Capítulo III – Cinema – Comunicação

Tragic Story with Happy Ending: Creating a Feminist Experience in Animation

História Trágica com Final Feliz: Criação de uma Experiência Feminista na Animação

Catarina Calvinho Gil

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, Portugal

Abstract

Animation is a space of wonder and magic, but it can also be a place of political resistance and social awareness. Animation can be all these places simultaneously and by doing so it opens doors to different understandings of reality and an alternative consciousness of the world. This paper aims to analyze the animated short film Tragic Story with Happy Ending (2007), directed by Regina Pessoa, as a figurative path to reflect about the intersection between Animation and Feminism. The construction of a feminist experience in contemporary Animation, specifically in Portuguese Animation, is analyzed while considering a compendium of essays on women animators edited by Jane Pilling, Women & Animation (1992), and Chimamanda Ngozi Adichie’s thoughts on Feminism. The animated space in which the woman’s voice is acknowledged is also reflected upon based on the concept of “Speaking Nearby” by Trinh T. Minh-ha (1992). Tragic Story with Happy Ending does not have an explicit approach to Feminism but by revealing a wide consciousness of human nature and subtly reflecting about what it means to be a woman, a socio-political dimension and feminist experience emerge from its core.

Keywords: Animation, Cinema, Feminism, Sociopolitical Acknowledgments.

Introdução

“É um coração de pássaro... Eu estou no corpo errado!... Daí o coração bater tão rápido...” dizia a menina cujo coração palpitante desafiava os preconceitos da sua comunidade. “Eu sou um pássaro...”, desabafava. As palavras da menina imaginada por Regina Pessoa no filme História Trágica com Final Feliz (2005) estabelecem um elo entre a matriz figurativa que caracteriza a Animação e as problemáticas reais por si convocadas. A realizadora desenha a sua visão do mundo através de um espaço animado simbólico onde o confronto com a diferença, na esfera pessoal e pública, assume o papel principal. Fá-lo, desde logo, através da história de uma menina cujo corpo não corresponde ao reconhecimento que tem de si própria. É um espírito de pássaro preso numa gaiola de carne humana. Vive à margem. É rejeitada pela sua comunidade por não se enquadrar nos moldes sociais pré-estabelecidos, tornando o processo de autoaceitação do seu corpo uma jornada dolorosa e confusa.

Este artigo analisa como o Cinema de Animação tem a capacidade de penetrar certas camadas da realidade que nem sempre a imagem real consegue alcançar. Por se ligar às artes plásticas, a linguagem gráfica do desenho animado permite aceder a lugares inalcançáveis pela via do real, sejam ramos de espargos que se transformam em diferentes coisas enquanto são sugados pela boca de uma mulher (Asparagus, 1979) ou uma menina com coração de pássaro que ganha asas e se junta às aves no céu (História Trágica com Final Feliz, 2007).

Existe na Animação um potencial quase inesgotável para a expressão artística. Ela pode tornar visíveis certos aspetos do mundo e da essência humana, como a relação entre a mulher e a sociedade e a relação entre a mulher e ela mesma, e pode fazê-lo de formas absolutamente surreais e fantásticas, como Asparagus (1979) de Suzan Pitt, Pas à deux (1988) de Monique Renault e Gerrit van Dijk ou História Trágica com Final Feliz (2007) de Regina Pessoa, e daí abrir espaço a que experiências feministas íntimas e partilhadas floresçam. Íntimas na medida em que a experiência de ver e sentir um filme será sempre uma viagem pessoal. Partilhada porque o Cinema é um olhar. Cada filme em que mergulhamos entrega-nos um olhar sobre o mundo que não é nosso, mas a que temos acesso por via do som e da imagem. Feministas porque nos devolve a consciência do que é e do que significa ser-se mulher.

