Abstract
This work intends to establish, within a historical approach, some of the main initiatives to expand the uses of the projection planetarium through the adoption of audiovisual resources. In its origin, the optical-mechanical star projector occupied a central place, both technical and symbolic, in the planetarium experience. However, it gradually came to coexist with slide projectors, audio equipments, 16mm fisheye projectors or even lasers and special effects projectors. When the planetarium had its encounter with the standards of giant screen cinema (under the brand Omnimax) the star projectors lost its centrality at the expense of audiovisual media. In this sense, we intend to demonstrate how, albeit in a discontinuous and non-linear way, scientific, commercial and artistic initiatives using audiovisual media shaped the development of an expanded cinema on a hemispheric screen. Currently, the Fulldome standard has become the label for films produced and screened on a hemispheric dome in order to occupy the entire field of view of the viewer while adopting a spatialized audio system around the audience. In this process of major changes for the planetariums, the new Fulldome films incorporate other themes and proposals, in addition to the traditionally scientific and astronomical content, that open up a large field for artistic experimentation.
Keywords: Planetarium, Hemispheric Screens, Projection, Fulldome
Introdução
Neste trabalho, buscaremos traçar um panorama histórico dos usos diversos de equipamentos audiovisuais nos planetários. Desde 1923, quando surgiu o primeiro planetário moderno por projeção, planetaristas sempre empregaram recursos audiovisuais que buscavam complementar a experiência de visualização e contemplação do céu noturno simulado. Ao longo das décadas, o audiovisual assumiu cada vez mais espaço nas sessões de planetário, até se tornar, em muitos espaços, um componente central nas experiências sob o domo. Este desenvolvimento culminou, na década de 1990, no estabelecimento do padrão Fulldome, um conjunto de protocolos para os sistemas digitais de projeção em telas hemisféricas que favoreceram a constituição de uma forma imersiva de cinema expandido, na medida em que altera elementos da dinâmica da sala de cinema convencional (Parente 2009, 41).
Por meio da análise e discussão da bibliografia especializada na temática, buscaremos indicar algumas tendências marcantes neste processo histórico que se deu de forma descontínua e, muitas vezes, por meio de iniciativas que permaneceram isoladas, embora tenham suscitado expectativas concretizadas em momentos posteriores. Pretendemos demonstrar que, embora as tecnologias digitais tenham fortalecido de forma definitiva o audiovisual no planetário, a concepção de experiências audiovisuais multimídias no planetário não é algo recente, mas sim remonta às suas origens e ao período inicial de difusão, nos anos 1920 e 1930, especialmente no caso dos Estados Unidos, que se tornou o país com maior número de salas, bem como um dos principais centros da indústria provedora de equipamentos e conteúdos.
O advento do planetário moderno por projeção
Em suas acepções mais comuns, o termo planetário designa, de um lado, o aparato óptico-mecânico que, por meio de uma projeção luminosa na superfície interna de um domo hemisférico, apresenta uma representação dos corpos celestes, em particular as estrelas, os planetas, o sol, a lua e outros elementos complementares, como os pontos cardeais, figuras e nomes das constelações, dentre outros. Por outro lado, o termo também designa o teatro ou ambiente onde este projetor se encontra instalado e é operado em sessões públicas de demonstração do céu noturno. Sua característica mais evidente é o teto em forma hemisférica, o que favorece a percepção humana da chamada “abóbada celeste” (Marche 2008). Tal dispositivo, conforme foi concebido no século XX, integra uma longa história dos modelos de representação celeste a partir de concepções esféricas:
Tentativas humanas de criar modelos do universo se estendem até a Antiguidade e além. Durante os últimos dois milênios ou mais, muitas das soluções proferidas tentaram representar as posições das estrelas fixas sobre a superfície de um globo, enquanto os movimentos aparentes dos objetos celestes mais brilhantes (o Sol, a Lua e os planetas) têm sido replicados por aparatos mecânicos de distintas sofisticações. A despeito de uma ingenuidade considerável, nenhuma dessas inovações ofereceu mais do que uma representação imperfeita e incompleta dos fenômenos. (Marche 2005, 2, tradução nossa).1
A esse respeito, King (1978) nos oferece um relato minucioso da história dos modelos mecânicos de representação celeste, desde a máquina de Antiktera (séc. I a.C.), artefato grego ao qual se atribui a função de cálculos e previsões astronômicas. Tais aparatos, como os relógios astronômicos, as esferas armilares e os planetários mecânicos, buscaram representar, em escala reduzida e a partir de simplificações, modelos associados a concepções cosmológicas historicamente situadas (King 1978, 10). Não obstante, via de regra estes instrumentos eram sempre concebidos a partir de uma visualização externa ao espaço representado, algo incongruente com o ponto de vista dos observadores terrestres e que demandava uma série de conhecimentos prévios para serem utilizados e compreendidos.
