Capítulo V – Cinema – Convidados

Biblically Cicle: The Cristianism of the Old and New Testaments, interpretation since the Eurocentric Cinema

Ciclo Bíblico e Hollywood: O Cristianismo do Novo e Velho Testamentos, interpretação a partir de uma visão do Cinema Eurocêntrico

Regis Frota Araújo1

Universidade Federal do Ceará, Brasil

Abstract

The text aims - in an impressionistic tone - to recall the construction of a biblically inspired cinematic cycle, guided by the Hollywood achievements of the 1950s and 60s, here, interpreted as the result of a Eurocentric vision, as North American cinema, as well as knowledge European, it has a colonialist and depreciating nature in the East, making it a true Western invention, in Edward Saidian terms.

Keywords: Cinematic cycle. Eurocentric vision. Hollywood achievements of the 1950s and 60s.

Introdução

Iniciei a ver filmes no ano de 1959, no interior do Ceará, Brasil, nas duas salas de cinema da cidade de Sobral, os conhecidos cine Rangel e cine Alvorada; era, ainda, um adolescente de calças curtas, e só tinha acesso aos filmes bíblicos, tais como os exibidos aos portadores de identidade como maiores de doze anos, a exemplo de O Rei dos reis (dirigido por Nicholas Ray, O Manto sagrado (The robe, 1953, dirigido por Henry Koster), Ben-Hur (1959, dirigido por Wiliam Wyler), Sansão e Dalila (Cecil DeMille, 1951),2 Os dez mandamentos (1956, dirigido e produzido por Cecil B. DeMille), Spartacus (1958, dirigido por Stanley Kubrick), Quo Vadis ( 1951, dirigido por Mervin LeRoy, adaptado do romance do escritor polaco Henryk Sienkiewickz, ambientado na Roma imperial, à época de Nero), A Paixão de Cristo e muitos outros

A principio, devo reconhecer que tais filmes se diziam baseados e/ou dramatizados com pretensão de rigor histórico, horas inspirados pelos evangelhos contidos no Novo Testamento, horas outras, a partir de narrativas apoiadas ou, igualmente inspiradas no texto da Bíblia Sagrada ou do Velho Testamento, películas estas que eram repetidas, e sempre, re-exibidas, por ocasião das anuais semanas santas, quaresmas, páscoas e natais do calendário religioso comandado pelo bispo-conde, o pastor de minha cidadezinha natal, dom José Tupinambá da Frota.

Houve um boom da temática bíblica, no ano 2012, porquanto naquele recente ano foram produzidos no mundo, pelo menos, 176 filmes ou novelas que tinham Cristo ou Jesus (e em alguns casos os dois nomes) em seu título, razão, aliás, por demais compreensível pela qual, não poderia eu ter a pretensão de esgotar o tal “ciclo bíblico”, senão passar-lhe ao largo das principais realizações cinematográficas, em especial, produções dos anos 1950/60, exatamente quando a cinematografia hollywoodiana me fisgou, completa e incontornávelmente.

I – AGONIA DE CRISTO

Ora, qual o corpus da presente pesquisa?

Pois se centra na constatação da existência de um eurocentrismo judaico-cristão hollywoodiano, cuja ideologia extraída do conjunto de filmes baseados no novo e velho testamentos, quase todos realizados ou produzidos nos finais das décadas de 1950 e 1960, revela o acerto do texto de Edward W. Said, “Orientalismo – o Oriente como invenção do Ocidente.” 3

O escritor nascido em Jerusalém, filho de árabes cristãos, professor da Universidade de Columbia, em seu clássico de estudos culturais, investigou os vínculos sólidos e mais “profundos entre a expansão colonial europeia e norte-americana e a constituição de um imenso corpo de saber literário, erudito e científico sobre o Oriente”, tendo chegado à constatação de que o Oriente é uma invenção ocidental, nos estimulando a investigar se a ideologia do ciclo bíblico hollywoodiano não seria, igualmente, uma invenção ou um selo filmográfico estético que marca as civilizações a leste da Europa, em especial, a palestina e a libaneza, sob o signo do exotismo e da inferioridade, sob o signo da crueldade humana ante o sacrifício imposto ao filho do carpinteiro José. Eis o que investigarei.

A agonia de Jesus Cristo no Horto das Oliveiras (Getsêmani) é fato descrito e narrado por diversos evangelistas, tais João 18, 1-12; Lucas 22, 1-44, etc.; a perspectiva da morte, produziu sangue saído como suor – Lucas descreve que Cristo suou sangue, antes da chegada dos soldados romanos e do traidor Judas, que ali o prenderiam, consoante dramatizado no filme King of kings (Rei dos reis, de Nicholas Ray(1961).

Há muitas formas de se rever este mencionado filme, algumas por diversos streamings, ou mesmo por DVD-Vídeo, fórmula a que recorro, tendo em vista a possibilidade de repetição e retornos de sequencias cinematográficas que me interessam mais; A versão remasterizada em Dolby Digital 5.1 e 2.6, vem dividida por séries de quatro episódios4, dentre os quais me interessa comentar o de número 39, “O tormento do Jardim”, o qual relata a traição de Judas (Rip Torn) e a agonia de Cristo, no monte Getsêmani, a orar intensamente, onde vemos um Jesus suando sangue, ante sua antevisão do sacrifício imposto pelas Escrituras.

Com efeito, produzido por Samuel Bronston, o interessante filme dirigido por Nicholas Ray - contando com música ou trilha sonora do vencedor do Oscar, Miklos Rozsa e roteiro de Philip Yordan- apresenta uma seqüência cinestética curiosa, na medida em que avança na edição mediante uma rigorosa montagem paralela, de um lado, mostrando o protagonista JC (Jeffrey Hunter) a agonizar, manifestação de hematidrose, do outro, o pelotão romano acompanhado de Judas, se encaminhando para o beijo traidor-identificador do Filho do carpinteiro.

O filme foi realizado numa época emblemática da história do cinema americano, quando a crise de público e de inicio de certa austeridade em Hollywood, fez esta última renascer em Roma, nas margens do rio Tibre, assim como outra Hollywood, de vida ainda mais breve, surgiu e morreu em Madri, nas margens do rio Mazanares.

Consoante relata José Luis Guarnier, no volume 3, de História do Cinema Americano (1961/1992), sob o título de “Morte e Transfiguração”: 5

Convencido de que era factível rodar grandes produções em Espanha a um custo realmente competitivo, pôs em marcha um ambicioso programa com o aval de um dos homens mais ricos do mundo, Pierre S. Dupont – o rei do nylon e descendente da família que deteve o trust da pólvora-, e o beneplácido das autoridades espanholas. Após adquirir os estúdios de rodagem Chamartin, fez de Madri durante três anos um verdadeiro centro cinematográfico internacional. Um fã decidido dos espetáculos históricos, Bronston iniciou seu novo império com um remake de King of kings (1961), cuja realização confiou a um dos cineastas mais sensíveis e pessoais de Hollywood dos anos cinquenta, Nicholas Ray (1911/1979). Apoiado em um roteiro de Philip Yordan – colaborador de Rey no filme anterior Johnny Guitar, e roteirista de todas as superproduções de Bonstron -, o diretor intentou somar à crônica intimista ao espetáculo, aproximando-se a personalidade de Jesus, desde uma perspectiva muito similar à adotada por Martin Scorcese em A última tentação de Cristo (1988). As cenas teatrais – que parecem obra da segunda unidade-, os intérpretes as vezes inadequados ou insuficientes, as alterações na montagem, a música estrepitosa, não conseguem dissimular o talento de Ray, nem impedir que King of kings seja um dos filmes mais interessantes inspirados pelos Evangélios. E algumas seqüências – a entrada de Pompeu em Jerusalém, a morte de Horodes, o sermão da montanha, a Última Ceia- são magníficas.”

Concordo que são emocionantes, mas o filme de Scorcese –realizado quase trinta anos após King of kings significa uma colocação da dúvida espiritual e religiosa típica do final do século XX, onde o ateísmo consumerista começa a imperar.

Se por um lado, the hollywood repórter tenha afirmado que se tratou do “melhor filme bíblico, já realizado em todos os sentidos”, cuja vida de Cristo tenha sido contado com pretensão de rigor histórico, e até evangélico, não podemos deixar de registrar a característica da película que traz a robusta marca ocidentalista deturbadora do sentido das civilizações a leste da Europa, em especial, a palestina e a judaica antiga.

Tal interpretação, contida pela película, sob o signo do exotismo, abaixo do signo da crueldade humana ante o sacrifício da paixão, imposto a Cristo, cuja culpa judia continuasse a contaminar o povo eleito, pela não aceitação do profeta Jesus, se equivoca, parcialmente, sobretudo levando-se em consideração as relações históricas entre Oriente e Ocidente.

