Capítulo IV – Cinema – Tecnologia

Electronic montage: the non-formalistic video-cinema form of algorithm

Montagem eletrônica: a forma vídeo-cinema não-formalista de algoritmo

Fábio Jabur de Noronha

UNESPAR/PPGCINEAV, Brasil

Abstract

I wonder if the notion of algorithmic montage could organize a type of non-formalistic video cinema, with footage available, virtually, by the uninterrupted updating of video and audio files accessible on the Web. The coherence of these electronic montages, implemented by variants of instructions from current algorithms, due to their policies and ideologies, could rearrange the current logic of content affinities. The sharing platforms, for example, which already control an important part of the sum of these digital files in video and audio, could dramatically interfere in the form and duration of the narratives. Bringing, for the cadence of the videos assembled by the algorithmic arrangements, another audiovisual vocabulary - which, gradually, would adapt those who are in front of the screen into even more involuntary coupling categories and shielded by immersive narrative universes; interfering in the physical relationship we have with technical objects. In this scenario, I refer to Gilbert Simondon to point out the complexification of technologies, from the articulation of its internal parts, through the association with different technologies.

Keywords: Video; Cinema; Gilbert Simondon; Montage; Algorithm.

In: a fala do artista e a concretude dos processos

Barry Flanagan: “the size of the units was just enough to make the space between them as important as any of the objects” (Flanagan 1996, 657)

Mel Bochner: “had two sheets of paper on the wall which I was just looking at. Suddenly I saw the space between them. I saw that it was as much the subject as the paper. I measured that distance and drew it on the wall…” (Bochner 1996, 807)

Escrevo a partir das minhas pesquisas de mestrado e doutorado em poéticas visuais. Elas são voltadas ao vídeo e as redes telemáticas; foram desenvolvidas, em suas metodologias, a partir de processos artísticos e métodos vinculados às tradições da colagem e da montagem. Deste lugar particular, então, do relato em primeira pessoa, das pesquisas em poéticas visuais, encontro áreas de contato com certas teorias – como foi o caso do artigo publicado nos anais do Seminário Internacional AISOC XXXII e do Encontro Virtual da ABCiber, em 2020.1

É da articulação entre teoria e prática que a pesquisa em arte acontece, as duas dimensões coexistem necessariamente, talvez como práxis. Daí, este ensaio ser também parte do meu processo de produção no campo da arte. Ele dá continuidade a um percurso que vem do final dos anos de 1990, norteado pela livre distribuição de material visual e sonoro. A ideia de montagem eletrônica vem deste início. Período em que, no Brasil, o acesso à videoarte – hoje digitalizada e distribuída em plataformas de compartilhamento – era muito raro: não estava nas grandes salas de cinema ou nos canais de televisão abertos; as bienais e as grandes exposições cumpriam, parcialmente, um papel na divulgação da videoarte, com maior presença nas capitas e grandes cidades. Assim, fazer algo que pudesse ser chamado de videoarte tinha mais a ver com a recusa e/ou apropriação de algo conhecido, assistido no cinema e na televisão, do que com a produção de algo desconhecido, a videoarte.

Nas experiências iniciais com o vídeo, eu gravava e editava na própria câmera, a partir de um planejamento prévio, mas que não era rigorosamente seguido: as imagens eram justapostas e depois sobrepostas, preenchendo intervalos de tempo preestabelecidos por um cronograma de marcação arbitrário. Não importava se uma determinada sequência fosse interrompida abruptamente, no melhor momento, e, com isso, sua possível integridade formal narrativa perdida – aliás, fato constante devido às sobreposições programadas. A edição ocorria simultânea à gravação das imagens, com sequências que coincidiam com o tempo em que a câmera permanecia ligada; com cortes determinados pelo número de vezes que o botão de liga/desliga era apertado. Esta manipulação eventualmente deixava, de forma aleatória, vestígios gráficos gravados nas fitas magnéticas. Eu usava estas marcas do funcionamento (indesejado) da câmera para enfatizar a materialidade da imagem eletrônica sem profundidade de campo. Um tipo de edição muito diferente daquela feita, posteriormente, no computador; com assistência de outra pessoa, com programas específicos que possibilitaram outros tipos de cortes e sincronização entre áudio e vídeo. Em alguns casos, usava aquele footage previamente editado na câmera mesmo, com o auxílio do videocassete. Assim foram montados meus primeiros vídeos: por um lado, com a manipulação direta de um conjunto de aparelhos; e, por outro, com inclusão de um editor e de um outro espaço de experimentação, de caráter colaborativo – mesmo que basicamente ele seguisse minhas instruções. Embora parte da edição desse material tenha sido feita no computador, as cópias dos vídeos foram distribuídas para reprodução em videocassete.

