Abstract
With the arrival of the streaming technology, one can notice a certain movement within the cinematographic industry putting a spotlight on the role of women both in the field of making cinema and being a character in it. Women, their stories, their role within society, and how problems affect them have become important subjects of contemporary cinema, which is more concerned with the reality of social changes and with the so-called female empowerment. In some of these new cinematographic productions, one can notice female characters portraited in multiple professions, such as psychology or psychiatry, as shown in “Gypsy”, “Wanderlust”, and “8 in Istanbul”, which reveal three different mental health professionals shedding a light on the intimate relationship between cinema and the human Psyche. This work’s goal is to analyze these characters through the lens of different theories of social psychology, especially their role in the society in which they are inserted.
Keywords: Women, psychology, cinema, Feminism.
Nesse artigo, partiremos de um passeio pelas representações da mulher no cinema, levando em conta algumas teorias, dentre elas a teoria feminista em suas fases, para analisar as três séries da Netflix (Gypsy, 8 em Istambul e Worderlust-navegar é preciso), cujas personagens femininas trazem uma nova representação, com as mulheres atuando de forma diferente do convencionado pelo grande cinema ao longo de sua história, propondo-se talvez uma mudança dessa representação. Por fim, analisaremos aspectos específicos das narrativas fílmicas escolhidas, no que toca às personagens femininas do enredo, mais especificamente, o papel de psiquiatra e psicóloga, que será examinado sob o prisma da psicologia social.
Na história do cinema falar de mulher sempre traz à tona uma série de questões. A primeira diz respeito ao próprio apagamento das mulheres dessa história, pois que se antes de 1929 éramos produtoras, roteiristas, montadoras, depois de 1929 com crack da bolsa, quando a empregabilidade na área cinematográfica foi descoberta, nossos postos em campos de decisão e criação de cinema passou a ser ocupado pelos homens e de uma forma geral, às mulheres ficou o papel de atriz, mesmo assim, sem que a figura de protagonista fosse dela. Isso porque nos filmes de todo século XX, quando surgem as lindas mulheres, as estrelas do cinema, elas não raro são personagens que apenas dividem seu protagonismo com algum homem. Passado o tempo, ainda no século XX, quase no final, no Cinema Moderno o não protagonismo das mulheres permanece. Excetuando o papel da diretora de Agnès Varda, em sua insistente forma de querer falar de si mesmo, como ela mesmo diz, poucos eram os filmes onde o protagonismo feminino aparecia, mesmo em um momento de luta feminista como a década de 60.
Com base nesse histórico de apagamento é que falamos de uma indústria historicamente machista na técnica, no que diz e na forma de representar a mulher, como bem afirmam algumas mulheres importantes dessa luta, dentre elas as três teóricas que citaremos a frente.
De antemão sabemos que toda teoria do cinema é primeiramente calcada no modelo americano do star system, que é como se convencionou chamar o cinemão que mostrava nas suas telas as grandes divas até a década de 50. Foi esse cinema que construiu todo o imaginário popular sobre as estrelas e também incutiu nos espectadores os modos de agir e pensar, ou seja, toda ideologia do século XX foi de certa forma disseminada pelo cinema. Por força também desse cinema, dessa forma de representação e como ela mostra as mulheres é que as primeiras teóricas se pautaram em suas análises.
Surgem então na década de 70, na segunda onda do feminismo, aquelas teorias que buscam principalmente, utilizando a psicanálise como método, observar como as mulheres eram expostas nas telas, o que representavam e como eram vistas pelos espectadores.
Laura Mulvey foi uma das pioneiras em mostrar “essa objetificação feminina, tanto para o espetáculo quanto para a estrutura narrativa de um filme, já que as mulheres são utilizadas para promover a contemplação erótica (por meio de planos estáticos, closes) e estão sempre numa posição passiva – “[...] parecem sempre estar à espera de serem ‘salvas [...]’” (Oliveira Filho, 2012, p. 41).(FERREIRA, 2018, p.3). Na verdade, chamava atenção, mais que tudo, o fato das mulheres nunca surgirem como protagonistas, nem tampouco sua subjetividade ser levada em consideração nos enredos apresentados para o grande público. Era como se na tela as mulheres fossem sempre coadjuvantes de um grande personagem masculino. Elas sempre estavam ali, de fato, pois os olhares eram conduzidos para elas, mas apenas como um objeto para ser olhado e desejado sem que interferissem na estrutura dramática.
