Capítulo IV – Cinema – Tecnologia

Interactive cinema - videogames: a possible approach?

Cinema interativo - videojogos: uma abordagem possível?

Sofia Figueiredo

Escola Superior de Educação de Viseu, Portugal

Abstract

Interactivity has been permeating every digital object, field of creation, and experience. We see, nowadays, fields which were resistant to this change, such as television, being subjected to this demand for interactivity. Cinema, however, keeps resisting.
In neither television nor cinema did the adoption of interactivity come naturally. Cinema stuck to narrative; animation, a specific manifestation of cinema, followed. As both lost the cyclic repetition, the original loop, the two formats were limited to time, to the manipulation of time, to the edition of the temporal dimension, relegating editing and spatial collage to the category of special effects. Linear narratives do not lend themselves to the introduction of variables, under the risk of losing the narrative thread.
The ways we interact in any context have also been limited to a small number of options agreed upon by practice and shaped by the technical possibilities of the birth of the computer age. The office metaphor converted the idea of operating a computer system to a very limited experience.
In this paper we try to question these limitations, trying to look at the question differently: does interactive cinema already exist- are we not seeing it? We explore the introduction of interaction in animated films. We consider that it would not make sense to create an interactive object in which interactivity was a mere addition, without intrinsic motivation to the project’s own objectives, at a formal and narrative level. In this context, different perspectives are explored when facing interactive cinema.

Keywords: Afectivity, Animation, Interactivity, Interactive cinema, Videogames.

Introdução

Por cinema interativo podem entender-se muitas coisas diferentes.

Começaremos por tentar identificar algumas das possíveis conceções, teorizações, imaginações, reformulações deste conceito que parece, ao mesmo tempo, ser demasiado restritivo e demasiado aberto.

Será explorada em particular a hipótese de Kevin Veale (2012), na tentativa de identificar possíveis objetos que possam ser cinema interativo mas que, correntemente, não têm essa designação (são, ao invés, apresentados ao público em geral como videojogos).

Posteriormente serão analisadas três obras interativas na tentativa de compreender se são, total ou parcialmente, cinema interativo no quadro das concetualizações apresentadas anteriormente, e que novas dimensões trazem à reflexão aqui em causa.

Conclui-se que o cinema interativo é um campo ainda muito experimental e que talvez, devido às suas caraterísticas intrínsecas, ao facto de dever a sua nomenclatura a um meio clássico e bem estabelecido, e às expetativas do público, nunca deixe de o ser. Ainda assim, as experiências analisadas revelam novas possibilidades, não só para a criação de obras interativas em geral como para a compreensão dos sistemas de envolvimento e motivação dos utilizadores / jogadores / espetadores com meios diferentes.

O que é cinema interativo?

Sendo considerado de forma relativamente consensual o meio mais determinante do século XX (Manovich 2001), o cinema é um meio amplamente estudado e descrito, nas suas múltiplas possibilidades, por muitos autores. É também um elemento completamente disseminado pelas populações e que marca e molda a existência de grande número de seres humanos. Esta posição de grande influência do cinema leva à criação de expetativas concretas e definidas, ao mesmo tempo que noções mais vagas e flutuantes, do que é que é cinema.

Estas expetativas e noções são herdadas por outras formas de criação humana que estejam relacionadas com o cinema. A ideia de cinema interativo é antiga e permeada de conjeturas. Verificou-se, com a prática, que converter obras de cinema em experiências interativas não é tão direto como poderíamos imaginar.

Compreendemos que esta necessidade de compreender e expandir o conceito será proveniente do impacto marcante do cinema na humanidade. Queremos entrar nos filmes; queremos que seja possível entrar nos filmes.

O visionamento clássico no ecrã de cinema, distante e dirigido a dezenas de pessoas, não propicia interação que vá além da escolha do filme a apreciar e da hora a que o queremos ver. A televisão ultrapassa dificuldades semelhantes: o aparelho televisivo, embora construído originalmente sem a possibilidade de interação em vista, tem vindo a flexibilizar-se e a aceitar comandos cada vez mais complexos através, por exemplo, de um segundo ecrã, como uma tablet ou telemóvel, ou, mais recentemente, tornando-se inteligente. É, hoje em dia, trivial escolher conteúdos alternativos, visionar informação adicional (como legendas), ou sequenciar os programas a ver numa ordem diferente da que o canal apresenta por omissão.

