Abstract
This communication investigates the strategies of making the film Antônio um two three exist itself, with a focus on screenwriting practices, in a perspective of the screenplay inseparable from production and direction. For that, some dimensions of the screenplay, written and shot in three different moments, and the Leonardo Mouramateus’s practices dialogue with the choreographer João Fiadeiro’s improvisation tool of the Composition in Real Time, determinants for the way of working the screenwriting in the creative process of the film. For this research, we studied the written screenplay, the film and the interviews with Leonardo Mouramateus. The critical theory of creative processes as proposed by Cecília Salles is our theoretical and methodological support to read these materials in a relational perspective.
Keywords: Cinema; Creation processes; Screenwriting practices; Leonardo Mouramateus; Composition in Real Time.
Introdução
Antônio um dois três estreou em janeiro de 2017 no Festival Internacional de Cinema de Roterdã, na Holanda, e é o primeiro longa-metragem de Leonardo Mouramateus. O cineasta está em processo de finalização do segundo longa, A vida são dois dias (em produção). Ambos foram filmados entre Brasil e Portugal, com uma equipe mista entre brasileiros e portugueses. Sobre a nacionalidade do filme, Mouramateus comenta:
Não intento ser português, nem fazer filmes europeus, tampouco um filme estritamente brasileiro. Desejo estabelecer uma espécie de transe, que não cabe em lugares específicos. Ser estrangeiro é algo que não esqueço por um minuto sequer. Em Portugal, o António um dois três é recebido como brasileiro; aqui [no Brasil] ele é tido basicamente como português. (Mouramateus 2019, s/p).
Antes de aventurar-se na produção de longa-metragens, o realizador obteve vários prémios pelos curta-metragens como: A chuva acalanta a dor (2020); Vando vulgo Vedita (2017), codirigido com Andrea Pires; História de uma pena (2015); A festa e os cães (2015); A era de ouro (2014), codirigido com Miguel Antunes Ramos; O completo estranho (2014); Lição de ski (2013), codirigido com Samuel Brasileiro; Mauro em Caiena (2012); Charizard (2012); Europa (2011); Dias em Cuba (2011); O homem do pântano (2011); Fui à guerra e não te chamei (2010).
Em entrevista ao jornal O Globo, de 28 de janeiro de 2020, a propósito do lançamento do curta A chuva acalanta a dor no Festival de Roterdã, onde também estava em cartaz uma mostra retrospectiva com seis de seus primeiros curtas, na sessão Deep Focus Shorts Profile do festival, ele comenta que faz filmes desde o primeiro semestre da faculdade, não pelo propósito estritamente de construir uma obra, mas como um modo de manter uma rotina de trabalho: “Fiz meu primeiro curta no primeiro semestre do curso de Cinema na Universidade Federal do Ceará [em 2010]. Acho que meu ritmo tem mais relação com a necessidade de criar uma rotina de trabalho do que construir uma obra” (2020, s/p).
O posicionamento de Mouramateus de ver a criação artística principalmente como uma prática a se desenvolver no tempo, não determinada especificamente pelo objetivo da construção de uma obra, pode ser interpretado como aquilo a que a coreógrafa, professora e produtora cultural Andréa Bardawil chamou de “estado de invenção” - “Permanecer em estado de invenção é abrir-se aos fluxos, é tornar-se um território plástico, permeável ao contágio” (13) -, se deve, em parte, ao intenso diálogo do cinema de Mouramateus com o teatro e a dança contemporânea em Fortaleza, ainda antes da entrada na faculdade de cinema aos 19 anos. “Sou bastante influenciado por teatro e dança, com os quais tenho ligação desde os 15 anos, antes de ingressar no cinema” (2019, s/p).
O filme Antônio um dois três (2017) traz a história de Antônio, em três momentos diferentes, e não identificáveis no tempo. Três Antônios, mas que poderiam ser muitos mais. “Algo que tenho especial noção é que o António um dois três poderia se desdobrar em Quatro, Cinco, Seis... indefinidamente, infinitamente (2020, s/p). Passamos a uma breve sinopse das três partes de Antônio…
Na primeira parte do filme, identificada na versão escrita do roteiro como Antônio 1, o pai de Antônio recebe uma carta anônima relatando que o filho não tem mais frequentando a Faculdade de Engenharia, o que provoca a saída deste de casa, que passa a morar no porão do teatro em que um amigo trabalha. No primeiro dia depois de sair de casa e buscar abrigo no apartamento da ex-namorada, conhece Débora, uma brasileira de passagem por Lisboa e a caminho da Rússia.
Em Antônio dois, assistimos, no teatro, ao ensaio da conversa de Antônio com o pai que vimos na primeira parte do filme, mas agora o diálogo se dá como parte da peça de Johnny, em que Antônio trabalha como iluminador. Débora é uma brasileira que dorme no quarto de hóspedes de Mariana, ex-namorada de Antônio, e que ele apenas a vê dormir rapidamente enquanto vai buscar algumas meias que ficaram na casa de Mariana.
Em Antônio três, Antônio estreia sua peça, em que também é ator, “A noite das Noites Brancas”, uma tradução do livro Noites Brancas de Dostoievski para a Lisboa dos dias atuais. Enquanto encena a peça, uma garota dorme na plateia, é Débora com jet lag após chegar da Rússia a caminho do Brasil. Ela veio para a peça trazida por uma vizinha de Mariana, também amiga de Antônio, porque não conseguiu entrar no apartamento onde alugara um quarto para passar uma noite. Ela acaba indo dormir na casa de Antônio e perde o voo de volta para o Brasil, ficando em Portugal indefinidamente.
As dimensões do roteiro e as estratégias de se fazer existir do filme Antônio um dois três (2017) diante do uso da ferramenta de Composição em Tempo Real, conforme proposta pelo bailarino e coreógrafo João Fiadeiro, é o foco de discussão desta comunicação.