Inicialmente, as marcas dolicocéfalas do ator escolhido para o papel principal, Jeffrey Hunter, com seus exagerados olhos azuis, representam uma dose de distorção do referido rigor histórico, em defesa da invencionice ocidental do orientalismo reportado pelas produções e/ou realizações hollywoodianas, em particular aquelas que compõem o ciclo bíblico judaico-cristão. No desenrolar do filme, observamos uma narrativa tradicional, cena após cena encadeada, no sentido da compreensão pelo espectador, do começo, meio e fim da vida e biografia de Cristo, sem maiores atropelos estéticos convencionais( à exceção de uma cena com Pilatos, na qual a câmara gira 180 graus, mostrando um personagem de cabeça para baixo, ângulo pouco convencional ou comum entre os filmes daquela década), uma vez que filmado em 70mm super technirama technicolor,6 objetivando afrontar a concorrência da TV que retirou grande quantidade de expectadores das salas de cinema, nos anos 50, nos EUA.

O orientalismo – imenso corpo de saber, pretensamente científico, sobre o Leste da Europa, apontado por Said-, especialmente durante os séculos XVIII e XIX, e estetizado por Hollywood no século XX, enquanto corpo de saber literário e cinestético foi descrito, dessa forma, por Chateaubriand:

“Quando viajamos na Judeia, primeiro um grande tédio toma conta do coração, mas quando, passando-se de um lugar solitário para outro, o espaço se estende sem limites à nossa frente, o tédio lentamente se dissipa, e sentimos um terror secreto que, longe de deprimir a alma, insufla-lhe coragem e eleva nosso gênio nato. Coisas extraordinárias são reveladas de todas as regiões de uma terra elaborada por milagres: o sol ardente, a águia impetuosa, a figueira estéril; toda a poesia, todas as cenas da Escritura estão ali presentes. Todo nome encerra um mistério; toda gruta declara o futuro; todo cume retém dentro de si as palavras de um profeta. O próprio Deus falou a partir destas costas: as torrentes áridas, as rochas fendidas, os túmulos abertos atestam o prodígio; o deserto ainda parece umedecido de terror, e dir-se-ia que ainda não foi capaz de quebrar o silêncio desde que escutou a voz do eterno.” 7

Até parece que o grande escritor francês está a descrever o clima de King of kings. Se não fora pelo fato de François-René Chateaubriand, autor de suas Oéuvres, romancista romântico nascido em 1768, anterior mais de um século à existência do cinema, portanto, sua descrição da Judeia – “terra elaborada por milagres”-, coincidiria com aquela mostrada pelo filme de Nicholas Ray, apesar de filmada no sul de Espanha. Orientalismo puro.

Não comentarei, aqui e agora, os tantos filmes realizados nesse período histórico (1950/60) e, com a temática bíblica, ainda que transversalmente,8 me concentrando naqueles no quais Jesus Cristo – sua vida e paixão, morte e ressurreição- desempenha o papel protagonista.

II- JULGAMENTO DE CRISTO

Com efeito, a pesquisa de Edward Said, na qual nos inspiramos, constata que os clássicos literatos europeus que inventaram o Oriente – e a relação de orientalistas, arrolada pelo escritor árabe cristão é extensa, indo de equivalentes ingleses orientalistas (Disraeli, Mark Twain, Kinglake, etc.) para as obras orientais de Chateaubriand, Lamartine, Nerval e Flaubert, Sacy e Renan, etc-, sempre o fizeram a seu modo, a seu feitio europeu, desde a perspectiva colonizadora e imperial. De visada semelhante, nos aparenta ter sido a perspectiva hollywoodiana: a de dominação do mercado audiovisual.

Destarte, películas adiante relacionadas, tentam demonstrar como a visada eurocêntrica prevalece, em super-produções como Sansão e Dalila (1951, dirigido e produzido por Cecil B. De Mille, contando no elenco com Hedy Lammar e Victor Mature, a partir de um roteiro de Jesse L. Lasky, Jr. e Fredrick M. Frank ; O manto sagrado (The robe) - 1953, primeiro filme rodado em CinemaScope, estrelado por Richard Burton, Jean Simmons e Victor Mature, dirigido por Henry Koster; Barrabás (com Anthony Quinn, dirigido por Richard Fleischer,1962), e El Cid 9 – super produção de 1961, sobre a história do lendário herói espanhol que, no século XI, procura celebrar a paz entre os membros da realeza visando promover a unificação da Espanha, sendo depois chamado para comandar a resistência contra os invasores mouros, tendo no elenco Charlton Heston, Sophia Loren e Hurd Hatfield, produzido por Samuel Bronston, sob a direção artística de Anthony Mann; e muitos outros filmes épicos biblicos.

José Luis Guarnier comenta sobre o El Cid:

As cenas intimistas são rígidas e mais bem, convencionais, porém as seqüências de ação são vigorosas e a grande batalha- rodada em Peníscola- tem verdadeira grandeza, com a memorável, insólita imagem do herói morto a cavalo lançando-se sobre o inimigo, onde Mann retoma com maior brilho a ideia do homem convertido em lenda...”10

No entanto, a película a que gostaria de me referir, hic et nunc, é Quo Vadis (1951,dirigida por Mervin LeRoy), a qual foi assistida por mim, na quase infância, e revista no DVD-Video, 60 anos após, que narra a história do general romano Marcus Vinicius, recém retornado de campanha militar na Bretanha, e descobridor de que uma nova religião tomou conta de Roma: o cristianismo. O tresloucado imperador Nero, culpa os cristãos pela queima da cidade eterna, iniciando uma onda de perseguição, observada pelo general, o qual se apaixona por Lygia, uma seguidora da estranha religiosidade e, portanto, relutante do amor de Marcus, em virtude das divergências de crenças. Baseado no livro do prêmio Nobel de Literatura de 1905, o escritor polaco, Henryk Sienkiewicz, ambientado na Roma antiga e imperial, Quo Vadis foi objeto de diversas transposições cinegráficas e remakes, desde a versão muda de 1901, em produção francesa, passando pela versão italiana de 1912 e, de novo, em 1925, o livro obteve, ainda, adaptações cinematográficas em 1924, 1985, e 2001, sendo esta última uma produção polaca, sob a direção experiente de Jerzy Kawalerowicz.

A realização de 1951, com Robert Taylar e Déborah Kerr, nos papéis títulos, mais me interessaria por ter ganho indicações ao Oscars nas categorias de melhor filme e melhor ator coadjuvante, bem como por ter sido guardada na memória retiniana e sentimental de adolescente, a qual ainda conservo, agora que posso rever em DVD ou streaming à tal adaptação cinética e épica de 1951.

Aqui, neste filme, não é o Cristo que está sendo julgado e sim, o cristianismo e seus seguidores, inclusive São Pedro, o jovem apóstolo e pescador, o qual vai crucificado de cabeça para baixo –na época do imperador Nero (interpretado pela ótima atuação de Peter Ustinov, representado como um mixto de bufão imaturo e artista, a um tempo, tresloucado e autoritário).

Quo Vadis se mostra, ainda, atual nos dias correntes, sobretudo, pela revolucionária atuação de atores inteligentes, personagens críticos do fascismo, antecipatórios de interpretação teatral/cinematográfica própria da década posterior.

Nos primórdios do primeiro século de existência da cristandade, especialmente no reinado cruel de Nero, a perseguição aos crentes se concretizou como “pão e circo” (Panis et circensis) para as turbas populares romanas, em espetáculos ostensivos de leões famintos a devorar os seguidores de Cristo, cenas finais da película, sobretudo, aquela em que Ursus enfrenta o touro assassino e o mata.

Uma curiosidade: se King of kings principiava no ano 63 – quando Pompeu invadiu Jerusalém, implantando seu braço imperial romano, sob as ordens do representante árabe Herodes Antipas e Pilatos, os quais julgam e condenam JC, Quo Vadis se passará no ano posterior, o ano 64 da era cristã, mostrando Simão Pedro, o apóstolo, já cheio de cãs, idoso octogenário e sábio.

No tempo de Nero, antes que o império romano adotasse, oficialmente, o cristianismo, por ocasião da conversão do imperador do oriente, Justiniano, de 527 a 565 d.C., a Roma imperial e faustosamente politeísta, desfrutava dos despojos de guerra e vitórias impostas aos povos colonizados, do ocidente inglês ao norte africano, de Jesusalém a Constantinopla.