Essa teoria de Mulvey repercutiu durante muito tempo mas foi pela própria autora reavaliada em seu modelo, considerado por ela limitante e com ênfase no olhar masculino. Na reavaliação Mulvey insere outras questões como as mulheres do público e o melodrama.
Quanto as mulheres do público outra teórica nos surge Mary Ann Doane, que em sua teoria, também baseada nas ideias de Freud, relaciona a mulher com o fetiche sobre a mercadoria, o que corrobora de certa forma na ideia de que também o cinema serviu para desenvolver o mercado de produtos. Edgard Morin já nos fala disso quando mostra as estrelas de cinema e o que girava em torno delas, todo artifício fílmico e técnico para torna-las deusas. Todavia o que nos chama atenção na teoria de Doane é que ela mostra a aproximação que se dá entre a mulher espectadora e a mercadoria, o que acontece através do olhar e da recepção. Para Gubernikoff(2009) ocorre uma empatia afetiva da mulher com a mercadoria que é ali exposta na tela e olhada pela mulher, Doane citada por Gubernikoff nos diz:
Em seu desejo de trazer as coisas da tela mais próximas, para se aproximar da imagem corporal da estrela, e para possuir o espaço no qual ela reside, a espectadora mulher experimenta a intensidade da imagem como brilho e exemplifica a percepção própria do consumidor. A imagem cinematográfica para a mulher é ambos, vitrine e espelho, uma simples maneira de acesso à outra. O espelho/vitrine, então, toma o aspecto de uma armadilha enquanto a sua subjetividade torna-se sinônimo de sua objetivação (DOANE, 1996, p. 131,).
Logo, percebemos que o sujeito mulher e sua subjetividade jamais estavam em foco, não eram elementos que se pudessem ver através da tela do cinema em suas narrativas. A mulher que se via era aquela construída por homens, ou aquela que eles desejavam ter, uma mulher idealizada, uma mulher que não existia na realidade, mas que sugeriam que poderia existir, já que os modelos cinematográficos eram copiados por todos.
Ainda nesse pequeno passeio, deixando muitas outras teorias de fora, temos a posição de Teresa de Lauretis para quem a mulher que aparecia na tela era uma mulher estereotipada pela sociedade patriarcal, o que também levou às próprias mulheres a acreditarem nas imagens que o cinema fazia delas. Tese que Capra reitera quando nos expõe que, “aceitar estereótipos patriarcais de si mesmas; a encarar-se – seu corpo, sua sexualidade, o intelecto, as emoções, a própria condição de mulher – com os olhos masculinos” (1988, s\p) era o que acontecia, sem que houvesse um questionamento por parte das mulheres. Por fim, Lauretis propõe e convida as feministas a pensarem então sobre as questões de enunciação e interpelação, nos diz Stam (2006, p.199), e estas passam pela questão: “Quem está fazendo filmes, para quem, quem está olhando e falando, como, onde e para quem,” O que já denota uma nova abordagem que leva em conta uma necessidade de desconstrução do olhar sobre a mulher, fosse nas representações ou nas leituras que dessas se faziam. Nesse aspecto, as teorias hoje, vão além de tudo que foi pensado e escrito em todo século XX, levantando as questões feministas que envolvem também gênero, raça, grupos marginalizados, dando pela primeira vez fala a esses grupos, desde o lugar de onde falam e para quem falam. Escritos que surgem tanto nos países do norte, quanto nos países do sul começam a sair de uma previsibilidade teórica a muito engessada, buscando então novas molduras, ou não molduras e outros lugares ou entre lugares de uma fala que somente agora começa a ser ouvida.
Nesse contexto, entendemos que o cinema foi usado como o veículo para impor à sociedade um olhar que era masculino, que endossava modelos masculinos pré-estabelecidos que oprimiam as mulheres. Em suma, era isso que acontecia e que hoje parece que vem mudando, pelo menos é o que percebemos timidamente nas três séries curtas da Netflix, que nos propomos a analisar. Temos no corpus uma produção turca, uma inglesa e uma americana. Não podemos nos furtar, no entanto, ao fato de termos universos espaciais e culturais que certamente fazem diferença na estruturação das personagens femininas.