Começamos por investigar as estratégias de se fazer existir do filme Antônio um dois três, e o caráter do roteiro, dissociado da produção e da direção. Em seguida, abordamos algumas dimensões do roteiro, escrito e rodado em três momentos diferentes e cuja dramaturgia está diretamente entrelaçada ao seu modo de produção. E, por fim, aprofundamos a questão ao abordar a especificidade do modo de trabalho de Mouramateus: o diálogo com a ferramenta de improvisação da Composição em Tempo Real, conforme proposta por João Fiadeiro.
1. Estratégias de se fazer existir
O filme Antônio um dois três surge no contexto do mestrado do realizador (em Arte Multimédia, da Universidade de Lisboa) que, para além do filme, apresenta uma carta-dissertação que se chama Antônio zero. Neste texto, Mouramateus tenta explicar o que o leva a fazer filmes. Ele cita, no primeiro capítulo da carta-dissertação, intitulado “Um lugar entre as árvores”, o seguinte poema de Roberto Bolaño do livro La universidad desconocida:
La violencia es como la poesía, no se corrige.
No puedes cambiar el viaje de una navaja
ni la imagen del atardecer imperfecto para siempre
Entre estos árboles que he inventado
y que no son árboles
estoy yo.
(Bolaño 2007, 88)
Mouramateus conta se reconhecer na prática da poesia de Bolaño, pois, conforme afirma sobre o escritor, “apesar de ser cético sobre a falsidade dos objetos que cria ao produzir poesia, encontra um lugar no mundo, e declara a possibilidade de existência em meio às árvores que ele mesmo inventara” (2017, 10). Mouramateus destaca no diálogo com as práticas de Bolaño que “A poesia não é capaz de mudar absolutamente nada, mas pode criar e recriar mundos, instaurando uma possibilidade de existência que a violência ou o tempo são incapazes de destruir, ainda que provisoriamente” (ibid.). Este modo de existência pela criação de mundos possíveis pela poesia e pelo fazer artístico se reflete também em Mouramateus nas práticas de Antônio um dois três, nos meios pelos quais fazer o filme existir, do tema à forma, passando pelos modos de produção, e o quanto essas escolhas são também políticas, conforme comenta:
António um dois três, em seu conteúdo e forma, tenta justamente fazer este exercício, isto é, a partir da inevitabilidade dos fatos, pensar em como o ato de criação é capaz de recompor a realidade. No meu caso, enquanto realizador, reconstruir a partir dos mesmos elementos três histórias que possuem uma pequena linearidade, mas que podem ser vistas como episódios distintos; no caso do personagem António, superar o fantasma da ex-namorada, mas também conseguir viver em Lisboa sem dinheiro, relacionar-se com o amigo em crise, apaixonar-se uma segunda vez... E a isso, a essa reconstrução sucessiva de realidades, pode ser dado um sentido subjetivo, mas também político. (Mouramateus 2017, 11)
O cineasta reflete, em meio aos próprios questionamentos políticos sobre a sua prática, sobre as dúvidas que o perseguiram ao escolher trabalhar com histórias que pareciam demasiado simples e o porquê de contar exatamente essas histórias: “Durante boa parte da concepção de António um dois três me perguntei sobre como ser fiel às angústias das diversas crises da atualidade. Qual era o sentido de fazer um filme com um modo de encenação bastante transparente.” (ibid., 41). Por que deixar à mostra as “árboles que he inventado / y que no son árboles”, e que Bolaño afirma em seu poema “soy yo”?
Como um artista que mora em seu invento, pode construir um filme, mas também um lugar onde habitar, uma prática em que viver?
Ele continua e fala sobre ter se questionado se a história de Antônio não seria só mais uma história centrada em um indivíduo com angústias egoístas. E afirma que o contato com os amigos, e com a equipe do filme, o ajudou a perceber que aquela história não era só dele ou de Antônio, que exatamente por ser construída por todos, ecoava de várias singularidades colhidas das histórias dos amigos e da própria equipe.
O que o fez perceber que nenhuma história era simples demais para não ser contada e que são essas, exatamente as mais simples, que precisam também ser contadas, ir à tela, serem registradas em suas pequenas existências. Um registro do tempo, do que foi capaz de se fazer existir, do que foi captado da matéria que estava lá e que durou, apesar das tesouras e das pedras:
Ao estar em contato com meus amigos, com as pessoas que fizeram o filme, percebia imediatamente que essas histórias deviam ser contadas, porque essa história não era só minha ou de António. Redescobria que nenhuma história era simples o suficiente para não ser contada, ou banal o suficiente para não ser política, e serena o suficiente para não ser urgente, e que sobretudo são as histórias pequenas as que tem maior dificuldade de serem encenadas, porque ninguém parece ver nelas matéria suficiente para algo de 95 minutos de duração. (Mouramateus 2017, 41)
O realizador identifica uma urgência em seu modo de produção desde os primeiros curtas. Filmes urgentes que queriam ser pintados frescos na tela, com a juventude do que ali existia:
a maneira como aqueles filmes eram produzidos, com câmeras fotográficas e com atores que eram amigos que também eram atores não era a única possibilidade de fazer estes filmes – eu poderia esperar e aplicar em editais as histórias que tinha em mente –, mas a urgência destas histórias exigia também uma urgência dos meios de produção, e nesse ponto dramaturgia e produção se uniam. (Mouramateus 2017, 23).
Ele desenvolve com a equipe um modo de produção que é também um modo de inventar, junto com a matéria dramatúrgica, as regras do jogo que vai compor Antônio um dois três que, a princípio, seria um trio de curtas-metragens: “A primeira proposta oferecida a Miguel Ribeiro, produtor do filme, era construir sem orçamento, a quatro mãos, três curtas-metragens com um mesmo personagem, tendo como inspiração as comédias de Chaplin ou Tati” (2017, 24).
“O primeiro argumento de um filme é o seu orçamento”. A frase atribuída a Gustavo Dahl abre o quinto capítulo da carta-dissertação de Leonardo Mouramateus, que tem como título “Sorte no jogo”.