O olhar da Animação permite ainda exprimir sentimentos dificilmente transponíveis para imagem real, porque estes operam numa dimensão quase fantástica, do domínio do inconsciente, desligados da racionalidade ou palpabilidade dos corpos. Nas palavras de Jayne Pilling:

A curta-metragem de animação providencia, quase literalmente, uma página em branco na qual se pode desenhar uma visão imaginada do mundo que pode comunicar, e pode fazê-lo sem palavras. Transcender as fronteiras da linguagem pode ainda dar voz àquilo que é difícil de articular, porque está tão ligado a sentimentos inconscientes como o são o desejo e a fantasia. (Pilling 1992: 6, tradução própria)

A curta-metragem em análise, História Trágica com Final Feliz, tem como ponto de partida emoções íntimas que se materializam num mundo imaginado. O filme desdobra-se nos vários estágios de existência de uma identidade rejeitada, de uma menina oprimida pela sua diferença. A diversidade torna-se visível e a diferença torna-se próxima. A dimensão sensorial do Cinema de Animação vem à superfície. Encontra-se o tempo humano para as coisas. Nesse instante, deixamos de ver bonecos e começamos a ver pessoas. É-nos oferecido um olhar sobre a complexidade humana. Ergue-se, assim, a problemática feminista sobre a qual se cimenta o presente artigo, descendente das reflexões propostas por Chimamanda Ngozie Adichie: “O problema do género é que define como devemos ser ao invés de reconhecer como somos. Imagine quão mais felizes seríamos, quão mais livres nos sentiríamos para sermos nós próprios se não tivéssemos o peso das expectativas de género” (Adichie 2014: 34, tradução própria).

A metodologia Speaking Nearby, “Falar Próximo De”, proposta por Trinh T. Minh-ha (1992) parece-me reveladora desta reflexão. A sua metodologia procura um modo de falar e olhar o mundo sem o objetificar ou reclamar como seu. Um espaço onde não existe uma verdade absoluta, mas antes um modo de olhar. Um espaço onde a palavra, a imagem e o som ganham uma vida em si mesmos e em nós. Como uma embarcação no mar, as velas definem a rota mas todo o oceano é caminho. A narrativa de um filme apresenta-nos essa rota, mas as múltiplas interpretações e sensações daí resultantes são infinitas. Existindo disponibilidade para navegar os vários cursos do oceano, a Animação poderá dar-nos acesso a uma experiência onde encontramos espaço para ouvir, falar, partilhar e amplificar vozes ainda abafadas pelos padrões sociais instaurados. Poderá nascer, assim, espaço para se cultivar e ver florescer uma Experiência Feminista no Cinema de Animação.

Coração de Pássaro
(sobre História Trágica com Final Feliz e Regina Pessoa)

Uma referência incontornável no Cinema de Animação em Portugal, Regina Pessoa foi reconhecida em 2021 pelo Animac - Festival Internacional de Cinema de Animação da Catalunha como a terceira melhor realizadora de curtas-metragens de Animação dos últimos 25 anos. Iniciou a sua jornada pelo Universo da Animação em 1992 como animadora nos filmes Os Salteadores (1993), Fado Lusitano (1995) e Clandestino (2000), realizados por Abi Feijó. Quatro anos depois estreava-se como realizadora. A Noite (1999), História Trágica com Final Feliz (2005), Kali, O Pequeno Vampiro (2021) compõem uma trilogia de ode à infância e Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias (2019) é sua mais recente curta-metragem, galardoada com o Prémio Especial do Júri e o Prémio para Melhor Música Original pelo Festival de Cinema de Animação de Annecy, entre outros.

Durante as duas décadas de trabalho enquanto realizadora, Regina tem realizado e animado filmes de uma imensa qualidade artística e com temas de enorme sensibilidade social e consciência sobre o que é ser-se humano.

As histórias que gosto contar são sempre simples, acerca de pessoas que conheci. Umas ainda vivem, outras já morreram. Tiveram vidas anónimas ou ignoradas, passaram despercebidas por este mundo e rapidamente foram esquecidas. Interessam-me os mistérios, os pequenos dramas e a poesia que se escondem nas suas vidas aparentemente banais. São elas os meus heróis e as minhas referências. As ideias deste filme [História Trágica com Final Feliz] surgiram num trabalho de gravura e serigrafia, enquanto estava a estudar nas Belas Artes, cada frase inspirava uma gravura e cada imagem sugeria uma nova frase e assim foram surgindo novos desafios técnicos e estéticos. Um longo processo de produção se seguiu. (Ciclope Filmes s/d)

