma ação, a caracterização de uma personagem ou a definição da identidade visual de um filme” (Nogueira 2010, 65). A manipulação das propriedades e funções das imagens podem hoje ser alteradas graças às possibilidades dadas pelo paradigma pós-fotográfico. O estilo de Godard dispõe de elementos discursivos e técnicos que o levam a firmar uma identidade narrativa e cromática. Que a cor é um dos elementos relevantes para o estilo de Godard já sabemos, similarmente reconhecemos seu gosto pictórico. No entanto, o tratamento da fotografia de Adeus à Linguagem permite novas possibilidades de leitura com a pintura que continua a ser destaque.

A edição de Adeus à Linguagem (2014) explora uma narrativa fragmentada e sua construção se divide em blocos, estes dialogam metaforicamente entre o “Adeus”, “a natureza”, a “metáfora”, e “a linguagem”. Nas cenas iniciais, uma voz off anuncia: “não, não nossos sentimentos ou nossas experiências vivenciadas..., mas, a tenacidade silenciosa com que os enfrentamos –, A natureza”. Essa fala parece dar continuidade à fala que a antecede: “Resta saber se o não-pensamento contamina o pensamento”. No primeiro bloco, em que a “natureza” é anunciada, cenas urbanas e paisagens se intercalam. Parece ser um diálogo entre espaços distintos em que o homem não está inserido. É possível que Godard queira tratar da natureza humana e dos seus conflitos.

Os fotogramas de Adeus à Linguagem chamam atenção não apenas pelo jogo paradoxal entre cenas da natureza e da vida urbana. Acrescentamos mais uma vez o destaque das cores presentes nas paisagens (Figuras 04 e 05). Identificamos bases cromáticas ainda mais luminosas e saturadas; o aspecto luminoso e fluido da imagem (composição), por mais que apresente cores intensas, aparenta um aspecto uniforme, sem muitas gradações –, como em uma aquarela5. É comum a cor na aquarela ser suave ou disseminada.

Figura 04 - Sequência poética em “A Natureza” em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Figura 05 - Natureza x o urbano em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Figura 06 - Frames aquarelados em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Sob outro ponto de vista, a tinta aquarela apresenta aspecto translúcido, aparência não identificada nos frames indicados nas Figuras 05 e 06. A apresentação de cores ricas e luminosas parece aproximar-se da técnica da tinta a óleo, mesmo que não percebamos as camadas de sua textura. Por mais que ambas as técnicas apresentem cores e texturas distintas, por que não unir as técnicas? Tudo parece ser possível por meio da edição, e “fusão” parece ser a palavra correta para definir a estética de Godard. Do mesmo modo que no cinema, não há uma técnica “certa” ou “errada” para a produção de um filme, similarmente à pintura, a marca será sempre resultado de uma construção individual. Como as marcas de um pincel, os traços e a textura de uma cor no filme são influenciados pela maneira adotada pelo o autor. A base dependerá do quanto a “luz” iluminará o pigmento e o contorno da forma a ser aplicada na superfície da tela. A luz destaca um dos elementos de maior importância da cinematografia godardiana, a cor.

A aquarela funciona por camadas distinguidas por clara (camada “chá”); média (camada “leite”); e escura (camada “mel”)6. A camada “chá” é diluída em bastante água, por ser uma camada de luz, que traça o desenho. Com a camada “leite” (um pouco mais escura e pigmentada), criamos a sensação de sombra; e com a camada “mel” (mais escura e pigmentada), definimos as sombras projetadas. As técnicas de aplicação da aquarela são opções oferecidas para os pintores que desejam alcançar efeitos específicos em seus desenhos. Com camadas saturadas ou não, cada camada dispõe de um efeito aplicado com objetivos estéticos.