A alusão ao jogo enquanto motor e ferramenta de criação é uma fala recorrente do cineasta. No texto do e-mail em que Mouramateus encaminhou o roteiro do filme para estudo, ele advertiu que o que estava a enviar não se tratava na verdade de um roteiro propriamente, mas sim de uma compilação dos textos das três partes de Antônio... que foram escritos junto com os atores e a equipe, especialmente nos ensaios. E que, para ele, não existia roteiro [nos termos convencionais], mas um jogo: “Eu não tinha a história toda, e mesmo o que te mando passou por muitas modificações no processo, pois até mesmo o trabalho com os atores de transformar as palavras do português brasileiro para o português de Portugal era algo decisivo no rumo do filme. [...] Não existe roteiro, existe jogo (2019, s/p).
Cineastas como o inglês Mike Leigh e o português João Canijo são conhecidos por seus trabalhos de escrita de roteiro junto aos processos de ensaio e de construção e testagem simultânea de cenas com os atores.
Mike Leigh afirma em entrevista ao Independent Film Festival de 2010, que procura ver os atores para além do personagem que estão a interpretar, e isso é o que contribui para a verdade cênica tão característica da construção dos seus personagens: «Meu trabalho, meu instinto, minha missão é olhar para as pessoas tridimensionalmente. Eles [os atores] não são apenas os personagens deste filme.» (2010, s/p).
João Canijo, por sua vez, em debate no Festival Guiões 2019, ao comentar o processo de criação de Sangue do meu sangue (2011), destaca como a escrita do roteiro baseou-se desde o começo no que era vivido no ensaio com as atrizes: “O que eu faço é [o seguinte]: eu filmo todas as sessões e, depois, transcrevo o que foi filmado e, a partir daí, vai nascendo o guião. Até chegar ao momento em que tenho um guião completo e aí improviso todo ele. E, desse improviso, é que saem os diálogos finais do filme” (2019, s/p). O registro desse processo gerou o documentário Trabalho de actriz, trabalho de actor (2011).
Canijo, no entanto, destaca, neste mesmo debate no Festival de Guiões 2019, que não inventou este processo e que muitos dramaturgos no teatro o utilizam de diferentes formas para a escritura de suas peças, entre eles, menciona William Shakespeare. Contam alguns biógrafos do dramaturgo, como o professor da Unicamp e diretor do Instituto Shakespeare Brasil, Ronaldo Marin, que “o ator é o verdadeiro herdeiro da obra shakespeareana, pois é com ele e para ele que ela foi escrita” (Marin 2018, 109). Ele conta ainda que, por ter sido também ator e não um poeta universitário, os “university wits” como eram chamados os escritores para teatro da época, Shakespeare utilizava os ensaios com os atores da companhia para escrever os textos que se tornaram clássicos pela profundidade humana que alcançaram, provavelmente pelo uso de uma prática de escrita próxima aos atores.
James Shapiro, no livro 1599 - Um ano na vida de William Shakespeare, destaca nos originais das peças de Shakespeare vários momentos em que o dramaturgo confunde os nomes dos personagens com os dos atores, o que demonstra a intensa relação entre os processos de transformação dos escritos e a presença dos atores: “Shakespeare ocasionalmente se esquecia de diferenciar entre o ator e o personagem. [...] Muito mais provável é que Shakespeare, como se vê em muitos desses rascunhos, não conseguiu pensar em Will Kemp senão como Will Kemp, qualquer que fosse o papel que desempenhasse” (Shapiro 2011, 65), dada a estreita relação com os atores enquanto escrevia o texto das peças. Práticas semelhantes acontecem aos cineastas que trouxemos como exemplo (Mike Leigh e João Canijo) e Leonardo Mouramateus. Todos eles cineastas com estreita relação com o teatro.
Na carta-dissertação Antônio zero, Mouramateus conta que um dos primeiros impulsos de criar o filme veio de uma fotografia postada pela amiga Carolina Thadeu (atriz que interpreta Sara no filme) no Instagram. Era a primeira vez que via Mauro Soares (o ator de Antônio um dois três). Estava deitado ao lado de um cão (ver figura 1): “A primeira vez que vi Mauro Soares foi numa fotografia: deitados num piso de madeira, um garoto e um cachorro olham-se nos olhos. O garoto sorri; o cachorro, quem sabe” (2017, 15). Ele continua e diz que não sabe exatamente o que o atraiu na foto:
Não consigo ser preciso no que me atraiu na fotografia, que foi tirada por uma amiga, Carolina Thadeu, que atua como Sara em António um dois três. Sua ternura? Certa paz e bom-humor? A beleza da composição e dos animais enquadrados? O olhar trocado entre cão e humano? Ou, na verdade, todas as possibilidades que surgem de um enquadramento, de uma fotografia que anuncia tudo o que poderia um filme? (Mouramateus 2017, 16)
A foto é mais um dos muitos acasos do filme - o acaso é uma das matérias da criação da narrativa de Antônio... assim como as interações com os atores. Esta foi a primeira “interação” de Mouramateus com o ator Mauro Soares e um dos gérmenes da vontade de fazer o filme, como ele conta, que veio do que suscitou o corpo do ator nesta cena caseira, documentada em uma rede social, uma das primeiras matérias da criação do filme:
Cheguei até esta foto devido a um acaso muito semelhante aos muitos que surgem no filme. E essa imagem resistiu a tal ponto que gerou um desejo, e depois um impulso. Desejo de encenar aquela presença numa narrativa. Transformar afeto em obra. Imagem em Cinema. Tentei revivê-la nos momentos finais de António um dois três, contextualizando-a numa cena inspirada pela mansidão e pela diversão da fotografia tirada por Carolina. Pus em cena algo que aquele corpo me inspira, com a intenção de que essa minha sensação se reconstruísse nos espectadores que irão assistir à cena posta. É justamente esta mise-en-scène que faz a ponte, no cinema, entre a criação de um mundo e a presença de um ator. (Mouramateus 2017, 16).