História Trágica com Final Feliz (2007) recebeu mais de meia centena de distinções em festivais em todo o mundo, sendo o filme de animação Português mais premiado até à data. Entre as dezenas de prémios que recebeu, foi galardoado no CINANIMA (2005) com o Prémio para Melhor Filme Português, o Prémio António Gaio, o Prémio Alves Costa e o Especial do Júri; no Festival de Cinema de Animação de Annecy (2006) foi vencedor do Cristal D’Annecy. História Trágica com Final Feliz distingue-se não só pela sua riqueza visual e atmosfera imersiva, como pela narrativa simultaneamente simples e complexa que inunda o filme de emoção e revela uma atenta consciência do mundo.

Co-produzida por Portugal, França e Canadá, História Trágica com Final Feliz é, como o título indica, a história trágica de uma menina encarcerada num corpo que não sente como seu. Insegura, angustiada, alvo de discriminação pela sua comunidade, é no caminho em direção ao autoconhecimento que descobre a janela para a liberdade. O final feliz desabrocha na autoaceitação de uma identidade até então reprimida pelo preconceito social. Quando a presença da menina se esfuma e os batimentos cardíacos que ritmavam a vida das pessoas dão lugar ao silêncio, instala-se um vazio e uma estranheza na comunidade que sempre a rejeitou. Mas a menina voa livre, por fim, tal qual um pássaro fora da gaiola.

Figura 1 – “Regina Trágica com Olhar Feliz”. Fonte: ciclopefilmes.com, s/d.

Voo em V
(sobre a Animação e o Feminismo)

O compêndio Women & Animation: A Compendium (1992) de Jane Pylling talvez seja uma das mais completas obras literárias sobre as mulheres que participaram na edificação do legado internacional do Cinema de Animação, desde os filmes que criaram às reflexões que eternizaram. A dimensão feminista que reconhecemos neste livro advém do espaço que se abriu para dar voz a mulheres envolvidas nos diferentes departamentos da “indústria da animação” (1992), seja como realizadoras, pintoras, intercaladoras ou dobradoras, e desse modo contribuir para a amplificação da memória colectiva do legado histórico do Cinema de Animação.

Por outro lado, embora não seja o foco do presente artigo, é importante compreender como o Feminismo enquanto movimento social e político foi essencial na criação de espaços de desenvolvimento artístico e profissional para mulheres na Animação. De acordo com Pilling (1992: 5), movimentos feministas emergentes dos anos 70 tiveram um impacto fortíssimo no progresso das mulheres na área da Animação através de políticas de financiamento em instituições de arte e televisão. É também isso que nos permite, hoje, pensar o Cinema Contemporâneo de forma ampla, diversificada, através do cruzamento de diferentes olhares.

Sobre a teorização das possíveis interrelações entre Cinema e Feminismo, uma das obras mais aclamadas é Women’s Pictures: Feminism and Cinema (1982), escrita por Annette Kuhn. A autora entende que a construção e organização de uma qualquer teoria ou reflexão sobre o Feminismo admite diferentes abordagens. Por não ser um monólito mas, pelo contrário, constituído por elementos variados, existem múltiplas possibilidades de análise e reflexão do Feminismo (1982: 3).

Guiar-me-á neste artigo o denominador comum que une todas as lutas feministas: a nossa Humanidade. É sobre ela que tudo se cimenta. É também sobre ela que Regina Pessoa constrói a história de uma menina diferente das outras pessoas, uma menina com coração de pássaro. O Feminismo que procuramos abordar dentro da Animação tem como pilar estruturante as reflexões da escritora e ativista feminista nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie, partilhadas nos seus livros Todos Devemos Ser Feministas (2014) e Querida Ijeawele – Como Educar para o Feminismo (2017). Um Feminismo que sonha e educa para um mundo diferente, melhor, mais livre. Di-lo Chimamanda:

Um mundo mais justo. Um mundo de homens e mulheres mais felizes e fiéis a si mesmos. E é assim que se começa: devemos criar as nossas filhas de maneira diferente. Devemos criar os nossos filhos de modo diferente também
(Adichie 2014: 25, tradução própria).