Em tal cenário, com computadores domésticos incapazes de processar a quantidade de informação exigida pelos programas de edição de vídeo – e com o custo da hora de edição profissional bastante elevado –, trazer a lógica da montagem cinematográfica para o vídeo não era, para mim, algo comum. A não ser pela apropriação de cenas de filmes gravadas diretamente do monitor da televisão – catódico, nesse caso –, enquanto a fita era reproduzida por um aparelho de videocassete. Essas sequências “pirateadas” são como presets que já vêm com alguns cortes de fábrica, feitos por diretores importantes. Daí, interessar-me pela coincidência temporal entre gravação e edição, eliminando parcialmente a ideia de que haveria um depois, uma pós-produção distante do evento da gravação. As imagens são matéria apropriada dos filmes, como objetos emoldurados. Também gravei muitas horas de sequências de jogos de artes marciais disputados em videogames.

A conversão do registro analógico para o digital é um bom exemplo de como objetos tecnologicamente concretizados – nesse caso, imagens em movimento geradas por câmeras de vídeo – podem ser adaptados aos novos padrões de transmissão e produção; sua própria forma concretizada – câmeras de vídeo que geram imagens em movimento – modifica-se e incorpora outras tecnologias, realizando diferentes objetos tecnológicos compostos. O cinema está dentro da minha caixa preta, do meu computador pessoal, torna-se manipulável depois de transformado em arranjo numérico. É um outro cinema possível.

A especificidade do vídeo

Logo, notaremos que a especificidade do vídeo está na sua condição de objeto tecnológico com grande capacidade de se combinar com outros objetos e campos de interesse, em diferentes contextos. Por exemplo, a experimentação de formas conceituais da arte interfere na constituição do vídeo com a edificação de um espaço crítico. A videoarte é ocupada pelo cinema e por grande parte dos meios de comunicação. Em seu estado atual, sendo um aparelho de computação entre outros, o vídeo tem suas funções hakeadas novamente: as lentes instaladas em praticamente todos os aparelhos de comunicação tratam do reconhecimento facial, da vigilância dos corpos; estão articuladas à localização geográfica dos aparelhos que as carregam. De fato, o vídeo também pode ser construído por aparelhos sem lente, modelados por programas. Os mesmos computadores que permitem a reprodução dos vídeos são usados para construí-los; fazem parte das redes de computadores, compartilham informações, capacidade de processamento, espaço de armazenamento, funcionam como mecanismos de busca, como controle remoto, como interface para jogos. Hoje, as ferramentas de busca dos sites de compartilhamento de arquivos digitais são como lentes ajustadas por palavras-chaves; são como procedimento de focagem, como extensão da câmera. Penso, então, que a especificidade do vídeo seja feita de agrupamentos de objetos tecnológicos, responsáveis pela sua gênese e por estes atuais (com as ferramentas de buscas). A obsolescência dos aparelhos não impede que uma tecnologia concretizada – a reprodução de imagens em movimento – seja constantemente atualizada. Quando nos referimos às tecnologias, não descartamos seus estados anteriores; pensamos na constituição de um espaço múltiplo de possibilidades. Não é que as últimas incorporam necessariamente as anteriores, mas também não as rejeitam. E o vídeo é parte dessa multiplicidade. A câmera é distinta do computador pela restrição de suas funções, por suas capacidades de mediação, e não pela sua lógica de funcionamento. Ela compartilha o lugar-comum dos aparelhos que computam.