Buscando contornar, de alguma forma, esta limitação, pelo menos desde o século XVII podemos identificar iniciativas de concepção e construção de modelos em ambientes fechados aos quais se poderia adentrar e experienciar uma vista interna do universo, conforme a experiência de um observador terrestre. O Globo de Gottorp, construído no ducado de Schlechwig-Holstein por volta de 1650, é recorrentemente identificado como um dos mais célebres antecedentes históricos diretos do planetário moderno (Goesl 2011; Marche 2005; Wiethoff 2008; Beyer 2019). Segundo King (1978, p.104), este aparato consistia em uma esfera oca de 3 metros de diâmetro e foi o primeiro globo celeste apto a receber visitantes sentados em seu interior. Enquanto no lado externo do globo havia a representação do mapa terrestre, na superfície interna o visitante encontraria estrelas e figuras mitológicas associadas às constelações zodiacais.
Figura 1 - Globo de Gottorp, século XVII. Fonte: https://gottorfer-globus.de/en/the-gottorf-globe (16/11/2020)
Outro aparato que deve ser considerado em uma genealogia do planetário moderno, o Orbitoscópio, criado cerca de 1912 pelo suíço E. Hindermann, é considerado o primeiro dispositivo para mostrar o movimento celeste por meio de um sistema de projeção, que, no entanto, projetava apenas sombras e representava configurações celestes isoladas, não possibilitando uma visualização completa e integrada da abóbada celeste. Apesar de seu valor instrucional, tinha muitas limitações quando comparado com seu sucessor mais célebre, o projetor Zeiss, que inaugurou o advento do planetário moderno por projeção (Chartrand 1973, 95).
Em 1923, o primeiro planetário por projeção foi instalado em Munique, na Alemanha. Desde 1905, Oskar von Miller, fundador e diretor do Deutsches Museum, intencionava a construção de dispositivos que pudessem enriquecer o espaço dedicado à astronomia na instituição. Nesse sentido, se aproximou da companhia de sistemas ópticos Carl Zeiss e negociou a construção de um modelo no estilo “esfera oca”. Walter Bauersfeld, engenheiro da Zeiss responsável pelo projeto, concebeu o dispositivo como uma grande semiesfera fixa em cuja superfície interna as estrelas e demais objetos celestes seriam representados por meio de projeção luminosa viabilizada por um conjunto de pequenos projetores situados no interior da sala. Assim, em 1919 iniciou-se a construção do projetor Zeiss Model I, com capacidade para projetar um total de 4500 estrelas, os planetas, o sol e a lua. No caso dos planetas maiores e estrelas de maior magnitude, eram empregados diapositivos que então projetavam os corpos celestes na parte interna do domo (King 1978, 344). Outros quarenta e um projetores formavam a mancha difusa da Via-Láctea e os nomes das constelações, sendo que o movimento dos diversos elementos era engenhosamente interconectado e sincronizado, mantendo-se as posições relativas entre eles (Chartrand 1973, 97).
Figura 2 - Primeiro planetário Zeiss Model I, Deutsches Museum, 1925. Fonte: https://www.zeiss.com/ (17/11/2019)
Paralelamente, também foi construído um domo de concreto no telhado da fábrica da Carl Zeiss em Jena, onde, em 1923, aconteceram as primeiras projeções. Enquanto isso, no Deutsches Museum foi erguido um domo de 10 metros de diâmetro, onde foram realizadas, ainda naquele ano, as primeiras demonstrações ao público do museu, obtendo grande sucesso. Em pouco tempo, a fama da “Maravilha de Jena”, alardeada pela imprensa internacional, percorreu o mundo. Embora as intenções iniciais de Miller fossem estritamente educacionais, o caráter espetacular das sessões abertas ao público acarretou em grande popularidade ao aparato, que suscitava enorme fascínio por sua engenhosidade e complexidade (King 1978, 349). Conforme Marché, “por meio da mágica deste aparato, a humanidade finalmente atingiu sua antiga busca por capturar o universo dentro de uma sala” (Marche 2003, 22, tradução nossa)2.