Foram, apesar das dificuldades, feitas algumas experiências com o intuito de quebrar a linearidade convencional da obra cinematográfica – um dos exemplos é o da divisão do ecrã; outro, o da montagem não linear. Estas experiências encontram-se mais frequentemente no cinema experimental, na procura e exploração de formas expressivas diversas. Dois exemplos, provenientes das primeiras décadas do cinema (talvez aquelas em que as convenções estavam ainda por estabelecer e, por isso, mais ricas em explorações que, mais tarde, se tornaram menos frequentes) são Berlin: Die Sinfonie der Großstadt (Ruttman 1927), que mostra a vida na cidade acompanhada por uma composição sinfónica, sem narrativa nos termos convencionais; e Napoléon (Gance 1927), que apresenta técnicas (na época) inovadoras de movimento de câmara, assim como formas de edição e apresentação inusitadas, entre as quais a divisão do ecrã (em duas ou mais partes).

Acresce a todas estes obstáculos a metáfora de interação original do escritório que, embora esteja já muito expandida (gestos e toques) continua a ser limitada, por exemplo, em dimensão e relação com o corpo para além da mão. Esta implica um esquecer do corpo, a utilização de periféricos específicos como o teclado e o rato, e uma exclusão de outras formas de interação. Simon Penny (2011) afirma que o questionamento deste comportamento, altamente estruturado e balizado, coube às práticas artísticas performativas, que, após um primeiro momento de aprendizagem das opções existentes, começaram a programar outras formas de interação, livres dos condicionamentos do formato (até certo ponto) universal. Com o correr do tempo e a maturação do meio informático, foi possível ver algumas destas formas alternativas crescerem e serem utilizadas pela indústria (o caso dos gestos da mão que manipulam tablets e telemóveis, ou mesmo da utilização de todo o corpo para controlar plataformas como a wii ou a kinect). A forma da interação não tem assim de ser, necessariamente, confinada ao clique no botão para fazer avançar a narrativa.

Neste sentido, podemos observar obras como Liquid Time (Utterback 2000-2002) ou Manual Input Sessions (Levin, Lieberman 2004) que tentam inovar os modos de interação. Ainda assim, este campo tem sido mais explorado em relação aos videojogos. Postula-se que será possível abandonar os videojogos como forma de resposta direta à questão – que forma poderá ter o cinema interativo? – mas será necessário olhar para as formas diversificadas de interação que estes proporcionam e fomentam na criação de cinema interativo relevante para o público a que se destina. Este público, como Kristen Daly (2010) afirma, está cada vez mais adaptado a uma existência retalhada em módulos que se podem conjugar para fazer sentido, e a um esforço de gamificação, na escola e no trabalho, como tentativa de motivação de alunos e trabalhadores.

É importante novamente declarar que não procuramos converter o cinema num jogo, neste contexto em que cada vez mais tarefas são explicitamente convertidas em jogos (gamificação). Consideramos, no entanto, que há situações a observar pelo seu interesse e pertinência. Por exemplo, quando Blair Witch Project (Myrick, Sánchez 1999) envolveu os possíveis futuros espetadores na campanha de marketing e no esforço de tentar resolver os mistérios apresentados pela captura das imagens apresentadas na sala de cinema, estava a pedir que estes participassem numa estrutura de tarefas e regras, embora não se tenha formalmente identificado este mecanismo como jogo. Como este, muitos outros têm, de forma mais ou menos explícita, envolvido o público a atingir nesta criação de contextos e interpretações, o que tem levado a interpretações como as de Daly (2010) e Jenkins (2008).

