Abstract
This paper explores the modalities of book production based on patterns of intertextual circularity and media transfer from cinema, that is, films whose script is adapted and rewritten as a novel, undergoing a novelization process (even if the script that was adapted and turned into a novel-like readable book was itself already originally inspired in a book or text). The history of book publishing is plentiful in examples in which the text published in a book is inspired by a film script or in which a film was based on a previously published book. The textual migration thus uncovered also questions the very meaning of originality and authorship of a book, insofar as that book results from successive processes of media incarnation. Book publishers such as the Portuguese house Romano Torres, with activity between the end of the 19th century and the end of the 20th century, are the backdrop for the study and illustration of this ever changing process of textual and media mutation. This presentation seeks to demonstrate the existence of several books capable of raising questions about their status as an object, showing how the intervention in the text can be correlated with avatars that transform it as a product destined to be framed, thought and consumed in many ways, subjecting itself to a cycle of reconfiguration and appropriation.
Keywords: Book publishing and film, Intertextuality and media migration/cross media, Text circularity, Authorship, Portuguese publisher Romano Torres.
Edição para o grande consumo, circulação literária e migração mediática
São aqui exploradas algumas modalidades de produção de livros a partir de padrões de circularidade intertextual e de transferência mediática cuja base é o cinema, isto é, películas cujo guião é adaptado e reescrito como romance, sofrendo um processo de novelização (mesmo que o guião que serviu de base à adaptação e à reescrita se inspire ele próprio originalmente num livro ou num texto). A história da edição de livros é fértil em exemplos em que o texto editado em livro se inspira num guião de filme ou em que um filme se baseou num livro previamente publicado. A migração textual assim desocultada também interroga o próprio significado de originalidade e autoria de um livro, na medida em que esse livro resulte de sucessivos processos de encarnação mediática. Esta circunstância surge com particular acuidade na literatura de grande consumo, frequentemente apodada de literatura popular.
A fortuna mediática de um romance popular, para utilizar à expressão de Paul Bleton (2008), sobrevém como atributo essencial da sua matriz existencial. Ou seja, o facto de uma obra nascer e circular demonstrando uma capacidade camaleónica de se desdobrar em suportes diversos, atravessando fronteiras entre meios de comunicação como o livro, o periódico, o cinema, a rádio ou a televisão, conquistando novos públicos e oferecendo-se à leitura e à fruição de formas renovadas e diversas (Murray 2012), funciona como instrumento de confirmação do seu valor. É esta uma das lógicas constituintes que governa uma certa predisposição da narrativa popular à expansão ficcional cuja matriz atravessa géneros e estruturas mediáticas (Migozzi 2000).
Ao contrário de outro tipo de literatura, cujo desígnio é frequentemente a fixação da forma derradeira, da descoberta arqueológica do sentido último e genético que a autoria teria consumado como fulguração de génio, motivando debate hermenêutico em torno da intenção original do autor, a literatura produzida para um consumo de grande divulgação, centrada mais no público do que no escritor (não deixando, no entanto, de lhe consignar importância), teria a sua razão de ser na perenização das suas faculdades de entretenimento, potenciadas pela assunção de avatares multiplicados e exteriores à forma inicial.
Este modelo tende a procurar a plasticidade da obra, quer nas suas eventuais reescritas, como lugar de adaptações e versões mantendo o mesmo suporte (livro, por exemplo), quer nas suas reincarnações noutras plataformas mediáticas e comunicacionais, como o cinema, concretizando uma transferência mediática, isto é, uma passagem da peça de ficção de uma instância mediática a outra (Jenkins 2006). E é justamente nesta matriz adaptativa que assenta frequentemente a capacidade de sobrevivência de uma obra concebida seminalmente para o grande consumo ou apropriada pelas práticas de leitura como tal (Murray, 2007; 2012).
Subalternizados ou suprimidos no campo da legitimidade institucional e da construção de um cânone academizado e instaurador de uma hierarquia que os desqualifica, os produtos literários concebidos para uma circulação o mais massificada possível no mais curto lapso temporal possível encontram modo de perdurar na transferência do produto ficcional para outros veículos de comunicação, que constituem novas vias de permanência da obra, mesmo quando a alteração semiótica provoca modificações no conteúdo e morfologia narrativa, não raro significativas. Do folhetim ao fascículo, do fascículo ao livro, do livro à dramatização teatral, encenada em palco ou na rádio, e à produção televisiva ou cinematográfica, a obra de grande divulgação, pensada para um consumo alargado, mesmo se com compromisso da sua recepção crítica e até com risco de apagamento autoral, subsiste pela sua capacidade de migração.