Na série turca Bir Baṣkadir, Outra classe, com nome no Brasil de “8 em Istambul”, temos como foco personagens mulheres capitaneadas por Meryem (Öykü Karayel), uma faxineira, que é quem mais aparece na trama sendo seu fio condutor. Meryem está tendo desmaios e é aconselhada pelos médicos a procurar uma psicóloga Peri (Defne Kayalar). Essa seria a Story line da série que se dá em apenas uma temporada, todavia muito mais se esconde por trás das duas personagens mulheres que são protagonistas.
Cinematograficamente, antes de adentrarmos às questões que se colocam na relação entre personagens, observamos que a escolha estética é muito apurada o que se faz notar nas imagens tomadas em planos externos e internos, que dão conta de dois espaços que se contrapõem, assim como as classes sociais que ali aparecem. A mulher muçulmana pobre, assiste a TV e mora no subúrbio longe da metrópole onde trabalha e a mulher de classe média, que estudou e não tem religião mora num lugar central com toda infraestrutura. As duas mulheres vivem numa Turquia mesclada com todos os paradoxos possíveis presentes naquele país. A fotografia cuidadosa nos detalhes, faz sentido na construção do imaginário sobre aquele espaço, a sociedade e as coisas ali existentes. Em algumas cenas podemos dizer que existe uma influência fotográfica de Tarkovski, com quadros dizendo por si só, muito mais que mil palavras. Mas não só isso, a dramaturgia turca que é dada aos melodramas, na série, apesar de não fugir deles, tem um desenvolvimento dramático menor e concilia com um roteiro muito bem feito, que vai construindo cada nova ação com propósitos definidos. Além das duas personagens principais temos outras mulheres, como a atriz(Melissa), a cunhada de Meryem, a psicóloga da psicóloga e a irmã dela e a filha do Hodja, o conselheiro comunitário. A história acaba ligando cada uma dessas mulheres que questionam seus papeis dentro da sociedade, exceto Meryem, que mesmo sem estudo entende muito bem o que diz a psicóloga e usa de toda sua inteligência para escapar da profissional que a analisa. Essa por sua vez, se sente incomodada com a paciente que sendo completamente diversa dela, acaba sendo o alvo do seu preconceito.
Figura 1
Em termos de representação social, essas mulheres pela primeira vez se mostram, são mulheres que numa sociedade de maioria muçulmana fazem questão de colocar em foco sua subjetividade, desvendando para o público os dois lados da sociedade e como um lado interfere no outro. Também mostra o interesse em escapar do padrão onde os enredos e personagens são sempre masculinos, ou onde estes sempre decidem. Nessa série os homens são coadjuvantes descontruindo o modelo tradicional cinematográfico e social, tão questionado pelas teóricas. As mulheres finalmente aparecem em representações sem serem objetificadas ou como mercadoria. A dinâmica construída sobre o contraste da muçulmana e da ateia, num mesmo país, faz que o olhar se volte para as questões mais íntimas delas apesar das mesmas serem normatizadas pela sociedade local. Meryem é o exemplo mais visível disso, pois quando começa a ter noção de si mesma ela resmunga e contesta num murmúrio para dentro, diante das ordens do irmão, embora não as desobedeça. Talvez essas sejam as cenas de tomada de consciência da mulher, quando ela sabe que age para cumprir a norma social e religiosa. Também é por contraste que é usada a personagem filha do Hodja. Esta que habita os dois mundos e se permite sair dos dogmas, voltar, e por fim sair de vez, indo estudar em companhia de sua parceira. Ou seja, a série é corajosa, pois estamos falando de um contexto social que tem normas muito mais rígidas que nas outras séries analisadas.
As 9 mulheres representadas na série fazem então o papel de demonstrar a diversidade do ser mulher e como elas reagem em seus meios a uma imposição cultural e opressiva do mundo machista, o que ocorre de forma ainda mais opressiva no mundo árabe. Ali, a personagem que é identificada com a cultura muçulmana, em sua posição inferior socialmente e intelectualmente, provoca na sua psicóloga um desconforto, pois a questiona causando uma tensão em seus princípios a ponto dela pensar em deixar de atender a paciente. Aqui a figura psicanalítica é a transferência que talvez se dê ao reverso, aparecendo quando a psicóloga se auto sabota em sua maneira de ver as coisas mais claramente. Essa distorção é alimentada pelo autoengano das sombras das nossas carências que projetamos no outro. Podendo estar presente em muitos momentos da vida do indivíduo. Assim, a série explora muito bem esses elementos da psicanálise que podem ser vistos pelo público comum e mais especialmente pelo espectador iniciado nessa área.
