Capítulo IV – Cinema – Tecnologia

Interactivity and post-media: the coexistence between technology and narratives

Interatividade e pós-mídia: a coexistência entre tecnologia e narrativas

Luciano Marafon

Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil

Abstract

This work aims to discuss the construction of interactivity in cinema and to identify cinematographic changes in post-media content, observing the historical aspect of interactive narratives and analyzing the post-media aesthetics of the last decades. One of the films of the corpus for analysis and debate is the Bandersnatch film (2018). Arlindo Machado (1997), says that interactivity is one of cinema’s deaths, reflecting on what the author called “post-cinema”. Within this same context, the term “post-media” can be applied, considering that Félix Guattari (1990) brings up the individual collective reappropriation era. A territory where digital media becomes the center of any other media, as pointed out by Peter Weibel (2012). To exemplify the use of such terms, the game film Detroit: Become Human (2018) was selected. The relationship between narratives and technologies has changed, creating new formats of cinema’s production and exhibition and providing new aesthetic language experience and sensations. When observing media’s frontiers - or the lack of them - we have to bring to the table media’s evolution, narratives and the viewer. It is observed that the narrative in interactive and post-media content reveals itself with changes in its guiding line from technology, where time can be changed throughout history, at the same time that it is seen. Therefore, the coexistence of interactivity and post-media aesthetics alters the technical and aesthetic functioning of contemporary narratives and creates other dialogues in the convergence of content.

Keywords: Interactivity, Post-media, Narrative, Cinema, Technology.

Introdução

Pode-se dizer que as narrativas audiovisuais contemporâneas são pautadas pelas experimentações com as tecnologias disponíveis atualmente, entre elas o digital, o virtual e as possibilidades da internet. Porém, essas experimentações são visíveis em toda a história do cinema, na qual narrativas e tecnologias sempre caminharam juntas. A introdução do som no cinema na década de 1920, por exemplo, criou uma grande mudança nas concepções de produzir e exibir filmes. Outro exemplo, na década de 1990, o lançamento do DVD desconfigurou o consumo de filmes de forma caseira, que acontecia através do VHS. Duas de inúmeras grandes mudanças do cinema que alteraram a forma de produzir e consumir filmes. Hoje podemos consumir filmes de inúmeras formas através de inúmeras telas, podemos alterar ou substituir qualquer pixel da imagem e, além disso, interagir com a narrativa de formas que o cinema interativo da década de 1960 e as inovações em narrativas de filmes interativos e de jogos eletrônicos da década de 1990 ainda não permitiam. Um momento o qual, segundo a autora Denise Guimarães, o cinema passa por uma reinvenção de sua técnica.

Enquanto as imagens anteriores eram reproduções da realidade visível e reconhecível, durante o século XX, as máquinas passam a mostrar imagens que a vista humana não pode reconhecer. O cinema delas se apropria e vai reinventando sua linguagem audiovisual, até que a era digital lhe permite uma radical transformação. Recursos computadorizados não só criam imagens inéditas, como podem manipular qualquer tipo de imagem, seja em termos de ampliação ou redução, seja em transformação e deformações, ou em multiplicações ao infinito. (Guimarães, 2020, 05)

Dessa forma, a partir do uso do digital, tanto nas câmeras utilizadas para captação quanto nos softwares de edição, a imagem passou a ser infinitamente mais modificável. A atualização de dispositivos, hardwares e softwares tem favorecido as simulações e intervenções na imagem. Portanto, essas evoluções contribuíram também para o desenvolvimento de jogos de videogame e do cinema interativo.

Dito isso, este trabalho tem como objetivo discutir a construção da interatividade no cinema e identificar mudanças cinematográficas nos conteúdos pós-mídia, observando o aspecto histórico das narrativas interativas e analisando a estética pós-mídia das últimas décadas, tendo o filme Bandersnatch (2018) como corpus para o debate. Arlindo Machado (1997) afirma que a interatividade é uma das mortes do cinema, colocando-a em um contexto de “pós-cinema”. Nesse mesmo sentido, insere-se o termo “pós-mídia”, quando Félix Guattari (1990) aborda a era da reapropriação coletiva individual. Um território onde a mídia digital passa a ser o centro de qualquer outra mídia, como aponta Peter Weibel (2012). Para exemplificar o uso de tais termos foi selecionado o filme-jogo Detroit: Become Human (2018).