Compreender a literatura produzida para o grande consumo é, assim, transpor as fronteiras normalmente desenhadas, libertando a literatura do formato textual assimilado ao livro como fim último do esforço editorial, como pináculo do trajecto de criação e circulação literárias. Analisar a ficção literária de grande circulação é, então, inserir nesse exercício o entendimento – e o reconhecimento – da coligação entre suportes mediante um vínculo forjado pela transferência entre meios que produz uma intertextualidade e uma interligação mediática capazes de se constituírem como fenómenos sócio-culturais estruturadores da modernidade. A transferência mediática entre livro e filme, entre edição e cinema, assumiu peculiar forma e relevo no seio destes processos de entrelaçamento.
Encarnação mediática e circularidade textual entre livro e filme na edição: os cine-romances da Romano Torres
A editora portuguesa Romano Torres, com actividade entre o final de 1800 e o final de 1900 (Medeiros 2018a; 2019), colheu nesta seara. O seu editor mais longevo, Carlos Bregante Torres, revelar-se-á um editor de livros particularmente atento ao crescimento do cinema enquanto objecto de práticas culturais de êxito crescente em Portugal. Atento à potencial equação entre a exibição de filmes no país e as práticas de leitura e compra de livros, o sucesso do cinema suscitou uma ocasião editorial de expansão que o editor procurou aproveitar. O surto do cinema como meio de entretenimento consumou-se em grande medida com base na transposição para a tela de histórias originalmente publicadas em livro, fomentando um mercado de direitos subsidiários que conheceu a sua expressão máxima na Hollywood dos estúdios clássicos.
Mas o desenvolvimento do cinema e a sua difusão cada vez maior geraram igualmente novas oportunidades editoriais para o mundo do livro, como a edição de obras sobre cinema, abrindo ainda novos caminhos para a publicidade de colecções com títulos vertidos para a tela. Um dos efeitos mais interessantes da emergência e penetração social do cinema no campo editorial foi, todavia, o de ter contribuído fortemente para a criação de um novo nicho para o mundo editorial: a adaptação de guiões de filmes para livro.
Em vários mercados do livro vão florescer as colecções dedicadas a este género, denominável de cine-romance, mimetismo traduzido do género que em França se cognominou ciné-roman. O género editorial do cine-romance fomentará, ao longo de toda a primeira metade do século XX uma plêiade de colecções específicas em vários mercados nacionais do livro (Mossière 1992; Garcin 2000; Faulkner 2008; Van Parys 2009; Baetens 2018; Guynes 2018). Em Portugal despontam nos anos 1930 algumas das primeiras tentativas editoriais (Medeiros 2018b, 464-465).
Carlos Bregante Torres não estaria distraído relativamente a esta tendência. Depois de um período de hesitação, só nos anos 1940 resolve ensaiar um género que para ele seria novo e que, em bom rigor, na década de 1930 ainda estaria longe de se afirmar na cena editorial portuguesa. Com efeito, é no decénio de 1940 que a Romano Torres passa a ser uma editora que também publica romances baseados em histórias filmadas, concretizando editorialmente um conjunto de processos de novelização de guiões de filmes projectados no cinema.
É verdade que esse momento não corresponde ainda ao das grandes salas inauguradas nos anos 1950, com mais de mil lugares, mas há muito que a projecção cinematográfica em Portugal já não se cinge às exibições artesanais de ocasião (Acciaiuoli 1982; Costa 1995; Baptista 2007; Ribeiro 2013). Com a multiplicação de salas permanentes, os salões especificamente criados para a exibição cinematográfica, o cinema como espectáculo público vai conhecer um processo de progressiva autonomização e legitimação cultural que irá suscitar as condições para um rápido incremento de mercado de consumo que será exponencial desde o final da década de 1910 e durante a seguinte, continuando depois a desenvolver-se e a diversificar-se (por exemplo, com o aparecimento dos cineclubes).
Logo em 1940 estreia em salas de Lisboa e do Porto uma película portuguesa intitulada Pão Nosso…, escrita e realizada por Armando de Miranda. Leão Penedo, escritor de timbre neo-realista que iniciou o seu percurso pelo cinema como autor ou colaborador na autoria de argumentos e também de obras adaptadas ao cinema, inaugura essa colaboração justamente com Pão Nosso…, articulando-se com Armando de Miranda na concepção conjunta do argumento. Antes da estreia, Armando de Miranda informa o editor Carlos Bregante Torres de que cedera os direitos da adaptação a romance do argumento do seu filme exclusivamente a Leão Penedo e a um outro escritor, Gentil Marques, que passam a ficar proprietários dos direitos de autor do romance que viesse a ser publicado.