O vídeo-cinema é um conjunto complexo de práticas e objetos articulados desde os contextos científicos da descoberta do elétron e da invenção do monitor catódico, ambos no final do século XIX (Falcner 1987, 241-276). É herdeiro das traquitanas dos primeiros cinemas e da reformatação destes como produto internacional. Sua extensão vai até este exato momento: compreende as primeiras transmissões televisuais e modifica-se com a invenção dos aparelhos de gravação. O vídeo-cinema comporta diferentes padrões de produção e distribuição; está em relações com outros meios, pela implantação e reformulação de especificações técnicas. Ele é fruto de lances políticos e corporativos, dos usos individuais, e, mais recentemente, não funcionaria sem a computação e as redes telemáticas; sem a implementação de protocolos que viabilizaram o compartilhamento de arquivos, acessíveis por ferramentas de busca com entradas de texto. A câmera é um aparelho com lentes que também enxergam arquivos digitais e capturam as localizações das imagens.

Existem diferentes níveis de acesso permitidos quando nos conectamos às redes de computadores, mas todos compartilham desta mesma condição: são físicos, dependem de que algo se mova em outro lugar qualquer, sempre. E isso vale para a Internet, quando na maioria das vezes não sei onde algo se move; ou para uma rede feita por dois computadores colocados lado a lado, em um mesmo ambiente. São processos “invisíveis” mas conhecidos, repetidos e ininterruptos, desencadeados quando acessamos um site, assistimos a um vídeo, lemos um e-mail. É mesmo irônico que o espaço supostamente privado que se destina aos nossos e-mails, protegido por senha de acesso, torne-se coletivo ao ser identificado como tal; e seja acionado por outros aparelhos programados: nossas mensagens e anexos, arquivados em outro país, podem ser lidos, literalmente, por programas. Porque o que se move, o Hardware das redes, contém essas informações. Elas estão no mundo nas coisas.

A produção em vídeo cresce com a pandemia, facilitada pelo compartilhamento orientado e massivo de conteúdos audiovisuais. Eles são gerados nos computadores de todos os tipos, em seus periféricos, e compartilhados nas redes sociais. Elas regulam nossos corpos, dão-lhes forma específica. Outrora eram as ferramentas que o faziam, modificando a musculatura de quem as usava. Por isso, uma ferramenta (ou um aparelho) tem (ou deveria ter) seu funcionamento baseado na intermediação entre o corpo humano e as coisas por elas afetadas. Uma ferramenta precisa ser indivisível e bem construída. Evidentemente, um mesmo tipo de ferramenta pode variar. Por exemplo, em diferentes culturas encontramos diferentes tipos de alicate. As diferenças são de caráter racional: se tivermos dois componentes, ferro e madeira, e se formos conscientes de qual é a função da ferramenta, alcançaremos uma relação não-falaciosa formada entre o corpo e o objeto sobre o qual este corpo age (Simondon, Moyne 2013a). A individuação do objeto técnico depende de alguém que faça aparecer, da sua intermediação, uma nova parte, como a solução para um problema. A roda, por exemplo, inicialmente era um bloco, um objeto técnico indivisível. Mas, com o tempo, passa a ser uma nova parte associada a uma série de outras partes que a transformam em algo complexo. Assim, passamos de um primeiro estágio de individuação, e de estabilidade da roda como objeto técnico, para outros estágios desse mesmo objeto, em seus diferentes contextos de atualização. (Simondon 2005, 86-99) A concretude conceitual imprime unidade e coerência nos objetos técnicos: um motor movido à gasolina é (foi) viável porque conhecemos uma forma de prevenir sua explosão; a lamparina sem o mecanismo de regulagem do nível de combustão seria autodestrutiva (Simondon, Moyne 2013a). Os algoritmos resolvem problemas, fazem surgir novas partes quando respondem a certos estímulos, dependendo de como são escritos e para quais fins serão utilizados, em tais aparelhos. E, na medida em que respondem, também escrevem sua própria atualização e modelam corpos, tais como as primeiras ferramentas.

Quem está nas redes de computadores pode viver em uma gigantesca comunidade biológica acrítica. As diferentes redes formam objetos técnicos complexos. Sua concretude tanto é maior quanto maior for o número aparelhos acoplados a ela, produzindo diariamente milhões de horas de material audiovisual, compartilhados como se existisse alguma urgência, algum interesse não particular. A contínua transmissão de conteúdos audiovisuais é encadeada por algoritmos, em um sequenciamento de informação tipificada e com sentidos narrativos.