Similar aos pintores quando escolhem uma técnica específica, Godard optou por trabalhar a cor pigmentada. Correspondente à técnica aquarelada, a fotografia de Adeus à Linguagem expressa aspecto manchado e não uniforme, suas camadas lembram a da consistência em “mel”, a cor pura que é traçada com o mínimo de água, apenas com o pincel úmido. Godard não satura apenas os matizes azul e vermelho, o tratamento de uma cor intensificada e luminosa é dado para estas e demais cores. A fotografia de aspecto aquarelado dialoga com a narrativa como se fosse a ilustração de um livro escrito em luz por Godard. As imagens de aspecto luminoso e com tratamento digital, intercalam cenas entre a natureza e o urbano (Figura 06). Em alguns momentos é possível perceber sugestivamente a analogia entre presente e passado (imagem digital e imagens em preto e branco).

A fotografia da paisagem em Adeus à Linguagem sugere o não reconhecimento da natureza pela consciência humana dos personagens, como também o não reconhecimento do divino. Ao mesmo tempo, induz o domínio do conhecimento por meio da literatura, filosofia e da tecnologia. Roxy, a cadela que parece querer se comunicar constantemente com a natureza e as pessoas, representa a consciência humana perdida pela linguagem e pela natureza. Em uma cena, uma voz off descreve: “A água falou com ele, com uma voz profunda e séria. Então Roxy começou a pensar. Está tentando se comunicar comigo, como esteve sempre tentando se comunicar com as pessoas ao longo dos anos. Conversando com si mesmo quando não havia ninguém para ouvir. Mas tentando comunicar suas notícias para outros.” Roxy parece representar a linguagem perdida entre os humanos e a natureza com cores luminosas (Figura 07).

Figura 07 - A cadela Roxy e a linguagem em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Em consonância com Fraser e Banks (2010), as combinações de cor diferem nas diversas culturas. Uma única cor ou composição de cores pode adquirir significados distintos para cada pessoa que a observa. Com o tempo, desenvolvemos diferentes tradições de representação. Os estilos de imagem variam com a cultura, a tecnologia e o lugar. Explicamos as imagens criadas por designers controladas por suas próprias ideias, crenças e percepções (Fraser e Banks 2010). Do mesmo modo, os valores simbólicos da cor são tomados por Godard de forma bem particular.

Por tradição, identificamos os matizes (vermelho, azul e branco) priorizados por Godard na mise-en-scène, dentro e fora das paisagens aquareladas. O cineasta propõe a todo momento reafirmar, por gosto, os valores cromáticos culturalmente simbólicos. Associamos esses valores cromáticos ao nacionalismo francês de Godard. Paisagens, objetos e figurino mostram na fotografia de Adeus à Linguagem cores da bandeira francesa como provável afirmação nacional e do socialismo francês (Figura 08). Em contraponto, sabemos que os pigmentos azuis e vermelho vigentes nos filmes de Godard afirmam a admiração do cineasta pelo pintor francês Nicolas Staël (Motta 2015).

Figura 08 - Valores cromáticos culturais e pictóricos em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Aqui, o vermelho, que tem, em alguns casos, por símbolo o “sangue” recorrente na narrativa fílmica, pode estar relacionado ao hedonismo, tema presente no discurso da contemporaneidade. “O hedonismo veio ser enfatizado por meio do lúdico, do humor, das cores brilhantes e do ornamento” (Santaella 2005). Assinalamos o “sangue” como símbolo hedonista, por ele apresentar uma linguagem metafórica, não indicando o indício de pessoas machucadas fisicamente, mas enfatizando exclusivamente a dor emocional sentida nas relações humanas e conflitos presentes na sociedade contemporânea.

As cores destacam a fotografia fílmica, e Godard não deixa de mencionar a pintura que é citada imageticamente e no diálogo. Em uma das falas, uma voz off cita o pintor impressionista Claude Monet: “Nesse ponto da tela, pinta-se não o que se vê, já que não se deve pintar o que não vê, mas pintar de modo que não se veja.” Possivelmente a citação fala da natureza não percebida pelo homem, mas é notada por um olhar sensível de um pintor. Como se um grande mistério nos impedisse de ver o visível e o invisível posto pela natureza (Figura 09). “Godard atribui a Claude Monet a intenção de pintar o que não via. [...] Segundo Godard, Monet teria dito a si mesmo que não via nada ao entrever os pântanos floridos na luz da manhã. Como poderia pintar, então, se só pintasse o que via?”7.