Quo Vadis narra essas comemorações de vitórias bélicas, a escravidão reinante, os espetáculos de incêndio de Roma por Nero, cujo cálice de lágrimas é utilizado pelo imperador incendiário, por ocasião da morte do conselheiro Petrônio, e, conseqüente fuga dos cristãos para o palatino, aos empurrões e desespero, até os portões da divindade terrena, ou seja, até os muros do palácio do Senhor e matricida Nero.

Qual gigante de pés de barro, Bronston e outros poucos produtores desses épicos bíblicos, a exemplo da Queda do império romano (1964, Anthony Mann), teve enormes prejuízos com suas realizações, ainda que segundo Guarnier

Bronston perdeu mais de 18 milhões de dólares...Fortemente endividado em créditos cujos prazos11 o novo fracasso comercial de Circus World (o fabuloso mundo do circo,1964), proposta a Frank Capra e dirigida finalmente por Henry Hathaway, obrigou Bronston a suspender inteiramente sua atividade, que não voltaria a continuar. Em poucos meses seu império madrilenho se desmoronou tão estrepitosamente como o da antiga Roma. E o monumental décor do fórum construído para a Queda do império romano - 170 mil blocos de cimento, 601 colunas, 350 estátuas – permaneceu visível durante duas décadas nas periferias de Madri, carcomido pouco a pouco pelo tempo e pelas chuvas, como emblema sarcástico de um insensato sonho de riqueza e poder”. 12

O Fórum de Roma era o centro nevrálgico do império.

E o ciclo bíblico está sempre referindo esta localidade; Em The robe o julgamento do tribuno Marcellus se dá no palácio real, ante a crueldade de Calígula que determina a morte do casal cristão – eles partem altaneiros, rumo a eternidade...possuídos de fé no reino celestial, convertidos pela manto sagrado.

Em outras películas (Quo Vadis, King of Kings, Paixão de Cristo, etc) o Fórum de Roma costuma ser o lócus de julgamentos daqueles cristãos que não se curvavam ante a divindade imperial dos reis, sempre levados a morte e ao martírio público, para vingança e entretenimento das populações romanas. Vejamos como a Enciclopédia Time-Life descreve esse Fórum:

A localização do fórum de Roma era inteiramente adequada para rituais públicos tão carregados de simbolismo, como a celebração da vitória de César. O espaço em si era aberto, de forma oblonga, com cerca de 90 metros de comprimento e 60 de largura; situava-se a 500 metros da margem esquerda do rio Tibre, em uma área baixa, visível, do alto de três das colinas de Roma- a Capitolina, a Palatina e a Esquilina.”13

As produções hollywoodianas do ciclo bíblico – fossem realizadas na capital italiana, fossem rodadas na periferia de Madri ou em Algeciras (Andalucia), nos anos 1960- procuravam sempre a verosemelhança do decorado, buscavam a proximidade com a visão do Fórum de Roma, a ponto de colunas e estátuas em blocos de cimento, terem sido implantados de forma, pretensamente, permanentes e imperecíveis, nos arredores de Madrid.

Outro detalhe que se observa em muitos desses filmes é a presença de lindas parelhas brancas e negras de cavalos e éguas, as quais conduzem bigas em disparada, seja em fugas necessárias das perseguições romanas (vide Quo vadis, The robe, Ben-Hur, etc), seja em competições esportivas e bélicas. Em O Manto sagrado, o protagonista Marcellus (Richard Burton), promove a fuga da prisão de Demetrius (Victor Mature), fuga seguida disparada, em biga fulgurante e veloz, apeando-se para ser levado ao encontro de sua condenação, pelo imperador Calígula. Será julgado qual JC, sem direito ao perdão...

III - COROAÇÃO DE ESPINHOS

O terceiro mistério, configurado nesse ensaio, à exemplo dos dolorosos, das terças e sexta-feiras, se reporta a uma coroação de espinhos, espetados na cabeça do torturado, com a intenção de sufrágio passional suportado pelos mártires e santos da história ocidental dos últimos 2000 anos, bem como dramatizados desde mais de século pelo cinema, como se percebe em filmes como Intolerance (1916, de David Wark Griffith), cuja noite de São Bartolomeu é retratada, o mais fielmente, para os recursos tecnológicos da época.

O ciclo bíblico não ignora mencionada coroação, pelo contrário, a ressalta, até em películas mais recentemente realizadas, como a dirigida por Mel Gibson, já em pleno século 21 da era cristã, em 2004, The passion of the Christ, uma narrativa explicitante e, de algum modo, exibicionista, que conta as últimas doze horas da vida de Jesus Cristo, na dramática interpretação de Jim Caviezel.

Chama nossa atenção no filme o teor terrorífico do espetáculo audiovisual, a natureza exangue da paixão imposta ao homem-Deus, ao homem com cara de Deus e ao Deus, com cara de homem. A coroação de espinhos torturantes.

Até parece que Gibson se inspirava na assertiva de um diretor de fotografia, Vittorio Storaro, quando afirmava:

Num filme estamos contando uma história com luz e sombra, cores e movimento. É aqui que encontramos o verdadeiro significado do que estamos fazendo.

Mel Gibson encontrou a expressão visual ou o “look” do seu filme, criou metáforas visuais estrepitosas, bem como, igualmente, criou uma atmosfera mortífera no filme, onde há uma qualidade de imagem e de cenário bastante distinto entre as cenas do protagonista JC e as seqüências das histórias que algum apóstolo conta: nas primeiras impera o realismo, a sensação de crueldade e injustiça; nas segundas, tudo é sonho, imaginação, fantasia, surpresa.

Quanta diferença entre King of the kings (Ray) e The passion of the Christ (Gibson), a partir da seqüência do Getsemâni, da agonia de Cristo, véspera de sua traição por Judas: o ambiente mórbido, azulado, modorrento e sacrificial deste último filme, contrasta com o “look”, antes descrito, do filme de Nicholas Ray, cristalino e “flou”, em que pese a hematidrose, ressaltada, pelo molhado rosto de Cristo no jardim das Oliveiras.

Sem dúvidas, são duas abordagens exageradas: uma, pela fantasia; outra, pela excesso de realidade; Sob o ponto de vista do realismo filmográfico, prestigio a tendência de valorização da adaptação cinética realizada por Pier Paolo Pasolini, no Evangelho segundo São Mateus (1964): narrativa naturalista, sem esnobismos imagéticos ou ilusionistas, cuida-se de um filme poético, como o reconheceu o OCIC católico, em 1965.

Consoante afirmado por Pasolini, o texto do evangelho de S. Mateus “ é o mais próximo à realidade terrestre do mundo donde Cristo apareceu” (v.g.) e, daí, torna-se comovente ver uma película tão bem feita, tão realista e poética, a um só tempo, a qual, rompendo a tradição da arte-encantamento, ressalta a natureza, o processo e as implicações políticas do texto/contexto, da narrativa em si mesma.

Enfim, uma visão desmistificadora dos evangélios, da narrativa do Filho do Homem. Em que pese a visão eurocêntrica da direção artística. A perspectiva eurocêntrica denunciada na rubrica do presente ensaio continua sendo identificada entre os roteiristas hollywoodianos, porquanto qualquer um que, como Jesse I. Lasky Jr. ou Fredric M. Frank, entrasse conscientemente numa profissão chamada “roteirização orientalista” dava esse passo com base numa decisão refletida: que o Oriente ou o Levante era o Oriente, que eram diferentes, e assim por diante. Afirma Edward Said:

“Que uma ocasião- a saber, o nascimento histórico e geográfico do monoteísmo no Oriente- se transforme no argumento de Macdonald, em toda uma teoria da diferença entre o Oriente e o Ocidente, indica o grau de intensidade com que Macdonald estava comprometido14 com o orientalismo.”

Ora, nota-se que a película de Mel Gibson analisa e critica a humanidade, a sua crueldade com o outro, a hipocrisia e os pecados próprios do ser humano, revelados e explicitados nos testemunhos dos fariseus e doutores da lei na Judeia, ocasião da prisão e paixão de Cristo; tendo em vista que se cuida de um cineasta cristão ortodoxo, a exemplo da literatura dostoievskiana, não há como não reconhecê-lo.