Figura 1 - Mauro Soares e o cão Hegas. Primeiro “contato” de Leonardo Mouramateus com a coleção gestual do ator Mauro Soares que viria a ser a matéria de composição para o personagem Antônio em Antônio um dois três. Fotografia postada no Instagram por Carolina Thadeu. Fonte: Antônio zero, 2017.
Figura 2 - Frame de uma das cenas finais do filme Antônio um dois três. Este é o ponto de vista da personagem Débora, que olha Antônio deitado na grama com a cachorra Gata. Fonte: Antônio um dois três, 2017.
Sobre a importância da relação com os atores desde o começo, como fundamento para a criação do roteiro do filme, Mouramateus afirma que “Havia desde então a convicção de que o filme precisava não só de um intérprete; um ator capaz de falar e mover-se pelas intenções evocadas num guião (já que não havia à partida um guião). Havia, na verdade, a convicção no caminho inverso ao processo natural de escolha de elenco” (2017, 15). Assim, a matéria para a criação da narrativa vinha de algo que os corpos, gestos e histórias dos atores suscitavam. Mouramateus, neste contexto, era um apanhador de gestos para a composição do filme:
Gostava de me sentir convocado por um modo de falar, um modo de se mover, para que então surgisse um filme. Antes de haver um roteiro, antes mesmo de haver uma história, existia uma convicção de que este filme, à maneira como estava sendo elaborado, deveria ter como ponto de partida uma pessoa. Eu, enquanto diretor, poderia oferecer a essa pessoa, esse ser movente cheio de pensamentos sobre si e sobre o mundo, possibilidades de estar em cena. Teria de pô-lo em ação. Minha função era a de ser um calígrafo; já o ator seria a própria matéria escrita. (Mouramateus 2017, 15).
Diante desse modo de construção, a ideia de o personagem Antônio se transformar, ao longo do filme, também num ator parecia ser um processo quase natural, como continua Mouramateus:
No caso de António um dois três, é no corpo mesmo do ator que isso acontece. Explicando de outra maneira: se minha obsessão pelo filme é no modo como o corpo do ator cria histórias e desenvolve, a partir da ação, uma ou diferentes versões de um mesmo personagem, eu deveria fazer com que, no filme, o personagem se transformasse justamente num ator. O filme António um dois três aponta, assim, para uma dobra sobre si mesmo. Uma fita de Moebius. (Mouramateus 2017, 17).
No texto do e-mail em que Mouramateus encaminhou o roteiro do filme, ele colocou várias aspas no termo “”roteiro’” e destacou que o que tinha ali era na verdade um documento que precisou ser entregue à Ancine para registro do filme, e que foi feito da soma do que foi produzido de material escrito em cada uma das três partes de Antônio..., que teve cada parte escrita, gravada e editada individualmente com um intervalo de aproximadamente seis meses entre cada uma.
Segue aqui um documento que mandei para a Ancine em que compilei a versão mais ou menos final dos textos do Antônio um dois três, para que pudéssemos registrar o filme burocraticamente. Coloquei muitas aspas no “””roteiro””” porque minha cinefilia nasceu em paralelo ao meu encontro com o teatro, com a dança, com meu amor pela literatura... minha ideia de escrever para um filme vai mesmo contra a lógica roteirista. (Mouramateus 2019, s/p).
A produção do filme em três partes, assim como a construção simultânea de produção, roteiro e direção, constituem uma estratégia de se fazer existir com as matérias de que dispõe: “Nos meus filmes de curta-metragem o meio de produção é matéria para a dramaturgia, e vice e versa. Não é à toa que em António um dois três a produção, o roteiro e as escolhas de encenação não tenham se dado de maneira separada, nem mesmo paralela, mas sim misturada” (2017, 24).
A seguir iremos aprofundar estas relações diante da observação de diferentes dimensões do roteiro de Antônio um dois três, escrito e rodado em três momentos diferentes e cuja dramaturgia está diretamente entrelaçada ao seu modo de produção.
2. Dimensões do roteiro
O cinema, enquanto fenômeno midiático, nasceu na esteira da revolução industrial. A história do roteiro (Price 2013) está intimamente ligada à divisão das equipes de cinema em departamentos e à concentração do pensamento do roteiro aos momentos de pré-filmagem.
Mouramateus, no entanto, vive o processo de tradução e recriação entre roteiro, direção e produção de maneira intensamente imbricada desde os primeiros esboços de cena (como é possível ver em alguns esboços abaixo - figuras 3 a 4) em que nascem juntos corpos, diálogos, cores, movimentos de câmera, músicas, sons e encenações:
Para cada uma das partes eu compunha, com ajuda de Mauro, Miguel, Aline... e do restante da equipe, um conjunto de diálogos, locações, ideias de quadros, cortes, trilha sonora, em resumo, o conjunto de elementos que compunha cada curta-metragem, à medida que eles apareciam. [...] O processo de escrita era baseado mais na disponibilidade dos atores, das locações, nas possibilidades e impossibilidades que acabavam por nutrir aquilo que a gente estava vivendo. O filme sobrevivia nessa corda-bamba, tudo que aparentava ser um erro e impossibilidade a gente precisava aceitar como um acerto e uma decisão. Fazer um filme com o que está lá. Acreditar que as coisas que lá estão são filme. [...] Tudo isso nascia em sobreposição, como um quebra-cabeça, sem sensações de Eureka! (Mouramateus 2020, s/p).
Figuras 3 a 4 - Registros do caderno de Leonardo Mouramateus durante o processo de criação de Antônio um dois três. É possível perceber nestes registros o enlace do pensamento diante das várias camadas e ferramentas (diálogos, corpos, enquadramentos, elipses, sons...) de composição da narrativa do filme. Fonte: cedidos pelo autor.