O Cinema insere-se num contexto social, político e cultural específico. Os filmes reflectem, de uma forma ou de outra, esse contexto. Imprimir num filme um modo de olhar o mundo consciente e crítico é, desde logo, um olhar social e político. Como refere Minh-ha (1992), o processo de escrita e realização de um filme espelha o modo como nos posicionamos social e politicamente no mundo. “Forma e conteúdo não podem ser separados” (Chen, 1992: 90, tradução própria). Isto não significa, porém, que para encerrarem em si uma qualquer dimensão feminista, e consequentemente sociopolítica, os filmes precisem de o reivindicar. Se recuarmos aos primórdios da animação em Portugal encontramos uma narrativa política bem marcada, desde logo em O Pesadelo de António Maria (1923), mas esta dimensão narrativa panfletária foi-se transfigurando ao longo dos tempos e adquirindo novas formas de se apresentar. Atualmente, o Cinema de Animação em Portugal é povoado por filmes onde o posicionamento não é explicitamente feminista ou político, mas onde vem impressa uma atenta consciência do mundo, nomeadamente o reconhecimento da pressão social influenciada pelos estereótipos de género e a importância da empatia.

A Sonolenta (2017) de Marta Monteiro é baseado no conto homónimo de Anton Tchékhov sobre uma jovem menina responsável por tomar conta de um bebé e de todas as tarefas domésticas da casa onde trabalha, despertando a reflexão sobre a pressão social de género; Purpleboy (2019) de Alexandre Siqueira é a história de uma criança que se identifica com o género masculino mas a opressão e autoritarismo do contexto onde nasceu dificulta-lhe a expressão dessa identidade; Elo (2020) de Alexandra Ramires constrói uma relação de cooperação e harmonia entre duas personagens, homem e mulher, que não se enquadram nos padrões sociais e culturais de “normalidade”; Nayola de José Miguel Ribeiro, ainda em produção, navega pelo trauma de três gerações de mulheres angolanas cujas vidas lhes foram roubadas pela erupção da guerra civil. Estes exemplos são, acima de tudo, filmes de animação que interpretam e exploram a condição humana, dentro da qual se incluem as reflexões sobre o género. As palavras da cineasta Sharon Couzin serão aqui absolutamente reveladoras:

A arte feminista é a arte que reconhece a diferença de ser mulher – ou seja, o que é ser mulher – e integra essa consciência na arte. Pode envolver um conjunto de imagens ou pode funcionar metaforicamente ou poeticamente. (…) como movimento, a arte feminista tende a ser mais humanista do que formal. Consciencializar as pessoas por meio da arte é um ato político, mesmo que a obra de arte em si não seja diretamente política
(Pilling 1992: 72, tradução própria).

História Trágica com Final Feliz proporciona este encontro entre a Arte da Animação e a sociedade, revelando que um filme não precisa de ser intencionalmente político para abrir espaço ao debate e à reflexão. Porque pensar sobre o mundo é, por si só, um ato político e, como afirmava António Gaio, “o Cinema é uma arma que denuncia e faz pensar” (2001: 87).

Coração Preso numa Gaiola
(sobre a Diversidade)

Numa carta pessoal mais tarde publicada em livro, Adichie (2017) escrevia que a única forma necessária de humildade é a compreensão da normalidade da diferença. Esta compreensão é por si apontada como um dos alicerces de uma educação feminista. Compreendemos que a perceção da diferença se manifesta de formas distintas de acordo com o contexto social, político, económico, cultural e ambiental em que nos inserimos. Não obstante, em linhas gerais poderá traduzir-se num ser e estar distante do status quo, numa posição divergente em relação às coisas experienciadas como comuns.