E, desde a cena da agonia de Cristo, pela ortodoxa versão gibsoniana, na qual Jesus parece desaparecer de dentro do próprio quadro, sua auto-consciência o atormenta, o longo cabelo, suado e ensangüetado de hematridose, a névoa obscurecedora, o pesado clima noturno, a tentação do demônio, este disfarçado de jovial rosto, as vestes ensopadas de JC caído ao chão, pelo peso do pressentimento de que a hora está chegando, a hora da traição, os apóstolos dormem, indiferentes, Ele pede vigilância e Ordem; Ele segue só, dialoga com o Pai, mas pede que seja feito sua vontade, e não a sua própria, levanta e esmaga a cobra mandada a Ele pela tentação, se vira, lá vem as tochas e archotes dos guardas com correntes, vão acorrentá-Lo, começará a paixão, esbofeteiam-No, as correntes estalam, Pedro corta a orelha do soldado, e é reprovado por Cristo, o trajeto do Monte ao sinédrio já é paixão, deformação física, sofrimento físico e mental, o silêncio fala tão alto quanto as acusações, os maltratos, cusparadas...mesclam-se agonia e paixão.

Por outro lado, a edição do filme acerta no contraste geográfico e emocional entre as dores de Maria, espectadora impotente da paixão, e a aceitação de seu filho, do sacrifício em redenção da humanidade. Logicamente, o filósofo esloveno, Slavoj Zizek não concordaria conosco, não aceitaria essa interpretação da película de Gibson, porquanto em suas obras sobre a “análise pervertida da ideologia” do cinema de Hollywood, Zizek, enquanto ateu declarado, acredita que o cristianismo é apenas a forma mais perfeita para se ser ateu. E acusaria Gibson de fundamentalismo cristão...Tal qual faz quanto ao filme do Scorcese, A última tentação de Cristo.

Só não podemos é deixar de reconhecer a atualização teórica e artística obtida por esses dois filmes mais recentes do ciclo bíblico evangélico, ideológica e culturalmente. Apesar do teor “orientalista”, explícito, de ambas as versões da paixão de Cristo.

Consoante afirma Edward Said 15

“Judeus, ortodoxos gregos e russos, drusos, circassianos, armênios, curdos, as várias pequenas seitas cristãs: todos esses eram objeto de estudos, planos e projetos das Potências Européias, que improvisavam e construíam a sua política oriental....” O que devemos levar em conta é um longo e lento processo de apropriação, pelo qual a Europa, ou a consciência europeia do Oriente, passou de textual e contemplativa a administrativa, econômica e até militar”

Durante o século XX, esse orientalismo como invenção do Ocidente incluía os interesses norte-americanos e, de fato o fez, necessáriamente, Desde a guerra do golfo, o conflito do Iraque, as constantes guardas do estreito de Ormuz, pelo EUA, a guerra de Síria, como os tantos conflitos bélicos no norte da África contam com a presença militar americana.

IV - TRANSPORTE DA CRUZ NAS COSTAS RUMO AO CALVÁRIO

Por outro lado, não há como não despertar a atenção para o dilaceramento das carnes de Jesus(no filme The passion de Christ, segundo Gibson, parece que dilaceram, igualmente, a alma, só não porquanto Jesus esmaga a serpente que se insinua de tentação), em virtude da surra de correias, chibatas e lancinantes cordas pontiagudas, pelos soldados romanos, a mando de Pilatos, que não pretendendo executá-lo ou crucificá-lo, opta pelo corretivo, num primeiro momento, demonstra que os roteiristas do filme de Mel Gibson decidem pela explicitação audiovisual próprio de uma “sociedade do espetáculo”, na descrição adicional do suplício sacrificial; Distorção ou exagero na narrativa evangélica? Fundamentalismo ortodoxo ou auto-expiação sensacionalista, exibicionista, mistificadora? Quanta diferença ou saudade das abordagens estéticas tipo Marcelino pão e vinho (Vadislao Vajda, 1955, Espanha), cujo protagonista, um órfão (Pablito Calvo) criado pelos monges, precisa salvar seu monastério após uma visita de JC, quando Cristo crucificado - conserva as marcas do suplício ou da crucificação, sem a agressividade visual de um dilaceramento carnal... mesmo criança ou adolescente, nos anos 50, podia ver ou assistir tal espetáculo, sem a explicitude auditiva da tortura física, mas com a esperança da ressureição... O mundo mudou, após as duas grandes guerras do século XX, o cinema mudou também...

Não seria o fundamentalismo ortodoxo cristão de Gibson, um sentimento de culpa pelo holocausto, um super-ego maltratado, ressentido ?

A edição do filme flui, arrastando-se, minuto a minuto da paixão, sim.

A montagem flui com facilidade, é certo, talvez como forma de amenização do flagelo carnal, quando o ângulo subjetivo da câmara conduz a mais de um corte, ou curva transversal ou invertida da perspectiva, ora quando Cristo já não logra se sustentar, no corpo transfigurado em hematomas e sangue, e no entanto, lembra sermões e eventos de sua vida evangelizadora, ora por ocasião das torturas físicas do tronco, anterior à limpeza por Maria do ensanguentado piso e tronco, objeto das torturas.

As seqüências do judeu Cirino a conduzir a cruz (porquanto o Cristo de Caviezel já não pode nem consigo, tanto mais com tão pesado lenho de madeira...) , são de tal modo, bem editadas, a ponto de chegar a simbolizar uma relação interpessoal desenvolvida na tragédia entre o povo judeu e o Messias, numa separação entre o erudito/farisaico e hierárquico-padrão fariseu doutor da lei, de um lado, cruel e infiel, e do outro, o natural do povo, o trabalhador tipicamente local, a anônimo do povo judeu, fiel e crente. Esse quarto mistério doloroso da via-cruces católica, ensaística e prenunciador do final, mostra um Gibson decidido a inovar; Esgotamento da temática? A hermenêutica afirma o contrário.

Até porque, na hipótese, estamos ante uma versão de DVD para revisão da película, em duas partes (dois DVDs), o primeiro com a textura e completude do filme propriamente dito, e o segundo, contendo o making of do mesmo, além de conter debates, discussões e depoimentos dos diversos técnicos (iluminadores, técnicos de som, sonoplastas, musicistas e fotógrafos, sempre sob a supervisão do diretor e roteirista, Mel Gibson, o qual funcionou com humor e determinação durante todas as filmagens – da Itália (Matera), Londres (onde foi mixada o som, feita a sonoplastia e gravados o coro de vozes numa capela inglesa), observado o fato de que a película conta com diversos idiomas e legendas (Aramaico, latim, inglês) os quais careceram de ser decorados por atores de distintos países, enfim, uma produção globalizada, hodierna e complexa no qual a feitura de um filme ou experiência audiovisual desse porte se tornou.16

Interessante e surpreendente é a maquiagem do ator protagonista, Jim Caviezel, cujas camadas de peles ao longo da paixão, demorava algo como oito horas diárias para sua feitura e aplicação no corpo do ator, de tal modo que ele chegou, algumas noites, suspensas as filmagens do dia, ele chegou a dormir maquiado, para facilitar a filmagem do dia posterior. Arte coletiva e grupal é o cinema hollywoodiano.

V - CRUCIFICAÇÃO, PAIXÃO E MORTE DE CRISTO

A paixão de Cristo (Mel Gibson, 2004), mostra o processo da crucificação e morte de Jesus (Jim Caviezel), com a pretensão do rigor evangélico, tantas vezes refeitas pelo cinema, ao largo do século XX.

O ciclo bíblico. Diálogos autênticos, frases pronunciadas em aramaico( língua de Cristo), consoante consta dos textos escritos por Lucas, Mateus, Marcos, o evangelista João e outros salmos (exemplo: Salmo 21:15 – “Derramo-me como água, todos os meus ossos se desconjuntam”), numas das estações da via cruzes. A revisão da película assegura a qualquer espectador, o reconhecimento, ou não, do nível novedoso pretendido e obtido pelo Mel Gibson e sua equipe filmográfica, quer conteudistica, quer esteticamente. O ar de esplendor e êxtase que o filme conserva, comprova-lhe a natureza legatária dos grandes espetáculos cinéticos dos anos 50, como Ben-Hur e Os dez mandamentos (1956).

Javier Coma, historiador descreve ano por ano, o sucesso do cinema norte-americano e afirma que Ben-Hur, de William Wyler, superou o recorde de Gigi, pois ganhou onze prêmios Oscar, da Academia, entre eles os correspondentes às categorias de melhor filme e diretor. Neste ano (1959) iniciam novas rotas da indústria, inclusive acordos de colaboração com empresas do âmbito da televisão e com produtores europeus. A empresa de seguros Prudential toma progressiva e decisiva participação no mundo do cinema; a MCA (Music Corporation of America) adquire a Universal.17

Apenas três anos separam as realizações ou refilmagens clássicas.

Ben-Hur (1959) e Os dez mandamentos (1956) formam a marca hollywoodiana por excelência, são os épicos bíblicos de todos os tempos, e, por isso merecem algum destaque neste ensaio. Inicialmente, por seus somados, quase 500 minutos de duração, a exigir uma demorada revisão, a qual nos submetemos, durante a pandemia de coranavírus, com o auxílio do DVD-Home Vídeo.