Figura 09 - A pintura citada nos frames de Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Outro ponto a ser destacado nas fotografias “aquareladas” de Godard, é o pigmento azul. O azul saturado e variações tonais são destaque em grande parte das imagens. Atmosferas dos dias ensolarados, chuvosos, da noite, final de tarde, o mar e águas profundas, são representadas pela cor azul com variações claras, escuras e brilhantes do matiz azul (Figura 10). Vemos mais uma vez o azul simbólico dos filmes de Godard seguindo variações tonais com efeitos de iluminação cinematográfica.

Figura 10 - O pigmento azul presente nos frames de Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

O azul e o vermelho predominam nas imagens, no entanto, adquirimos novas combinações saturadas que variam entre cores primárias e secundárias (tons de verde pigmentado, laranja, marrom, e cores análogas) (Figura 11). O laranja com partes mais escuras, tem tons gradativos da cor canela ou terra. O verde, apresenta em algumas cenas o aspecto fosforescente, utilizado como um realce da imagem.

Figura 11 - Variação de cores nos frames de Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

O aspecto contemporâneo do filme permite a combinação de elementos trabalhados digitalmente entre o presente e o passado. É a prática artística atuante no paradigma pós-fotográfico. É a inovação da prática de fazer o cinema como pintura. É o aspecto híbrido da arte resultado da fusão com as novas tecnologias culturais. Em Adeus à Linguagem, a pintura é magistralmente marcada pela combinação dos efeitos de imagem possíveis pelo computador e softwares.

Para Canclini (1990), as progressivas inovações das práticas artísticas buscam alterar ou substituir modelos, porém, garantindo sua autenticidade. Tomando a reflexão de Canclini (1990) sob um olhar não especificamente inserido nos referenciais de cultura e fronteiras, mas para a prática inovadora de Godard fazer cinema como pintura aquarelada, pensaremos antes de tudo, que a base é uma fotografia cinematográfica na qual é aplicado um tratamento digital com efeitos específicos para tornar a imagem próxima a uma aquarela. Temos um cinema que adquire peculiaridades pictóricas por aspectos híbridos. O aspecto heterogêneo da fotografia cinematográfica mantém a legitimidade de ambas origens das linguagens (cinema e pintura).

Para Santaella (2005), a hibridização e desterritorialização da cultura, teve início no dadaísmo e na Pop Art, aprimorando-se na contemporaneidade globalização. O aspecto heterogêneo das misturas entre culturas, estilos das artes plásticas, artes comerciais, entre as artes e as mídias, são recursos de produção de novos significados para atingir públicos diversificados e de diferentes contextos culturais. Não esqueçamos que Godard foi um dos cineastas que incorporou criticamente a Pop Art em seus filmes. Em Adeus à Linguagem as relações com a Pop Art buscam a relação com o consumo.

O símbolo de Adeus à Linguagem é a própria linguagem. O filme é composto de inúmeras citações (Jacques Ellul, Platão, Sartre, Claude Monet), fragmentos de texto, fragmentos históricos de imagens documentadas (eleição de Hitler em 1933, a invenção da televisão pelo russo Zvorykine), entre outras. São fragmentos conectados com o texto do próprio Godard, criando paradoxos e instabilidades na narrativa. A narrativa se desenvolve entre presente e passado histórico (acontecimentos importantes da história são relembrados). Godard foge da verossimilhança como o abstracionismo, foge do comprometimento com o real.