O relacionamento, a interação pessoa com pessoa, que é o grande exercício da situação terapêutica, aqui pode ser observado também no espaços frequentados pelas personagens. No consultório, no bar, na família, em todos os lugares as personagens mulheres estão em tensão e promovendo algum tipo de reflexão sobre o mundo ou sobre si mesmo o que demonstra mais um fator de seu protagonismo.
A segunda série é inglesa, Wanderlust, na tradução, desejo de viajar, que no Brasil recebeu o subtítulo de “Navegar é preciso”, com todas as ambiguidades que isso propõe, no sentido da necessidade de se navegar, se lançar ou no sentido mesmo de precisão, o que jogaria com a tese de que o desejo de viajar é exato, perfeito, definido, quebrando com o que o filme mostra, justamente a imprecisão da viagem que será feita.
Aqui as mulheres também são maioria no núcleo central da trama. Toni Collette é a protagonista, uma psicóloga casada com um professor e que tem 3 filhos, duas meninas e um menino. Joy personagem de Collette sofre um acidente de bicicleta depois de ver a esposa de um paciente seu que se matou. A partir desse fato, já curada do atropelamento, a personagem, querendo retomar sua vida normal, inclusive as relações sexuais com seu marido, descobre que no casamento de muitos anos perdeu-se o tesão. Ela e o marido tentam, mas não conseguem se satisfazer e ela propõe que diversifiquem seus parceiros.
A série tem seis episódios e em cada um com conflitos diversos aparecem, tanto os da personagem principal, quanto de seus filhos, marido e pacientes. A julgar pelo protagonismo feminino em que estamos focando, temos ainda várias personagens: uma filha de Joy que sente atração por mulheres e começa a se relacionar com a vizinha mais velha que foi abandonada pelo marido, a outra filha que não mora com a família e que apresenta problemas com suas atitudes inseguras em busca de um namorado, a supervisora de Joy, que é uma mulher negra psicóloga (Sophie Okonedo) e ainda no mesmo núcleo a professora também negra vivida por Zawe Ashton. Percebemos assim que a narrativa contempla várias questões que num primeiro momento parecem ficar disfarçadas do público. No entanto, a forma como a montagem da série foi feita faz pensar que muito se verá no passo seguinte. Isso porque na montagem foi usada uma técnica que remete ao próprio pensamento humano, onde as imagens surgem de maneira aleatória, em qualquer momento na consciência do personagem. São espécies de flashes que se interpõem no meio da cena que está acontecendo, talvez fazendo com que o espectador desavisado se perca. O filme é linear, no entanto as lembranças da personagem principal extrapolam a linearidade.
Assim, desde as primeiras cenas temos presente e passado se misturando na narrativa para que desvendemos os mistérios da mente de Joy (Collette). Nada é dito, exceto no episódio 5, que por todo seu tempo (55 minutos) se passa num mesmo espaço o consultório da terapeuta supervisora de Joy. Ali a personagem principal faz toda a sua catarse, vivencia seus traumas e expõe finalmente para o espectador todo o porquê da história, e a partir desse momento parece que a trama tomará um novo rumo, a personagem toma consciência do que faz (como se a terapia tivesse dado certo) e se permite vivenciar a dor. É interessante perceber como cinematograficamente é feita essa passagem, pois que a própria personagem ao se descobrir com seus traumas muda o jeito de olhar suas atitudes, nesse ponto reparemos uma direção de ator muito boa e Collette representa muito bem.
Figura 2
Fica claro então que a direção cinematográfica, que contou com dois homens e uma mulher Lucy Tcherniak tem intenção de mudar o rumo da trama pois que nesse momento as questões da personagem ficam mais fortes que todo o resto. Aquilo que se sugeriu ser a motivação da história não faz mais sentido e o que se descortina é a psique da personagem principal, como ela trata seus pacientes e como a supervisão interfere nela e no seu trabalho. A terapia assim é uma experiência de vida onde comportamentos sociais e afetivos novos devem ser desenvolvidos no relacionamento entre duas ou mais pessoas envolvidas na terapia. E essa é uma relação íntima que significa que a auto revelação é validada por outra pessoa. Episódios de intimidade envolvem uma sensibilidade aos efeitos do comportamento do outro e proporcionam o contexto para empatia. O ambiente terapêutico, onde o terapeuta interage de maneira carinhosa, atenta, reforçadora, próxima à auto revelação do paciente, é um exemplo de relação íntima. Aqui a natureza dessa intimidade é plenamente desenvolvida no episódio 5, que poderia ser o grande ponto de virada da série para talvez criar com o espectador maior aproximação e maior revelação da protagonista que nesse momento faz seu mundo interior, até aqui escondido de si mesmo, vir à tona.