O primeiro deles, narra a jornada de Judah Ben-Hur(Charlton Heston), “um judeu de família nobre na Palestina, cuja heroica odisseia inclui a escravização pelos romanos, uma arejada fuga de uma galé, em meio a uma sangrenta batalha, a vingança contra seu algoz ( Messala – Stephen Boyd), durante uma furiosa corrida de bigas e um devoto encontro com Jesus Cristo.” O roteiro foi objeto de várias tentativas, refeitas por vários autores e escritores contratados (inclusive Gore Vidal, cuja experiência é narrada, adiante), embora figure nas legendas, apenas, o nome de Karl Tunberg.

O autor de “De Fato e de Ficção”, descreve sua experiência de roteirização do filme de Wyler, da seguinte forma:

Durante muitos anos, a MGM vinha planejando uma refilmagem de Ben-Hur, o filme mudo de maior sucesso do estúdio. Um escritor contratado escreveu um roteiro; foi rejeitado. Aí Zimbalist me ofereceu o trabalho. Eu disse que não queria, e fui suspenso. Ao longo de um ou dois anos, S.N. Behrman e Maxwell Anderson, entre outros, acrescentaram muitos metros de diálogo portentoso a um roteiro que não parava de crescer e de se transformar. O resultado não foi bom. Aí por 1958, a MGM estava quebrando. De repente aquela refilgagem do Ben-Hur apareceu como a última possibilidade de conquistar novamente a audiência de massa que a televisão absorvera. Zimbalist perguntou-me novamente se eu aceitaria o trabalho. Respondi que se o estúdio me liberasse do restante de meu contrato, eu iria passar dois ou três meses em Roma e reescreveria o roteiro. O estúdio concordou. Enquanto isso, a direção do filme fora confiada a Wyler. Num dia gélido de março, Wyler, Zimbalist e eu (Vidal publicou sua confissão, pela primeira vez, no NY Review of Books, em 25/11/1976) tomamos um vôo noturno que partia de Nova York. No avião, Wyler leu pela primeira vez a última versão dos inúmeros roteiros. No caminho do aeroporto para a cidade, em Roma, Wyler estava pálido, com um ar um tanto amedrontado. “Isso é um pavor”, disse ele, apontando para o enorme roteiro que eu colocara entre nós dois no assento traseiro do automóvel. “Eu sei”, eu disse. “Que é que se vai fazer?” Wyler rosnou :” Esses romanos... você sabe alguma coisa sobre eles? Eu disse que sim, que tinha feito minhas pesquisas. Wyler ficou me olhando. “Bom”, disse ele, “quando um romano senta e relaxa, o que é que ele desaperta?”.

Naquela primavera, reescrevi mais da metade do roteiro (enquanto Wyler estudava, um por um, todos os filmes “romanos” que já haviam sido realizados). Cada vez que eu chegava ao final de uma cena, eu a entregava a Zimbalist. Repassávamos a cena juntos. Depois, entregávamos a Wyler. Em geral, Wyler é lento e deliberadamente indeciso; mas a construção da Jerusalém do século I tivera um custo extremamente elevado; o primeiro dia de filmagem estava se aproximando; o estúdio estava nervoso. O resultado foi que não cheguei a ouvir a famosa exclamação de Wyler , quando ele devolve o roteiro a você: “ Se eu soubesse o que é que não está bom, eu mesmo consertaria.”

O roteiro de Ben-Hur é, basicamente, absurdo, e qualquer tentativa de dar-lhe nexo destruiria a horrível integridade da história. Mas para que seja possível ver um filme, é preciso que os personagens façam algum sentido do ponto de vista psicológico. Estávamos empacados no seguinte: o judeu Ben-Hur e o romano Messala eram amigos de infância. Depois foram separados. Agora o adulto Messala volta a Jerusalém; encontra Ben-Hur; pede-lhe que o ajude na romanização da Judeia. Ben-Hur se nega; há uma disputa; os dois se separam jurando vingança. Esta cena é o único motor que deverá impelir uma história muito longa, até que Jesus, súbita e despropositadamente, entre em cena, desatando automaticamente alguns dos nós mais grosseiros do argumento. Wyler e eu estávamos de acordo em que era impossível que uma única discussão política se transformasse em uma vendetta de toda a vida. Pensei numa solução possível, que despejei no bom ouvido de Wyler. “Quando garotos, os dois eram amantes. Agora, Messala quer continuar o caso. Ben-Hur o rejeita. Messala fica furioso. Chagrin d´amour, o motivo clássico dos assassinatos.” Wyler olhava para mim como se eu tivesse ficado louco. “Mas não podemos fazer isso! Quer dizer, o filme é Ben-Hur! Deus do Céu...”

“A gente não vai fazer de verdade. Só sugerimos. Escrevo as cenas de um jeito que elas só farão sentido para aqueles que estiverem sintonizados. Os que não estiverem, continuarão achando que a ira de Messala é emocionalmente lógica, seja lá porque razão.” Tenho a impressão de que Wyler não ficou especialmente encantado com minha solução, mas concordou que “qualquer coisa é melhor do que o que temos. Então, vamos ver no que dá”. Dividi a cena original em duas partes. Charlton Heston (Ben-Hur) e Stephen Boyd (Messala) leram-nas para nós no escritório de Zimbalist. Wyler conhecia seus atores. Avisou-me: “Jamais conte ao Chuck de que se trata; se você contar, ele vai ficar escandalizado”.

Tenho a impressão que até hoje Heston ignora as coisas medonhas que dispusemos à volta dele. Mas Boyd sabia: sempre que olhava para Ben-Hur, parecia um homem faminto vislumbrando um jantar através de uma vidraça. E assim, em meio ao estrondo dos cascos dos cavalos e dos clichês do último (até a presente data) Ben-Hur, há algo de estranho e de autêntico numa relação não explicitada.” 18

Por um lado, o sucesso comercial e artístico do Ben-Hur, de Wyler, salvou, em 1960, do colapso financeiro à MGM, e o relato de Gore Vidal nos evidencia que os novelistas e escritores norte-americanos – cooptados por Hollywood-, eram sobretudo bons roteiristas, melhores que na escrita.

O rápido encontro de Ben-Hur com Jesus é mostrado como caridade, sem mostrar o rosto de JC, identificado por “dar de beber a quem tem sede”, consoante pregou, durante toda a sua vida pública evangelizadora. Inspiração dos evangelhos.

Por outro lado, o outro clássico The ten commandments (Os dez mandamentos, 1956, Cecil B. DeMille) evitou a Paramount do colapso financeiro e estimulou os ciclos bíblicos produzidos em estúdios de Espanha e Itália, por mais de uma década.

Se, de um lado, os protagonistas aristocráticos de alguns desses filmes (Marcellus, Messala, Judah Ben-Hur e Moisés), de Quo Vadis, Ben-Hur e Os dez mandamentos, respectivamente, sofreram suas mudanças (bruscas mudanças em suas jornadas), a partir de acontecimentos externos à suas consciências, o príncipe nascido das águas (Moisés), se modifica e muda radicalmente sua jornada e história pessoal (e, de conseqüência, a história de seu povo israelita- judeu escravizado a 430 anos, no Egito: conforme Livro do Êxodo, 12, 40)19 desde que toma consciência de sua herança étnica, de sua nacionalidade e genealogia (Êxodo, 6,14-25).

A lógica da mudança na jornada da personagem central, dos Dez Mandamentos é de natureza psicológica, fornecendo à narrativa imaginosa um certo nexo de causalidade real e concreto, de certo modo, inexistente nas outras mencionadas abordagens fílmicas. Está na tela, vez que baseado nas Sagradas Escrituras, bem como outros escritos antigos e modernos. Por outro lado, certo filme de teor reconhecidamente artístico e estético, A última tentação de Cristo, baseado em livro de Nikos Kazantzakis, com direção artística do premiado cineasta Martin Scorcese (1988), adverte explicitamente não se basear na vida contada nos evangelhos de Cristo, somente na imaginação criativa dos seus criadores.

Estabelece, desde o principio, o conflito psicológico entre JC e Judas, este a conflitar-se contra os centuriões romanos – escravizadores dos judeus-, e aquele, obsessionado com o sacrifício de sua própria vida, pregada na cruz, em salvação do povo judaico, além da humanidade.