O cineasta tece, no capítulo 5 de Antônio zero, intitulado “No caminho dos cães”, ao falar do contexto de produção em que desenvolve Antônio um dois três (e a maior parte dos seus curta-metragens, a maioria deles sem editais de financiamento), alguns comentários acerca da produção contemporânea, entre eles a possibilidade de tentar fazer um cinema para além das limitações financeiras colocadas pelo cinema de grandes equipes e de escala industrial, ainda com forte remanescência da esteira industrial de onde surgiu.
Ele destaca, no entanto, que buscar um cinema por outras vias não significa fazer um cinema amador, menor ou com menos potencial narrativo ou dramatúrgico, pelo contrário, é exatamente a consciência da relação entre dramaturgia e modo de produção que o faz realizar os filmes que cria: “um modo ‘franciscano’ de produzir não é de modo algum obstáculo para sua arquitetura fílmica. É, antes, justamente o contrário” (2017, 21).
Foi exatamente a relação entre matéria dramatúrgica e modo de produção que fez, por exemplo, Antônio… se desenvolver em uma dramaturgia em três partes, que facilitou enormemente a disponibilidade da equipe, toda ela voluntária, para a produção do filme em três momentos temporalmente diferentes, entre os anos de 2014, 2015 e 2016.
A motivação para essa proposta vinha, entre outras questões, do fato de o filme ser parte do trabalho de mestrado de Mouramateus: “A estrutura de produção criada, com segmentos filmados a cada seis meses, tinha como mote desenvolver cada uma das peças num dos semestres do mestrado, a fim de discutir e reestruturar o projeto a partir daquilo que já tínhamos” (ibid., 24).
Antes de tudo, havia o modo de produção, havia as condições de trabalho. Pois, como explica Mouramateus, “facilitaria para a equipe técnica termos poucos e concentrados dias de trabalho a cada seis meses, pois essa equipe, toda voluntária, poderia organizar-se em seus outros afazeres” (ibid., 24).
O arranjo do modo de produção passou a reger também a dramaturgia do filme, diretamente, como matéria da criação e da composição de situações e personagens, como comenta Mouramateus:
Assim como no filme muda-se de casa, vai-se morar no porão de teatro e canta-se na rua por algumas moedas, movidos pela insistência e pelo desejo do presente. António, o personagem, era um tipo de espírito jovem um tanto selvagem que estava presente na alma da equipe; em Aline Belfort, que vinha da Rússia com seu equipamento de filmagem para gravarmos o filme, ou em Deborah Viegas, que vinha do Brasil para fingir ser Débora, uma garota que durante o filme inteiro está em processo de mudança, indo ou voltando. (Mouramateus 2017, 24).
O encaminhamento daquela ideia inicial de três curtas-metragens passou a ir em direção à produção de um longa-metragem tripartido com dobras sobre si mesmo, com base na experiência da produção da parte anterior e naquilo que havia disponível para compor a parte seguinte: “Após a filmagem e montagem do primeiro segmento, decidiu-se que o filme já não seria feito por curtas-metragens independentes, mas um filme de longa-metragem tripartido, por se aproximar de maneira mais generosa da poética que buscávamos, de dobras possíveis, realidades paralelas, nunca legitimando nenhuma delas como verdadeira” (2017, 24).
Isso permitiu que a dramaturgia do filme refletisse o que era a produção do próprio filme, que se reunia a cada seis meses para pensá-lo, e em que as decisões sobre as partes seguintes eram tomadas com base no trabalho com as partes anteriores:
Isso nos aproximava dramaturgicamente daquilo que era o próprio filme, uma reestruturação a cada seis meses das peças que tínhamos. Um bom exemplo disso é o uso dos espaços no filme, como no caso do apartamento de Mariana, que mudou nas três partes do filme. Em termos de produção, mudou porque não conseguimos emprestado o mesmo local a partir do segundo segmento; em termos dramatúrgicos, mudou por ser uma boa maneira de demonstrar como António não consegue reconhecer direito o local após voltar à casa da ex-namorada depois de meses sem estar ali. (Mouramateus, 2017: 24-25).
Não teríamos António um dois três como é, teríamos outro, se não fossem as questões dramatúrgicas colocadas por seu modo de produção.
Além disso, é também a relação entre dramaturgia e modo de produção que faz o cineasta buscar por um modo de encenação tão aparente, como um modo de ser sincero com os seus próprios recursos e o projeto poético e ético que conduz o filme. É uma das tantas dimensões do roteiro com que Mouramateus trabalha e foi o que o lançou em busca de uma atenção maior ao tempo real e o apreço pela ferramenta de Composição em Tempo Real, conforme proposta de João Fiadeiro, e que, como conta Mouramateus em diversos momentos e como veremos mais adiante, está no cerne de sua própria composição e, embora seja uma prática muito utilizada na dança contemporânea, pode ser utilizada em diversos campos, entre eles o cinema.
É sobre a Composição em Tempo Real e a sua importância para o modo de trabalho e as práticas de roteiro de Leonardo Mouramateus em Antônio um dois três que comentaremos no tópico a seguir.
3. Roteiro em tempo real
A coreógrafa e teórica da dança Thereza Rocha em seus estudos sobre a dança contemporânea destaca o que chama de “(des)ontologia” da dança contemporânea, a capacidade da dança contemporânea a não pertencer a um nicho pré-estabelecido, não ter um único berço ou origem, e, pelo contrário, ser a diversidade de origens uma das suas principais marcas.
Se a dança é contemporânea é porque ela deambula na direção da véspera de sua origem para abrir a fechadura que lhe põe o conceito. Sair do jogo dos pressupostos que diz: Sabemos o que é dança. Dancemos a partir daí., para dizer: A dança não se sabe. A dança não se sabe nunca. Voltemos sempre aí. Esta é a única condição do dançar imediatamente agora. Condição também honesta de qualquer pensamento crítico a seu respeito. (Rocha 2010, 5)
Esse pensamento de Thereza Rocha, de não trazer conceitos a priori, não negligencia a história e a tradição, mas navega nela sem determinar o futuro. É também o que tentamos fazer aqui enquanto estudo acadêmico e construção de teoria em arte, e é também o modo de agir de alguns artistas, como é o caso de João Fiadeiro e a sua proposta de Composição em Tempo Real.
