Abstract
The purpose of this paper is to discuss how the gentrification of queer concept moves from physical territoriality to digital territoriality and manifests itself epistemologically in this process. This study looks, in particular, the application of the concept gentrification of queer in online partner search mobile app, based on bibliographic research and film analysis. It takes as corpus and locus to analyze such concept an advertising film in video clip format for the communication of a mobile partner search application: Grindr. With theoretical-conceptual review of studies about the territory, media technologies, surveillance, control, sexuality and queer theory, presents a critical reflection on how the application intended for the exercise of sexuality operates a new management of the queer subject in contemporary mediatized daily life, as well as analyzes the categories and aesthetic complexities of this subject under the regime of gentrification of his territory and of himself.
Keywords: Gentrification of Queer, Advertising Video Clip, Grindr.
Introdução
O termo gentrificação surge em 1963, propagado pela socióloga britânica Ruth Glass ao evidenciar criticamente as alterações socioeconômicas e espaciais sofridas nos arredores de Londres (BIDOU-ZACHARIASEN, 2006). De acepção urbanística, este termo designava as migrações ocorridas do centro para a margem das cidades em função de pressões imobiliárias e econômicas. Logo, é um termo que designa territórios em movimento e transição; processos de reterritorialização (HAESBAERT, 2012).
No entanto, com a aparição do livro The Gentrification of the mind: Witness to a lost imagination, de Sarah Schulman1 (2012), o termo gentrificação sofre uma expansão semântica: aqui, não se trata apenas de um conceito que explica a requalificação urbana que foi implantada em diversos centros urbanos, deslocando os seus corpos e impondo agendas de reestruturação destes centros (BIDOU-ZACHARIASEN, 2006), mas do impacto que a gentrificação tem nas subjetividades destes corpos deslocados.
Especificamente neste livro, Sarah (2018) elabora um pensamento inédito: tomando como exemplo a cidade de Nova York, ela associa o processo de espraiamento da pandemia de HIV/AIDS2 com o processo de expansão da gentrificação. Tomando-os de modo não dissociados, a autora alega que os dispositivos de vigilância e controle (BRUNO, 2013; DELEUZE, 2017) que se instauram a partir desta pandemia no seio da comunidade queer3 são outras facetas dos dispositivos de vigilância e controle advindos da gentrificação.
Como consequência desta retroalimentação de dispositivos, a autora diz que um novo processo de gentrificação se instaura como metáfora do retorno do armário (SEDGWICK, 2007) e da onda conservadora dentro da própria comunidade queer, pois Nova York, até então conhecida por ser um território de lutas pelos direitos das minorias e de liberação dos códigos morais, começava a pressionar o sistema de saúde com mortes em massa advindas da AIDS, o pânico crescia, corpos cujas peles carregavam o sarcoma de Kaposi4 precisavam esconder suas marcas de infecção e o exercício da sexualidade tornou-se um perigo a retaliações.
O que a autora propõe é pensar como uma nova formulação da gentrificação vem à tona, uma gentrificação para além do espaço físico, uma incorporação do ideal de gentrificação dentro das mentalidades e subjetividades queer. Sarah alega que este novo modo de gentrificação e seus dispositivos agem em prol de uma negociação da visibilidade (MISKOLCI, 2015; 2017b), instaurando-se uma disputa de forças entre centro (visibilidade) e margem (invisibilidade), entre norma e dissidência, pois “a crise da AIDS tornou os homossexuais visíveis” (SCHULMAN, 2018, p. 104, tradução nossa), midiaticamente falando.
Portanto, Sarah (2018) discute que tal crise instaura um processo de gentrificação tácito e invisível porque subjetivo e midiático, que gera um diagrama de vigilância e controle (DELEUZE, 1988; 2017) sobre o queer, pelo retorno do conservadorismo, do armário, pela representação midiática da doença, e do queer e pela “panaceia da gentrificação: o marketing […], campanhas de cartazes lotando o metrô” (SCHULMAN, 2018, p. 45, tradução nossa). Enfim, uma série de recursos discursivos e midiáticos que vão empurrando os corpos queer na cidade rumo à (in)visibilidade.