A apropriação do símbolo para Santaella (1995) define-se por algo tomado pluralmente pela sociedade. Neste contexto, podemos sustentar a ideia de que a linguagem pode representar universalmente o filme Adeus à Linguagem. A fragmentação da narrativa e da imagem representa a própria crise da linguagem. Essa representação pode ser identificada nos diálogos dos personagens, com instabilidades de imagem e de discurso. “O cinema experimental ou de vanguarda (nenhuma dessas palavras é boa) e a videoarte (que não é melhor) têm em comum essa vontade de escapar por todos os meios possíveis de três coisas: a onipotência da analogia fotográfica, o realismo da representação, o regime de crença da narrativa” (Bellour 2003,176).

Quando o cinema incorporou características do vídeo em outras formas, como no cinema experimental, e as novas cinematografias da Nouvelle Vague, a videoarte integrou elementos relacionados a ele convertendo-se em uma nova forma de se fazer audiovisual. O vídeo inseriu características de um cinema que não estão diretamente relacionadas a uma narrativa clássica. A noção de uma narrativa desconstruída, e uma estética inovadora para a linguagem, contrapõe-se ao realismo cinematográfico da representação. As influências das vanguardas estéticas do início do século XX, e a integração do vídeo ao cinema são heranças impactantes da Nouvelle Vague até a fase vigente do cineasta Godard. Para Arlindo Machado (2000), durante a década de 1970, nas séries de Godard e Miéville, as interrupções no diálogo, pausas reflexivas e silêncio, já caracterizava uma linguagem incerta. As experiências televisivas de Godard anunciavam tendências às fragmentações e desconstruções narrativas, o que Machado (2000) conceitua de discurso videográfico “impuro” por natureza.

Em Adeus à Linguagem as imagens apresentam sobreposição (dualidade de uma única imagem ou sobreposição de duas ou mais imagens), giros rápidos de câmera, posicionamento invertido (de “cabeça para baixo”), movimentos evidenciados com a ajuda do recurso de slow motion criando efeitos de câmera lenta. A narrativa envolve temas como guerra, amor, ódio, morte, questões políticas, solidão, a não consciência humana da existência da natureza divina, temáticas paradoxais que indicam colapso na representação de uma sociedade ocidental.

O filme de Godard fala da cultura; indivíduos vivem em conflitos nos relacionamentos ou com ideias e posicionamentos diante da sociedade. Adeus à Linguagem desenvolve uma preocupação política e social. Identificamos características contemporâneas por toda narrativa. Em meio a livros, o diálogo é restrito, paradoxalmente com tantas referências literárias, a linguagem é sugerida com a troca de informações por celulares e nenhum diálogo entre os personagens (Figura 12). Reconhecemos a fragilidade da linguagem em meio à tecnologia e à literatura. Internet e alta tecnologia dominam a narrativa fílmica o que pode significar o momento paradoxal da “hipermodernidade” (Lipovetsky 2015); valores do consumo se opõem às relações sociais e afetivas entre indivíduos. A característica dominante desse período é o efêmero; o mercado tangível se preocupa cada vez mais com o imaterial e o imaginário (virtual) em busca do prazer consumista.

Figura 12- Escassez da linguagem x acesso à informação em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Por conseguinte, no filme, percebemos duas situações paradoxais: um casal é identificado, Josette e Gédeón (Héloïse Godet e Kamel Abdeli), enfrentando conflitos pela falta de comunicação; e um cachorro (Roxy), dialoga com os espaços (natureza) em que o homem não está presente. Indicamos também a convergência e o acesso rápido à informação, por exemplo, na cena que Sr. Davidson (Christian Grégori) cita a obra literária de Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008) para Isabelle (Isabelle Carbonneau) e pergunta: “O que ele escreveu? Se não sabe, não vá ao Google. Solzhenitsyn encontrou sozinho.” A fala caracteriza o vasto e rápido acesso às informações por meio das novas mídias. A mídia que incorpora mídia como característica contemporânea (Connor 2000).