Apoiada na monumentalidade da arquitetura dômica, a projeção trouxe a possibilidade de uma experiência imersiva coletiva de grande impacto. Tal como outros dispositivos visuais que emergem na modernidade (como o panorama, o diorama ou o próprio cinema), o planetário propiciava à audiência um isolamento sensorial do mundo externo e possibilitava uma experiência de contemplação imagética também fora do habitual, já que, naquele momento, se tornava cada vez mais rara a visibilidade dos corpos celestes frente à intensificação da poluição luminosa nas metrópoles emergentes. Nesse sentido, é notório como, já em sua origem, o planetário por projeção suscitava certos tensionamentos entre sua intenção educativa original e seu caráter espetacular ou de entretenimento, conflito que permanece quase cem anos após seu surgimento (Griffiths 2008).
Assim, por seu sucesso como instrumento pedagógico, mas também pela experiência espetacular que propiciava, o planetário logo iniciou um processo de difusão internacional. Até o início da Segunda Guerra Mundial, a Carl Zeiss comercializou 25 unidades do Zeiss Model II, principalmente para cidades da República de Weimar, mas também para cidades como Moscou, Estocolmo, Bruxelas, Paris, Osaka e Tóquio, além de cinco para grandes instituições estadunidenses (Chartrand 1973, 98), a despeito da depressão econômica dos anos 1930 e dos vultosos investimentos necessários para aquisição e instalação do equipamento.
Na década seguinte, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o reconhecimento e valorização dos planetários se acentuou devido à sua utilização como ambientes de treinamento de orientação celeste por pilotos. Porém, foi sobretudo no pós-guerra, no contexto da chamada Guerra Fria, que a comunidade de planetários norte-americana passou por uma expansão sem equivalentes internacionais. Contra a hegemonia inicial da URSS na “corrida espacial”, o governo Eisenhower articulou a aprovação de novas legislações que ofereciam fundos federais para a educação científica e a formação de cientistas e engenheiros, com grande foco no tema da astronomia. O planetário, enquanto espaço privilegiado para a cultura espacial que se queria fomentar, ganhou nesse momento um impulso sem precedentes para sua difusão, especialmente no período entre 1960 a 1975, quando algumas instituições tiveram um papel ativo nos programas espaciais, oferecendo treinamentos em navegação celeste aos astronautas (Goesl 2011, 18). Além disso, nesse contexto surgiram também outras companhias dedicadas à produção de projetores e equipamentos para planetários, como as japonesas Goto e Minolta e as norte-americanas Evans & Sutherland e Spix, que contribuiu, especificamente, ao conceber e comercializar um modelo de projetor pequeno, de relativo baixo custo e adequado para domos pequenos, portanto ideal para instalação em instituições como escolas, museus e bibliotecas de cidades pequenas e méidias. Assim, os Estados Unidos se tornaram o país com maior número de planetários do mundo, o que contribuiu para uma intensificação do interesse popular pela astronomia e para o fortalecimento do imaginário espacial, a “última fronteira” a ser conquistada.
Recursos complementares à projeção de estrelas
Tal difusão e popularização dos planetários favoreceu uma grande diversificação em seus usos ao longo das décadas. Como observa Boris Goesl (2011), a história do planetário moderno é marcada por reiteradas transformações, tanto de suas estruturas físicas quanto dos valores culturais a ele associados. Apesar da persistência da vocação científica inicial que lhe foi atribuída, foram promovidas mudanças significativas ao longo dos anos desde seu surgimento. Constatamos, nesse sentido, que o planetário quase sempre foi um espaço multimídia, já que, na prática, planetaristas e diretores se acostumaram desde cedo a agregar recursos midiáticos imagéticos complementares à projeção de estrelas. Para além dos recursos sonoros, já presentes nos primeiros planetários Zeiss, destacaram-se especialmente os recursos imagéticos, como a projeção de slides, de filmes e efeitos especiais, de acordo com a realidade de cada planetário, o estilo da equipe e as expectativas do público local, realçando assim uma enorme diversidade de usos e apropriações de uma máquina que nasceu determinada por uma única funcionalidade principal: a projeção de estrelas e outros corpos celestes.