Para o contexto deste artigo, o conceito de gamificação interessa porque é uma das formas mais orgânicas e intuitivas, e também, presentemente, explícitas e balizadas, de tornar a experiência de usufruir de um filme ou obra cinematográfica em geral numa experiência interativa (McGonigal 2011). De que modo esta tendência atual pode entrosar com um questionamento mais específico e formal do objeto filme – de como este pode proporcionar uma experiência interativa – é uma questão pertinente. Seria plausível conjeturar que a observação de ARGs (Jogos de Realidade Alternativa) trouxesse ideias para a criação de obras de cinema que englobassem esta (podemos especular – será uma necessidade de?) ligação entre o filme e a realidade vivida, que gerassem esta identificação entre os utilizadores/espetadores e a obra de forma satisfatória e pertinente.

Para tornar a questão mais complexa, a forma como interagimos com estas tecnologias cada vez mais presentes modela a nossa relação afetiva com o mundo e com os objetos interativos: as formas de interação não precisam de ser, necessariamente, transparentes, mas sim bem desenhadas e bem construídas, podendo chegar a ser fontes de identificação e modos de construir e afirmar identidades pessoais (Fritsch 2011). Aliando esta ideia ao conceito de flow, frequentemente aplicado à construção de videojogos, que prevê uma imersão ideal do jogador quando a dificuldade das tarefas é adaptada para cada interator (Chen 2006), facilmente se conclui que o design da interação deverá ainda, se possível, prever e ter em conta situações particulares.

Propomos que, apesar de se ter revelado de muito mais difícil implementação do que à partida poderia parecer, a ideia de cinema interativo se mantém fascinante para autores, investigadores, e para o público em geral. Este fascínio é, entendemos, responsável pelo contínuo aparecimento de múltiplas teorizações em torno do conceito.

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Entretanto, sendo indubitavelmente interativos (ergódicos – Aarseth 1997) e, discutivelmente, narrativos por excelência, os videojogos confirmaram-se os objetos a serem escrutinados de perto por investigadores e criadores interessados em explorar o cinema interativo.

Os videojogos como forma expressiva têm vindo a ganhar importância e preponderância, tanto a nível de sucesso comercial como a nível de desenvolvimento e maturação do meio. Assistimos a uma cada vez mais intensa discussão sobre a natureza dos videojogos, quer nos seus aspetos técnicos e estéticos, quer no seu significado como prática social e cultural. Em 2005, havia quem fizesse a previsão de que, em diversos contextos, os videojogos seriam o meio predominante do século XXI (Juul 2005) tal como o cinema foi o do século XX. Podemos argumentar que, em 2021, já o são, pelo menos comercialmente (Witkowski 2021).

Sendo um elemento cuja história é ainda recente e facilmente lembrada e acedida, é possível recordar a forma incipiente (embora, desde sempre, ambiciosa, e ancorada no reservatório das tradições milenares de jogos não digitais) dos primeiros videojogos. Com a sua maturação, observamos a sua integração na lista de meios e suportes expressivos para conteúdos artísticos. Este era um resultado esperado por muitos: tal como, no passado, nos questionámos se a fotografia podia ser arte, tal como o cinema não passou, no seu aparecimento, de uma sucessão de imagens cómicas e desprovidas de conteúdo reflexivo, hoje os videojogos tentam (e, se nem sempre conseguem, muitas vezes já o fazem) superar uma barreira que, discutivelmente, a arte feita por computador (ou de alguma forma digital) já conseguiu ultrapassar.

É um dos campos mais prolíficos de criação e consumo de narrativas atualmente. O mesmo não se poderá dizer do que habitualmente se rotula como cinema interativo, que embora pareça suscitar muito interesse por parte de criadores e investigadores, por variadas razões que não serão aqui exploradas, tende a não passar de um número de criações experimentais sem grande impacto na criação cinematográfica global – popular /comercial ou de autor.

Tendo em conta esta perspetiva parece-nos óbvio que, muito embora a resposta à questão “o que é – ou que forma poderá ter – o cinema interativo?” não seja, ou não pareça ser atualmente, um videojogo, há lições a tomar e aspetos a ponderar.