A terceira e última série chama-se Gypsy, é uma série norte-americana criada por Lisa Rubin em 2017, tem como atriz principal Naomi Watts, que interpreta Jean Holloway, uma psicóloga nada convencional, pois de modo secreto ela entra na vida pessoal de seus pacientes. Essa seria a sinopse da série, que por desagradar ao público parece ter sido cancelada.
O primeiro episódio começa com um nome interessante, “A toca do coelho”, já sugerindo algo escondido. Usando a voz em off da própria personagem surge um discurso que de certa forma visa justificar tudo que acontecerá. Seu conteúdo fala sobre a força poderosa que ultrapassa o livre arbítrio e que se chama o inconsciente, que possui desejos reprimidos que quando são soltos parecem que perdem o controle.
A partir daí o espectador que não é inocente, já cria uma expectativa do que virá, e vem, pois que a personagem parece ultrapassar todos os limites éticos da sua relação com seus pacientes dando vasão a seus sentimentos reprimidos.
No entanto, diferente das outras séries essa mostra bem o dia-a-dia de cada paciente, pois que a psicóloga, com seu alter ego, Diane, vai se envolver com essas vidas em tratamento e não com os pacientes propriamente ditos. Assim a construção das cenas em seus espaços são cuidadas para que a verossimilhança seja um pouco mais alta, embora ainda persistam momentos onde esse ponto carece de ser melhor apanhado, principalmente no espaço urbano.
Na estrutura chama atenção o uso das vozes em off por vários momentos e há uma utilização interessante dessa voz com a imagem. De fato, não há uma sincronia entre a voz e a imagem. A imagem narra e explica, é como uma voz interior, não justificada pela imagem usada quando ela aparece. O tempo da narrativa também é lento, com diálogos quase em tempo real, principalmente nas sessões de terapia, que abusam do uso de campo e contracampo na hora dos diálogos.
A princípio, a série teria tudo dentro do campo da normalidade para fisgar o público, mas não o faz, isso talvez porque falte a identificação. A personagem é perversa, ela pouco liga para seus pacientes, não tem amigos, é individualista, não parece ter compaixão e essas características causam no espectador um sensação de estranhamento, um desconforto, talvez por causa da profissão da personagem. Ela não é uma psicopata aos olhos do público, mas incomodam seus atos para com os que sofrem de alguma psicopatologia, no caso os pacientes dela, onde mesmo ela tentando ser bondosa resolvendo os problemas deles, ela não demonstra o afeto necessário exigido na profissão.
Ou seja, não ocorre o contrato necessário entre espectador e filme. Exceto pelas partes mais picantes da narrativa onde há um jogo de sedução e manipulação de sentimentos. Nessas cenas, por ser produção americana, o sexo não aparece, no máximo um abraço mais forte e beijo, tudo fica a cargo da insinuação.
Figura 3
A representação da mulher nessa série, atende assim ao tal novo protagonismo de que falamos. Ela não é coadjuvante de nenhum homem, é a personagem principal com toda a sua subjetividade sendo colocada a prova. Se mostrando de fato, havendo ou não identificação com o público, ela ali tem uma função, quiçá essa de deixar uma dúvida quanto ao comportamento desses profissionais que também são humanos e tem suas questões.
Aqui então se tenciona a generalização deste relacionamento(paciente/psicólogo). O terapeuta deveria se comportar mais como uma pessoa do que como um mágico? Um todo-poderoso... É preciso estudar os tipos e as características de relacionamento entre adulto-adulto, adolescente-adulto, criança-adulto. Daí a versatilidade da terapia comportamental que faz uso de co-terapeutas e patrocina a colaboração de outras pessoas na vida do cliente, que possam ter qualidades terapêuticas no seu relacionamento.