A wikipaedia descreve a visão de mundo (Weltanschauung) implícita na obra do escritor grego, Kazantzakis (bem como, igualmente, impresso no filme de Scorcese), assim:

A última tentação acaba sendo uma maneira de ensinar as pessoas a compreenderem alguém que tem uma crença diferente da delas, e como lhe comunicar o evangelho racional e verdadeiramente. Existem dois pressupostos básicos tanto no livro quanto no filme. O primeiro pressuposto é que não há uma distinção última entre o bem e o mal, entre Deus e homem, entre matéria e espírito. Essa distinção depende de nossa interpretação. Essa visão de mundo está presente em toda a obra. O segundo pressuposto é o de que a história é relativa. Não podemos tomar o conteúdo daquilo que hoje conhecemos como Novo Testamento como verdades absolutas.”

A pergunta que não quer calar: seria este um filme bíblico? Mas, como não ? se baseado na vida de Cristo, ainda que de uma perspectiva distinta, inteiramente distinta da retratada, inúmeras vezes, pelo ciclo hollywoodiano? Essa “comunicação” audiovisual – “racional e verdadeira do evangelho”, consoante observação antes transcrita, inviabilizaria o arrolamento da película no dito ciclo bíblico, por acaso, pelo tão só fato de diferenciar-se do geral, do genérico tipo ou padronizada forma solene de todo o dito “ciclo” cinético?

Por um lado, a visão eurocêntrica não modificou; Porquanto, consoante observado por W. Said, descrita a hermenêutica lamartiniana, a mesma se adéqua, ou se encaixaria, como uma luva, à interpretação kasantzakiana/Scorcesiana:

“De viajante e peregrino no tempo e no espaço reais, eles (os criadores: Martin e Nikos, além de Paul Schrader, que escreveu o roteiro) tornaram-se um ego transpessoal que se identifica, em poder e consciência, com toda a Europa( e os EUA). O que eles veem à suas frentes é o Oriente no processo de seu futuro e inevitável desmembramento, sendo tomado e consagrado pela suserania europeia( e norte-americana, acrescentaríamos). Assim, na visão apoteótica deles (os criadores da arte escritural e cinética diferenciada do ciclo habitual hollywoodiano), o Oriente renasce com o direito-ao-poder europeu sobre as suas cabeças.20

É dizer, a hermenêutica continua eurocêntrica. E no plano da fé? O próprio diretor, em entrevista a Richard Schickel,21 afirmou que

“Achei que haveria algumas pessoas que ficariam completamente contra o filme. Mas achei também que abriria uma discussão saudável. Vamos pensar na natureza de Jesus e no que ele representa em nossas vidas, na visão do mundo, e qual é a essência do cristianismo. Não sei qual é a resposta, mas vamos falar disso e olhar dentro de nós mesmos, como vivemos.”

Um dos que ficaram completamente contra o filme foi o filósofo e psicanalista esloveno, Slavoj Zizek,22 para quem a película representa a melhor forma de se tornar ateu, sendo cristão como espectador do trabalho kazantzakiano/scorcesiano. O lacaniano autor, pretendendo que o núcleo subversivo do legado cristão como base de uma política de emancipação universal, afirma:

“O primeiro paradoxo da crítica materialista da religião é este: às vezes é muito mais subversivo destruir a religião a partir de dentro, aceitando sua premissa básica para depois revelar suas conseqüências inesperadas, do que negar por completo a existência de Deus.”23

Ora, observe-se que as narrativas do ciclo bíblico, realizações ou produções cinéticas dos anos 1950/60 se interessavam em re-constituir as civilizações da antiguidade, enquanto que a abordagem scorcesiana/kazantzakissiana labora no plano psíquico/imaginativo/suposicional, onde e quando a psicanálise e a ideologia se mostram determinantes, fatais, no qual a paixão pudesse ser modificada ou, alterada a realidade pretérita, incontornável, da dor de Cristo, entre o divino e o humano.

Não posso esquecer o filme de Kubrick. Fiquei marcado na juventude com a excelência desse filme de ação, Spartacus, o qual conta a história de Spartacus( Kirk Douglas), o destemido escravo-gladiador que levou para Roma a revolta dos escravos e Varínia(Jean Simmons), a mulher que acreditou em sua causa. Uma película que ressalta o valor da liberdade, só comparável, na história do cinema americano, e no imaginário juvenil de qualquer adolescente que se inicia- como o fiz, nos anos 50-, como espectador da sétima arte, ao filme Gladiador, de Ridley Scott, nos anos 1990.

É curioso observar a montagem rigorosa das sequências fílmicas de Spartacus, em que multidões (de escravos, de soldados, de gladiadores e suas famílias) se deslocam através de diferentes paisagens, ora estações invernosas, ora em verões escaldantes, rumo a capital do antigo império romano, por vezes com closes dos personagens centrais da trama, ou mesmo de crianças e mulheres se deslocando entre os bravos escravos e soldados, e sempre voltando ao épico sentido da narrativa, o faz mais que prender, assim, a atenção do espectador, em poucos filmes epopeicos como este dirigido por Kubrick.

A edição especial em DVD, da Universal Pictures, tem 110 minutos no primeiro disco e, 86 minutos no segundo.

A aventura fílmica retratada na película – das diversas cenas em que o Senado Romano discute sobre as medidas repressivas ao exército de escravos liderado por Spartacus, às cenas de lutas e amores dos principais personagens e protagonistas do filme- revelam as elevadas pesquisas e profundos estudos de costumes e hábitos antigos, que o cinema clássico hollywoodiano tão bem, e insistentemente, teatralizou/retratou, naqueles anos.

O ciclo cristão inaugural de sucesso estrondoso nas bilheterias mundiais, com exemplares como Quo Vadis, El Cid (dirigido por Anthony Mann,1961, com 177 minutos), O manto sagrado (dirigido por Henry Koster, 1953, com 133 minutos), Os dez mandamentos (dirigido por Cecil B.DeMille, 1956, com 231 min.), O rei dos reis (dirigido por Nicholas Ray,1961, com 160 min.), etc, justificava- mas não explicava-, a presença de um filme como Spartacus, na filmografia de Kubrick, embora ele não tivesse nada a ver com o projeto inicial, embora deveremos reconhecer que se trata do único dos filmes a retratar aquele período contemporâneo a Jesus Cristo, onde o profeta cristão não aparece...Foi muita coragem de Kubrick de não incluir alguma manifestação humana de Cristo24, em película que trata do período histórico em que Ele viveu, sob influência do Império Romano, e aliás, veio a ser crucificado (como Spartacus e os outros milhares de escravos revoltosos), no Gólgota.

Michel Ciment é quem nos dá a chave da compreensão da complexidade do trajeto filmográfico de suas obras:

Em Spartacus, Crassus quer possuir Varínia, a mulher amada pelo homem que o perturba e cuja imagem o persegue. Em outro sentido, embora ainda ligado à mesma obsessão, a cena em Spartacus em que o chefe dos escravos livres e seu amigo Antoninus são condenados a lutar um contra o outro até a morte, o vencedor tendo que morrer crucificado. Spartacus, para evitar o suplício ao rapaz, o mata abraçando-o e dizendo: “Eu te amo”. E as últimas palavras de Varínia são: ”Morra logo, meu amor”. A violência onipresente está ligada a um mal estar sexual, a um estranho amor, cuja única saída é uma morte, não menos estranha. (...) Kubrick nos dá a visão de um pesadelo da história que se encarna no holocausto atômico, no terror cotidiano, na repressão das legiões romanas, nos fuzilamentos exemplares, na sociedade americana corrupta e brutal. O Dr. Fantástico, como Turgidson ou Ripper, está literalmente apaixonado pela morte. O erotismo se deslocou da mulher para a morte, essa morte que a sociedade americana tende a ocultar, mas que, através da violência do poder, está no centro de seu funcionamento.”25

Stanley Kubrick, adaptou o texto original de Trumbo, na medida em que se aproveitava da revolta do protagonista Spartacus, para concordar com uma crítica ao poder, ao Estado, ao império (no caso do romano antigo), a toda forma de arbitrariedade e autoritarismo. Diz Tales ab´Sáber, doutor em Psicanálise, em artigo de 16.3.2021, publicado no Caos Filosófico:

“Freud é odiado por cientistas políticos convencionais, que desdenham da natureza psíquica do fascismo. É que Freud mostrou que o fascismo é uma subjetivação desejante, uma estrutura irracional humana ligada ao desejo de poder e submissão. Uma modalidade política gerenciada pela lógica da perversão sadomasoquista.”