História Trágica com Final Feliz de Regina Pessoa, assim como os restantes filmes que compõem a sua trilogia à infância, nomeadamente A Noite (1999) e Kali, O Pequeno Vampiro (2012), são narrativas visuais extremamente íntimas que discursam sobre o medo e a diferença. Conceitos que, aliás, historicamente têm vindo a caminhar lado a lado com a esfera sociopolítica. Maya Angelou descrevia o preconceito como “um fardo que confunde o passado, ameaça o futuro e torna o presente inacessível” (1991: 155, tradução própria). A intemporalidade das suas palavras é ampliada pelos olhares rígidos que perseguem a menina imaginada por Regina, nos gestos ríspidos que tais olhares prolongam. “É tolinha… não deve durar muito…” diziam. E ela, “ela só queria desaparecer. Deixar-se levar pelo vento”.

Figura 2 – Fotograma do filme História Trágica com Final Feliz que ilustra o sofrimento da protagonista. Fonte: História Trágica com Final Feliz, 2005.

A fusão entre o medo e a diferença é justamente o preconceito. Quando a diferença é entendida como uma ameaça à estabilidade de uma sociedade e dos seus indivíduos, o medo surgir-nos-á como reação imediata a este abanar de padrões instaurados. Numa comunidade onde os corações não batem alto nem depressa, uma menina com tais características despertará um instinto de alerta. Numa comunidade alheia aos pássaros que cruzam os céus, uma menina com coração de pássaro poderá soar absurdo. No entanto, a diferença é intrínseca à realidade do mundo e sobreviver neste cosmos diversificado exige a presença dessa compreensão (Adichie 2017).

Seja por via da nossa biologia, das estruturas e organismos que nos povoam, seja pela pluralidade de universos que em nós habitam, por meio da memória, da imaginação e do contacto com o mundo, somos entidades plurais onde a diversidade governa. Em Feminist Theory: From Margin to Center (1984), Bell Hooks afirma que muitos e muitas de nós foram educadas para temer a diferença. Assim, é necessário lembrarmo-nos constantemente do quão importante é apreciá-la, mas também compreender que respeitar a diversidade não significa uniformidade ou semelhança. Em História Trágica com Final Feliz a edificação de um espaço onde a Experiência Feminista se amplia é inaugurado justamente da desconstrução da diferença e da consciência da sua normalidade.

(…) Seguimos uma menina e descobrimos que ela não é igual às outras pessoas, é “diferente”. O traço que a faz diferir não só incomoda a comunidade a que pertence, como se traduz por um profundo sofrimento individual. A comunidade e a menina reagem à diferença, a primeira manifestando a sua intolerância, a segunda isolando-se. Com o tempo, a comunidade acaba por habituar-se insensivelmente à presença da diferença, distanciando-a, mas ao mesmo tempo integrando-a na voragem do seu quotidiano. Porém as diferenças existem, persistem e são irredutíveis. Certas vezes possuem razão de ser e correspondem a estados temporários de trânsito para outros estados de existência, certas vezes são fatais... Seja como for, devem ser assumidas por quem as vive para a levarem a um melhor conhecimento de si própria e a uma mais intensa consciência do mundo. Um dia partirá e deixará a comunidade, que compreenderá, demasiado tarde, que o tal ser estranho que sempre mantivera à distância, tinha acabado por fazer misteriosamente parte da sua vida... (Pessoa s/d)

O caminho em direção ao autoconhecimento é um caminho pelo qual também a nossa vida é tantas vezes pautada, sendo-nos concedido o espaço e tempo para tal. A vida não nos abraça da mesma maneira. Tal como esta menina, nem todos os pássaros cantam fora de uma gaiola porque nem a todos é dada a oportunidade – e liberdade – para voar. A título de exemplo, considerando a relação entre o Feminismo e a liberdade, isto é, a libertação da mulher das tradicionais normas de género, o trabalho de Monique Renault, pioneira na abordagem feminista dentro do Cinema de Animação, é elucidativo. Os seus filmes são erigidos sob a forma de metáforas visuais que se coadunam com uma visão do mundo na qual a mulher se (re)descobre e emancipa (1992: 76-78). História Trágica com Final Feliz é, também ela, uma metáfora sobre a liberdade. Ao adquirir um melhor conhecimento de si própria e aceitar uma identidade até então aprisionada, a menina liberta-se, por fim. A nós, audiência, é-nos concedido o acesso a esta vida que por meio da Animação se transforma e se expande para fora de si mesma. Navegamos pelos terrenos espinhosos da realidade e neles encontramos ancorado um olhar sobre a diferença, a diversidade e a liberdade. Um olhar social e político do mundo. Um olhar feminista.