A respeito da utilização de recursos complementares, King (1978), autor que demonstra certa visão conservadora sobre o planetário por projeção (ao qual não atribui a mesma engenhosidade de seus antecessores mecânicos), realça aspectos da limitação do equipamento. Em relação ao uso de slides, por exemplo, o autor atribui-lhes uma importante função (a despeito das dificuldades de utilização em uma tela de formato hemisférico), pois os recursos disponíveis pelo planetário por projeção aos palestrantes seriam limitados e fortaleceriam uma perspectiva de observação a olho nu, restringindo enormemente a abordagem de outros tópicos para além da astronomia observacional:
Sem slides e auxílios visuais similiares, um palestrante tinha dificuldades em comunicar à sua audiência algo da interpretação moderna dos eventos celestiais. Como uma demonstração, seu papel era relativamente simples; sessões de identificação de estrelas, estudo de constelações, tempo astronômico e o calendário colocavam poucos problemas. Ele também podia reproduzir com facilidade os fenômenos do sol da meia-noite, a superlua e o retrocesso dos nodos lunares. Porém, essas aparições são parte de uma observação a olho nú e, portanto, de uma astronomia pré-Galileana. Elas sublinham o ponto de vista geocêntrico mais do que suscitam alternativas. Permanecer confinado a seus limites é ignorar as descobertas telescópicas de Galileu, a sondagem da Via Láctea pelos Herschels, a exploração inicial do reino das galáxias por Hubble, e todas as riquezas da astrofísica moderna e cosmologia. O céu Zeiss, sem o suporte de outros elementos visuais, coloca o palestrante na posição de alguém que, confrontado com um aquário, espera-se que descreva os conteúdos e extensão do oceano. (King 1978, 349-350, tradução nossa)3
Já na década 1930, período marcado pela hegemonia dos grandes equipamentos Zeiss e tido como formativo para a comunidade de planetários norte-americana (Marche 2005), alguns diretores e técnicos já buscavam explorar soluções paralelas à projeção de estrelas e conferir maior teatralidade às sessões, recorrendo, assim, à apropriação de tecnologias audiovisuais.
Destaca-se neste contexto o trabalho de James Stokley, diretor do Fels Planetarium, que, diferente de seus pares atuando em grandes planetários, era um jornalista científico sem formação específica em astronomia, o que abriu espaço para um estilo mais livre, embora controverso (Marche 2005, 72). Stokley foi o primeiro a criar uma sessão dedicada à história da Estrela de Belém. Com o sucesso de Skies of the First Christmas, nos anos posteriores Stokley lançou sessões sobre a Páscoa, o fim do mundo e até uma viagem à Lua. Seu trabalho era geralmente marcado por uma abordagem multimídia, com emprego de efeitos visuais e sonoros, gravações musicais, projeções de slides e de trechos de filmes. Em suas apresentações, alternava demonstrações de hipóteses científicas com leituras bíblicas e encenações que dialogavam com os anseios do público e com a cultura popular (em especial a ficção científica), apresentando uma miríade de perspectivas, mas buscando sempre preservar sua autoridade científica ao realçar o caráter hipotético ou especulativo das informações apresentadas. O sucesso de seu estilo foi grande e trouxe grande repercussão, fazendo com que Stokley fosse reconhecido como o “maior showman” da comunidade de planetários (Marche 2005, 26). Muitos buscaram emular seu estilo, que nos anos posteriores se disseminou até mesmo nos grandes planetários e fomentou o surgimento de diversas outras apresentações que exploravam temáticas controversas.