Recordemos o fascista Nero, mandando queimar Roma para fazer uma poesia, ou compor uma canção elegíaca ou necrofílica. O holocausto tem precedentes, não tão cruéis, porém antecedentes motivações...Aliás, no setor musical, urge registrar que todas essas películas do ciclo bíblico, talvez pela duração maior de exibição que os filmes regulares, dispunham todas de Overture (abertura musical em cima de um fotograma fixo), um Entr´ácte (Entreato ou intervalo, que durava dois minutos, talvez para os espectadores respirarem ou fumar um cigarro e, voltar para uma segunda parte, porquanto o intervalo se dava no melhor da história) e a musica do final dos letreiros ou legendas (Music Exit), geralmente na toada dos acordes clássicos musicais, uma vez que fosse Oscar Hammerstein II, ou Paul Francis Webster, ou outro diretor musical, trilha musical composta para determinado filme bíblico- como aquelas compostas por Miklós Rozsa-, diretamente contratados pelos produtores maiores tipo Cecil B. DeMille ou Samuel Bronston, enfim, inspirados sempre nos compositores clássicos tipo R.Wagner, Strauss ou Beethoven e Mozart...

Após essas incursões nas civilizações antigas, no império romano e na história israelita oriental, o ciclo cinematográfico a que nos reportamos – com rápidas considerações-, se voltou para a América espanhola e portuguesa na época colonial, temática que atualiza os estudos retóricos. Sigo, neste sentido específico, a orientação resenhadora do amigo Rolando Carrasco, professor da Universidade de Virginia, “cuja memória fílmica é um convite a conhecer desde a perspectiva cinética a tradição histórica-cultural da América ibérica durante os séculos XVI-XVIII; alguns desses reconstruirão a personalidade e aporte de figuras como o conquistador Lope de Aguirre, Alvar Nuñez Cabeça de Vaca, Soror( irmã) Inês da Cruz, Catalina de Erasmo, o jesuíta Antonio Vieira: outros serão viajantes depois da busca da mítico Dorado, como também protagonistas na criação da utopia cristã-social no novo mundo; em suma, temas de interesse para uma permanente revisão criativa e também Crítica do passado colonial hispano e luso americano.”26

Nesse passo, arrolamos, a seguir, alguns dos títulos de filmes que representam melhor esse “sub-ciclo judaico-cristão”, na medida em que um dos propósitos dos colonizadores era propagar o cristianismo, a doutrina cristã entre os indígenas e nativos. Pelo Tratado das Tordesilhas, ficava a Portugal e Espanha, a tarefa de apossar-se das terras da América do Sul, ao tempo que cristianizá-los aos autóctones. Arrolemos os filmes, embora não pretendemos comentar em profundidade sobre os mesmos, sem embargo tão somente, nomeando-os, a seguir:

Aguirre, a ira de Deus (Werner Herzog, 1972); El dorado (Carlos Saura, 1988); Eu, a pior de todas ( Maria Luisa Bemberg, 1990); A última ceia (Tomás Gutierrez Alea,1977); A araucana (Julio Coll, 1971); Cabeça de vaca (Nicolás Echeverria, 1990); Jericó (Luiz Alberto Lamata, 1990); A missão (Roland Joffé, 1986); Orinoco, novo mundo ( Diego Risquer, 1984); A monja Alferre (Javier Aguirre, 1986); O baile de São João (Francisco Athié,2011); Palavra e Utopia ( Manoel de Oliveira, 2000); O santo oficio ( Arturo Ripstein, 1973); O cautivério feliz (Cristian Sanchez, 1998); A ponte de São Luís Rei (Mary McGucklan, 2004); e, A controvérsia de Valladolid (Jean Daniel Verhaeghe, 1992, Jean Claude Carrière como roteirista).

A temática seiscentista – tão explorada e apreciada pela literatura e pela história da arte-, aponta o estreito relacionamento entre o infortúnio ou a fortuna adversa (sua retórica), embora aponte a direção do trabalho colonizador ibérico no sentido da cristianização e/ou da ocidentalização das populações nativas como parte desse encargo dominante, estudos e textos e imagens coloniais que devem recuperar-se- desde um diálogo intergenérico e intercultural tratando da América descoberta e sua projeção nos vice-reinados-, tal tema refoge aos limites desse ensaio. Sarissa Carneiro27 estabelece a língua do afligido:

“Durante séculos, se reuniram debaixo da categoria de infortúnio ou da fortuna adversa, fatos e situações tão díspares como a perda de um reino, a traição, os terremotos, as pestes, a queda na loucura, a perda da visão ou da fala, o naufrágio, a morte súbita...”

A exemplo, e/ou em idêntica toada de Edward W. Said do Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente, o historiador francês especializado em questões latino-americanas, Sergio Gruzinsky, em “A colonização do imaginário: Sociedades indígenas e Ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII28 percebe o quanto coerentes se mostram as “pontas argumentativas” do presente texto, especialmente ao passar do Orientalismo ao Ocidentalismo.

Serge Gruzinsky29 afirma:

Os descobrimentos” dos portugueses e dos espanhóis, seja qual for o significado que se dê a este termo, projetam a Europa para fora de seu quadro continental e revolucionam os conhecimentos que os sábios europeus acreditavam ter sobre o globo desde a Antigüidade. Mas centrar-se na expansão ibérica é, mais uma vez, reproduzir uma história carregada de eurocentrismo, no sentido em que a história dos outros continentes só existiria em relação à que é construída pelos povos da Europa. Nesta toada, o México ou o Brasil só emergiram à tona da História quando descobertos e conquistados pelos europeus.”

Sem embargo, a ocidentalização da América inclui não somente as do Sul e Central, como igualmente, a América do Norte (EUA, Canadá e Mexico), seja porquanto impera contemporâneamente o cristianismo imposto pelos colonizadores (dos ingleses aos ibéricos) nestes Continentes e Estados, seja porquanto os Estados Unidos contribuem bastante para a consolidação do imaginário eurocentrista dos espetáculos bíblicos, consoante demonstrado até aqui.

O tema está, apenas, rapidamente traçado até aqui.

Notas Finais

1Professor aposentado da Universidade Federal do Ceará

2Este clássico de De Mille, com Victor Mature e Hedy Lamarr, como protagonistas, trata de narrativa com base no Velho Testamento ( Livro dos Juízes, 13-16), cuja dramaturgia cinética descreve o casamento e as proezas de Sansão, e suas lutas contra os Filisteus, cujo épico possui cenas como a luta de Sansão com o leão, cuja morte por seus fortes braços e a destruição do Templo filisteu, possui cenários que até hoje impressionam por sua suntuosidade.

3W. SAID, Edward : “ Orientalismo – o Oriente como invenção do Ocidente”, Cia. de Bolso, tradução de Rosaura Eichenberg, S. Paulo, 2007.

4Os episódios captados e divididos pelo DVD-video produzido em 2010, por Entertanment Co. e Videolar S.A., possuem os seguintes títulos, epigrafadas todas no menu principal, como ESCOLHA UMA CENA: 1. Overture – abertura, presentes em todos os filmes bíblicos, os quais, aliás, ultrapassam a disciplina rigorosa do tempo de tela, de 70 a 120 minutos, donde a solução encontrada pelos estúdios foi introduzir em todos, uma PAUSA ou entreato, como espécie de indulgência para além das duas horas; O Rei dos reis, por exemplo, dura 2. Créditos; 3. A queda de Jerusalém; 4. As florestas de Harod; 5. Um estábulo em Belém; 6. Coroa e Assassinato; 7.O censo; 8. Pôncio Pilatos; 9. Emboscada para os romanos; 10.João encontra Jesus; 11. As tentações do deserto; 12. Pescador de homens; 13. A voz de um agitador; 14. A prisão de João; 15. Aquele que cura; 16. Atirai a primeira pedra; 17.Rosto familiar; 18.Benção; 19. O louco e Magdalena; 20. Assim foi relatado; 21. O pedido de João; 22. O que Salomé quiser; 23. A dança de Salomé; 24. A cabeça em uma bandeja; 25. Mensagem para João; 26. A multidão; 27. O sermão da montanha; 28. A oração do Senhor; 29. Reações; 30. Jesus e seus apóstolos; 31.Água e fogo; 32. INTERVALO; 33. Entreato; 34> Olhos voltados para Jerusalém; 35.Entrada na cidade; 36. Para o matadouro; 37. Eu o forçarei; 38. A última ceia; 39. O tormento do jardim; 40.Traição e nagação; 41. Em julgamento; 42. O que é a verdade? 43.Continua sendo de argila; 44. Torturado e coroado; 45. Homens livres; 46. Procissão ao calvário; 47. Crucificação; 48. Está terminado; 49. O corpo é requisitado; 50. Ele ressuscitou; 51. Sempre com vocês.; 52. Música final.
Como podem observar, o roteiro do filme procura abarcar a vida de Cristo, e portanto, nos demoramos em considerações minuciosas sobre esta película específica e, não outras relacionadas, porquanto me interessou apenas o ciclo bíblico hollywoodiano, olvidando de relatar, a propósito, sobre outros tantos filmes realizados no mesmo período (1950-1969), em outros países, como Barrabás (1961, filme italiano dirigido por Richard Fleischer) e tantos mais de interesse relacionado.