O Pássaro que Canta na Gaiola
(sobre a Inauguração de um Olhar Feminista)

A construção de uma Experiência Feminista na Animação Contemporânea, através da qual se reflete acerca do coletivo feminino em comunicação constante com o seu espaço individual, permite construir dinâmicas partilhadas nas quais a voz da mulher se emancipa. Regina Pessoa constrói este olhar, por um lado, pela história que convida a um despertar de consciência social; e, por outro, pela mise-en-scène, isto é, pelo posicionamento da “câmara” e personagens de modo a acentuar posições de poder ou intensificar determinadas sensações.

Acerca da primeira, a menina de História Trágica com Final Feliz torna presente o condicionamento de gerações que obrigou mulheres a desdobrarem-se em variadíssimas formas para corresponderem a uma qualquer satisfação alheia (Adichie 2017). A Experiência Feminista em História Trágica com Final Feliz é, no fundo, um tecido a partir do qual nos descobrimos enquanto Humanidade. É uma representação simbólica do mundo através do qual revisitamos as emoções que o povoam e que nos povoam. Dizia João Lopes em relação ao Cinema que “é sempre a nossa humanidade que o ecrã nos devolve” (2018: 10).

Sobre a segunda, compreendemos que o fardo carregado pela jovem menina não é evidenciado apenas pelas decisões respeitantes à narrativa, mas também pela perspicaz mise-en-scène. A escolha dos enquadramentos e a construção das imagens sustenta o olhar feminista que se estende pelo filme, aproximando-nos de um reflexo social mais autêntico. O recurso a visões subjetivas, por exemplo, privilegia o olhar da protagonista e oferece ao espectador a possibilidade de observar o mundo pelos seus olhos. O jogo entre planos picados e contra-picados, por sua vez, expõe a vulnerabilidade e insegurança da menina em contraste com a posição dominante assumida pela comunidade. O recurso à profundidade de campo serve, também ele, para acentuar posições de poder, rebaixando a menina perante o comportamento social preconceituoso que se perpetua.

Os enquadramentos, a música, a cor, a luz, os movimentos funcionam como amplificadores de um olhar. Como afirma Minh-ha, estes elementos “nunca são instrumentos convocados simplesmente para servir uma história ou uma mensagem.” Pelo contrário, “eles têm um conjunto de significados, uma função e um ritmo próprios dentro do mundo que cada filme constrói.” (1992: 86, tradução própria). A Animação tem uma vida que se estende para lá de si mesma, daquilo que nos é visível. Existe uma outra dimensão, metafórica e poética, acessível através da consciência que em nós se expande ao ver um filme.

Figura 3 – Fotogramas do filme História Trágica com Final Feliz exemplificativos do recurso a planos picados, contra-picados e profundidade de campo, respectivamente, para acentuar posições de poder. Fonte: História Trágica com Final Feliz, 2005.

Conclusão

Na busca pelo aprofundamento de uma reflexão sobre a convergência entre o Cinema de Animação e o Feminismo, esperamos contribuir para a abertura de diálogo sobre a Animação, nomeadamente a Animação Portuguesa, procurando incluí-la no pensamento filosófico e iniciar o processo de teorização e inclusão deste espaço de expressão artística e consciência humana nos estudos fílmicos. Para concluir, recordo a reflexão da professora Lauren Rabinovitz acerca da relação entre o Cinema de Animação e o Feminismo:

O que está aqui em jogo não é a descoberta de uma estética feminina ou feminista presente nos filmes de animação realizados por mulheres, mas as maneiras através das quais os animadores contemporâneos constroem coletivamente a experiência feminista. (Rabinovitz 1987: 79-80, tradução própria)