Trouxemos o Grindr5, aplicativo móvel de encontros sexuais para sujeitos queer, como objeto que destrincha o nosso tema, por tratar de um aplicativo que atravessa tanto a intersecção das teorias da comunicação e das territorialidades quanto a encruzilhada das teorias queer com as de tecnopolítica, vigilância e controle. A partir disso, o conceito de gentrificação do queer se dá na confluência dos processos de territorialização (HAESBAERT, 2012; RAFFESTIN, 1993; SCHULMAN, 2018), tecnopolítica (BRUNO et al., 2018; BRUNO, 2010, 2013; DOMINGUES, 2016) e teoria queer (MISKOLCI, 2017a; PRECIADO, 2017, 2018). Uma vez presente na territorialidade digital do Grindr, a gentrificação do queer é então um diagrama de controle e vigilância (DELEUZE, 1988; 2017) e a publicidade de controle (DOMINGUES, 2016) é um dos seus dispositivos tecnopolíticos (BRUNO et al., 2018).
Gentrificação
A palavra “gentrificação” aparece no bojo do período da Guerra Fria para se evidenciar criticamente as alterações socioeconômicas e espaciais sofridas nos arredores de Londres (BIDOU-ZACHARIASEN, 2006). Grosso modo, a gentrificação significa requalificação urbana. Inventado pela socióloga Ruth Glass, a gentrificação, em seu princípio teórico, definia o “processo contraditório onde a busca de coabitações sociais e cosmopolitas alcançariam a exclusão e a homogeneização social” (LÉVY, 2016, p. 15, tradução nossa).
O que salta aos olhos, nesta passagem, é o caráter implícito de uma perspectiva socioeconômica, que revela as primeiras elaborações teóricas para este fenômeno chamado gentrificação, até então entendido como uma consequência ou produto do casamento entre as noções de cosmopolitismo e exclusão no seio de uma espacialidade. No entanto, a epistemologia da gentrificação corre o tempo e, aos poucos, vai ganhando um alargamento semântico-teórico, porque demonstra que “a gentrificação é menos linear e, sobretudo, mais diversificada que ela parece” (LÉVY, 2016, p. 15, tradução nossa).
Chabrol et al. (2016) chamam atenção para o fato de que a leitura contemporânea busca entender “de onde provém esta ‘diversidade’, de onde vêm as mudanças, as diferenças, os eventuais bloqueios e entraves, apresentar os elementos — forças, dinâmicas, dimensões, atores — que influenciam e, frequentemente, concorrem em perturbar a linearidade do processo” (CHABROl et al., 2016, p. 47, tradução nossa). Logo, vale-se perguntar: de que gentrificação falamos quando dizemos sobre territórios em transição?
A reboque desta abertura epistemológica, cada vez mais multifatorial, a noção de gentrificação, além de se pluralizar, vai sofrendo expansões semânticas. Um exemplo deste momento teórico é a expressão que coordena a escrita deste estudo: a gentrificação do queer, de Sarah Schulman (2018), uma noção gentrificadora que congrega em si a ideia de diagrama (DELEUZE, 1988) para representar a sua força de ação.
No livro Le gentrification des esprits, Sarah Schulman (2018), escritora e ativista lésbica, elabora um pensamento no qual a noção de gentrificação expande-se para além de sua conotação sociológica e físico-urbana e atinge patamares simbólico-culturais. Especificamente, a autora enxerga que a cultura queer sofreu baques dispersivos com a questão do HIV/AIDS enquanto tragédia coletiva, trazendo enormes implicações políticas, culturais, sociais e afetivas para tal cultura, tais como a gravitação do queer em torno dos conceitos de controle e vigilância e a atomização de suas representatividades.
Para elaborar o diagrama das forças de (in)visibilidade, a autora recorre aos movimentos efetuados pela gentrificação como explicação. Nesse sentido, Sarah afirma que a gentrificação dos espíritos é tanto um paradigma sobre a visibilidade quanto um diagrama que pressiona as diferenças do queer rumo à homogeneização (heteronormativa) e que estas, portanto, “adotam uma postura colonial” (SCHULMAN, 2018, p. 42, tradução nossa), fazendo com que o queer comece a agenciar os dispositivos de vigilância e controle e a flertar com o conservadorismo via retorno do armário.
A autora explana que o impacto da pandemia do HIV sobre os corpos e afetos dos sujeitos queer não aconteceu dissociado da reconfiguração do tecido urbano, o que acabou por providenciar uma cultura de esconderijo e vigilância. Este fenômeno permitiu a “desaparição” de um centro da cidade vivo e agitado pela cultura rebelde e queer, uma vez que deu lugar a uma homogeneização dos corpos, dos discursos, dos lazeres (sexuais e urbanísticos) e do recrudescimento de discursos conservadores dentro da e para a própria comunidade queer. Logo, a autora percebeu a cooptação da dinâmica da gentrificação pelo queer:
Ainda que a gentrificação no sentido literal seja importante em relação a minhas observações, havia também uma gentrificação espiritual que afetava as populações desprovidas de direitos, não representadas e privadas de poder ou de consciência em face da realidade de sua própria condição. Era uma gentrificação dos espíritos, uma substituição que alienava a população (SCHULMAN, 2018, p. 18, tradução nossa).