Como Veale, pensamos que talvez estejamos a olhar para as obras erradas. Existirão jogos que possamos considerar cinema interativo que não façam parte da etiqueta criada na década de noventa pela indústria dos videojogos?

Ao mesmo tempo, (ou, quiçá, talvez seja esta a justificação principal), a introdução de interatividade num meio que aparentemente está completo sem a mesma revela-se problemática. Importa não parar de questionar o sentido de acrescentar esta característica ao cinema de imagem real e ao cinema de animação.

Uma das afirmações mais frequentes quando se ponderam os meios do cinema e dos videojogos paralelamente é a de que a grande diferença entre os dois é o nível de passividade/envolvimento (respetivamente) que parecem gerar nos seus espetadores/jogadores. A origem desta diferença está na arqueologia de ambos os meios: enquanto o cinema atual herdou os códigos narrativos do filme analógico clássico, o videojogo desenvolveu-se já dentro do paradigma do computador como máquina multimédia interativa. É a digitalização generalizada dos media, incluindo a do próprio cinema, que permite conceber a interatividade no cinema.

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Possivelmente a mais específica e restritiva resposta à questão – o que é cinema interativo? - será talvez a que apresenta um género específico de videojogo, localizado temporalmente na década de noventa do século vinte, que utilizava animações e filmagens previamente geradas e/ou capturadas, possibilitando interação limitada, e que rapidamente desapareceu quando deixou de conseguir competir comercialmente com outros géneros que, entretanto, surgiam (Lessard 2009).

Seja o género de videojogo habitualmente apelidado de cinema interativo interessante ou não, o facto de existir e de ter tido sucesso comercial (Lessard 2009) reflete o fascínio e interesse pela expressão do público em geral, cujas expetativas eram, quem sabe, demasiado altas para esta primeira iteração do mesmo em grande escala.

Tendo a denominação ficado, de certa forma, marcada pela utilização para designar jogos bastante lineares e limitados, caiu em desuso. Em certas situações, é utilizada pejorativamente para designar jogos que incluem muitas cenas não interativas de exposição da narrativa – as cut scenes (Lessard 2009). As cut scenes não são unanimemente encaradas de forma negativa, mas têm gerado discussão, não só entre investigadores como entre os jogadores, quanto à pertinência da sua inclusão nos videojogos, uma vez que, mais ou menos abruptamente, retiram agência (Murray 2000) ao jogador. Podem também ser artefactos desenvolvidos para colmatar deficiências na transmissão da narrativa do jogo. Para Celia Pearce (2004), por exemplo, recompensar o jogar com passividade é contraintuitivo e a autora considera as cut scenes como antitéticas à ideia de play. Conjeturamos que a solução para a expressão cinema interativo não passará (só) por esta estratégia de inclusão de material previamente gravado nos jogos.

Entretanto, abordagens diferentes, como a de Kristen Daly (2010), parecem ganhar tração. Esta autora compreende a experiência global na qual se enquadra, hoje em dia, o ver um filme (no cinema) – que poderá incluir pesquisas na Internet, participação em eventos, e outras formas de interligar os conteúdos. Esta é uma forma de entender a experiência do cinema na sua complexa relação atual com os diferentes meios através dos quais consumimos conteúdos que a autora entende que reflete a nossa experiência vivida, sempre ligada e interligada, e, sobretudo, híbrida e constituída por módulos. A descoberta do padrão – do algoritmo (Manovich 2001) torna-se a metáfora através da qual usufruímos do cinema, construído recorrendo a elementos modulares que se conjugam obedecendo a uma lógica que o viewster (Daly 2010) tem que descobrir. Esta forma de entender o conceito de cinema interativo inclui ainda não só a comunidade de pessoas que criam as obras cinematográficas como os espetadores, também eles criadores de conteúdos na sua experiência.

Consideramos ainda que é possível uma terceira perspetiva: será possível que já existam objetos que possam ser usufruídos de forma satisfatória e geradora de sentidos para os espetadores/utilizadores e que estejamos a designar de outra forma? Existirão jogos cujas caraterísticas os deixam mais próximos de serem obras de cinema do que imaginamos? Podemos aprender que caraterísticas têm estas obras e de que forma as podemos implementar na criação de cinema interativo?