Godard induz à abordagem do fim ou à saturação da representação da linguagem da sociedade ocidental. Inúmeros fragmentos de texto e imagem constroem uma analogia com a sociedade em uma representação fragmentada similar à sociedade contemporânea que ressignifica diariamente comportamentos e práticas a favor do mundo vivido de aparências e consumo. Uma sociedade que comporta pluralmente indivíduos e discursos a favor da cultura dominante.

A linguagem é o símbolo utilizado por Godard como maneira de explorar sugestivamente as problemáticas atuais por meio de metáforas e imagens contraditórias de uma sociedade em crise. Isto é, “[...] uma imagem capaz de sugerir ao espectador mais qualquer coisa do que a simples percepção do que o conteúdo aparente lhe poderia dar” (Martin 2005, 118). A linguagem é um conteúdo implícito no filme, o sentido simbólico das imagens é dado a ele. A leitura simbólica dessas imagens pelo espectador não implica em um único sentido. O fato é que Godard parece não se preocupar com quais leituras simbólicas seus filmes sugerem aos espectadores.

A água é um outro elemento simbólico em destaque em Adeus à Linguagem. Identificamos na água, um elemento metaforicamente presente do início ao fim da narrativa. Com propriedade de signo, a água adquire o atributo de índice dos acontecimentos e temáticas envolvidos. No filme, o elemento anuncia rastros e marcas de que algo aconteceu. Como “índice” (Santaella 1995), a água está sempre ligada a outra coisa, ou produto do fazer humano. Discussão entre casais, sentimentos vivenciados pelos personagens, ou a representação simbólica da natureza, desencadeiam relações conectivas com o elemento da água. O ruído da água e sua presença no rio, no mar, na cachoeira, no bebedouro, na cena que se passa na televisão assistida por Josette, e na natureza que dialoga com o cão, é constante.

Com a propriedade de índice, a água se une ao sangue: um ruído de arma de fogo, e logo vemos o sangue banhando o tanque de água; o cabelo de Florence Colombani (Marie Ruchat) preso na hélice e seu desespero com a dor, ao mesmo tempo que se afoga; o sangue na banheira; Josette (Héloïse Godet) afirma querer morrer: “você me feriu e me ofendeu”, afirma para seu marido a respeito do relacionamento em crise; Marcus (Richard Chevallier) diz a Ivitch (Zoé Bruneau): “vá embora agora. Tente sorrir quando partir”; segue a tomada de uma faca manchada de sangue, laranjas cortadas ao meio “banhadas de sangue”, ao mesmo tempo que a água lava os resíduos. A água é um índice que junto ao ruído apresenta-se conectado à morte, conflitos e solidão.

Para Nogueira (2010),

Os ruídos são fundamentais para criar a textura sonora adequada para uma determinada situação, emoção ou universo. São, em grande medida, os ruídos que fazem o ambiente propício à credibilidade de uma situação narrativa, ou seja, que restituem a autenticidade de um mundo. Mas é possível, igualmente, que o ruído seja utilizado como perturbação da verossimilhança, como acontece em muitos filmes de Godard. (Nogueira 2010, 80)

O que é proposto pela narrativa e pela representação da água como signo só comprova a intenção do cineasta de construir uma atmosfera instável e impactante. Solidão, guerra, amor, ódio e morte estão sempre dialogando com a água corrente ou pacífica, e com o sangue resultante das dores e questões particulares. Sinônimos de dor, conflitos internos e questão não resolvidas. Sem dúvida estamos tratando das relações da sociedade contemporânea que perdeu o amor ao próximo e à qualidade das relações. Uma sociedade caracterizada pelo individualismo, alienação, fragmentação, efemeridade e inovação, são traços do comportamento humano na contemporaneidade.