Assim, Schulman (2018) investiga que a gentrificação físico-urbana se aproveita da expansão viral do HIV para estabelecer um retorno do conservadorismo e da normatividade, efetuando um esvaziamento dos espaços públicos frequentados pelos queer, já que seus sujeitos ou tinham medo da exposição devido aos sinais dos primeiros sintomas de manifestação do HIV, ou morriam.
A Teoria Queer
Pensar o surgimento do queer, tanto política quanto teoricamente, empreende dois esforços de antemão: reconhecer onde este termo surge e quando vem à tona, impelindo-se a se pensar o seu contexto. Para Richard Miskolci (2017a), o termo queer “surgiu como um impulso crítico à ordem sexual contemporânea, possivelmente associado à contracultura e às demandas daqueles que, na década de 1960, eram chamados de novos movimentos sociais” (MISKOLCI, 2017a, p. 21).
No bojo desta afirmação, o autor avança para além da visão economicista que recaía sobre a ideia de movimentos sociais, até então ligada exclusivamente ao movimento operário e estritamente eurocêntrica, posto que ignorava os movimentos abolicionistas que se deram, por exemplo, no Brasil e nos Estados Unidos um século antes da vanguarda operária, bem como obliterava a primeira onda do movimento feminista — eis, portanto, o jogo semântico com o emprego do adjetivo “novos” em sua citação.
Miskolci elabora então os três preponderantes movimentos sociais que serviram de esteio ao aparecimento do queer: “o movimento pelos direitos civis da população negra do Sul dos Estados Unidos, o movimento feminista da chamada segunda onda e o então chamado movimento homossexual” (MISKOLCI, 2017a, p. 21). Logo, estas correntes político-sociais acabam esboçando, epistemologicamente, o espectro do que viria a ser a teoria queer, posto que reivindicavam — e reivindicam — as normatizações às quais estão subjugados seus sujeitos.
Nesse sentido, Miskolci sublinha que a teoria queer é uma derivação do empenho político-epistemológico feminista, embora sejam “os estudos queer que irão radicalizar os estudos feministas, em um debate interno ao campo, mas que o extrapola” (BENTO, 2017, p. 66). Assim, ambas epistemologias estão atreladas àquilo que se configurou chamar de estudos de gênero — matriz teórica que estuda os agentes e as contravenções que, variando no tempo e no espaço, compõe as noções e assimetrias de gênero e sexualidade. Para isso, o autor assevera:
Enquanto a maior parte dos estudos gays eram feitos por homens que não liam as feministas, a Teoria Queer é uma vertente do feminismo. Verdade seja dita, é uma vertente que vem questionar se o sujeito do feminismo é a mulher. Até hoje boa parte da produção feminista é feita com o pressuposto de que gênero é mulher. A Teoria Queer lida com o gênero como algo cultural […] No fundo, o gênero é relacionado a normas e convenções culturais que variam no tempo e de sociedade para sociedade (MISKOLCI, 2017a, p. 32).
Ao aventar esta explicação, Miskolci propõe, pedagogicamente, uma linha do tempo que destaca as obras contundentes para isso que chamamos de queer: as precursoras, com Le désir homosexuel, de Guy Hocquenghem (2000), e Pensando o sexo, de Gayle Rubin (1984); e as fundadoras, com Problemas de gênero - Feminismo e subversão da identidade, de Judith Butler (2003), One hundred years of homosexuality, de David M. Halperin (1990), Epistemologia do armário, de Eve Kosofsky Sedgwick (1990; 2007), e o artigo Queer theory: lesbian and gay sexualities, de Teresa de Lauretis, publicado no ano de 1991 pela revista differences, de onde se absorve o termo queer como categoria epistemológica organizadora destes vários estudos que vinham à tona questionando os modos de normatização do gênero (MISKOLCI, 2017a; 2017b).
Assim, tais obras compõem um panorama canônico de uma episteme que, segundo Miskolci, se cristaliza na segunda metade dos anos 1980 e ganha força na década de 90, demonstrando que, “com a disseminação do conceito de gênero e a incorporação das ideias de Foucault sobre uma analítica do poder, a nova política de gênero começa a modificar essa forma de conceber a luta política e a apontar como é a cultura e suas normas” (MISKOLCI, 2017a, p. 28).