Podemos, então, inserir os dois exemplos em um território pós-midiático, no qual a relação entre narrativas e tecnologias é alterada, o que proporciona novos formatos de produção e exibição cinematográfica, proporcionando também alterações na estética, na experiência da linguagem e nas sensações ao consumir tal conteúdo. Ao observarmos as fronteiras da mídia - ou a falta delas - abordamos a evolução da própria mídia, das narrativas e do espectador.

Observa-se que a narrativa em um conteúdo interativo e pós-midiático se revela com mudanças em sua linha norteadora a partir da tecnologia, no qual a linha temporal da trama pode ser alterada ao longo da história. Portanto, a coexistência da interatividade e da estética pós-mídia alteram o funcionamento técnico e estético de narrativas contemporâneas e criam outros diálogos na relação de conteúdos em convergência. Um território no qual o cinema expandiu-se para outras mídias e artes, principalmente para os jogos eletrônicos.

O pesquisador Vicente Gosciola, em 2018, enumerou alguns produtos interativos ao longo das décadas:

Como exemplo de Jogos de videogame/computador interativos o interactive movie game de 1983: Dragon ‘s Lair, realizado em full-motion video (FMV) por Don Bluth. Salas de cinema interativo da Interfilm, Inc. e pela Sony New Technologies foram desenvolvidas com poltronas com botões e joysticks para optar por qual caminho seguir ou alternar narrativas paralelas [...] de filmes como: Mr. Payback: An Interactive Movie, em 1995, por Bob Gale (direção e roteiro); Nomad The Last Cowboy, por Petra Epperlein e Michael Tucker; I’m Your Man (1992) de Bob Bejan (direção e roteiro). O CD-ROM também foi mídia para produções pioneiras como Switching: An Interactive Movie (2003); de Morten Schjodt (direção e roteiro). Na TV, as experiências em destaque são: 1991 e o thriller erótico Mörderische Entscheidung (Decisões Homicidas) de Oliver Hirschbiegel. (Gosciola, 2008, 64)

Estes exemplos são importantes para compreender os conteúdos aqui analisados, que são oriundos de uma narrativa cinematográfica, mas se reconstroem observando outras mídias. Dessa forma, o texto que segue aborda a interatividade construída dentro do cinema no contexto de pós-mídia, buscando entender a evolução da narrativa interativa, seguido de uma análise sobre o filme interativo da Netflix, Bandersnatch, e o jogo da Quantic Dream, Detroit: Become Human, ambos lançados em 2018.

A interatividade e o cenário pós-mídia

Com o passar das décadas o cinema encontrou outras fontes de inspiração que vão além da literatura e da pintura, e encontrou outras formas de pensar a própria arte cinematográfica, inserindo inovações tecnológicas para gerar novas emoções, que por vezes vão além da imagem em movimento. Com as mídias digitais, a arte cinematográfica encontrou novos caminhos possíveis para experimentar a narrativa, por vezes inserindo-se dentro de jogos de videogame, por exemplo, ou até mesmo tomando para si proposições encontradas em jogos eletrônicos. O que vemos é um cinema que se expandiu para outras mídias, para outras formas de se relacionar com o espaço-tempo e, principalmente, trazendo novas imersões para o espectador, que deixa de ser uma figura passiva para também construir a narrativa - na maioria das vezes cognitivamente.

Este movimento de “atualização” ou reinvenção das técnicas cinematográficas pode ser associado ao movimento de desterritorialização apontado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2012), no qual a arte pode sair de seu território original para fazer parte de outros territórios. Ou seja, o cinema imerge em outras mídias para se transformar novamente em outro cinema, o que para alguns autores, como Arlindo Machado (1997) pode ser associado ao pós-cinema, ou até mesmo a uma “condição pós-ecrã”, segundo Victor Flores (2017).