5Tradução nossa do texto transcrito em op.cit. pag. 35/36, da Editora Laertes S.A., 1993, onde pontua e reporta que a queda do império de Mazanares (a Hollywood de Madri) teria sido criada por um judeu norte-americano de origem romana, Samuel Bronstein, que se faria chamar por Samuel Bronston, exatamente o produtor do filme Rei dos Reis (King of kings).

6Sob o título “Esplendor e Ocaso da Hollywood Colossal”, o historiador espanhol, José Luis Guarner (Op. Cit. Pag. 28 e SS., afirma que a obsessão de Hollywood por ganhar a batalha da televisão, impulsionou a 20th Century Fox a desenvolver o sistema de tela larga CinemaScope, cujo conceito se extenderá logo em multitudes de variantes melhoradas. E impôs uma moda de espetáculos bíblicos e/ou históricos que logo contagiaria a todas as Majors. E continua: “esta tendência chegaria ao seu cume e logo à sua extinção, exagerada em ambos sentidos pela escalada de custos de produção ao largo da década dos anos sessenta. Com duas pequenas inovações de certa importância. Primeira, que o formato – perfeitamente apropriado ao épico- não se limitaria a temas da antiguidade clássica ou de época, senão também a argumentos contemporâneos. Segunda e mais relevante, a partir dos sessenta as superproduções de grande pressuposto filmadas em película 70 mm – o grande passo adiante com relação ao CinemaScope, que se conformava com suporte de 35 mm- se fazem inteligentes, são obra dos diretores mais criativos do momento, ansiosos de um compromisso entre o espetáculo, o estilo e a expressão pessoal.” Idem, ibidem. Tradução nossa.

7Apud SAID W. Edward, op. Cit. Pag. 241.

8Dispõem de temática bíblica muitos filmes épicos, os quais, embora não tendo Cristo a protagonizar o relato, se aproximam de nosso ensaio, todas realizações dos anos 50, tais como: Sansão e Dalila (1951) ; O manto sagrado (The robe) - 1953; El Cid (1961), BEN-HUR (William Wyler, 1959) e, Os dez mandamentos (1956, o clássico de Cecil B. De Mille), talvez pela razão antes exposta de que foram por mim vistos, inicialmente e pela primeira vez em tela larga, nas salas do cine Rangel e Cine Alvorada, em Sobral, na adolescência.

9Guarnier descreve o desastre da produção de El Cid, o qual para ter sido levado avante o produtor Bonston recorreu a outro cineasta, Anthony Mann(1906/1967), pensando talvez que um grande diretor de western era o que necessitava este grande western medieval sobre o guerreiro sem mancha que expulsou os mouros da península no século XI.

10GUARNIER, José Luis : “ Op. Cit., pag. 36. O historiador espanhol assevera, ainda, que El Cid arrecadou quase 12 milhões de dólares no mercado norte-americano, cifra nada desdenhável para a época. Porém a crescente megalomania de Bronston teria prontas e imediatas consequências funestas. Tradução nossa, a exemplo da nota anterior.

11GUARNIER, J. Luis: Op. Cit. Pag. 37

12Idem, ibidem.

13Abril Coleções, tradução de Pedro Paulo Poppovic, S. Paulo, 1998, pag. 12

14Tanto quanto todos os roteiristas do ``ciclo bíblico hollywoodiano` nos anos 1950/60 igualmente o estavam, integralmente comprometidos com o orientalismo enquanto invenção do ocidente.

15SAID, Edward W. – Op. Cit. Pags. 265 e 285.

16A partir dos DVDs contendo o filme de Gibson, vemos como está dividido em secções pautadas por textos bíblicos, a saber : o inicio e o fim, onde são configurados os créditos finais, além de sete (7) secções I-II; III-IV; V; VII-VII; VIII-IX; X-XI; e, XII-XIII, todas tituladas por trechos de versículos dos evangelhos. O “making of” do filme de Mel Gibson, por seu turno, é composto de considerações sobre a maquiagem e efeitos especiais; o terremoto; a crucificação; o sofrimento de Jim; aliviando a tensão; finalizando a produção; a edição; a trilha sonora; preparando os efeitos sonoros; marketing de guerrilha; e, uma jornada espiritual – ou seja, dados e elementos consideráveis sobre a filmagem em si, sobre o processo da realização em concreto, como a mesma se deu, de fato e de Direito.

17COMA, Javier: “El esplendor y el éxtasis- história del cine americano (1930/1960)”, Laertes Ed., Barcelona, 1993, pag. 44

18Apud Gore Vidal, op. Cit. Pag. 83/6. Na atual revisão do filme, não há como “não sintonizar” essa denunciada “relação não explicitada” entre Messala e Ben-Hur, sabedor como somos que esta parte do roteiro escrita pelo homossexual escritor Vidal, não teria problemas em sua explicitação hodierna: daria sentido lógico à vendetta dos protagonistas da película... “A prova está nas telas.” Grifos inovados.

19Esta passagem no filme de Cecil B. DeMille, apesar de romanceada e dramatizada com base em livros israelitas, se apoia sobretudo no Livro do Velho Testamento (Êxodo), cujos capítulos trazem verosemilhança com o roteiro da película, a saber: I- Fim da escravidão (1,1-11); Nascimento de Moisés (2,1-10); Fuga de Moisés para Madiã (2, 16-22); A sarça ardente (3, 1-15), etc.

20SAID, Edward W.: Op. Cit., pag. 248. E, ali, na mesma página, vem transcrito o pensamento eurocêntrico de Lamartine, o qual poderia ser, perfeitamente, confirmado por Kazantzakis e Scorcese: “Essa espécie de suserania, assim definida e consagrada como um direito europeu, consistirá principalmente no direito de ocupar um ou outro território, bem como as costas, para ali fundar cidades livres, colônias européias ou portos comerciais de escala. (norte-americanos)(...)”. idem, apud ibidem.

21SCHICKEL, Richard : “Conversas com Scorcese”, CosacNaify, S. Paulo, 2013, tradução de José Rubens Siqueira, pags. 225/238, in concreto, pag. 232.

22ZIZEK, Slavoj : “O absoluto frágil- porque vale a pena lutar pelo legado cristão”, Boitempo, São Paulo, tradução de Rogério Bettoni, 2015. Recomendamos conferir, igualmente, do mesmo autor: os doze outros livros publicados pela mesma editora Boitempo, em especial, “Lacrimae rerum” e “Em defesa das causas perdidas”.

23ZIZEK, S. Op. Cit. Prefácio à edição brasileira.

24Olhe que desde a fundação do cinema, no fim do século XIX, no mínimo 2.095 produções audiovisuais foram inspiradas na vida de Cristo, segundo a IMDb, relatada pela Folha de S.Paulo, edição de 21.4.2019, pag. C1, da Ilustrada. Houve um boom no ano 2012, porquanto naquele recente ano foram produzidos no mundo pelo menos 176 filmes ou novelas que tinham Cristo ou Jesus ( e em alguns casos os dois nomes ) em seu título. Donde se pode, facilmente, concluir que só poderia referir a alguns títulos clássicos – sobretudo, só comportaria comentar aqueles títulos de filmes produzidos nos anos 50 e 60, por mim vistos pela primeira vez, na adolescência, ora revistos, evidentemente, levando em consideração as dimensões deste capítulo ou texto.

25Op. Cit. Pag.50/51

26CARRASCO, Rolando : “ Curso sobre a América espanhola e portuguesa na época colonial”, Santiago do Chile, 2019.

27CARNEIRO, Sarissa: “ Retórica Del Infortunio- Persuasión, deleite y ejemplaridad en el siglo XVI”, Iberoamericana –Vervuert, pag. 11, Madrid, 2015.

28GRUZINSKY, Serge: “ A colonização do imaginário”, Tradução de Beatriz Perrone, Edit. Cia. das Letras, 2003, S. Paulo, onde o autor faz uma verdadeira “ viagem de descoberta pelo México colonial. Em meio do caos decorrente da conquista espanhola”, grupos indígenas buscam adaptações face às realidades duras de colonização severa, inclusive de imposição do credo cristão. Grifos inovados por este ensaio.

29GRUZINSKY, Serge :” A Passagem do Século: 1480-1520, as origens da globalização” , São Paulo, Cia. das Letras, 1999ª, pag. 97.