Paralelamente ao firmamento da teoria aqui discutida, houve uma reorganização político-social evidenciada pelos movimentos sociais, como o ACT UP e Queer Nation6, que contestavam as convenções culturais advindas da crise pandêmica da AIDS, que se mostravam autoritárias, preconceituosas, conservadoras e vigilantes. Eis, então, a necessidade de se deslocar o debate biológico para o campo do biopolítico, o que permite auscultar a malha de dispositivos que ganha força a partir deste panorama nas subjetividades queer.
Vale lembrar que queer é um xingamento, é um palavrão, em inglês. Em português, dá a impressão de algo inteiramente respeitável, mas é importante compreender que realmente é um palavrão, um xingamento, uma injúria. A ideia por trás do Queer Nation era a de que parte da nação foi rejeitada, foi humilhada, considerada abjeta, motivo de desprezo e nojo, medo de contaminação. É assim que surge o queer, como reação a um novo momento biopolítico instaurado pela aids (MISKOLCI, 2017a, p. 24).
Nesse sentido, o casamento de dois elementos ora distintos — um aplicativo de geolocalização e um conceito que pensa abstratamente a gentrificação como diagrama — se dará por uma perspectiva tecnopolítica (BRUNO et al., 2018). Assim, entendendo que são as tecnopolíticas que atuam como dispositivo de colagem destes dois elementos e percebendo como conseguimos, aqui, produzir teórico-metodologicamente um arquivo tecnopolítico para se pensar tal dinâmica, poderemos refletir sobre como o fazer publicitário observa, controla, vigia e envolve seus usuários — e que já é produzida no território do Grindr.
Grindr: território para uma gentrificação do queer
Grindr, rede geossocial de encontros voltada a homossexuais e bissexuais do gênero masculino, surgiu no ano de 2009, criado pelo israelita Joel Simkhai, como modo de dinamizar a vida social gay através do uso de smartphones, se conectado à internet e sob o funcionamento do Sistema de Posicionamento Global (GPS), um acrônimo inglês para Global Positioning System; sistema de navegação via satélite que indica a posição geográfica de dispositivos tecnológicos. Para o criador desta rede social digital (SIMKHAI, 2014), os encontros do Grindr não são apenas voltados ao sexo fugaz, objetivo-fim com o qual se popularizou no mundo, mas tornaram-se um lugar central para se falar de cultura queer midiática na contemporaneidade7.
Quando se fala em cultura midiática, percebemos um desenho de transição e permeabilidade que se efetua na sociedade com e a partir das tecnologias midiáticas, das quais o Grindr não se encontra apartada. A todo instante, pensar a cultura midiática é refletir como os seus aparatos tecnológicos reformulam as compreensão e vivência do que temos por cultura e sociedade (HJARVARD, 2014). Logo, o tecido social e urbano vai se tornando móvel, reticular e em fluxos: uma conexão em rede em escala infinitesimal vai ligando os pontos e elementos que constituem uma sociedade; e com o exercício da sexualidade não seria diferente.
Ao observar a tela principal do aplicativo percebemos uma dinâmica de interação pontual: a ausência de rostos, cuja exibição se dá apenas em chat privado, o que aponta para um imperativo tecnológico de vigilância e controle (BRUNO, 2013), além da prevalência de discursos e descrições biográficas também calcadas no pressuposto vigilante, como exemplifica o perfil “Safadão”, cuja insígnia na foto diz: “O sigilo é a garantia do replay”.
Portanto, a partir do momento que a dinâmica do aplicativo — voltado para o espírito gregário da sexualidade — toma para si como pressuposto elementar o jogo de esconderijos, deslocando a todo momento as possibilidades de (in)visibilidades, adentramos ao processo que Sarah Schulman (2018) nomeou de gentrificação do queer, processo no qual territórios e subjetividades queer são logrados pelos conceitos de vigilância, controle, (in)visibilidade e afins semânticos. Por sua vez, o Grindr parece ser um terreno fértil para colocar em ação este conceito schulmaniano.