Weibel (2012) também analisa esta propriedade do digital da mídia como “condição pós-mídia”, que sugere que o código secreto por trás de todas essas formas de arte é o código binário do computador e a estética secreta consiste em regras e programas algorítmicos. Dessa forma, a condição pós-mídia apontada pelo autor permite a produção de filmes a partir de programas de edição e captação de imagens pelo computador. Weibel ainda complementa:

[...] o computador é melhor em simular e definir um determinado grau de granulação em uma bobina de filme de 16 mm do que um filme real jamais poderia atingir. A simulação digital das notas de uma flauta soa mais como uma flauta do que as notas que um flautista jamais conseguiria extrair de uma flauta real. Da mesma maneira, o computador é ainda melhor para simular o tremeluzir da escrita se houver uma perfuração esfarrapada na bobina do filme do que a própria realidade, e o mesmo vale para as notas de um piano preparado. É somente graças ao computador pós-mídia, a máquina universal, que podemos perceber a abundância de possibilidades que reside na especificidade da mídia. (Weibel, 2012, online)

Manovich (2001), em seu ensaio sobre a estética pós-mídia, sugere que a história da arte e a prática da arte devem ser atualizadas através dos novos paradigmas desenvolvidos pelas mídias digitais, considerando as especificidades de software (Manovich, 2001). Weibel (2012), assim como Manovich, afirma que hoje não há mídias dominantes, uma vez que todas elas estão dialogando umas às outras, asserção que corrobora com a convergência das mídias proposta por Henry Jenkins (2009), que sugere que “[...] a convergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de comunicação” (Jenkins, 2009, 42).

É neste contexto de pós-mídia e convergência que o cinema expandido ganha força em produções que unem a tecnologia com a narrativa. Apesar desse cinema já ser visto desde a década de sessenta, é atualmente que percebemos o quanto as inovações tecnológicas e midiáticas configuram outro método de produção, divulgação e exibição.

Jeffrey Shaw apontou que “[...] o maior desafio para o cinema expandido digitalmente é a concepção e o planejamento de novas técnicas narrativas que permitam que as características interativas e emergentes desse meio sejam incorporadas satisfatoriamente” (2005, 362). A interatividade, considerada uma das mortes do cinema por Machado (1997), é também uma característica do contexto pós-midiático.

Porém, neste mesmo contexto, não são somente questões de produção que são alteradas, como a desconfiguração de um roteiro para transformá-lo em um roteiro interativo, mas principalmente alterações em exibições. Saímos da sala escura e fomos para o streaming. O surgimento da Netflix e de outros serviços on demand alteraram a lógica de consumo de cinema e TV. Um serviço que vai além da possibilidade de avançar, retroceder e parar a narrativa (o que já podia ser feito no VHS e DVD, por exemplo), mas explicita a ideia de uma narrativa que permite que o espectador faça escolhas durante a sua exibição, podendo alterar o final da mesma.

Em 2018, a Netflix lançou o seu primeiro filme interativo para adultos, considerando que já havia uma série de outras produções interativas na plataforma para o público infantil. Porém, é possível destacar a interatividade em quatro produções originais Netflix em live action que podemos ver na tabela a seguir:

Produção interativaCaracterísticas
Bandersnatch (2018)O espectador pode chegar em até 5 finais diferentes com muitas escolhas ao longo da narrativa, impactando sua experiência fílmica e o tempo do filme. As escolhas são feitas a partir de duas ou três opções exibidas na tela, com exceção de uma escolha na qual é necessário descobrir um número de telefone. O filme-episódio faz parte do universo Black Mirror e permite a construção das decisões e dos personagens como proposta da série.
You vs. Wild (2019)O enredo é oriundo da TV tradicional, porém aqui desconfigura a percepção de narrativa documental e de reality, a premissa do programa de TV. Nesse formato o espectador conduz a sobrevivência de Bear Grylls descaracterizando a própria linguagem. Podemos dizer que esta produção é um metamix de linguagens que são transformadas em interatividade no streaming.
Unbreakable Kimmy Schmidt: Kimmy vs the Reverend (2020)Aqui o espectador tem dois objetivos: salvar as mulheres presas em um bunker e, consequentemente, fazer com que o casamento da protagonista aconteça. Porém, essa narrativa pode ser incrementada por outros pontos de vista a partir das escolhas feitas por quem assiste, criando inúmeras possibilidades de piadas e fluxos narrativos. Ou seja, algumas situações cômicas só são possíveis em determinados caminhos da narrativa, além de ter tarefas bem claras: a protagonista obrigatoriamente precisa ler um livro para que consiga chegar ao seu objetivo final.
Animals on the Loose: A You vs. Wild Movie (2021)Segue a mesma característica da série You vs. Wild. Basicamente as funções do espectador são as mesmas: fazer com que Bear Grylls desempenhe suas tarefas com êxito e mantê-lo vivo.