Mas, como bem resume a famosa passagem de Nam June Paik: “Television has been attacking us all our lives, now we can attack it back” (Elwes 2005, 5). A videoarte, desde os seus primórdios, enfatiza esse desejo de incorporar, como uma espécie de revanche, os meios de produção exclusivos das grandes corporações. Nas décadas de 1960 e 1970, câmeras de vídeo já podiam ser compradas ou alugadas – mesmo que a preços bastante elevados para a maioria dos artistas – e, também, emprestadas da televisão pública para uso em projetos esporádicos voltados à experimentação do meio televisivo por parte dos artistas. Nos dois casos, o acesso ao hardware possibilitava-lhes usá-lo para subverter sua função inicialmente prevista como parte do conjunto de aparelhos das redes de televisão. Tal conjunção entre a esfera pública e a privada, com diferentes interesses políticos e de mercado, seja pela subvenção e estímulo por parte do governo ou pelo aumento da produção e consequente redução dos preços dos equipamentos por parte da iniciativa privada, viabilizaram um tipo de aproximação entre artistas e objetos tecnológicos que de outra forma seria improvável. Isto é: a aproximação de sistemas produtivos diferentes, não apenas em seus objetivos, mas, fundamentalmente, em sua escala econômica e interferência social. Os contextos iniciais da videoarte, com as peculiaridades dos diferentes territórios e classes sociais em que aconteceram, estendem algumas de suas formas ao tempo presente: now we can attack it back com um computador portátil.

O objeto técnico está cercado de um sentido poético, mas nunca ultrapassa o domínio do tangível, das coisas reais, do campo da utilização. Com a conceituação do objeto técnico, explica Simondon, adicionamos um novo nível de reflexão, próximo ao das áreas vizinhas da estética e até da moralidade, no qual a tecnologia deve ser apresentada como integrada à cultura (Simondon 2012, 247-275). Não se fala muito da expressão objeto técnico. Ela não existia. Objetos estéticos são mencionados, objetos sagrados também. Ao usar a expressão é possível pensar em uma simetria e chamar a atenção para este vácuo, para esta lacuna (Simondon 2012, 221-236). Seria imperativo, então, investigar sistematicamente o funcionamento dos aparelhos e fazer com que todas as suas partes sejam conhecidas, como coisa popular. Sem isso, uma crítica ao controle corporativo é impossível. As respostas dadas pelas ferramentas de busca na Internet são montagens de roteiros eletrônicos, diretamente responsáveis pela narrativa da televisão, do cinema, das redes sociais, disponíveis na internet do século XXI.

As lentes das ferramentas de busca

Como sabemos, ferramentas de busca são basicamente áreas de inputs para texto, áudio, imagem. Precisamos alimentá-las para obter, com maior ou menor precisão, uma espécie de índice que pode variar muito em quantidade; desde nenhuma resposta, nenhum output, até milhões de tópicos. Recentemente, refiz um teste seguindo as instruções acessíveis na página inicial do Google, elas servem para refinar as buscas. Assim como em 2012, digitei as palavras found footage no google.com e obtive este output: “About 420,000,000 results (0.80 seconds)” – no primeiro teste a resposta foi “About 8,010,000 results (0.22 seconds)”; com as mesmas palavras, agora entre aspas, um número consideravelmente menor de links foi gerado, “About 3.380,000 results (0.76 seconds)” – em 2012 foram “About 288,000 results (0.19 seconds)”; continuando, refinei um pouco mais minha pesquisa e digitei o seguinte: intitle:”found footage” filetype:pdf, e o que obtive foi “About 444 results (0.58 seconds)” e, aparentemente (não acessei os 444 resultados) todos os links especificados indicavam arquivos em formato .pdf – em 2012 foram “About 34 results (0.36 seconds)”. Os resultados foram ainda diferentes quando, no primeiro teste, especifiquei o endereço do Google.br: apenas um link na busca por arquivos com terminação .pdf. Portanto, a mediação do usuário pode afetar funcionamento deste objeto técnico automatizado: uma ferramenta de busca com regras. Existem margens de indeterminação quando utilizamos ferramentas desse tipo, mas se sabemos como fazer os inputs, as margens são menores. O alcance não é maior quando recebo milhões de resultados, “about 420,000,000 results” para verificar; estas virtualidades interessam mais aos aparelhos. É algo sublime: a automação que opera por mim, com meu input de texto, dentro do meu campo de ação, nunca estará acessível: “about 420,000,000 results”.