João Fiadeiro, em entrevista ao CoffeePaste em 2015, conta sobre quando iniciou os estudos na dança contemporânea e como, no princípio, acreditava que a improvisação livre seria o seu passaporte para o desejo de não estar atrelado a uma lógica de hierarquia entre coreógrafo e bailarino: “eu vivi todos os anos 90 a pensar que a improvisação seria a minha salvação, porque finalmente não estava preso a rigidez de um só coreógrafo, em uma lógica mais vertical, e que agora eu ia ser livre” (2015, s/p).
Ele conta, no entanto, que percebeu que esta aparente liberdade também era ela erguida por forças de poder que eram capazes de aprisionar, ainda que inconscientemente, o seu corpo em automatizações:
No ato de improvisação e em estudo para encontrar matéria de composição dramatúrgica, eu verificava que a ideia de liberdade associada à improvisação, a ideia de porque improviso sou livre estava muito longe de ser verdade, e eu identificava isso no meu próprio corpo, nem era preciso olhar para os outros. Eu percebi que havia um conjunto de hábitos, que havia uma estrutura de poder, digamos, no modo como eu percecionava o real, que me fazia ter reações às coisas, não digo que sempre da mesma maneira, mas baseadas e sustentadas sempre nos mesmos gêneros de leitura ou de interpretação da realidade. (Fiadeiro, 2015: s/p).
E passou a perceber que talvez este tipo de improvisação não fosse o modo de seu corpo ser realmente livre.
Quando percebo isso, é um choque, mas depois vou mais ao fundo e percebo que esta estrutura de poder - que todos nós carregamos, que tem a ver com os nossos hábitos, com os nossos medos, com o modo como tendemos a repetir aquilo que já conhecemos - pode ser desativada, mas é preciso trabalhar para isso. Ou seja, deixar uma pessoa livre não é a melhor maneira - livre sem que ela própria construa restrições e limites de relação com os seus próprios impulsos, vontades e desejos - não é a melhor forma de desativar essa estrutura de poder. (Fiadeiro 2015, s/p).
Em busca de aprender a desarmar essas pequenas estruturas de poder, que junto a outras, governam os nossos corpos, ele foi desenvolvendo e aperfeiçoando aquilo que passou a chamar de Composição em Tempo Real.
Leonardo Mouramateus apresenta da seguinte maneira o diálogo que estabelece com a ferramenta de composição de João Fiadeiro levada para as suas práticas com o cinema:
João Fiadeiro, que interpreta o pai do António, é um dos artistas que mais me influencia. Seu método de composição nasce dentro da linguagem da dança, da performance, mas pode ser trabalhado em vários âmbitos. Algumas noções caras ao método do João, como suficiência, e a ideia de um jogo cujas regras são construídas à medida em que se joga, são influências diretas. (Mouramateus 2019, s/p).
Mouramateus teve contato com a ferramenta teórico-prática de improvisação da Composição em Tempo Real ainda em Fortaleza, com os amigos do teatro e da dança, antes de entrar para a faculdade de cinema, e que lá, assim como o diálogo com o teatro e a dança se intensificou e esteve presente desde os seus primeiros trabalhos, também a ferramenta estava presente, principalmente como um ímpeto de estar atento ao entorno e tornar a criação possível a partir dos materiais a mão. Foi um importante motor para o seu modo de produção mesmo numa arte como o cinema, intensamente cruzada pela divisão de trabalho industrial. Talvez por isso um dos principais objetivos de Mouramateus em suas produções seja exatamente buscar outras articulações que não as herdadas do modelo industrial.
Em resposta a uma das entrevistas informais enviadas a Mouramateus – no intuito de perceber melhor seu processo de criação- ele respondeu o seguinte sobre a contribuição da ferramenta de João Fiadeiro para as suas práticas no cinema:
Teve uma grande importância para mim porque ela tem uma afinidade muito grande com as coisas que eu (e meus amigos Daniel Pizamiglio e Andréia Pires) pensava aos 19 anos, no contexto que era trabalhar com artes performativas numa cidade precária como Fortaleza. Fazer com o que se tem. Fazer a partir do que se tem. Estava ali toda uma idéia anti acadêmica, anti industrial, anti autoria, anti departamento, anti roteiro, anti edital, um ideal bem punk de construção em coletivo. Uma ideia que já estava na gente mas que a gente não sabia como usar. Ou pelo menos era assim que eu lia tudo. Isso foi bem apaixonante. E no fundo, enquanto ferramenta, o método não era uma crença, um manual, era um instrumento, era mais uma maneira de organizar o caos dos estímulos que aos montes me vinham, desorganizados. Daí que eu consigo ver, de maneira bem implícita, a influência dessa ferramenta, dessa ética, desde a idéia inicial até a montagem, passando pela produção, dos filmes que fui fazendo desde os 19 anos. (Mouramateus 2020, s/p).
Ele conta que o que chamou a atenção para a prática da Composição em Tempo Real foi exatamente o trabalho de composição diante do que se tem, com a matéria do acontecimento, dos pequenos gestos e decisões que geram a cena, no que João Fiadeiro (2013) chama de “ética da suficiência”, que tem o acontecimento como ponto de partida, e não um sujeito isolado: uma ética que cria condições para que o processo se encontre a partir do acontecimento. Uma ferramenta que, como comenta Mouramateus, é sobre fazer algo surgir do que ali já existe:
É menos sobre idéias e mais sobre como fazer algo surgir (uma performance, um espetáculo de dança, um filme) a partir daquilo que ali está. Estar mais aberto, dar mais atenção, reconhecer as condições iniciais, elaborar hipóteses e insistir, alimentar, aquilo que ali está. E isso não serve só para peças ou para filme, serve para a vida. (Mouramateus 2020, s/p).