Tabela 1: Conteúdos interativos em live action da Netflix. Elaborada pelo autor.

Observa-se, dessa forma, que a narrativa criada é fragmentada e imbricada, com sua linha condutora complementada por outras narrativas de outros pontos de vista, ou de variadas possibilidades de continuidade, como aponta Jon Simons (2008). Ainda para o autor, a narrativa interativa segue um modelo linear que abre possibilidades para interações. Como podemos ver nas produções Netflix, há uma característica comum entre elas: a interface. As escolhas são dispostas em uma tela que aparece de tempos em tempos dentro do conteúdo, forçando o espectador a tomar uma decisão entre as escolhas oferecidas. Se compararmos com Kinoautomat 1 (1967) e outras produções da década de 1990 como I’m Your Man (1992), podemos ver similaridades na interface que produz escolhas e permite que o espectador tome decisões, montando a narrativa.

Por outro lado, a interatividade proposta no serviço de streaming torna-se uma evolução do cinema interativo, que sempre buscou uma narrativa que possa ser realmente alterada. Por mais que existam diversos caminhos traçados pela equipe de produção do conteúdo, é o espectador que escolhe qual desses caminhos irá tomar, o que descaracteriza a narrativa clássica cinematográfica.

Essa descaracterização de linguagem é também uma descaracterização de tecnologia e de telas. O conceito apontado por Flores, de “condição pós-ecrã”, aborda a noção de multitelas para um mesmo conteúdo. Ou seja, se pensarmos na lógica de um conteúdo Netflix, ele pode ser acessado tanto na smart TV quanto no computador e no smartphone, reconfigurando a experiência de quem assiste ou até mesmo interage com o conteúdo.

Na última década pudemos notar a evolução das narrativas cinematográficas, principalmente em suas inserções com outras mídias como a TV e o videogame. O cinema interativo, nascido no fim da década de 1960, revisitou sua história e configurou novas formas de se relacionar com a narrativa. De alguma forma, como o controle remoto foi revolucionário para a TV, o surgimento dos serviços streaming revelaram outra configuração do modo de ver e fazer cinema, especialmente por suas possibilidades de criar novas relações com o espectador.

Já não estamos mais no cenário da comunicação linear, mas nas paisagens nas quais a produção comunicacional se faz em meio a complexos processos de negociação que levam em conta diferenças e indeterminações. A comunicação é muito menos uma convergência de estratégias e muito mais intercambialidade fundada na complexidade de cruzamentos de múltiplas gramáticas, postulados, operações, etc. de sentidos. (Fausto Neto, 2015, 20)

Essa nova produção de sentidos defendida por Antônio Fausto Neto vai ao encontro da observação de Maria Immacolata Lopes, ou seja, que vivemos em uma “[...] sociedade multiconectada, que traz, especialmente por meio do uso do computador e do celular, o acesso às novas mídias digitais que, na ficção televisiva, se materializam na TV digital, na TV pela internet, na convergência midiática, enfim” (2014, 13). A autora ainda defende que a audiência e os usuários vem sendo “seletivos, autodirigidos, produtores bem como receptores de textos”, asserção que confirma o que Patrícia Azambuja e Larissa Rocha comentam:

É possível, então, afirmar que, marcada por características como a convergência, participação e a interatividade, a estruturação de um novo ecossistema comunicativo, que responde às exigências comunicativas da sociedade em rede, vai afetar/influenciar os modos de ser audiência. (Azambuja; Rocha, 2012, 08)

Apesar de um cenário de novos formatos de produção, divulgação e circulação dos conteúdos, o que vemos é uma verdadeira mudança de audiência que transforma a programação, deixando de ser algo linear para tomar diversas formas.

Nesse sentido, se o espectador teve transformações sociais ao longo dos séculos, a tecnologia trouxe um novo diálogo entre o homem e a máquina. Com o aprimoramento de recursos tecnológicos surgem inúmeros “produtos interativos”, o que reforça a produção da chamada indústria da interatividade.