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Encontramos duas possíveis respostas a estas questões.

Com um projeto de cinema interativo orientado ao objeto, Adam Jones (sem data) tenta compreender como será possível criar cinema interativo que não é um jogo e que oferece uma experiência de interação interessante para os seus fruidores. O autor questiona o que é que a narrativa pode ser no contexto do cinema interativo, e constata que, alargando o leque do que pode configurar uma narrativa que se adapte com sucesso ao meio em que será transmitida, é possível criar uma experiência que os utilizadores entenderão como narrativa e ainda assim manter uma forma de interação complexa (multilinear). Esta preocupação do investigador com a qualidade da experiência interativa leva-o a sistematizar tipos de interação e a tentar evitar, ao máximo, ter tão pouca interação que leva ao desencantamento dos utilizadores – “A media object with very limited interativity can actually be less satisfying than had it no interactivity at all” (Jones s. d.)

Explorando o conceito de navegação numa base de dados como princípio de funcionamento, o autor compreende que a introdução de interatividade em cinema é relevante porque, como utilizadores, sentimos prazer ao interagir (recorrendo, novamente, à noção de agência de Janet Murray) e somos atraídos para estas experiências.

O mesmo autor defende que o que designa por interação física, ou seja, que recorre a gestos, não só das mãos como do resto do corpo, é mais difícil de implementar porque é necessário interpretar e converter os gestos do utilizador em unidades válidas de sentido. Embora esta consideração prática tenha orientado a construção do seu projeto, o autor cita Davenport (1993) quando este defende que os espetadores/utilizadores não devem ter que ser sujeitos a desconforto devido a interrupções constantes, provocadas por pedidos de participação na experiência interativa para fazer avançar a narrativa. Esta postura é interessante no sentido em que acrescenta dimensões e subtileza à visão de Simon Penny, acima referida.

Como último exemplo do que poderá significar cinema interativo apresentamos a abordagem de Kevin Veale (2012), que analisa obras categorizadas como videojogos, mas que, na sua linearidade e profundidade, questionam essa designação.

Veale apresenta as razões pelas quais, no seu entender, estes videojogos poderiam ser designados por cinema interativo: começa por defender que os processos de engajamento do espetador/utilizador são demasiado diferentes entre cinema e objetos interativos para ser possível gerar uma obra de cinema interativo da forma que, porventura ingenuamente, conjeturamos mais habitualmente.

Para Veale, parte da experiência de ver um filme é a sensação de inevitabilidade que invade, por vezes, o espetador, que não pode interferir na ação. Algo que o autor considera, apoiando-se noutros escritos, também parte da experiência cinematográfica é o envolvimento emocional que, graças ao caráter inescapável da narrativa, o cinema consegue gerar e controlar melhor nos seus espetadores. Para Veale, assim, cinema interativo será um objeto que gera envolvimento emocional profundo, mas recorrendo a estratégias de engagement dos videojogos – o autor utiliza o conceito de imersão situada, que vai buscar a Laurie Taylor (2002).

Esta mistura de processos de envolvimento do utilizador dos videojogos com a estrutura guiada e linear cria assim uma experiência híbrida dos dois meios que Veale, por um lado, defende que não foi devidamente explorada por obras anteriores e, por outro, salvaguarda que poderá não ser a definição perfeita de cinema interativo mas que será, inversamente, a única designação possível (se imperfeita) para as obras que analisa.

Análise

A análise que se segue, necessariamente superficial, procura compreender de que forma obras interativas que já existem se relacionam com esta construção do conceito de cinema interativo de Kevin Veale, e o que podemos aprender com elas. Nenhuma das obras é designada pelo(s) seu(s) autor(es) como cinema interativo. Ainda assim, tendo em conta a posição fluída assumida perante este conceito, consideramos que existe valor nesta análise.