O sangue é um elemento que ganha destaque, indicando um outro atributo da imagem: a cor. O “vermelho-sangue” é um pigmento saturado que vai simbolizar perigo e violência (são as “guerras” silenciosas enfrentadas pelos personagens). É certo que, Godard parece estar sempre preocupado em ressignificar as representações de seus matizes favoritos: azul e vermelho. Como já sabemos, a escolha parte de um amor nacionalista e da paixão pela obra de seu pintor favorito Nicolas Staël.

A escolha combinada de cores como o azul, o vermelho e o branco (em menor presença), ditam um procedimento autoral que pode disseminar universalmente suas informações. Assinalamos a citação direta a Nicolas de Staël; não apenas pela presença dos matizes predominantes, mas por meio da citação de um livro com pinturas do artista sendo folheado pelo personagem Sr. Davidson (Christian Grégori) (Figura 13).

Em poucas páginas consultadas, reconhecemos a predominância dos matizes azul e vermelho nas representações de Staël (Figura 13). Enquanto folheiam o livro, Sr. Davidson traz a sua fala uma possível citação representada na legenda: “A experiência interior está interditada pela sociedade em geral, e pelo espetáculo, em particular você falava de assassinato. Isso que chamam de imagens transformam o assassinato do presente.” “O presente é um animal estranho”.

Essa fala parece indicar um pensamento filosófico ou uma citação específica. Não identificamos a origem imediata desse pensamento. Apesar disso, a fala parece remeter a uma crítica à espetacularização presente no cotidiano das sociedades contemporâneas. O espetáculo caracterizado pelo fetichismo da mercadoria no cotidiano, em que a vida se tornou representação e simulacro; e as relações sociais foram mediadas pelas imagens (Debord 2003). O surgimento de uma cultura dominante que cria uma realidade virtual que induz a sociedade a pensar e agir dentro de um padrão estabelecido. As relações de comunicação e linguagem na sociedade, estruturam discursos dominantes nas novas relações de consumo e poder material.

Figure 13- Citação da obra de Staël em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

Em outra sequência, um diálogo entre personagens acontece: “Imagine que Frankenstein nasceu aqui”, afirma Marcus (Richard Chevallier); “Posso imaginar”, acrescenta Ivitch (Zoé Bruneau). Uma voz off: “Em 1816. Lord Byron e Shelley caçados pela Inglaterra, pediram abrigo pelo lago de Genebra com Mary Shelley, que começou a escrever um conto de horror.” Nesse momento mais uma obra de ficção literária é citada pelos personagens em Adeus à Linguagem; “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” publicado no ano de 1818 pela escritora inglesa Mary Shelley (1797-1851). Godard não usa apenas do citacionismo da obra de Mary Shelley, temos a oportunidade de vivenciar um pouco da obra literária, com a encenação no filme, nos remetendo ao passado com direito a cenário e figurino de época. Na sequência Mary está sentada à beira do rio, com sua caneta de pena, escreve um conto sobre “um demônio cujo prazer se encontra na morte” (fragmento da fala em voz off que sobrepõe a cena).

Na última parte do filme, “memória histórica (3D 8 sobrepõe com ênfase) reconta seus amores patéticos”, parece mesmo que outra narrativa é anexada do filme. Nesse bloco, ao final da narrativa, Godard revela e afirma a técnica da pintura aquarela como escolha para a ilustração da fotografia de Adeus à Linguagem. Em um diálogo no qual não vemos os personagens, uma voz off e a legenda apresentam: “melhore a superfície. Duas questões. Uma grande e uma pequena. Mas a pequena é grande. Celine disse que é difícil de inserir. Qual é a pequena? Os planos de profundidade. O sofrimento. O outro mundo.”

Na pintura, os planos de profundidade são construídos com os fundamentos da perspectiva. Aos olhos do observador a profundidade do desenho é percebida sob o efeito da distância entre os objetos e o distanciamento entre aquele que vê e os elementos presentes no desenho. Com a ajuda da perspectiva, construímos efeitos em 3 dimensões (ilusões de profundidade e volume) para as pinturas. Similarmente, para representar a “memória histórica em 3D”, Godard sugere por meio de experiências dolorosas (o sofrimento), o despertar dos valores íntimos (outro mundo) em cada ser humano.