A combinação de outras mídias com o projetor óptico-mecânico tornou-se uma constante nas décadas posteriores, configurando uma diversidade que dependia da orientação da instituição, da formação e dos interesses dos planetaristas. Fortaleceram-se, assim, concepções do planetário que o aproximavam do campo do audiovisual:
Desde que o primeiro planetário abriu em Munique em 1925, tecnologia adicional tem sido integrada às instituições. Durante a passagem das décadas, áudio, vídeo e, eventualmente, técnicas imersivas de projeção de slides contribuíram na conformação do planetário em direção a um espaço de ilusão cada vez mais versátil. (Wiethoff 2008, 18).4
Substituindo as silhuetas cenográficas de madeira anteriormente utilizadas para representar o skyline de uma cidade, a partir dos anos 1950, panoramas projetados no horizonte por equipamentos conjugados começam a sem empregados, devido às incongruências conceituais que um horizonte não correspondente ao céu projetado provocava, bem como à rápida desatualização dos skylines diante da transformação das paisagens urbanas. Outra possibilidade, o all-sky consistia em uma configuração para uso de 6 projetores de slides conjugados, cada um preenchendo uma parcela do domo, inclusive a região próxima ao zênite (ponto central do domo). Iniciativas como essas consistiram nos primeiros movimentos em direção à formação de uma imagem imersiva unificada no domo que envolveria o espectador:
O conceito de uma visão circundante foi levado adiante dentro dos planetários – algo que é frequentemente negligenciado, já que os planetários tendem a escapar da atenção pública, representando, em vez disso, um nicho de mercado. Além do mais, visuais animados e filmes foram usados dentro da cúpula de vários planetários clássicos. Algumas vezes diversos filmes eram projetados simultaneamente na cúpula por meio de projetores. Isso também resultou em uma tela 360º fragmentada. No entanto, artistas e produtores trabalhando em planetários tentavam alcançar uma cobertura imagética unificada da cúpula. Eles então complementaram a experiência circundante, que podia ser alcançada com uma combinação de céu estrelado por um projetor de estrelas e panoramas fixos ou allskies cobrindo o teto. Com um allsky, o zênite do hemisfério podia também ser coberto via projetor de slides. Portanto, planetários e a indústria em torno deles se esforçaram para desenvolver tanto o conteúdo quanto a tecnologia de uma visão circundante como forma de empurrar o espaço interior do meio para outras capacidades visuais. (BEYER, 2019, P.81, tradução nossa).5
Elencando as possibilidades de projetores empregados nos planetários, Albin (1994, 12) chega a afirmar que aos projetores de slides cabia a maior parte do trabalho de uma sessão, não sendo incomum que uma sessão contasse com cerca de 300 slides, bem como intrincados recursos de movimentação, zoom e transição entre imagens que buscavam algum dinamismo frente a natureza estática das imagens. Posteriormente, os slides foram substituídos por uma sucessão de novas tecnologias: projetores conectados a videocassetes, laser discs, computadores, CD-ROMS e DVDs.
O planetário como meio audiovisual
O desenvolvimento do planetário como um meio audiovisual imersivo e narrativo se acelerou especialmente a partir dos anos 1960, promovendo intensos deslocamentos de seu eixo científico e acirrando ainda mais a tensão entre ciência e entretenimento. Se o cinema aparecia como uma referência da cultura popular nos shows de planetário no período formativo, a partir da década de 1960 ocorre uma aproximação cada vez maior com este outro dispositivo no qual a indústria do entretenimento norte-americana também exercia hegemonia. Novas tecnologias, como a computação, trouxeram novas possibilidades, como a automação dos equipamentos e a comercialização de sessões fechadas que sincronizavam a trilha sonora pré-gravadas com a projeção e os demais efeitos especiais, o que liberava o apresentador da manipulação dos controles dos projetores e aproximavam a operação do planetário a um apertar de botões, em certa medida equivalente ao da operação de um projetor de cinema.
Outro destaque, neste contexto, foi a iniciativa pioneira de produção de filmes com objetivas fisheye por Wendall A. Mordy, físico atmosférico que observou a pouca atenção conferida nos planetários aos fenômenos atmosféricos que aconteciam à luz do dia, em favor do céu noturno. No período em que dirigiu a equipe do Fleischmann Atmospherium-Planetarium, na University of Nevada-Reno, Mordy criou uma série de conteúdos explorando a cinegrafia fisheye que incluíam time-lapses de formações de nuvens, fenômenos atmosféricos, simulações de viagens pelo sistema solar, o lançamento do satélite Saturn I e até mesmo tomadas subaquáticas no Hawaí. Inaugurado em 1963, o Atmospherium-Planetarium contava, além de um projetor óptico-mecânico Spitz, também com um projetor de filmes 35mm adaptado com uma lente fisheye, sendo considerado a primeira instituição a integrar demonstrações dos fenômenos atmosféricos com os programas astronômicos tradicionais (Imagem 03). Apesar do sucesso de público e das possibilidades abertas, a iniciativa de produção audiovisual fisheye permaneceu isolada na comunidade de planetários naquele momento e não houve replicação, já que os filmes eram escassos e sua produção exigia conhecimentos e equipamentos radicalmente distintos dos usuais nos demais planetários (Marche 2005, p.145).