A gentrificação é um procedimento que mascara o aparelho de dominação aos dominadores […] Este fenômeno solapou a urbanidade e repolarizou as cidades como centros de controle em vez de instigadoras de mudanças positivas […] Expulsar os locatários de quatro apartamentos e substitui-los por um loft único é, a partir de agora, considerado como razoável, até desejável em vez de ser antissocial e cruel. Infinitas medidas repressivas que se opõem à busca de um ou vários parceiros sexuais ocasionais pelas ruas da cidade e ao sexo no espaço público atentam contra os cidadãos. A natureza descontraída da vida nos bairros torna-se ameaçante, é preciso reprimi-la e controlá-la (SCHULMAN, 2018, pp. 30-31, tradução nossa).
Ora, como compreender um processo de gentrificação que se aplica por sobre um grupo cujos atores já são histórica, social e culturalmente gentrificados? Para reforçar este deslocamento conceitual, recorre-se ao artigo “A gentrificação da homossexualidade”, de Denise Portinari e Maria Rita César (2014), para marcar e discutir o deslocamento semântico que vem sofrendo o conceito de gentrificação, quando aplicado a subjetividades; neste caso, a queer, fazendo consonância ao pensamento de Sarah Schulman.
Em um reforço ao conceito lançado por Sarah Schulman, as autoras leem a noção de gentrificação como “uma das forças que atuam tanto na configuração dos espaços urbanos quanto na produção de discursos e na atualização das engrenagens dos dispositivos da sexualidade” (PORTINARI; CÉSAR, 2014, p. 118). Assim, discutem como a noção aventada por Schulman é incorporada nos processos de subjetivação, argumentando que a gestão da (in)visibilidade queer, presente no conceito de gentrificação em tela, atua como um regulador de poder a serviço do controle e da vigilância. Portanto, as autoras discutem com muita precisão o fenômeno da gentrificação como um dispositivo (FOUCAULT, 2018; DELEUZE, 1988) regulador da trinca sexualidade-corpo-subjetividade calcada no quarteto violência- poder-controle-vigilância.
Aqui, no entanto, algumas ressalvas devem ser elaboradas: 1) ainda que Sarah Schulman (2018) passeie por algumas nomenclaturas, tais como gentrification de la mentalité, gentrification des esprits, gentrification du queer, nós faremos uma escolha epistemológica pelo uso de gentrificação do queer, uma vez que este termo já encontra abertura discursiva na epistemologia queer decolonial com a publicação do artigo “A gentrificação da homossexualidade”, das autoras brasileiras Denise Portinari e Maria Rita César (2014); nosso trabalho, portanto, visa a jogar com esta abertura; 2) ao optarmos por gentrificação do queer, precisamos localizá-la num objeto de pesquisa do campo supracitado, convidando-nos, então, a efetuar a confluência de teorias da comunicação com as de território e territorialidade (HAESBAERT, 2012; RAFFESTIN, 1993; CHABROL et al., 2016; SCHULMAN, 2018).
O objetivo neste ponto é entender como o território digital torna-se uma máquina de aglutinar territorialidades, mesmo sabendo que a ausência de materialidade concreta do ciberespaço não anula os processos de territorialização (FRAGOSO; REBS; BARTH, 2010). Isso reforça a ideia de que, aqui, o ambiente digital será pensado enquanto superposição de territórios, que é capaz de congregar diversas dinâmicas em si, a saber, as territorialidades. Assim, é mister lançar mão da problemática polissêmica que recai sobre o conceito de território, uma vez que a concepção que se dá a este termo influenciará diretamente a noção que se tem sobre territorialidade (HAESBAERT, 2012), para, então depois, analisar a inserção do Grindr neste conceito.
Rogério Haesbaert (2012) reconhece que os deslocamentos teórico-epistemológicos que recaem sobre o conceito de território, atravessando as áreas da Etologia, Antropologia, Ciência Política, História, Psicologia, Geografia, Filosofia e Sociologia, por exemplo, provocaram no seio do território a sua abertura significativa. Em consequência disso, o seu conceito enfrenta disputas de sentido que, ao passo que impedem sua definição acachapante, movimentam o seu próprio campo de estudos.
Como saída a este impasse intelectual, o autor dispõe, minimamente, de três categorias básicas sob as quais o território pode ser lido: 1) política ou jurídico-política, na qual o território “é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder” (HAESBAERT, 2012, p. 40), relacionando-se na maioria das vezes com o poder político do Estado; 2) cultural, priorizando-se a sua “dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido” (HAESBAERT, 2012, p. 40); e 3) econômica — a menos difundida, posto que os estudos em Economia preferem o conceito de espaço ao de território — na qual o território é “fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como produto da divisão ‘territorial’” (HAESBAERT, 2012, p. 40).