Fiadeiro apresenta da seguinte maneira a ferramenta teórico-prática de improvisação da Composição em Tempo Real:
Esse termo – “composição em tempo real” – traduz exatamente o que se propõe a fazer: pinçar a decisão a partir de uma perspectiva organizada e composta, mas em confronto com o tempo real, o tempo presente – isto é, são dois princípios que se anulam ou que se contrapõem. A composição pressupõe um olhar de fora, um suspender prévio, e o tempo real impede esse olhar de fora, esse saber prévio. Nessa tensão que se cria entre essas duas forças, dá-se o gesto – que chamo de Composição em Tempo Real. (Fiadeiro 2020, s/p)
O fascínio pela liberdade de escolha, pelo ato de escolher em si, também é um dos motores da construção de personagem em Mouramateus, conforme ele mesmo conta em entrevista ao Papo de Cinema em 2019, sobre ser atraído por personagens que trazem em si a verve da ação, de serem capazes de fazer escolhas, ainda que ruins, e que não sejam só marionetes, “que consiga ir além de ser um pacote de traumas e desejos” (2019, s/p).
Não me instigam os personagens construídos como se tivessem características de RPG. Minha vontade é viver junto com as pessoas, com aquilo visto, as paisagens, algo que vai de maneira irresponsável fluindo no filme. É muito maior do que reduzir a vida a uma ação ou a uma reação, do que focar somente em desafios e derrotas. Nada disso me interessa. O António ri desse jeito desbragado e as figuras são meio imaturas porque nelas o que me alimenta é o poder de decisão, mesmo sabendo que não necessariamente serão as melhores escolhas. A paixão consegue fazer com que ele tome caminhos ruins e isso me interessa. Ele tem poder de decisão. (Mouramateus 2019, s/p).
A característica de estar em busca e de tentar tomar as próprias decisões é também o que o fascina nas pessoas e nos personagens e, por consequência, estão sempre presentes em seus filmes, muitas vezes responsável pelo ar de juventude que muitos reconhecem entre as temáticas dos filmes de Mouramateus (por exemplo, Pablo Gonçalo na Cinética, 2018; Denilson Lopes na Teorema, 2019), não só nos personagens, mas também no espírito do filme. O que vem reforçar os pontos de contato entre as temáticas e a abordagem da dramaturgia de Mouramateus e o projeto ético que acompanha suas escolhas de composição e modos de trabalho, de que já falamos. De fato, esta é a matéria de composição de Mouramateus, um jovem cineasta brasileiro nascido em 1991 em Fortaleza, ao realizar Antônio um dois três com os amigos, entre Brasil e Portugal, com orçamento quase zero, entre os anos de 2014, 2015 e 2016, com então 23, 24 e 25 anos.
Ao observar a relação entre dramaturgia e modo de produção em Mouramateus e tentar pensar o que seria compor o roteiro em tempo real, abre-se mais claramente aquilo o que observamos na prática de roteiro de vários cineastas, o entrelaçamento entre todas as dimensões do filme (elenco, arte, fotografia, som, montagem…), mas também do seu modo de produção, para compor as camadas dramatúrgicas do filme, e que Mouramateus realiza de maneira ainda mais entrelaçada. É o que o fará explicar na introdução de Antônio zero o porquê de não abordar, em seu processo, o roteiro separado da direção e da produção:
esse conjunto de temas – roteiro, direção, produção – não pode ser abordado em categorias separadas; primeiro porque todas elas são temas dentro do próprio filme, ou melhor dizendo, o filme é também sobre um filme a ser feito, e todos os fios que estão expostos em sua construção são pensados como elementos expressivos deste, mas também porque toda escolha de um filme, das dimensões do quadro à saturação dada na correção de cor, cresce de maneira orgânica, sem hierarquias. Portanto, nega o padrão industrial, que distribui o filme em departamentos, realização, elenco, fotografia e arte, e nasce a partir da possibilidade que ressurge de tempos em tempos em diferentes partes do mundo: um cinema calcado na liberdade e no jogo. (Mouramateus 2017, 8).
Diante de tudo que já foi dito sobre roteiro e narrativa nas práticas dos cineastas estudados, está claro que não estamos falando da narrativa como uma dimensão única, muitas vezes confundida como um único modo de estruturar acontecimentos, encadeados apenas por relações de ação e reação. Mas da narrativa de forma ampla, intrinsecamente ligada aos modos de produção, que também são boa parte das histórias contadas diante das câmeras. Uma das muitas dimensões do roteiro e da narrativa nas práticas contemporâneas.
O acúmulo e cruzamento de práticas, inclusive entre práticas de diferentes campos artísticos que se cruzam, como é o caso da Composição em Tempo Real da dança contemporânea para as práticas de Leonardo Mouramateus, é antes um registro da diversidade que está presente quando se fala em processos de criação.
Conclusão
A urgência de viver da juventude grita em Antônio um dois três de vários modos. Um grito que está no ar, ora de alegria, ora de dor. Essa juventude está presente no filme enquanto tema, mas também se revela nos próprios modos de fazer, ao buscar outros caminhos, driblar as barreiras de orçamento e o próprio mainstream, com uma obra que não deve em nada a nenhuma outra de grandes orçamentos, e que fez do que seria precariedade poesia e verve de existir.
Mouramateus comenta, na carta-dissertação Antônio zero, que o seu desejo de fazer filmes veio principalmente da vontade de estar com os amigos e que, só por isso aqueles filmes já valeriam, pois eram registros do que fizeram juntos.