Ao se digitar uma palavra ou frase em uma caixa de texto, confessamos interesses muitas vezes nunca antes compartilhados. E estas confissões – nossas pesquisas – são arquivadas para montar redes de informações cruzadas. Em 2005, quando escrevia minha dissertação de mestrado, notei, a partir de uma breve análise do funcionamento do Gmail, no seu primeiro ano de existência, o que viria a se tornar o modelo de gestão das redes sócio-técnicas: monitoração e comercialização dos nossos corpos, desejos, intenções, segredos, medos. Em uma palavra: monetização. Na época, li o contrato que regulava os termos de uso do endereço de e-mail fornecido pelo Google. Já estava tudo lá, embora em outras palavras, constava nos termos de uso o seguinte: nós (os aparelhos ideológicos corporativos) lemos os seus e-mails e, sim, comercializamos a sua intimidade.

Parece-me razoável propor que identificar e estabelecer limites para essas ferramentas é uma forma de usar a automação de maneira inesperada, embora prevista, pois reverte o elogio ao infinito das redes: reduzo meu campo de ação e ajusto o foco da minha câmera, identificada e expandida até os limites destes inputs de texto; torno desinteressante o desmedido em um contexto social tecno-sublime (Dyson 1994, 10). Reduzir ou eliminar o trabalho manual repetitivo – nesse caso ótico e manual, tenho about 420,000,000 results para verificar – faz sentido quando a automação está disponível como uma opção. Porém, isto não é uma regra, não é melhor restringir uma busca através de parâmetros auxiliares, torná-la mais precisa para um determinado fim, se, por exemplo, meu interesse for usar os milhões de resultados oferecidos. É uma escolha – e este é o ponto: é uma escolha – definir o alcance da minha busca, seja pelo acréscimo de parâmetros auxiliares ou não.

A Internet está disponível no Brasil desde 1988, inicialmente para a comunidade acadêmica, mas somente nos anos 2000 é que se torna possível, com o aumento crescente na velocidade de transmissão de dados e a implementação de novos protocolos, pensar na interface da Web como uma via de distribuição para vídeos, através do compartilhamento de arquivos. Neste início, os arquivos de vídeo não podiam ser visualizados online: tinham de ser primeiramente copiados de um computador para outro.

Ver um vídeo a partir de qualquer computador pessoal, desde virtualmente qualquer posição geográfica, é uma experiência bastante nova, inexistente ou extraordinária em meados dos anos 1990. Época em que fitas magnéticas e discos eram “regularmente” engolidos por videocassetes e reprodutores de DVD; em que essas mídias eram objetos exclusivos com tiragens limitadas e exibições programadas. Ao mesmo tempo, a condição atual das redes transforma essa experiência em algo comum, como se tornou ligar um aparelho de televisão e selecionar um canal, sintonizar uma estação de rádio, telefonar: é normal movimentar meu mouse aqui e algo se mover a milhares de quilômetros de distância para reproduzir vídeo e áudio. Talvez isso seja normal porque o telefone funciona da mesma forma: enquanto mexo minha boca algo se move em outro lugar qualquer e reproduz os sons que emito.

Até meados da primeira década do século XXI a Internet não contava com uma estrutura para exibição de vídeos. De fato, ela passa a existir como uma experiência comum, a partir de um padrão de produção, distribuição e interação, com o site de compartilhamento YouTube. (Beranek 2000, 55-75) Além disso, grande parte da produção videográfica era feita em formato analógico, as fitas magnéticas gravadas precisavam ser capturadas e formatadas para que, depois, como arquivos de vídeo com codificação específica, pudessem ser copiados, decodificados e assistidos nos computadores. Embora esses processos de adequação tenham se tornado regularmente acessível entre os anos de 1990 e 2000, para que os vídeos pudessem ocupar as redes telemáticas, eles dependiam de inputs e outputs específicos compatíveis entre computador e câmera de vídeo, nem sempre presentes em qualquer computador doméstico. Neste momento de transição entre formatos, câmeras analógicas recém lançadas, já carregadas pela potência de distribuição da reprodutibilidade técnica, mesmo as feitas para uso amador, precisavam conectar-se a outros aparelhos para que seus outputs atingissem o novo nível de transmissão de informação das redes telemáticas. O conjunto formado por câmera, monitor de televisão e videocassete é reformulado como mecanismo de reprodução, armazenamento, exibição, distribuição; e, guardadas as proporções, os processos técnicos comuns às redes de televisão, desencadeados por aparelhos conectados a e dependentes de outros aparelhos, começam a ser reproduzidos “em casa”: o que a câmera registra pode ser transmitido numericamente codificado com um custo mínimo.