Figura 3 - Exibição de time-lapse no interior do Amospherium-Planetarium. Fonte: Bulletin American Meteorological Society, Vol. 45, No. 1, July 1964
Apesar disso, na década seguinte a cinematografia fisheye para planetários recebeu impulsos importantes. Novos planetários surgidos nos anos 1970 contavam com projetores 35mm e se uniram ao Atmospherium-Planetarium para a formação de um consórcio de produtores de filmes fisheye sob a marca Cinema-360. Com esforços conjuntos, produziram alguns filmes de temas diversos e, com o apoio da NASA, puderam incluir imagens filmadas a bordo do ônibus espacial Challenger durante uma missão em seu primeiro filme, The Space Shuttle: An American Adventure. (Marche 2005, p.173).
Além disso, em 1973 foi inaugurado o Reuben H. Fleet Space Theather, em San Diego, marcando a chegada do padrão OMNIMAX (posteriormente rebatizado como IMAX Dome), que consistia em uma adaptação do sistema de projeção IMAX lançado em 1970. A adoção da película 70mm pelo novo formato representava um ganho de qualidade e nitidez em relação ao Cinema-360. O projetor de 70mm recebeu adaptações óticas e foi adotada uma nova arquitetura, com o domo inclinado (tilted dome) e os assentos unidirecionais foram dispostos em uma espécie de arquibancada. A tela curva IMAX deu lugar à tela hemisférica, sendo que o novo padrão permitia uma projeção imersiva que ocupava no domo uma amplitude de 180 x 130 graus (Imagem 04). A aproximação dos planetários com padrões de giant screen cinema obteve grande sucesso comercial e trouxe grande impacto e transformações para as instituições museológicas norte-americanas nas décadas seguintes, deixando, inclusive, um legado de temas, formas narrativas e apropriações de linguagem que, posteriormente, marcaram a produção audiovisual Fulldome.
Outra tendência da década de 1970 que cabe mencionar foi o surgimento dos shows de laser nos planetários norte-americanos. Em 1973 a abertura dos shows da companhia Laserium no Griffith Observatory, em Los Angeles, inaugurou uma forte tradição de espetáculos de laser que persiste ainda hoje e se encontra presente mesmo em instituições mais tradicionais (Brill 1984, 5). Nestas apresentações, o caráter demonstrativo do projetor de estrelas perde o protagonismo e uma variedade de efeitos luminosos, associados a execuções de rock progressivo, propiciam experiências de cunho psicodélico de grande sucesso e que, mais uma vez, suscitaram intensos debates sobre a natureza e a vocação do planetário (Marché 2005, 172).
Já na década de 1980 teve início a “era digital” dos planetários com a introdução do projetor Digistar I da companhia Evans & Sutherland, equipamento digital de gráficos vetoriais originalmente desenvolvido para uso em simuladores de vôo militares. Trouxe grande ampliação da virtualidade ao permitir a representação do céu a partir de qualquer ponto do espaço, superando restrições de muitos de seus antecessores. Ainda que, na essência, limitado a pontos e linhas brancas e pretas, possibilitava a formação de modelos tridimensionais em modo de visualização wireframe, exigindo, para tal, conhecimentos de linguagem de programação que passaram a ser um pré-requisito tão importante quanto os conhecimentos astronômicos para manipulação do equipamento e preparação de novas sessões. Apesar de suas limitações, em termos pictóricos, suscitou os projetos de projeção digital de gráficos rasterizados na cúpula, concretizados apenas na década seguinte (Lantz 2011, 2).