Não podemos desconsiderar as referências literárias ao final do filme: o escritor norte-americano Jack London, o escritor russo Fiódor Dostoiévski e Alfred Elton van Vogt, autor de ficção científica de origem canadense que tem sua obra citada nas cenas finais do filme (Figura 14). Escritores como Jack London, Dostoiévski e Alfred E. Van Vogt são referências que fazem possivelmente parte de uma memória e/ou da memória de Godard, ou até mesmo, da própria linguagem simbólica de Adeus à Linguagem.

Figura 14 - Memória histórica e aquarela em Adeus à Linguagem. Fonte: Fotogramas do filme.

O “Adeus à Linguagem” por Godard simbolizado no filme atinge um entendimento além da pintura; em meio a textos, referências literárias, à natureza que se consagra nas mais belas paisagens e com a vida animal; na mídia que se apropria do cotidiano, das relações afetivas, do senso comum dos indivíduos da sociedade, ressignificando saberes e heranças cotidianas. Godard pode estar ressaltando as mídias como ferramentas mais eficazes na comunicação diária, atualmente uma característica forte e dominante na sociedade contemporânea. Esse pensamento vai de encontro a Guy Debord (2003), e silenciosamente a nossa sociedade vai se moldando à essa nova forma de vida contemporânea, e em nenhum momento tomamos o conhecimento da violência “simbólica” e silenciosa (Bourdieu 1998) na qual estamos sendo obrigados a moldar nossos estilos de vida. Talvez esse seja o segredo de Godard, premeditadamente sem roteiro definido, o filme se destaca por sua fotografia interessante e bela, e a linguagem é praticamente indecifrável, porém, simbólica.

Em Adeus à Linguagem (2014), a técnica da aquarela destaca a fotografia, os efeitos de imagem realçam a montagem, com sobreposições, efeitos visuais de cores e movimento, insere no filme um padrão contemporâneo de imagens computadorizadas. O híbrido perpassa a combinação cinema e pintura, o tratamento videográfico é complementado pelos efeitos computadorizados.

Conclusão

Este trabalho conclui que no filme Adeus à Linguagem (Adieu Au Langage, Jean-Luc Godard 2014), a pintura se apresenta para além de uma simples referência estética, desempenhando influências que são retratadas em toda a linguagem fílmica. O pictórico presente no fílmico se destaca na composição e na estrutura das cores na cena, nos efeitos de luz atmosférica que expressam sentimentos, nos pintores renomados que são citados nos diálogos dos personagens, assim como na forma como o diálogo cinema e pintura se intercalam mantendo suas individualidades ao mesmo tempo que se completam. O objetivo aqui, foi destacar a influência direta que a pintura desempenha no cinema de Godard, para compreender as difusões de ideias que essa relação provoca na estética fílmica - ao discutir e analisar as cenas do filme a partir da linguagem estética dos elementos pictóricos presentes na sua narrativa.

Entendemos que, ao nos referirmos ao híbrido ou ao hibridismo, essas concepções determinam algum elemento que emerge da produção entre vários e distintos elementos. No caso do cinema, aparatos cinematográficos como a luz, a impressão de movimento e a cor são tidos como elementos que foram influenciados por outras linguagens como a pintura e a fotografia. Daí talvez o fato de o cinema explicar o modo de uma linguagem dar unidade à outra, e não substituí-la. No caso deste trabalho, verificamos que as duas linguagens em momento algum se excluíram, mas sim se fundiram – pintura, fotografia e cinema, juntos num único propósito: a verossimilhança. O hibridismo cinematográfico promovido por Godard resultou de procedimentos e linguagens que se entremeiam e se transfiguram, ampliando a diversidade linguística e simbólica.