De qualquer forma, seja com a interface do videocassete ou da World Wide Web, a reprodução de material audiovisual encontra-se envolvida pela capacidade de distribuição de conteúdo formatado por diferentes tipos de aparelhos e propósitos. O lugar em que os arquivos de vídeo estão hospedados, por exemplo, informa suas filiações, com as consequentes implicações da escolha de um ou de outro lugar. Se a logomarca do Youtube aparecer, se a presença institucional de um museu for o vínculo, se eles forem distribuídos em sites de compartilhamento de arquivos, como, por exemplo, o The Pirate Bay.

Out: gestão dos espaços

A uniformização temática trazida como output das buscas feitas na plataforma de compartilhamento YouTube foi notável, no início do seu funcionamento. Atualmente não é mais assim, ela trata a articulação de conteúdos de maneira mais complexa, com associações comercialmente orientadas, aproximando temas e temporalidades aparentemente distintos. Para funcionar assim, o Youtube coleta muitas informações sobre os usuários que acessam seus canais, sejam eles inscritos ou não. Internamente, há uma espécie de gestão (ou digestão) de tudo o que “encosta” na plataforma: do tempo de permanência diante da tela, dos horários, das frequências, das palavras chaves. A lista de informações coletadas é imensa, com o objetivo de saber “quem vem lá”. Os aparelhos atuais devem ser visíveis e monitoráveis, de maneira geral, é como saem da fábrica; compulsoriamente fornecem suas identidades digitais – marca, modelo, ano de fabricação, etc. Quem os usa é submetido a este duplo crivo: as suas identidades e as identificações dos aparelhos são vinculadas e sincronizadas. Aparelhos informam outros aparelhos. Computadores de épocas distintas acessam as redes atuais, com configurações especificas. São desenhados para funcionar em rede, em micro e macro escalas; da reduzida rede doméstica aos bilhões de usuários conectados nas diversas redes sociais. Público e privado são confundidos deliberadamente para formar redes socio-psico-tecno-patas.

Os espaços de convívio dos corpos foram redimensionados pelas contingências das limitações tecnológicas e interativas dos aparelhos. Elas variam muito, ocorrem no tempo, dimensionam-se pela geografia, posição política, operam na estratificação das classes, hierarquização das raças, qualificação dos gêneros. Mesmo com a pandemia, que teria a força de requalificar uniformemente os espaços e os corpos, as tecnologias de comunicação e informática não cessam de lembrar das diferentes condições da mediação técnica. Com diferenças sociais enormes, por todos os cantos da terra, é de se esperar diferenças importantes na experiência de adaptação aos novos circuitos de afeto não presenciais. Em um país como o Brasil, com média diária de quatro mil óbitos, um ano depois do início da pandemia, o uso dos aparelhos cria um circuito de afetos diferente do que, por exemplo, em outros tantos países, já sem novos casos por meses. A pandemia acelerou a mediação de alguns aparelhos, com o acréscimo do número de horas de exposição à luz dos monitores; pela a uniformização da posição e interface de trabalho, normalmente no mesmo ambiente; pela a repetição dos movimentos decorrentes do uso de mouse e teclado. Um tipo de repetição operacional cansativa, que uniformiza os comportamentos de quem está a ela submetido. Assistir vídeos em canais de compartilhamento pode ser uma atividade imersiva e durar por horas, mesmo sem intervalo – muitas vezes o que está sendo reproduzido nem sequer é assistido: o vídeo é escutado, como um rádio de pilha. Porém, sem nostalgia, os vínculos obrigatórios com o contexto tecnológico corporativo são inevitáveis.