Nessa altura Carlos Bregante Torres diligenciava no sentido de começar a publicar livros adaptados do cinema, tendo consultado previamente a empresa de distribuição cinematográfica Nacional Filmes relativamente à edição do argumento do filme Pão Nosso… Deste modo, a editora Romano Torres participa num pequeno movimento ocorrido na cena editorial portuguesa, com particular relevância nas décadas de 1940, 1950 e 1960, em torno da edição de cine-romances ou novelizações de argumentos e guiões de filmes, essencialmente estrangeiros.
Do lado dos estúdios, um dos mais destacados promotores em Portugal deste tipo de migração textual era a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), um dos potentados mundiais, com uma política de forte presença num número significativo de países, recorrendo a várias estratégias de disseminação dos seus filmes e desdobrando o aproveitamento da fileira através da edição de livros. Eram deste estúdio muitos dos argumentos de películas cinematográficas que foram adaptadas em várias colecções então editadas.
A editora Romano Torres já trabalhara com o gigante de Hollywood na novelização que dera origem ao livro A Última Aventura de Mata-Hari, episódio isolado acontecido em 1932, sem continuação. Mas é a partir desse ano de 1940, em que se estreou em sala Pão Nosso…, que é reatada na editora a adaptação a livro de guiões e argumentos, exclusivamente com base em material da MGM, com a excepção a pertencer precisamente ao livro que inaugura esta dinâmica: Pão Nosso…, de produção inteiramente nacional. Este período de adaptação e novelização de guiões de filmes será curto e aparentemente interrompido de forma abrupta pela editora, mas não deixa de ser intenso, provocando um aprofundamento da relação da Romano Torres com a dupla Leão Penedo e Gentil Marques, dois autores então desconhecidos.
Ainda em 1940 arranca o processo de aquisição dos direitos de adaptação de uma série de livros inspirada directamente numa série de filmes da MGM em redor dos episódios domésticos da família Hardy, com particular enfoque nas aventuras de Andy Hardy, o filho do austero juiz Hardy. Com génese na peça dramática Skidding, da escritora Aurania Rouverol, surgida em 1926 e com estreia em 1928, foram realizadas 16 longas-metragens e uma curta acerca da família Hardy, crescentemente centradas na personagem de Andy, 15 das quais entre 1937 e 1946.
Até chegar a romance editado em livro, a história galgou os limites de géneros e suportes variados, entrando em novos territórios de apresentação narrativa e conhecendo novas línguas. Tentava-se que o êxito dos filmes Hardy, bem explorado pelo seu estúdio de produção, fosse reproduzido em formato impresso, originando volumes que formaram a única colecção de novelizações de textos cinematográficos assumida como tal pela Romano Torres: a colecção Família Hardy.
Em Junho de 1940, no mesmo mês em que se fechou o negócio da aquisição dos direitos de edição de Pão Nosso…, a Romano Torres recebe uma carta da representação portuguesa da MGM, que informa a editora de que haviam sido concedidos a Leão Penedo e Gentil Marques os direitos exclusivos para Portugal de adaptação a romance dos filmes da série Família Hardy. Uma das condições para haver negócio é a de que seja inserida nos livros a publicar uma indicação explícita de que se tratam de romances baseados em filmes da MGM, estipulação que a editora cumpre estritamente, inscrevendo-a mesmo como factor de sedução dos potenciais compradores, não se coibindo de a publicitar.
Entre Setembro de 1940 e Março de 1941, a Romano Torres adquire os direitos de autor de quatro livros: Andy Hardy, Conquistador (baseado no filme Out West with the Hardys), O Novo Amor de Andy Hardy (baseado no filme Andy Hardy Gets Spring Fever), Andy Hardy, Detective (baseado no filme Judge Hardy and Son) e Prosápias de Andy Hardy (baseado no filme Andy Hardy Meets Debutante). Em 1941 estava, portanto, editado o grosso da colecção Família Hardy, com livros de capa ilustrada com fotografia, incluindo oito reproduções fotográficas dos filmes e reproduzindo assim a fórmula gráfica já utilizada em Pão Nosso…
A colecção é concebida para agradar a um espectro largo de leitores, sendo dada a conhecer em publicidade inserta nos livros da editora como uma nova “colecção de romances sentimentais, cheios de humorismo, que distraiem (sic) e alegram o espírito das senhoras, das raparigas, dos rapazes e até dos homens mais sizudos (sic)”. Depois do quarteto inicial de volumes, em 1945 a colecção vê-se acrescentada do seu quinto e derradeiro número, A Vida Privada de Andy Hardy, adaptação do filme Andy Hardy’s Double Life, igualmente a cargo de Gentil Marques e Leão Penedo.