Para que essa interatividade aconteça precisamos de uma tela. Como Luis Mauro Sá Martino (2014, 226) destaca: “[...] uma boa parte da vida contemporânea é gasta olhando para telas. Outra parte, igualmente considerável, é usada apertando botões”. Porém, com o surgimento do cinema interativo e do videogame, apertar botões e olhar para a tela são atos simultâneos, assim como a utilização da internet.

O cinema em meios digitais vem sendo associado à produção de filmes interativos, filmes com tramas complexas – com variações de pontos de vista ou de ordem cronológica – e filmes concebidos para múltiplas telas, sendo exibidos do celular à sala de projeção, passando pelo computador pessoal. (Cirino, 2012, 16)

Esse tipo de narrativa desconfigura o cinema clássico ao fazer com que o espectador exerça funções dentro do filme. Dessa forma, ele pode ser o montador do filme. “No cinema clássico os saltos narrativos aconteciam pelos cortes da montagem, já nos filmes e vídeos interativos são realizados também através de links estrategicamente posicionados no decorrer da história” (Golçalves et. al. 2019, 78).

Para Manovich, ao contrário dos velhos meios, os novos meios são interativos, permitindo que o usuário possa interagir com o objeto midiático, podendo escolher, neste processo de interação, que rotas seguir. Neste sentido, o usuário se transforma em coautor da obra (Manovich, 2005, 97). Ele ainda complementa: “Agora, qualquer um pode converter-se em criador somente com o que proporciona um novo menu, ou seja, que faça uma nova seleção a partir do corpus total disponível.” (Manovich, 2005, 181)

Assim, em ambiente pós-mídia, é possível que a figura do espectador conte a história à sua maneira, podendo manipulá-la de inúmeras formas, mesmo após o final da narrativa. Ou seja, é possível voltar, parar, avançar e pausar a narrativa para que tome outros entendimentos sobre a mesma. Os autores Aluizio Ramos Trinta e Ilana Polistchuk comentam:

O ‘sujeito receptor’ fará face à televisão equipado com um repertório, de cujos recursos dispõe, para com tal lastro de referências proceder às negociações com respeito às mensagens que então lhe chegam. De tudo o que lhe enviam, faz alguma coisa: aceita, recusa, conta à sua maneira o que viu e ouviu. (Trinta; Polistchuk, 2003, 155)

Portanto, a tecnologia unida ao espectador e à narrativa são capazes de evoluir relações entre homem-máquina, por vezes transformando-se em “homem-máquina-homem”, um pensamento no qual o entendimento passa pela tecnologia, mas ainda assim acaba se configurando na mente individual da plateia (Guedes, 2017). Sendo assim, novos modos de relação com a realidade e percepções de tempo e espaço são pautados na experiência audiovisual e tecnológica.

O cenário pós-midiático não se concentra apenas no cinema, mas também nos jogos de videogame. As narrativas de jogos estão cada vez mais cinematográficas. Porém, quando especificidades de jogos são unidas às características cinematográficas é possível notar o surgimento de obras híbridas e que podemos chamar de filme-jogo.

A produtora de jogos Quantic Dream criada por David Cage foi uma das primeiras a utilizar atores de cinema para criação de personagens de videogame. A produtora é especializada em criar narrativas que unem cinema e jogos, como podemos ver em uma breve descrição de seus conteúdos a seguir:

Filme-jogoCaracterísticas
Omikron: The Nomad Soul (1999)Aqui assumimos o controle (literalmente) de um agente investigativo, que pede, quebrando a quarta parede, para assumirmos seu corpo e passarmos por um portal para o seu mundo. O jogo mescla mecânicas de outros jogos como o de luta e de tiro. A trilha sonora foi composta por David Bowie.
Fahrenheit (2005)A primeira produção da empresa seguindo a lógica de escolhas, ou seja, as escolhas do jogador criam impactos fundamentais para a narrativa. O avanço da técnica e a inserção de percepções cinematográficas no jogo são notáveis. As funções são bem mais simples do que as do primeiro, porém a narrativa é muito mais complexa.
Heavy Rain (2010)Através de planos cinematográficos e da montagem das cenas somos apresentados aos personagens para criar uma identificação. A desenvolvedora encarou isso como um drama interativo, e até suas mecânicas refletem isso, adicionando a possibilidade de ouvir os pensamentos do personagem controlado a qualquer momento. As coisas aqui são mais íntimas, humanas e expressivas.
Beyond Two Souls (2013)Elliot Page e Willem Dafoe fazem parte do elenco. Tem uma narrativa pautada nas escolhas do jogador. A personalidade da personagem é criada a partir das decisões construídas ao longo da narrativa, por mais que muitas dessas escolhas não representem algo significativo para a trama. É possível controlar dois personagens e com eles desenvolver a narrativa.
Detroit: Become Human (2018)É uma junção de tudo que a empresa lançou antes, focando na humanização e nas consequências de suas escolhas. Fazemos escolhas em três narrativas diferentes, com três personagens distintos, mas que em algum momento essas narrativas se cruzam.