Já é de conhecimento comum, assunto da grande mídia, que empresas como Google, FaceBook, Microsoft, entre outras, comercializam compulsoriamente tudo o que está sob seus termos de uso. O estado vem sendo submetido às políticas de privacidade e aos termos de uso de tais empresas. Elas monitoram a vida e afetam, com a gestão corporativa, os termos das constituições dos países com liberdade de expressão garantida, como é o caso da brasileira. O ambiente corporativo oferecido é de controle de total, como um capitalismo de vigilância (Zuboff 2015, 75-89). Neste regime, toda a propriedade é compartilhada, vídeo, áudio, texto, imagem são transformados em objetos da mineração tecnológica que opera na identificação, extração, edição e comercialização de informações privadas, privilegiadas, íntimas, criativas. Tudo o que pode ser digitalizado. Portanto, o impacto dessas políticas corporativas ocorre em nível sistêmico e individual. O uso mais intenso destas tecnologias fez muitos de nós reconsiderar o que já estava disponível tecnologicamente, o mundo virtual, telas de diversos tipos, sensíveis ao toque ou não, câmeras, microfones, alto-falantes, teclados, entre outros equipamentos eletrônicos.

Muitos produtores de conteúdo audiovisual apareceram, transmitindo do seu próprio computador tudo o que quiser e for permitido pelas grandes corporações. Elas operam para a confusão e indistinção dos ambientes domésticos, de entretenimento, de trabalho. Com seus termos de uso e políticas de privacidade, regulam quais circuitos de afetos devem ser predominantes na mediação dos aparelhos, com implicações para as tantas configurações familiares.

A forma multifuncional destes aplicativos usados impõe modos de comportamento baseados nas redes sociais de tipo FaceBook. Todas as redes deste tipo, sejam de código aberto ou não, exigem uma certa rotina de interação dispersiva e fragmentada. Como é, atualmente, o cenário de uso comum dos aparelhos: ele é composto por várias câmeras e microfones transmitindo; auto-falantes e telas reproduzindo tais transmissões. Existem muitas combinações construídas nestas dinâmicas intercambiáveis de emissão e recepção (comutação). A interface se modifica se câmera está habilitada ou não, se meu microfone funciona de acordo, se a conexão é estável.

Esteja você onde estiver, ao apertar o botão play para reproduzir um vídeos, além das imagens em movimento na tela do seu computador, algo mais se moverá em outro lugar, na parte norte do globo: porque o arquivos estão no mundo real, gravados em algum hardware; podem ser acionados de forma remota, milhares de quilômetros de distância podem separar o que é visto na tela de um computador do disco rígido que o reproduz. Classificar, hierarquizar, controlar, são ações comuns aos processos de funcionamento das redes, regulam-nas técnica e politicamente; são formas de organização decisivas para a distribuição seja do que for numericamente construído com a mediação da computação, pelas diferentes maneiras com que software e hardware podem ser arranjados. A visão do computador é codificada, depende de grupos de protocolos que serão processados, como se fossem camadas de tarefas; um computador pode enxergar outro porque ambos ocupam uma posição, ainda que móvel, indicada por números.

Computadores e periféricos são preparados e automatizados na fábrica para terem essa presença rastreável. Para que alguém possa assistir a um vídeo, escutar o som que o acompanha e, caso lhe interesse e lhe seja permitido, copiá-lo para seu disco rígido, são os aparelhos quem deve enxergar primeiro. (Siegwart, Nourbaksh 2004, 89-180). Dentro dos limites de uma rede, sua localização, quando identificada por programas de gerenciamento, faz parte do desenho de um mapa: sei da sua existência, que você está aí agora, por onde você andou, da sua posição geográfica, posso ver os telhados de sua cidade, do seu bairro.

Notas finais

1 XXXII Seminario Internacional AISOC, mesa Cambios disruptivos en la comunicación y en la sociedade, via GoogleMeet.
Anais:
https://aisoc.info/publicaciones/ponencias-aisoc-barranquilla-2020/mesa-1-tecnologias-digitales-y-cambios-disruptivos/
Artigo:
https://drive.google.com/file/d/1cOyRR6LZ_8htior6SOEYa88RBSi3F0H4/view?usp=sharing

ABCiber Virtual 2020, GT A cibercultura e sua importância nas novas formas de comunicação humana em tempos de crise, via Zoom.
Anais:
http://abciber.org.br/simposios/index.php/virtualabciber/virtual2020/schedConf/presentations
Artigo:
http://abciber.org.br/simposios/index.php/virtualabciber/virtual2020/paper/view/956/514

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