Assim, os comportamentos íntimos onde se encaixam paciente/psicólogo envolvem vulnerabilidade interpessoal, isto é, estar aberto à crítica ou à punição. Tornar-se vulnerável no contexto interpessoal significa emitir determinados comportamentos, correndo o risco de sofrer punição por uma outra pessoa. O nível de vulnerabilidade interpessoal é diretamente proporcional à probabilidade e à intensidade da punição associada.
Pode-se perceber a dificuldade da terapeuta lidar com suas próprias questões e como ela busca uma resolução dos conflitos de suas clientes através de uma intervenção “no real”, não no simbólico que seria o trabalho básico dos terapeutas. Ela vai além de uma contra -transferência, que, segundo Freud (1910/2006b, p. 150) surge como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá a contratransferência, em si mesmo, e a sobrepujará (Freud, A contratransferência é definida como um fenômeno relacional da clínica analítica, pois surge “como resultado da influência do paciente” e, portanto, está intimamente vinculada à transferência, aspecto central do método analítico, nesse momento inicial, engloba as reações emocionais inconscientes do analista frente às investidas afetivas do paciente. Entretanto, tais reações emocionais são consideradas por Freud (1910/2006b) como obstáculos ao tratamento analítico e como tal devem ser reconhecidas, diferenciadas das emoções do paciente e por fim dominadas. A personagem sai da posição de analista quando não consegue distinguir o papel de analista se confundindo com uma representação de “justiceira”, ou seja, aquela que fará justiça segundo seus padrões.
Todas essas reflexões se encaixam nas 3 séries que vão de forma e em contextos distintos, atentar para os tipos de relações que as pessoas, especialmente as mulheres, que são as protagonistas, podem ter e o que a partir dessas relações demonstradas, em um canal de filme por aluguel, pode ser aproveitado pela sociedade, não apenas como entretenimento, mas como um olhar sobre uma personagem que por muito tempo ficou à margem da história, embora fosse parte essencial da sociedade.
Considerações finais:
Por fim, é importante dizer que as representações sociais, segundo definição clássica apresentada por Jodelet (1985), são modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e ideativo em que vivemos. São, consequentemente, formas de conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos — imagens, conceitos, categorias, teorias—, mas que não se reduzem jamais aos componentes cognitivos. Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem para a construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a partir do seu contexto de produção. Ou seja, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas de comunicação onde circulam.
Nesses casos analisados, essas representações entram em jogo, hora conduzindo a trama hora sendo fabricada pelos próprios participantes da história. Essas terapeutas fogem da representação social que temos de “terapeutas”. A primeira representação que nos vêm acerca das terapeutas é de cuidadoras o que é reforçado pela representação social do gênero feminino. E fica claro que tomar consciência de qual representação social estamos submetidos não é o suficiente para nos libertamos dessa condição, nos levando inconscientemente a realizar este papel esperado pelo social.
Assim, trabalhar com três séries curtas (que terão ou não prosseguimento) cujos propósitos são diversos e que se tocam pelas profissões das mulheres protagonistas, nos remete às muitas possibilidades que podem ser pelo cinema exploradas. Não cremos que cada uma das três séries se desdobrariam mais que isso, na verdade poderiam parar ali, pois deixaram o suficiente para passar da proposta de apenas entretenimento. Mais episódios em todas talvez estragasse o que de certa forma foi deixado para o espectador pensar.
Outras aventuras de Joy dentro do seu casamento, ou o casamento de Meryem, ou as descobertas das ações de Jean e seu alter ego Diane, não acrescentariam muito para uma segunda temporada a não ser que muito se modifique em todas.
Porém vale dizer, que de fato, o protagonismo feminino com sua voz aparece em todas as três séries e com foco nelas e sua subjetividade os homens parecem fracos, não chegando a interferir na trama de nenhuma das personagens, quebrando então com o paradigma e deixando as mulheres falarem e fazer o público pensar.
Bibliografia
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FREUD, S. (2006b). As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. Obras completas, ESB, v. XI. Imago: Rio de Janeiro. (Trabalho original publicado em 1910)
GUBERNIKOFF.Giselle. A imagem: representação da mulher no cinema in: Conexão - Comunicação e Cultura, V.8,N.15, 2009. Link: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/113
JODELET, D., 1985. La representación social: Fenómenos, concepto y teoría. In: Psicologia Social (S. Moscovici, org.), pp. 469-494, Barcelona: Paídos.
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