Antes de começar a fazer cinema, antes mesmo de começar a estudá-lo, compartilhava com meus amigos (principalmente com aqueles que dividia os ensaios do teatro e o dia-a-dia) que mesmo que eu não viesse a fazer filmes de maneira profissional, gostaria de poder filmá-los, e com eles improvisar as mais variadas histórias. E que quando fossemos idosos, e tivéssemos não muito mais do que a nós mesmos, pudéssemos nos divertir ao assistir juntos todos aqueles filmes mal-acabados, mas que registravam da maneira mais genuína possível a nossa vida juntos. (Mouramateus 2017, 39)
Ele comenta ainda, na mesma carta-dissertação, que foi do coreógrafo João Fiadeiro que ouviu uma das coisas mais importantes sobre a prática do cinema, e que tem a ver com a possibilidade de registro e de exercício de duração do cinema em meio a perecibilidade das coisas e da própria vida.
O cinema me proporciona uma possibilidade de vida, de estar junto, e de fazer que nenhuma outra coisa me proporciona. Uma das coisas mais fortes que me falaram sobre cinema não foi um diretor que me disse, mas foi o João Fiadeiro, numa época em que ele estava em crise com seu trabalho em dança, ele me disse numa conversa que na dança as coisas desapareciam rapidamente, e no cinema as coisas duravam um pouco mais. Eu ouvi com ênfase essa expressão um pouco mais. O cinema não dura para sempre, não é eterno, nem mesmo dura muito. O que resta é o trabalho, o momento presente em que estamos juntos a trabalhar neste filme, a encenar, montar e exibir. (Mouramateus 2017, 38-39)
O modo de produção de Antônio um dois três aglutina todas as matérias de produção para fazer o roteiro à medida que faz o filme, trazendo para a cena a matéria que corre nos bastidores e das experiências do cineasta com os amigos no teatro e na dança, dos diálogos com as leituras que traz da literatura, e do amor por estar na presença do outro, seja a equipe, seja o espectador. Esse estar entre-outros é o assunto de uma das conversas do cineasta com a atriz Sofia Dinger, registradas em Antônio zero, a respeito de alguns causos de Jean-Claude Renoir e com os quais os dois se identificam: “é muito difícil ser honesto quando estamos sozinhos. Ele [Renoir] precisa dos outros para aceder à sua profunda honestidade” (2017, 37).
É este «só ser com o outro» que marca também a produção de Leonardo Mouramateus e suas práticas de roteiro. O outro, que é também parte de todos os processos de criação, que naturalmente se dão nas relações intra e interpessoal, mesmo nos processos ditos individuais, conforme lembra Cecília Salles (2017) sobre a autoria em rede, e que aqui está ainda mais em evidência nos processos de criação de Mouramateus. Como ele mesmo comentou nos trechos que trouxemos acima sobre estar entre amigos e a conversa com Fiadeiro, é para estar entre outros e fazer estes momentos durarem (“um pouco mais”) em filmes que Mouramateus faz cinema. “Consegue ouvir o que eu ouço; ver o que eu vejo?” (off do filme A festa e os cães, Leonardo Mouramateus, 2015).
Bibliografia
Bardawil, Andrea. 2010. Por um estado de invenção. In Temas para a dança brasileira. Organizado por Sigrid Nora. São Paulo: Edições SESC SP.
Lopes, Denilson. 2019. “Duas ou três coisas que sei dele: Antônio um dois três de Leonardo Mouramateus” in Teorema.
Gonçalo, Pablo. 2018. “A lírica do exílio nos filmes de Leonardo Mouramateus” in Cinética.
Marin, Ronaldo. 2011. O oceano Shakespeare: uma (auto)biografia. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
Moura Mateus, Leonardo. 2017. Antônio zero. Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa.
Price, Steven. 2013. A history of the screenplay. London: Palgrave.
Salles, Cecília. 2017. Processos de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das Letras e Cores.
Shapiro, James. 2005. 1599 - Um ano na vida de William Shakespeare. Lisboa: Editora Planeta.
Webgrafia
Canijo, João. 2019. Debate Festival Guiões 2019. Transmissão ao vivo, gravada na página do Festival no Facebook. https://www.facebook.com/watch/live/?v=848605205473510&ref=watch_permalink&t=2 Acedido em 14 de maio de 2021.
Fiadeiro, João. 2015. Entrevista ao CoffeePaste. 1o de julho de 2015. https://coffeepaste.com/joao-fiadeiro-entrevista/ Acedido em 14 de maio de 2021.
Fiadeiro, João. 2020. Entrevista à Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. https://mitsp.org/2020/entrevista-performatica-com-joao-fiadeiro/ Acedido em 14 de maio de 2021.
Leigh, Mike. 2010. Entrevista ao Independent Film Festival 2010. Canal do Festival no YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=4oKoBHSpu3I Acedido em 14 de maio de 2021.
Mouramateus, Leonardo. 2020. “Antônio um dois três: Entrevista exclusiva com Leonardo Mouramateus” in Papo de Cinema. 16 de março de 2019. https://www.papodecinema.com.br/entrevistas/antonio-um-dois-tres-entrevista-exclusiva-com-leonardo-mouramateus/
Mouramateus, Leonardo. 2020. “Saiba quem é o cineasta Leonardo Mouramateus, o cineasta cearense que disputa prêmio em Roterdã” in O Globo. 28 de janeiro de 2020. https://oglobo.globo.com/cultura/saiba-quem-leonardo-mouramateus-cineasta-cearense-que-disputa-premio-no-festival-de-roterda-24214998 Acedido em 14 de maio de 2021.
Rocha, Thereza. 2010. “Por uma (des)ontologia da dança em sua (eterna) contemporaneidade” in Cadernos Virtuais de Pesquisa em Artes Cênicas. http://www.seer.unirio.br/index.php/pesqcenicas/article/view/754 Acedido em 14 de maio de 2021.
Filmografia
Antônio um dois três. 2017. De Leonardo Mouramateus. Brasil/Portugal: Praia à Noite/If you hold a stone/Filmes do Asfalto. Streaming.
Sangue do meu sangue. 2011. De João Canijo. Portugal: Midas Filmes.
Trabalho de actriz, trabalho de actor. 2011. De João Canijo. Portugal: Midas Filmes.