Neste ínterim, o objeto Grindr surge não como uma necessidade de se conceituar o que é o território, mas, antes de tudo, o porquê de uma territorialidade, afinal “mais do que o território, a territorialidade é o conceito utilizado para enfatizar as questões de ordem simbólico-cultural” (HAESBAERT, 2012, p. 74). Debruçar-se sobre a questão da territorialidade nos permite jogar com os elementos que engendram o território do Grindr, que, até este momento da escrita, parecem ser as categorias do digital e da sexualidade como elementos simbólico-culturais que estruturam este aplicativo.
Se é necessário, “portanto, que contextualizemos historicamente o ‘território’ com o qual estamos trabalhando” (HAESBAERT, 2012, p. 78), parece-nos salutar destacar as características digitais e sexuais do Grindr porque um território “pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico- políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2012, p. 79). Eis, então, o caráter híbrido de nossa territorialidade: digital-sexual. E, a partir desta confluência, tomadas de decisão são assumidas: território é entendido como apropriação do espaço e territorialidade torna-se a dinâmica deste território, a experiência desta apropriação, a vivência do território (RAFFESTIN, 1993).
O pensamento de Raffestin (1993) acerca dos territórios contemporâneos toca diretamente um binômio que estrutura o funcionamento do Grindr: redes e poder. Para o autor francês, a rede “faz e desfaz as prisões do espaço, tornado território [...] Redes de circulação e comunicação contribuem para modelar o quadro espaço-temporal que é todo território” (RAFFESTIN, 1993, p. 204). Logo, as malhas das redes que fazem conectar os sujeitos estão envoltas de poder, estruturam-se em função do poder que exercem no e a partir destes atores.
Portanto, se territorialidades são as dinâmicas de um território, os usuários do Grindr, lidos aqui como atores do território, criam práticas — territorialidades — embasadas na dinâmica do poder (do ciberespaço e sexual) de que dispõem. Logo, partindo deste pressuposto, o Grindr se coloca minimamente enquanto duas territorialidades: 1) digital; e 2) sexual — o que atravessa, a reboque, a discussão sobre o queer. E os corpos queer sem rosto que habitam esta territorialidade digital fazem do Grindr uma territorialidade queer, cujo funcionamento se dá no imbricamento entre sexualidade desviante (LOURO, 2018) e negociação da visibilidade (MISKOLCI, 2014; 2017b).
Aqui, vale um intervalo do nosso pensamento: antes de recuperarmos nosso objeto de pesquisa, é mister sublinhar o caráter precursor do pensamento de Sarah Schulman para com os objetos midiáticos, bem como a ideia de remplacement para se pensar territórios. Ora, quando a autora publica a versão inglesa deste livro em 2012, ela estabelece um paralelo entre gentrificação, remplacement e atos parasitários — aqui, uma metáfora do sutil que se espraia como uma rede de forcas. O que dizer, então, do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (2016), que discute tantos os impactos físicos quanto subjetivos da gentrificação na vida da personagem Clara? O que dizer da cena final deste filme quando cupins carcomem sutilmente o prédio e a paciência de Clara, personagem em constante estado de vigília? O que dizer, então, do filme Parasita, de Bong Joon-ho (2019), que retrata uma família vivendo em um porão sujo e apertado, sofrendo os baques de uma gentrificação? O que dizer do plano que esta família gentrificada cria para ir-se infiltrando sutilmente no seio de uma família burguesa, como parasitas?
O paradigma da gentrificação de Sarah Schulman já vai-se alastrando para outros objetos midiáticos e estes exemplos didáticos, aqui apontados, servem, portanto, para alertar para a reverberação da metáfora de Sarah. Servem para realçar, enfim, sobre a sua importância em ser discutida e alocada nesta pesquisa científica quando buscamos de falar em dinâmicas de território e diagramas no nosso objeto Grindr.
Portanto, Grindr, cuja acepção semântica provém do inglês grinder, que significa “moedor, triturador” (CAMBRIGDE, 2015: p. 316), pode ser compreendido como uma máquina de triturar visibilidades. Em sua interface radial, que reagrupa os perfis próximos ao do usuário, os rostos ou estão ausentes, ou cortados geralmente na altura da boca, criando-se um painel de invisibilidade. Estes mesmos perfis se autodenominam através de: 1) nomes próprios; caso mais raro em sua recorrência; 2) emojis (pequena imagem digital ou ícone para expressar uma ideia ou emoção); 3) qualificações ou atributos do usuário, tais como Tesão, Casal dotado; ATV S/L (abreviação para ativo sem local); Chaser Discreto; Sig (abreviação para sigilo ou sigiloso); 4) perfis inomináveis, sem descrição alguma; e 5) solicitações, por meio de sentenças rogativas tais como ME CHUPA AGORA); SIG afim (denotando que é sigiloso e está a fim de sexo), entre outros.