A primeira obra que pretendemos analisar é Fugitive, de Simon Penny, que a descreve de forma marcada e enfática como uma não narrativa. Simon Penny opõe, de facto, narrativas a meios interativos, como se se tratassem de contextos impossíveis de fazer operar em conjunto. Penny menciona o cinema como antitético a Fugitive.

Argumentamos aqui que o cinema pode ser também interativo, e que afirmações como “Fugitive, while screenal, is emphatically not cinema. Like all interactive media, in Fugitive there is no pregiven narrative” (Penny 2011) só podem existir ignorando uma porção bastante desenvolvida de obras interativas que são, explicitamente, narrativas.

Para a análise presente interessa-nos que, no esforço de evitar ser cinema, Fugitive usa a organização espacial como modo de interação – esta é a sua principal caraterística. Resumidamente, a obra consiste numa projeção vídeo que existe dentro dos limites de um ecrã cilíndrico. A projeção não ocupa todo o espaço possível na parede interior do cilindro; ao invés, trata-se de uma projeção circular que se move e foge do utilizador quando este se tenta aproximar da mesma. Este movimento reativo aos movimentos do utilizador tenta ainda imitar a velocidade dos mesmos. Assim, quando o utilizador da obra se aproxima de forma hesitante, a projeção afasta-se, de igual modo, lentamente. Quando o utilizador tenta uma abordagem mais vigorosa, a projeção afasta-se com maior rapidez. Para além do movimento da projeção se adequar aos movimentos dos utilizadores, também a seleção das sequências a projetar depende do input recolhido – por exemplo, um utilizador que se mova freneticamente faz com que o sistema escolha projetar uma sequência com mais frames por segundo, e um que se mova circularmente dá origem à projeção de um vídeo cujos movimentos de câmara emulam os do utilizador.

As decisões que levaram ao design de interação desta obra ecoam, na nossa opinião, uma conceção da tarefa que se aproxima do questionamento que Murray (2000) faz do espaço que existe entre utilizadores e sistema, ao mesmo tempo que explora as possibilidades que o reconhecimento da existência deste espaço traz para os designers de interfaces.

Penny dá-nos alguma informação acerca do sistema que é a base de Fugitive e da filosofia que originou o projeto. Indica-nos que Fugitive reage, não à posição pontual em cada momento do utilizador, mas à dinâmica temporal das suas deslocações, na tentativa de capturar o que Penny refere como o estado de espírito (the mood) do utilizador. Fugitive tenta interpretar os movimentos do utilizador (a rapidez e aceleração com que muda a sua posição no espaço de interação) como indicadores da disposição do mesmo, respondendo de forma quase instantânea, de forma a tornar evidente ao interator que existe interação e que é produzida uma resposta diferente a ações diferentes – Murray reforça esta ideia da necessidade de transparência e imediatez na resposta às ações do utilizador como uma boa prática na criação de interatividade e uma forma de conferir agência ao mesmo, agência esta que é referida como uma capacidade desejada pelos utilizadores.

Fugitive tenta maximizar o espaço que lhe é atribuído na tentativa de transmitir múltiplas mensagens – do corpo como presença em interação, de formas alternativas de interatividade, entre outras indicadas pelo autor.

Através da interação contida e desenhada para operar num lugar específico origina respostas diversas relativas a formas diferentes de movimento e, quase, de viagem visual – através do campo visual que nos é dado pela lente da câmara. É por estas razões considerado um exemplo válido e pertinente para discussão no contexto da obra de Murray, se não nas suas afirmações mais prescritivas, pelo menos o espírito do seu questionamento e as suas buscas mais reflexivas sobre a natureza do espaço com que

interagimos e do espaço em que inscrevemos a possibilidade de interação, assim como sobre as formas de otimização da interação através da exploração da dimensão do espaço. Fugitive pode ser descrito como uma obra em que a intervenção ergódica resulta em possibilidades múltiplas e diversas que são, no fundo, a tradução da relação espacial e cinética do utilizador para a representação fílmica do espaço.