História Trágica com Final Feliz é um filme de animação realizado por uma mulher sobre uma menina que anseia misturar-se na multidão, na massa social que lhe exige o silenciamento. Quando aceita a sua diferença e assume a sua identidade, de sorriso rasgado nos lábios, corpo descoberto e olhos postos no céu, alcança por fim a liberdade. A plasticidade da Animação, liberta das correntes do formalismo e da representação concreta do real, permite uma maior liberdade e organicidade na exposição e representação deste universo íntimo de ideias, sentimentos, sonhos, desabafos, emoções e pensamentos. Justamente, mas não exclusivamente, por romper com os padrões convencionais do Cinema de Imagem Real, a Animação tem um potencial enormíssimo para abordar temáticas femininas (Pilling 1992: 5) e explorar terrenos feministas que nem sempre as palavras conseguem expressar. A curta-metragem de Regina Pessoa convida-nos assim a ingressar numa viagem de descoberta e de construção de novas consciências da realidade. Esse tecer de consciências simultaneamente individuais e coletivas parece-me ser, neste filme de animação, o pilar de criação de uma Experiência Feminista.

Escrevia a atriz e dramaturga Sara Barros Leitão (2020) que “o Feminismo é uma palavra linda, na qual cabem todos os sonhos do mundo”. O Cinema de Animação também é um espaço onde todos os sonhos do mundo se podem materializar. Que belo, enfim, quando a Animação mergulha no Feminismo e o Feminismo se deixa abraçar pela Animação.

Figura 4 – Fotograma do filme História Trágica com Final Feliz no momento de libertação e encontro com a sua verdadeira identidade. Fonte: História Trágica com Final Feliz, 2005.

Bibliografia

Adichie, Chimamanda Ngozie. 2014. We Should All Be Feminists, Londres: 4th Estate.

Adichie, Chimamanda Ngozie. 2017. Dear Ijeawele: A Feminist Manifesto in Fifteen Suggestions, Londres: 4th Estate.

Angelou, Maya. 1991. All God’s Children Need Traveling Shoes, Nova Iorque: Vintage Books Edition.

Chen, Nancy N. 1992. ”Speaking Nearby”: A Conversation with Trinh. T. Minh-ha” in Visual Anthropology Review nº 8 (1): 82-91.

Regina Pessoa. s/d. “História Trágica com Final Feliz: uma curta metragem de animação de Regina Pessoa” in Ciclope Filmes. http://www.ciclopefilmes.com/intro-ciclope-filmes.

Gaio, António. 2001. História do Cinema Português de Animação. Contributos. Porto: Porto 2001/Capital Europeia da Cultura.

Hooks, Bell. 1984. Feminist Theory: From Margin to Center, Boston: South End Press.

Leitão, Sara Barros. 2020. “Essa palavra que é linda” in Gerador. https://gerador.eu/manual-de-sobrevivencia-essa-palavra-que-e-linda/.

Lopes, João. 2018. Cinema e história: aventuras narrativas, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Pilling, Jayne. 1992. Women & Animation: A Compendium, Londres: British Film Institute.

Kuhn, Annette. 1982. Women’s Pictures: Feminism and Cinema, Londres: Verso, 1994.

Rabinovitz, Lauren. 1987. “Women Animators and Women’s Experiences” in Solomon, Charles, ed. The Art of the Animated Image: An Anthology, Los Angeles: The American Film Institute: 73-80.

Filmografia

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A Sonolenta. 2017. Marta Monteiro. Portugal: Animais Avpl.

Elo. 2020. Alexandra Ramires. Portugal, França: Bando à Parte, Providences Film.

História Trágica com Final Feliz. 2005. Regina Pessoa. Portugal, França, Canadá: Ciclope, Folimage, ONF, Arte France.

Kali, O Pequeno Vampiro. 2021. Regina Pessoa. Portugal/Canadá/França/Suíça: Ciclope, ONF, Folimage, Studio GDS.

Nayola (em produção). José Miguel Ribeiro. Portugal, França, Bélgica, Holanda: Praça Filmes, JPL Films, Illuster, S.O.I.L., Luna Blue Films.

O Pesadelo de António Maria. 1923. Portugal.

Pas à deux. 1988. Monique Renault & Gerrit van Dijk. Holanda: Dutch Film Fund.

Purpleboy. 2019. Alexandre Siqueira. Portugal, França, Bélgica: Bando à Parte, Rainbow Productions, Ambiances.