Diálogos com o videoclipe publicitário
Observamos até aqui como a gentrificação do queer alcança a territorialidade digital e agora partirmos para o entendimento de como um dos nós que amarram a gentrificação do queer parte de um dispositivo tecnopolítico — posto que atualiza e conflui as definições de tecnologia e poder — chamado publicidade de controle (DOMINGUES, 2016), esta maquinaria que movimenta a gentrificação do queer na territorialidade digital do Grindr e que é conhecida por monitorar, modular e indexar condutas que afetam os desejos (afetivos e sexuais) dos usuários deste aplicativo de encontros.
Nesse sentido, se o Grindr hipertrofia em seus processos interacionais dos usuários uma cultura da vigilância (LYON, 2018), como a ausência de rosto, exigência de sigilo, numa intensa negociação da visibilidade — para falarmos com Richard Miskolci (2017b) —, o jogo publicitário daí decorrente não seria diferente ou diametralmente oposto a isso.
Domingues (2016) aponta que a publicidade de controle se configura como um dos membros que estruturam a sociedade de controle, defendida por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2017). Nesse sentido, coloca-se como uma publicidade multiforme, em rede, que prospecta dados no ciberespaço e produz elementos publicitários à luz das subjetividades e do rastreio do consumo de seus usuários, afastando-se, dessa forma, daquele tipo de publicidade feita ao longo do século XX (DOMINGUES, 2016).
Tomamos nesta altura, como corpus e locus para se analisar tais conceitos, um filme publicitário em formato de videoclipe para a comunicação Grindr, intitulado GoGo Boys Dance Around The World8.
Penafria (2009) ressalta que não existe um pacto universal acerca de uma metodologia, e elenca duas etapas importantes em um processo de análise fílmica: decompor e interpretar. Tais etapas consistem na descrição do filme e na compreensão das relações estabelecidas entre os elementos decompostos, ou seja, na interpretação. No exercício de decomposição é preciso lançar mão de conceitos como enquadramento, composição ou ângulo, de estrutura de planos, sequências e cenas e da descrição do som (off e in). Para a analise é preciso identificar a articulação dos elementos decompostos e então juntá-los ao propor uma interpretação.
A autora também aponta a crítica como possiblidade de discurso sobre os filmes, possibilidade esta que tem por objetivo avaliar e atribuir juízo de valor, o que não se constitui como uma análise propriamente dita, apesar de se beneficiar do trabalho analítico. Para o estudo aqui proposto, estabelecemos um modo menos sistemático também elencado pela autora, “uma espécie de diálogo que o analista pode estabelecer com o filme” Penafria (2009, p. 9).
GoGo Boys Dance Around The World, filme publicitário em formato de videoclipe, foi publicado no canal do Grindr no YouTube em setembro de 20209 para a divulgação do produto Gridr Web, a “versão escritório” do aplicativo para telefone celular, para uso em computador desktop.
A descrição do vídeo informa que Cazwell, rapper e compositor norte-americano conhecido por suas letras explícitas, e célebre na cena gay, está de volta com uma música sobre como a pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 afetou a vida noturna e os dançarinos em todo o mundo. GoGo Boys Dance Around the World se apresenta como um vídeo literal, estrelado por gogo boys dançando em espaços públicos de cidades como New York, Londres, Paris, Madrid, Tokyo, Barcelona, Milan e Tel Aviv.
A dimensão promocional do vídeo fica clara com a presença da marca tanto na abertura quanto na assinatura final, seguida pela chamada para ação (“Try Grindr Web”) e durante os três minutos e vinte segundos de duração do videoclipe, corpos masculinos magros ou musculosos, todos seminus, se intercalam na tela.
Observamos então um exemplar da publicidade de controle, materializada neste videoclipe, que aponta para um modo de se gentrificar o queer: vemos homens cujos corpos reproduzem uma imagem prototípica dos homossexuais masculinos, em estreita filiação com a virilidade e a definição muscular e amplamente difundida nos discursos artísticos, como os traços de Tom of Finland (PARIZI, 2007), e nos discursos midiáticos.