Tabela 2: Produções Quantic Dream. Elaborada pelo autor.

É interessante perceber que os jogos aqui abordados foram lançados quase que exclusivamente pela PlayStation, porém com as inovações do digital começou a ser possível o download desses conteúdos. Detroit: Become Human, por exemplo, foi lançado para o PS4, mas também está disponível na Steam, uma das maiores plataformas de jogos de computador do mundo atualmente.

Portanto, observando as descrições das duas tabelas, podemos apontar que a estética pós-mídia sugerida por Weibel (2012) torna-se híbrida dentro dos conteúdos, mesclando tecnologias e narrativas dentro de experiências cinematográficas e de jogos. O texto até este ponto tratou das modificações ocasionadas pela evolução das mídias e do espectador, pautados na tecnologia. Agora, vamos adentrar a uma análise dos dois produtos ocasionados por essas mudanças.

A narrativa modificada a partir das escolhas

Uma das características do cinema interativo atual é a interatividade ocasionada a partir de escolhas, opções são dadas aos espectadores e ele decide por uma delas através dos dispositivos tecnológicos, o que leva Bruno Mendes da Silva e Susana Costa (2020) a questionarem se de fato isso é interatividade. Segundo os autores, até o momento não temos uma obra que proporcione uma interatividade total, já que os caminhos possíveis da narrativa já são pré-estabelecidos pelo diretor do conteúdo.

O filme Bandersnatch (2018) é um grande exemplo de interatividade ocasionada pela evolução das possibilidades tecnológicas. Com roteiro de Charlie Brooker e direção de David Slade, narra a história de Stefan, um jovem dos anos 1980 que tenta criar um jogo de videogame inspirado em um livro. Esse filme-episódio é o primeiro conteúdo interativo para o público adulto da Netflix.

Já no início do filme, um breve tutorial explica ao espectador como funciona a estrutura interativa. Em cada momento de escolha há duas opções e aproximadamente dez segundos para uma decisão. O espectador-usuário2 pode chegar a 5 finais diferentes, impactando sua experiência fílmica e, também, o tempo que a história terá. Porém, nem toda escolha feita chega a um final: por vezes a narrativa cai em um “beco sem saída” e somos obrigados a voltar a determinado ponto. Contudo, isso se aproxima da narrativa de jogos de videogame. Segundo Dinis Ferreira Cortes (2020), esse tipo de narrativa é como um labirinto, que tanto pode encontrar caminhos para a finalização como pode ficar andando em círculos.

A interatividade, segundo Pierre Lévy (1999 apud Cannito, 2010) pode ser categorizada em algumas formas, como: a personalização da mensagem recebida pelo usuário, a reciprocidade onde um dispositivo permita várias comunicações, a virtualidade que permite a passagem da mensagem em tempo real, a implicação e a telepresença. Segundo Lev Manovich (2005), a interatividade pode apresentar diversas funções, como simples divisões abertas ou fechadas, estruturas complexas e o que o autor chama de “interatividade arbórea”, identificada no filme Bandersnatch. Essa interatividade é dividida como galhos de uma árvore, e acontece a partir de opções na tela do usuário em forma de menu. Nesses casos, o espectador cria diversos níveis de narrativas, propostas por ele mesmo, dando voz ativa a quem está consumindo. Ou seja, um cinema que se apropria de softwares não somente na produção, mas também na exibição, criando interfaces para que a interatividade aconteça. (Marafon; Araujo, 2020).