Os títulos desta colecção correspondem a um ponto culminante de um percurso transfigurador do texto e das fórmulas e morfologias com que foi proposto ao(s) público(s): de peça dramática encenada em teatro a película posteriormente desdobrada em múltiplos filmes, metamorfoseados em livros impressos formando um agregado, passando simultaneamente por sucessivas reconfigurações linguísticas (da génese em inglês ao destino final em português) e autorais, desembocando no duo final, depois de múltiplas autorias (desde Rouveroul até às várias pessoas envolvidas na redacção dos guiões e argumentos cinematográficos). As várias transposições significaram, neste caso, novos avatares em género, suporte e número, já que o que começou como obra única acabou como obra desdobrada em várias unidades autónomas (livros). De certo modo, Leão Penedo e Gentil Marques produziram um livro original a partir de outros originais, mantendo grande parte da estrutura, personagens e conteúdo. Não o fizeram, mas poderiam ter mantido os títulos. E ainda assim, a obra seria outra. Ou, e fica a interrogação, seria a mesma, embora em versão adaptada? Pode falar-se concomitantemente em circulação e em circularidade textual, desenhando-se uma trajectória de mutação sucessiva que é, ao mesmo tempo, uma espécie de retorno sucessivo no interior do universo de uma mesma referência criativa.
Leão Penedo abandonará logo a seguir a dupla de autores-adaptadores no seu trabalho de colaboração com a Romano Torres. Gentil Marques, pelo contrário, intensificará a sua relação com a editora, afirmando-se como um dos seus maiores e mais pródigos colaboradores. O seu empenho na actividade da Romano Torres é tal que chama a esposa para a esfera desses colaboradores, passando esta, Maria Amália Marques, de nome literário Mariália, a participar em projectos gizados pela editora.
O primeiro projecto a cargo de Mariália é o da novelização em 1944 do argumento do filme A Família Miniver para um romance com o mesmo nome. O filme, no original, Ms. Miniver, basea-se num romance de Jan Struther com o mesmo título, por sua vez decorrente da compilação de um conjunto de colunas centradas numa personagem feminina, Ms. Miniver, que a autora redigira para a revista Punch. A proveniência da história para edição pela Romano Torres é a da sempre: os estúdios da MGM, através da sua representação portuguesa. O livro sai do prelo ainda em 1944. É igualmente desse ano, novamente pela pena novelizadora de Mariália, o livro Refugiados, numa adaptação romanceada doutro filme da MGM, Journey for Margaret, estreado em 1942.
Três meses antes de fechar o negócio relativo ao romance Refugiados, a editora Romano Torres formaliza o pagamento dos direitos de novelização do filme A Noiva Perdida, com reescrita a cargo de Pedro Santos. O nome original do filme é Random Harvest, o mesmo do livro em que se inspirou, escrito por James Hilton e publicado originalmente em 1941, um ano antes da estreia do filme homónimo. A edição deste livro enfrentará, no entanto, um condicionalismo específico: o texto de Pedro Santos seria publicado pelo Diário Popular em folhetins antes da publicação em livro. Efectivamente, A Noiva Perdida sai nas páginas do jornal entre Fevereiro e Abril de 1944. É exactamente o mesmo texto que a editora lançará como livro, vendo-se forçada a fazê-lo em fase posterior.
Na editora esta imposição é aceite com relutância. Durante a sua impressão como folhetim, em nenhuma página do Diário Popular se refere a existência de um livro a ser editado pela Romano Torres, efectuando-se uma clivagem óbvia entre o texto em parcelas no jornal e o texto agregado em livro. Para Carlos Bregante Torres terá sido um mau princípio, que não quis repetir. Não foi, decerto, diminuto o desconforto que terá sentido com o facto de editar um livro que é simultaneamente folhetim e que acaba de sair nas páginas de um jornal de grande circulação. Ter procedido à edição deste livro colidiu de frente com a sua política de não publicar romances que proviessem do suporte folhetim, que encarava como concorrencial aos volumes que entregava ao prelo, podendo comprometer os horizontes comerciais por ele definidos para esses volumes.