Um exemplo que explora o afeto criado pela interação de forma diversa é o de Moaning Columns of Longing, de Adam Nash (2007-2009). Esta obra não se define com relação ao cinema – é uma obra interativa que procura gerar e explorar relações de afeto entre utilizadores e constructos. Visto que, para Veale, uma das marcas da experiência cinematográfica é a criação de envolvimento e afetividade entre utilizador e obra, exploramos aqui esta criação na tentativa de compreender como é que essa relação pode ser criada recorrendo a estratégias interativas.

Adam Nash explora o percurso entre dados como dados e dados como visualização (data-as-data e data-as-display) como um caminho de interpretação, regido por protocolos que são sempre subjetivos e podem ser modulados e remodulados de formas alternativas às que as convenções geralmente ditam. Neste contexto, é possível conjurar uma forma de interação entre utilizador e sistema que se assemelha mais à relação entre dois performers, que sincronizam as suas ações com base numa ligação difícil de traduzir para outros termos que não os da relação que estabelecem dentro do contexto da performance, do que a uma ligação tipicamente estabelecida entre utilizador e sistema (Nash 2012).

É possível observar esta forma de ligação afetiva mais claramente noutras obras de Nash, como Trace Aureity (2008) e One, Another (2009). Em Moaning Columns of Longing, no entanto, é estabelecida uma relação de dependência entre utilizador e sistema. Nash descreve a sua obra da seguinte forma:

Staged in Second Life, the work enacts emotional and sensual blackmail. In doing so, it consciously exploits the user’s understanding of the spatial and material analogies used to interface with the environment. This creates a technically mediated experience of emotion/affect that is aware of its own excess. When a user’s avatar approaches the work, a virtual ‘column’ is spawned, glowing white and spurting glittering particles of joy while it declares its undying, faithful love for the user via the ‘chat’ facility built into the interface. Once the user leaves the space (that is, logs out), the column starts sending more and more emotionally manipulative emails begging the user to return. Every hour that the user does not return to ‘touch’ the column (‘touch’ is the Second Life interface analogy used instead of ‘mouse click’), the column becomes a little duller, a little shorter, and starts emitting a moaning sound that becomes louder as the hours pass. The hourly emails become more desperate and more emotionally demanding (“without you, I will die”). If the user does not return within 24 hours, the column will ‘die’, that is, in technical terms it will be deleted from the database permanently. If the user does return to ‘touch’ the column within 24 hours, the column returns to its full height, glowing brightly and rejoicing loudly over the chat channels, “[username] loves me! My existence has meaning!”. Over the couple of years this work was in operation, some users maintained their columns for months at a time

During this time, these users returned to their column at least once every 24 hours, and received an email from their column every single hour for the entire time their column was ‘alive’.

(Nash 2012)

A relação que se estabelece então entre o utilizador e a coluna é multifacetada e poderá ser descrita, por exemplo, como idêntica à relação entre uma pessoa e o seu animal de estimação; aliás, o comportamento exibido pela coluna assemelha-se, por exemplo, ao comportamento programado em inúmeros exemplos de animais de estimação virtuais, como o (em tempos) conhecido Tamagotchi (brinquedo disponibilizado pela Bandai desde 2006).

Moaning Columns of Longing é uma obra interativa e gera afeto nos seus utilizadores; está, no entanto, bastante longe de oferecer uma experiência cinematográfica (ou semelhante). Consideramos então que a hipótese de Veale se mantém válida, visto que, uma vez que Moaning Columns of Longing não é linear, muito embora continue a ser uma narrativa (alterbiography – Calleja 2011), falha neste critério e, por isso, não responde à procura de Veale de uma forma possível para o cinema interativo.

Today I Die, de Daniel Benmergui (2009), é um videojogo analisado por Veale e que este considera fazer parte da categoria de cinema interativo, ainda que imperfeitamente.