Na segunda metade da década de 1990, surgiram os primeiros sistemas de projeção digital para a tela hemisférica, inicialmente em simuladores de vôo para treinamento de pilotos militares. Em seguida, as principais empresas internacionais do ramo iniciaram a comercialização de seus novos sistemas em que a imagem projetada ocupava a totalidade do domo, como indicava a nomenclatura em inglês, Fulldome, focada na essência do novo padrão e na sua diferenciação em relação às demais soluções empregadas anteriormente nos planetários. Em geral por meio da utilização de um cluster de projetores operados de forma automatizada, a tela hemisférica passou a ser preenchida por projeções digitais sem emendas aparentes, com as bordas de cada canal de projeção muitas vezes mescladas eletronicamente, configurando, aos olhos do espectador, uma imagem única. Trouxe a vantagem de uma padronização de formato da imagem, facilitando a comercialização internacional dos novos shows em pacotes pré-renderizados.
Assim, na virada do século XX para o XXI, os primeiros sistemas Fulldome começaram a ser instalados, majoritariamente nos grandes planetários detentores dos recursos necessários para os novos equipamentos e adaptações exigidas. Embora não tenha sido a primeira a comercializar e implantar seu sistema, a fabricante japonesa GOTO foi a primeira a demonstrar um sistema Fulldome plenamente operacional durante o encontro da IPS (International Planetarium Society), em 1996, cujo nome comercial nos parece emblemático das expectativas em torno da nova tecnologia. O Virtuarium era sugestivo das diversas possibilidades que seriam abertas a partir dali e que, inclusive, iriam novamente colocar em xeque a própria sacralidade do planetário como instituição científica. Se o Planetarium era o espaço para maravilhar-se com as estrelas e planetas, o Virtuarium indicava uma superioridade, uma ampliação ilimitada das suas possibilidades de uso para representação de quaisquer universos, não apenas o sistema solar. Com o padrão Fulldome houve uma confluência das diversas mídias distintas operadas de forma interligada nos planetários, abrindo caminho para uma nova expansão de seus usos, reafirmando, dentre outras possibilidades, o lugar das experimentações artísticas para as telas hemisféricas. Como afirma Goesl:
(...) particularmente, a fusão cinema-planetário iniciou, então, uma profunda transição rumo a uma nova diversidade da programação muito além da astronomia. O planetário como um estabelecimento educacional, originalmente voltado para comunicação da astronomia com o público, então, historicamente se tornou cada vez um meio universal de comunicação das ciências em geral, e, consequentemente, também de todos os tipos de performances (sob as estrelas) (GOESL 2011, 18, tradução nossa).6
Considerações Finais
Uma análise de bibliografia relativa à história do surgimento e desenvolvimento do planetário indica iniciativas e tendências, em cada época, que marcaram expansões de seu uso para além da reprodução do céu noturno em uma experiência de cunho puramente pedagógico. Assim, se o planetário hoje, é visto como um meio audiovisual (especialmente a partir da difusão do padrão Fulldome de projeção), esse não é um fato novo, pois desde o início de sua história foram utilizados recursos e elementos que buscaram complementar a experiência, seja por intenções científicas e educacionais, seja por intenções de entretenimento, imersão e diálogo com a cultura popular. Além disso, os debates que em cada momento buscaram encontrar o equilíbrio entre “ciência” e “entretenimento” (ora pendendo para um polo, ora para outro) sempre estiveram presentes entre a comunidade de planetários e seus profissionais.
Nesse sentido, os impulsos que levaram o planetário moderno a uma aproximação com o campo do audiovisual não são unívocos, pois tanto do ponto de vista da divulgação científica quanto do entretenimento associado a atrações do tipo, recursos imagéticos complementares à projeção de estrelas foram vistos como necessários no movimento de expansão e popularização dos planetários. De um lado, os slides, filmes, músicas e efeitos especiais permitiram a superação das limitações convencionais do equipamento que, embora extremamente preciso e bem-sucedido em sua funcionalidade principal, impossibilitava a mobilização de outras informações e repertórios imagéticos que não a experiência de contemplação do céu noturno. Por outro lado, por meio destes recursos o planetário pôde promover uma maior atração do público, ao se colocar em diálogo com elementos da cultura popular, em especial a literatura e o cinema de ficção científica.
Agradecimentos
Agradecemos à CAPES, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, e à Pró-Reitoria de Extensão da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) pelo auxílio concedido para inscrição desta comunicação na Conferência Internacional de Avanca 2021 por meio da verba PROEX.