Figura 1: Tela de escolhas Bandersnatch (2018). Divulgação Netflix.

A noção de videogame que a interatividade traz mescla a montagem e a narrativa do filme, já que o protagonista é um desenvolvedor de games, e assim como um jogo, dependendo de suas escolhas, pode render um Game Over, obrigando a narrativa a voltar a determinado ponto. Para Gonçalves et. al. (2019, 1044) “[...] é possível perceber que, na estrutura do roteiro, os links presentes têm a função de fazer a história seguir de uma cena à outra, criando uma narrativa imbricada, com múltiplas possibilidades e diversos finais.”

A utilização da tecnologia vai além da produção e exibição do filme, ocorrendo também na interação homem-máquina que pode acontecer em diversos dispositivos, tanto através da smart TV, no computador, quanto em dispositivos móveis. José Teixeira Coelho Neto (2020) discute que as narrativas e tecnologias começam a ser desenvolvidas para um, no sentido de não ser mais uma experiência coletiva, mas sim individual. A sala do cinema que comportava dezenas de pessoas foi facilmente substituída por uma tela menor. Assim, a narrativa que era vista em conjunto passa a ser pensada de forma individual. Bandersnatch, por exemplo, pode apresentar diversas narrativas diferentes para diferentes tipos de espectadores-usuários.

[...] uma construção de agenciamento de processos que colocam o usuário do meio, em uma trama de escolhas dentro de um ambiente labiríntico. Essa relação, em nossa inferência, é a mesma entre usuário-receptor e um game digital, porém sem o lugar de avatar explícito. O processo de continuidade da narrativa é decidido pelas escolhas do interagente reelaborando os conceitos de linearidades fílmicas, os atos e pontos de viradas do mesmo. (Cortes, 2020, 04)

Dessa forma, é possível apontar que a narrativa de Bandersnatch simula um jogo de videogame, porém adaptada para o streaming com a linguagem do cinema3. São as escolhas do espectador-usuário que formulam a narrativa e criam os pontos de viradas da mesma. Porém, se por um lado temos o cinema que coloca o espectador-usuário como ponte entre a narrativa, por outro temos os jogos de videogame que também constroem narrativas a partir das escolhas do jogador.

Detroit: Become Human é um jogo produzido pela Quantic Dream, lançado para PS4 e PC em 2018. A história se passa no ano de 2038, onde em uma sociedade distópica os humanos e andróides convivem — nem sempre harmoniosamente. Tem como cenário a cidade de Detroit e acompanha a trajetória de três andróides protagonistas: Kara, Markus e Connor. Os três personagens jogáveis da história possuem perspectivas e habilidades únicas à medida que se descobrem como indivíduos e ao viver situações. Dependendo da escolha do jogador, todos os personagens jogáveis podem morrer no decorrer da história.

É difícil definir o que de fato é Detroit: Become Human, mas é possível localizá-lo tanto dentro do gênero de filme interativo quanto no de jogo de ação e aventura (adventure games). Aqui, a construção da narrativa depende por completo do jogador (ou espectador-jogador), as escolhas tomadas por ele definem quais os múltiplos caminhos que a narrativa pode tomar.

Detroit é dividido em 12 capítulos. Neles é possível desempenhar funções simples com os personagens, como lavar a louça, jogar xadrez ou ler um livro, mas também há ação corporal que demanda uma maior agilidade com o console. Por outro lado, possui escolhas que não influenciam de fato no decorrer do jogo como a escolha do disfarce de Kara, mas outras que definem por completo, como a escolha de iniciar uma revolução violenta contra os humanos.

Essas escolhas que o jogador tem que fazer revelam-se verdadeiras decisões morais ao longo da narrativa, como apontado por Elisabeth Holl (2019). A autora pontua que as ações que a narrativa obriga o jogador a tomar criam contradições no jogador, já que é preciso ao mesmo tempo levar em conta a vida da personagem, mas também um grande medo humano: um mundo liderado pelas máquinas. As opções seguem a mesma lógica de filmes interativos com interface e a de outros games da produtora, exibindo todos os caminhos possíveis daquele ponto e com tempo para o jogador escolher.

Figura 2: Tela de escolhas Detroit (2018). Divulgação Quantic Dream.