Outro ponto observado dialoga com a dinâmica relatada no início deste texto acerca da tela inicial do aplicativo Grindr: a ausência de rostos. Em 15 takes do vídeo o movimento de camera fica limitado aos corpos, sem alcançar os rostos, e, na maioria deles, nem mesmo cabeça dos dançarinos.
Figura 2 - Capturas de tela: 15 takes do videoclipe GoGo Boys Dance Around the World
Nesse sentido, vemos a publicidade de controle promover uma bifurcação de ideias: recupera o histórico midiático-imagético de um dado tipo de corpo — musculoso e viril — e o coloca, publicitariamente, dentro de um contexto de vigilância, uma vez que muitas vezes elimina os rostos dos dançarinos no anúncio. Se Miskolci (2012) nos ensina que o queer é o abjeto, o pária, aquilo que está a margem da sociedade cujo corpo e cuja presença geram o incômodo do status quo, o que pode um corpo convencional, em contrato com a ideia que temos sobre heterossexualidade — musculosa e viril —, dentro deste território do Grindr?
Parece-nos salutar realçar que a sua figura, ainda que pictórica, coloca em curso uma gentrificação do queer, retirando desta categoria a sua possibilidade de visibilidade e vínculo midiático. Ora, o corpo queer no Grindr é arrastado às margens da (in)visibilidade, é suprimido de um protagonismo, e é substituído — a noção de remplacement de Sarah Schulman (2018) — pela ideia homogeneizada que se tem da homossexualidade. É, enfim, a publicidade produzindo uma imagem controlada do queer — neste caso, sujeito gay masculino.
Notas Finais
1O livro The Gentrification of the mind: Witness to a lost imagination foi apenas traduzido para a língua francesa, originando a obra La gentrification des esprits, publicada em 2018. No decorrer deste texto, trabalharemos e citaremos, portanto, a versão francesa.
2Em língua portuguesa, para se falar de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) causadas pelo retrovírus HIV, conservou-se o uso de suas siglas anglófonas, estando o Vírus da Imunodeficiência Humana para o HIV (HIV é o acrônimo inglês), bem como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida para a AIDS (AIDS é, portanto, o acrônimo inglês).
3Queer, xingamento inglês que quer dizer estranho e abjeto (MISKOLCI, 2017a), serve para se referir tanto a sujeitos cujos gênero, expressões de gênero e orientação sexual divirjam da heteronormatividade quanto à epistemologia que se forma dentro da palavra guarda-chuva estudos de gênero.
4Tipo de câncer que acomete as camadas mais internas dos vasos sanguíneos, muito popular no princípio da aparição da infecção pelo HIV, denunciando que aquela pessoa desenvolveu a síndrome de AIDS. Para saber mais, ler o artigo “Sarcoma de Kaposi, clássico fatal” (DAMASIO et al., 2010). Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0365-05962010000300014>. Acesso em: 01 jun 2020.
5Embora o Grindr tenha-se popularizado, em seu princípio, como um aplicativo voltado aos gays, hoje, segundo informações de seu site, o “Grindr é o maior aplicativo em rede social do mundo para gay, bi, trans e pessoas queer” (GRINDR, 2020, tradução nossa). Uma vez que uma das linhas teóricas deste trabalho é a teoria queer, cremos ser inclusivo nomeá-lo como uma rede social digital queer, ainda que haja, ali, uma prevalência do exercício homoerótico. Disponível em: <https://www.grindr.com>. Acesso em: 24 jul. 2020.
6ACT UP é a tradução, do inglês, para Coalizão de Aids para Liberar o Poder, um grupo político, surgido nos Estados Unidos da América, que protesta para acabar com a pandemia da AIDS. Queer Nation, por sua vez, é uma organização ativista LGBTQIA+ fundada na cidade de Nova York, por ativistas de advindos da ACT UP, que surge no contexto da recrudescência da violência contra os gays e do preconceito nas artes e na mídia. Para saber mais, ver o filme 120 batimentos por minuto, de Robin Campillo, e/ou ler o Manifesto Queer Nation, disponível em: <https://chaodafeira.com/catalogo/caderno-n-53-manifesto-queer-nation/>.
7Ler “The Sex Education of Grindr’s Joel Simkhai”. Acesso em: 13 dez. 2020. Disponível em: <https:// www.nytimes.com/2014/12/14/fashion/the-sex-education-of-grindrs-joel-simkhai.html>.
8https://www.youtube.com/watch?v=L0VzX5cRdl0
9https://www.youtube.com/watch?v=L0VzX5cRdl0
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