É possível que não tenha sido este episódio, por si só, a pôr em causa as edições de cine-romances na Romano Torres. O facto é que, a partir desse momento, o género não mais foi prosseguido pela editora, que acabou por não explorar o filão em tudo o que este pudesse oferecer, abdicando de formar uma unidade claramente reconhecível e como tal enunciada pela Romano Torres. Com efeito, excluindo o conjunto de títulos em torno de Andy Hardy, editorialmente cunhado como colecção Família Hardy, a verdade é que o agregado constituído em torno de adaptações a romance a partir de textos de cinema não chega sequer a formar uma colecção, nem como tal é apresentado pelo editor, apesar das semelhanças que os volumes possuem entre si: A Família Miniver, Refugiados e A Noiva Perdida são postos à venda ao público com capa reproduzida monocromaticamente a partir do respectivo filme novelizado e contendo seis fotografias da película, também reproduzidas em monocromia.
A inscrição da componente da fotografia como eixo gráfico de definição de um determinado tipo de edição não é um pormenor nem funciona estruturalmente como um adorno na concepção e composição do livro. A penetração da imagem no texto, sobretudo a fotográfica, é um atributo inquestionável da dimensão de transformação tecnológica inscrita nas consequências da revolução industrial na cultura literária e no livro, produzindo novos híbridos ou géneros narrativos compósitos e consolidando tendências já então presentes ou insinuando desenvolvimentos futuros de incorporação de elementos de hibridismo, transversalidade e complexidade na edição e na sua articulação com outros meios e suportes, sobretudo os ligados à cultura visual (Grivel 2000; Serra et al. 2020).
Por contrato, nenhum dos três títulos mencionados (A Família Miniver, Refugiados e A Noiva Perdida) contém mais de 7.500 palavras, o que não só os torna livros de leitura rápida e de poucas páginas, embaratecendo o preço, mas também garante aos estúdios cinematográficos que o pequeno romance resultante do labor do escritor que o noveliza não permite vastas liberdades criativas que se possam afastar grandemente do argumento do filme que o inspirou.
A Família Miniver e A Noiva Perdida representam, muito provavelmente e no quadro das edições da Romano Torres, os primeiros casos de uma circularidade perfeita, um verdadeiro par de livros categorizáveis como de torna-viagem, que migram mediaticamente e encarnam em morfologias diversas até regressarem ao suporte mediático inicial. Em ambos os casos, a editora não publica evidentemente o livro original, dando antes à estampa uma versão, ou seja, Carlos Bregante Torres edita romances inspirados em romances. Em A Noiva Perdida é inclusivamente indicado de forma expressa na página de rosto tratar-se de uma “[t]radução e adaptação do argumento do filme ‘RANDOM HARVEST’ da ‘Metro-Goldwyn-Mayer’ com Greer Garson e Ronald Colman, inspirado no romance de James Hilton” (Santos 1944, s.p.).
Nestes livros Mariália e Pedro Santos são, por isso, escritores intertextuais, isto é, autores de livros com a mesma história, conteúdo e título de filmes, remetendo de forma explícita esses livros para a fonte cinematográfica, ela própria o avatar de uma fonte antecedente: um livro com a mesma história e conteúdo e até com o mesmo título daquele que foi reescrito pelos novelizadores portugueses. Da revista se edifica o livro (no caso de A Família Miniver), que se reconstrói como filme, reerguendo-se depois como livro num plano de entrecruzamentos e regressos de adaptações e novelizações.
Breve comentário final
Esta realidade materializa a ideia de um novo circuito da obra (Olivero 1997), muito para além da eventual intenção dos seus agentes autorais originais, num ciclo de reciclagem textual e mediática que se prolonga em movimentos de avanço e retorno intertextual, inter-género, inter-suporte e até inter-linguístico. O volume editado pela Romano Torres não será obviamente o mesmo texto, nem sequer o mesmo livro; mas poderá considerar-se, sob um ponto de vista menos caucionado morfologicamente, a mesma obra? E, se assim fosse, poderia ela contemplar autoria diversa em instâncias diversas?
A transferência mediática não constitui, portanto, um processo linear, implicando somente uma migração para suportes sempre novos e diferentes dos anteriores. Ela é um instrumento ao dispor das lógicas de mediação cultural, achando-se dotada de forte capacidade de introduzir alterações e regressos nas obras, forjando não só novas formas de as apresentar e suscitar novas realidades de apropriação e fruição reconfiguradoras das hermenêuticas associadas ao texto transmutado, mas também de perturbar o que alguns poderiam perspectivar como um certo ameno e constante percurso da literatura, na qual a viagem intermediática insere instabilidade, multiplicação, impureza.
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