Observando a interatividade e a narrativa, podemos perceber uma construção parecida com a concepção de Manovich (2007) com a “interatividade arbórea” (ou como exibido pelo próprio jogo em forma de diagrama), mas talvez podemos pensar em uma construção parecida com uma fórmula dodecaedro, onde os pontos formados pela união das linhas são um pequeno mundo de funções a serem desempenhadas (pintar um quadro, tocar piano, ler algumas revistas…) mas em algum momento precisa-se tomar decisões para que leve a outros pontos e assim adiante. Havendo a possibilidade de sempre recomeçar ou parar.

Considerações finais

A contemporaneidade criou narrativas pensadas a partir da tecnologia, de uma forma que desconstruiu os modos de produção e exibição, inserindo-se em um território pós-midiático para se reinventar. Se pensarmos na pós-mídia como uma extensão das mídias tradicionais, podemos validar o conceito de Rosalind Krauss, quando a mesma diz que a mídia para o filme não é só o celulóide, nem só a câmera, nem só a luz, nem só a tela, mas o conjunto de todos, incluindo a posição da audiência (Krauss, 1999, 25). Em sua asserção está implícito o conceito de convergência de suportes.

Dessa forma, as diversas definições de pós-mídia nos levam a alguns apontamentos de produções cinematográficas dentro deste contexto, como a inserção da interatividade, a construção e desconstrução da narrativa pelo sujeito, inovações estéticas e tecnológicas como os filmes produzidos inteiramente pelo computador ou pelo celular, modificações possíveis dentro da imagem com a alteração de todos os pixels disponíveis nela, e enfim, a imagem digital.

Algo que chama a atenção dentro deste contexto é a interatividade. A interação é algo proposto desde o primeiro cinema, na década de 1960 ganhou força em salas de exibições, mas foi na década de 1990 que os filmes interativos de fato começaram a surgir. Porém, é a partir da democratização da internet que este tipo de conteúdo se intensifica, principalmente com a criação dos serviços streaming. Guattari, já em 1992 (p. 122), sugeriu: “[...] talvez um passo decisivo possa ser dado no sentido da interatividade, da entrada em uma era pós-mídia e, correlativamente, de uma aceleração do retorno maquínico da oralidade”. É o que percebemos na década de 2010, uma interatividade que é popular, ou seja, está disponível muito facilmente, e na qual o público pode interagir com a narrativa sem sair de seu sofá.

Essas interações com a tela que configuram um cinema expandido pelas tecnologias são capazes de transformar a experiência fílmica, alterando o tempo e a percepção da narrativa que está sendo consumida. Um cinema que deixa a sala escura para se inserir em diversas mídias, até mesmo em narrativas propostas em aplicativos de celular.

Se a tela de cinema aumentou (IMAX) na mesma velocidade em que diminuiu (smartphone) é fato que as experiências do espectador também se tornaram diferentes e múltiplas. Sendo assim, ainda nos restam definições que precisam ser mais aprofundadas e discutidas. A relação homem-máquina possibilita diversos questionamentos que são relevantes para os processos comunicacionais e artísticos e, sem dúvida, ainda estamos em um processo de entendimento dessas configurações que envolvem narrativa, tecnologia e plateia.

Notas finais

1Filme dirigido por Radúz Činčera. Foi lançado em uma sala de cinema especial, na qual as poltronas possuíam botões para a plateia interagir com o filme. Entre uma escolha e outra existia a mediação de uma pessoa para que falasse ao público o que ele deveria fazer. Anos após o lançamento descobriu-se que o filme, na verdade, não proporcionava alterações na narrativa independente das escolhas feitas pelos espectadores.

2Utilizo este termo apontado por Denis Porto Renó (2007) para exemplificar um espectador que está sempre disposto a navegar pelas narrativas do ambiente online.

3No sentido de encontrar os mesmos planos cinematográficos e construções imagéticas.

Referências

Azambuja, Patrícia; Rocha, Larissa. 2012. Televisão digital, recepção e conteúdo: o audiovisual para além dos seus padrões analógicos. Revista Comunicación, Nº 10, Vol.1, pp. 03-10.

Cannito, Newton. 2010. A televisão na era digital: Interatividade, convergência e novos modelos de negócios. São Paulo: Summus.

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