Nota-se que muito se pode encontrar de semelhanças entre o movimento impressionista e o trabalho de Godard. No impressionismo, quebra-se com paradigmas acadêmicos, enquanto a nova forma de expressão cinematográfica godardiana rompe com códigos e convenções já estabelecidos pela narrativa clássica hollywoodiana.

Propusemos nesse trabalho algumas possibilidades a partir de Adeus à Linguagem (Adieu Au Langage 2014) convidando o leitor a refletir, e constatar a relação entre cinema e pintura sob a representação do “olho variável”. A mobilidade do olhar e as transformações percebidas e estabelecidas em função do olhar e suas mutações do fazer artístico, e a representação no cinema.

Híbrido, intertextual e simbólico, Godard transcreve conhecimentos pictóricos ao cinema. Fazer cinema como pintura não parece ser uma tarefa fácil. Diferente do pintor, o cineasta de forma inovadora desenvolve a ideia, mas ele não pode concretizá-la sozinho. De maneira distinta de um pintor, o cineasta se apoia em uma equipe de produção, sem ela o trabalho não é efetivado.

Entre as possibilidades que tornam o cinema e a pintura mais próximos quanto às relações de similaridade, apontamos a simbologia. A imagem poética e alegórica traz peculiaridades decorrentes de um sistema particular de signos. A pintura toma proveito de uma variedade de elementos pictóricos aplicando-os combinados à uma linguagem imagetificada metaforicamente ou analogamente. O cinema de Godard se utiliza de códigos e convenções próprios ao aparato cinematográfico para uma escrita por imagens, desenvolvendo uma linguagem midiática que adquire expressões significativas para a sua contemplação. Podemos afirmar que o simbolismo e a poética são inerentes ao cinema e à pintura na produção fílmica de Jean-Luc Godard.

Notas Finais

1Este artigo referencia a dissertação de mestrado intitulada “Entre cinema e pintura: o hibridismo no cinema de Jean-Luc Godard”. A pesquisa apresenta um estudo no que concerne a relação entre cinema e pintura, investigando a forma simbólica atuante no hibridismo presente nos filmes do diretor francês Jean-Luc Godard.

2O cinema considerado arte é aquele designado por uma produção artística e poética, levando o espectador a refletir sobre a produção.

3Questões cinematográficas. Adeus à Linguagem – Despedida e boas-vindas. Piauí Folha, 2015. Disponível em:< http://piaui.folha.uol.com.br/adeus-a-linguagem-despedida-e-boas-vindas/ >. Acedido em 26 de novembro de 2017.

4Citação encontrada no artigo em: Questões cinematográficas. Adeus à Linguagem – Despedida e boas-vindas. Piauí Folha, 2015. Disponível em:< http://piaui.folha.uol.com.br/adeus-a-linguagem-despedida-e-boas-vindas/ > Acedido em 26 de novembro de 2017.

5Contrário das tintas densas, a tinta aquarela não tem poder de cobertura, característica que a torna transparente. A aquarela se destaca por suas cores suaves e luminosas. A base para o seu preparo é dissolução em água, as cores quando sobrepostas originam outras.

6Kettly Férnandes. Aquarela: técnica chá-leite-mel 2 – Aplicação. YouTube. Disponível em; < https://www.youtube.com/watch?v=EQrPVv8cJwA >. Acedido em 05 de novembro de 2017.

7Questões cinematográficas. Adeus à Linguagem – Despedida e boas-vindas. Piauí Folha, 2015. Disponível em:< http://piaui.folha.uol.com.br/adeus-a-linguagem-despedida-e-boas-vindas/ > . Acedido em 26 de novembro de 2017.

8É importante lembrar que Godard trabalhou o filme Adeus à linguagem integralmente no formato 3D, abusando das imagens fragmentadas. Ele excede o efeito tradicional do 3D que efetivamente faz com que a imagem “salte” da tela, permitindo o espectador ser imerso na história. O 3D de Godard é uma experimentação da profundidade da imagem, vem desenvolver sensações reflexivas, além da imersão na história.

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