Neste, interagimos com a vivência de uma personagem. Podemos alterar o ambiente, mas não o desfecho, que poderá ser um de dois à escolha. Nas palavras de Veale:

The experience of Today I Die does not depend on ludic engagement or reflexes, but on exploration (…) and there is no direct threat or possibility of “losing”: the small area comprising the playable space provides players with a poem with places where words can be replaced, and any other objects on screen can bemoved with the mouse. Replacing words in the poem changes the environment. This is a disarmingly simple concept, and from a purely functional perspective Today I Die is a puzzle that requires a set series of “moves” before providing an ending with two options to it. The power comes from seeing the world and the poem change each other, and the affective epiphanies that happen when you discover a way of introducing a new word into the diegesis. It is the affective dimension which provides depth for the experience: the player is personally responsible for the changes to the world and the poem, and his/ her frustration, exploration and delighted discovery matches that of the character in the game.

(Veale 2012)

O facto de existirem pequenas variações na experiência conforme a utilização e o utilizador é considerado pelo autor, mas este considera que estas variações são suficientemente diminutas para poderem ser desconsideradas.

O que carateriza esta obra é a linearidade quase total, que permite o envolvimento emocional do utilizador/fruidor. Não é possível perder, embora existam ameaças que estimulam a interação. A interação – a tomada de decisões e a forma explícita e propositada como cada utilizador se situa dentro do universo diegético do jogo (cá está, novamente, o conceito de imersão simulada) – é o que gera envolvimento afetivo entre o jogador e o jogo, esta identificação com a personagem central um dos elementos que partilha com o cinema (que não permite a outra forma de identificação que muitos videojogos permitem – a de estarmos no lugar da personagem principal).

Podemos assim observar que as três obras, de formas diversas, exploram vertentes diferentes do que é que significa ser interativo, gerar envolvimento emocional nos utilizadores, e oferecer uma narrativa como interpretação da experiência.

Conclusão

Concluímos que para responder à questão – o que é o cinema interativo? – precisamos de ponderar e incluir respostas tão díspares que os objetos resultantes deste processo podem não ser identificados como cinema interativo pelo público em geral, como, de facto, não o são – referimos obras cinematográficas, videojogos, instalações artísticas, e muitas outras existem, com caraterísticas específicas.

A abordagem de Kevin Veale parece-nos a mais interessante, uma vez que procura encontrar artefactos que possam ser considerados objetos de cinema interativo, evitando uma teorização mais vaga e abrangente e que inclua elementos não cinematográficos no processo de envolvimento dos utilizadores/espetadores/jogadores com a obra. Salvaguardamos que o processo é rico e pertinente apenas se considerarmos esta possibilidade no meio das muitas que existem.

Neste contexto, considerando as variáveis identificadas por Veale – afetividade, modos de envolvimento, linearidade – parece-nos possível considerar produções específicas como cinema interativo. Estas são relativamente lineares, mantendo o espaço para exploração de emoções mais dedicado do caminho conduzido, e interativas – gerando envolvimento através da ação e das decisões. Veale apoia-se no conceito de imersão situada de Taylor (2002) para especular que esta poderá ser a resposta para esta questão – como realizar objetos que são realmente híbridos das duas formas?

Em geral, no entanto, prevemos que a discussão em torno do cinema interativo tenda a tornar-se irrelevante à medida que estes artefactos e a forma como nos entretemos evoluem numa direção própria, ainda que profundamente devedora de todas estas explorações. Esperamos com trepidação conhecer estas novas obras ergódicas, dinâmicas, e imersivas, que nos contam histórias.

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Witkowsi, Wallace. 2021. “Videogames are a bigger industry than movies and North American sports combined, thanks to the pandemic”. Market Watch. Consultado em 2 abril 2021.

Outras obras referidas

Berlin: Die Sinfonie der Großstadt. 1927. Walter Ruttman.

Blair Witch Project. 1999. Daniel Myrick e Eduardo Sánchez.

Fugitive. 1996-1997. Simon Penny.

Liquid Time. 2000-2002. Camille Utterback.

Manual Input Sessions. 2004. Golan Levin e Zach Lieberman.

Moaning Columns of Longing. 2009. Adam Nash.

Napoléon. 1927. Abel Gance.

One, Another. 2009-2010. Adam Nash.

Trace Aureity. 2008. Adam Nash.

Today I Die. 2009. Daniel Benmergui.