Notas finais
1Texto original: “Human attempts to create models of the universe extend back to antiquity and beyond. Over the past two millennia or so, many of the proffered solutions have tried to represent the positions of the fixed stars upon the surface of a globe, while the apparent motions of the brighter celestial objects (the Sun, Moon, and planets) have been replicated through mechanical devices of various sophistication. Despite considerable ingenuity, none of these innovations offered more than an imperfect and incomplete rendering of the phenomena.”
2Texto original: “Through the magic of this apparatus, humanity at last achieved its ancient quest of enclosing the universe inside a room.”
3Texto original: “Yet without slides and similar visual aids a lecturer had difficulty in conveying to his audience something of the modern interpretation of celestial events. As a demonstration his role was relatively easy; sessions on star identification, constellation study, astronomical time, and the calendar posed few problems. He could also reproduce with facility the phenomena of the midnight sun, harvest moon, and retrogression of the moon’s nodes. But these appearances are part and parcel of unaided-eye observation and therefore of pre-Galilean astronomy. They underline the earth-centered viewpoint rather than invite alternatives. To remain within their limits is to ignore the telescopic discoveries of Galileo, the probing of the Milky Way by the Herschels, the initial exploration of the realm of the galaxies by Hubble, and all the riches of modern astrophysics and cosmology. The Zeiss sky, unsupported by other visual elements, puts the lecturer in the position of someone who, confronted by a fish-bowl, is expected to describe the contents and extent of the ocean.”.
4Texto original: “Ever since the first planetarium opened in Munich in 1925, additional technology has been integrated into planetarium institutions. Over the course of the decades, audio, video and eventually immersive slide projection techniques contributed, in shaping the planetarium towards a more and more versatile space of illusion.”
5Texto original: “The all-around view concept was also taken further inside planetariums— something that is often overlooked, since planetariums tend to escape the wider public eye, representing instead rather a niche market. In addition, animated visuals and movies were used inside various classic planetariums under the cupola. Sometimes several movies were projected simultaneously on the cupola through projectors. This also resulted in a fragmented 360° canvas. However, artists and producers working with planetariums tried to achieve a whole image coverage of the cupola. They thus complemented the all-around experience, which could be achieved with a combination of the starry sky through a star projector and still panoramas or still allskies covering the ceiling. With an allsky, the zenith of the hemisphere could also be covered via slide-projectors. Thus planetariums and the industry around them took a lot of effort to further develop both the content and technology of the all-around view in order to push the inner space of the medium to further visual capacities.”
6Texto original: “(…) particularly the cinema-planetarium-fusion then initiated a profound further transition towards new program diversity far beyond astronomy. The planetarium as an educational establishment originally for communicating astronomy with the public then historically more and more became an universal medium of general science communication, and consequently even of all kinds of performances (under the stars).
Bibliografia
Albin, Edward F. 1994. Planetarium Special Effects: a Classification of Projection Apparatus. In: Planetarian, v.23, n.1, p.12-14.
Beyer, Isabella Marzena. 2019. Le passage – Towards the Concept of a New Knowledge Instrument: Epistemological Experiences inside Immersive Dome Environments. Tese de Doutoramento, University of Plymouth.
Brill, Louis M. 1984. Planetarium Lightshows – Past, Present and Future. In: Planetarian, v.13, n.1, p.4-7.
Chartrand, Mark. A fifty year anniversary of a two Thousand year dream. In: Planetarian, 1973, v.2, n.1, p.95-101.
King, Henry C. 1978. Geared to the Stars : The Evolution of Planetariums, Orreries and Astronomical Clocks. Toronto: University of Toronto Press.
Goesl, Boris. 2011. Modern projection planetariums as media of iterative reinvention. In: The 7th Media in Transition Conference. Cambridge: MIT (Massachusetts Institute of Technology).
Grau, Oliver. 2007. Arte Virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora UNESP: Editora Senac São Paulo.
Griffiths, Alison. 2008. Shivers down your spine: cinema, museums & the immersive view. New York: Columbia University Press.
Lantz, Ed. 2011. Planetarium of the Future. In: Curator 54, n.3, p.293-312.
Parente, André. 2009. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Kátia (Org.) Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, p.23-48.
Marche, Jordan D. 2005. Theaters of Time and Space: American Planetaria, 1930-1970. New Brunswick, New Jersey and London: Rutgers University Press.