Abstract
The purpose of this text is to reflect on the languages of cinema used to build fear in videos shared on digital media. The historical context of 2020 marked the history of health in the world, just as the technical context made it possible to produce and share news about it. In the same way that cinema hides audiovisual marks seeking the experiences of reality in its fictions, some videos produced in this period by social actors and shared on digital media present these logics in their documentary records.
These videos are presented as fragments of the story within the current context, shared and re-shared as if they were real records, but which become visual fragments of a reality constructed when denied and called fake news. An example of this is the video shared at the beginning of the pandemic in Brazil, as a record of the death of a person at the Hospital da Santa Casa de Curitiba. This video shows the record of two people dressed in special disease protection suits carrying a stretcher with a black bag on top. In this case, there is a scene related to films about epidemiological diseases, where some logic of the cinema is perceived, which searches the social imaginary for fear related to fiction stories in relation to the world historical context. In this sense, it investigates the construction of fictional narratives presented in false news and how cinema contributes to the construction of fear.
Keywords: Cinema, Audiovisual, Fake News, Covid-19, Construto do medo.
Introdução
O contexto histórico-social do ano de 2020 marcou a história da saúde no mundo e isso gerou a produção e compartilhamento de diversas imagens, notícias e vídeos sobre a pandemia causada pelo Covid-19. Porém, alguns destes vídeos apresentados como fragmentos da história dentro deste contexto, compartilhados como registros reais, se tornam fragmentos visuais de uma realidade construída quando denominados de fake news.
A expressão fake news advém do âmbito jornalístico e entra para o político em 2016 – quando notícias falsas foram utilizadas durante campanhas políticas (Galhardi CP et al 2020) – e hoje se torna um alerta sobre a disseminação de informações que não correspondem à verdade dos acontecimentos. Sendo a expressão fake news utilizada para informar que determinada notícia que foi produzida e compartilhada com a intenção de desinformar ou mesmo manipular a opinião pública, é falsa, consideramos para este texto tanto notícias que informam sobre a situação de crise sanitária provocada pelo Covid-19, quanto o uso da expressão fake news em vídeos que circulam nos meios digitais e que abordam o mesmo assunto.
A partir da metodologia de pesquisa exploratória, foram buscados vídeos que apresentassem notícias sobre a pandemia relacionadas aos acontecimentos trágicos como as mortes provocadas pelo vírus. A procura foi feita principalmente no buscador geral do Google e no Youtube a partir de palavras-chave como pandemia, fake news e mortes por Covid-19. O vídeo aqui proposto como objeto de análise foi encontrado em meio a outras notícias consideradas fake news, escolhido a partir de suas potencialidades de análise segundo suas imagens técnicas e a forma como foi desmentido e considerado como falso. Ele foi compartilhado no início da crise sanitária causada pelo Covid-19 no Brasil, em março de 2020, apontado na época como um registro documental da morte de uma pessoa no Hospital da Santa Casa em Curitiba e logo após considerado como fake news pela própria instituição hospitalar.
Considerando que o vídeo circulou em ambiente que é tecnológico e que dispositivo do cinema tem capacidade de produção sígnica, a sua inscrição enquanto atualização em um ambiente rodeado por outras imagens promove a circulação de sentidos quebrando a linearidade entre produção e recepção ao ser acionado ou ser potencializado por outras imagens técnicas fora de sua produção. Segundo as pesquisadoras Kilpp e Montaño (2015, 13-14), é nesse ambiente que “cria-se, faz-se circular, usa-se e apropria-se de construtos audiovisuais como modos singulares de expressão e significação da experiência do mundo”. Nesse caso, observamos as mídias e como as imagens migram constantemente de um meio para outro e como há nesse processo uma diversidade de sujeitos que também são usuários, que produzem e compartilham imagens (Kilpp, Montaño 2015).
Dessa forma, percebendo essas construções de narrativas visuais a partir do contexto histórico e das técnicas disponíveis para a produção de materiais audiovisuais, vídeos são produzidos e disponibilizados nas plataformas digitais por atores sociais e não mais (somente) por instituições. Nesse caso, considerando o desenvolvimento do cinema como um aparelho técnico e o percebendo como uma tecnologia de produção e visualização da imagem que não suprime as técnicas anteriores, mas acrescenta suas técnicas e estéticas vistas como “um estrato tecnológico suplementar” (Dubois 2004, 13), propomos a sua atualização em outras imagens técnicas, sendo possível perceber na materialidade das imagens do vídeo as potências audiovisuais que duram e se atualizam em outros formatos.
Neste sentido, como a proposta do texto é investigar as construções de narrativas visuais apresentadas como registros de mortes durante a pandemia, compartilhadas nos meios, buscamos o medo como um construto audiovisual verificado e acionado a partir das imagens técnicas do vídeo. O objetivo é refletir sobre como as imagens técnicas do audiovisual assim como o imaginário contribuem para a construção do medo em vídeos considerados falsos, a partir de narrativas produzidas por atores sociais, compartilhadas em plataformas digitais. Ao mesmo tempo, percebemos sobre o quanto somos acometidos por imagens técnicas que povoam as mídias digitais e o quanto delas somos responsáveis – o quanto elas alimentam e são alimentadas pelos contextos socioculturais da época.
O audiovisual no ambiente de circulação das fake news
Para compreender o audiovisual dentro da cultura e suas atualizações em outras imagens, buscamos nas perspectivas das audiovisualidades - paradigmáticas e que “compreendem os audiovisuais em três dimensões: a técnicas, a discursiva e a cultural” (Kilpp, Montaño 2015, 12) – um olhar sobre as produções audiovisuais e suas imagens técnicas imbricadas na cultura assim como a cultura imbricada nelas, e o que deriva dessa retroalimentação. Nesse caso, as audiovisualidades (técnica, discursiva e cultural) podem ser observadas nas materialidades das mídias: o cinema pode ser visto como um aparelho que produz imagens técnicas e nessas imagens técnicas podem ser observadas atualizações - para esta proposta, o construto do medo.
Para Santaella (2012), os aparelhos produzem imagens técnicas e são capazes de produção e reprodução sígnica. Essa capacidade está inscrita na própria materialidade do aparelho. Dito isto, aproxima esta reflexão do proposto por McLuhan - onde “o meio é a mensagem” - “é no meio que a mensagem toma corpo, não existindo mensagem possível fora de algum meio em que se encarna” (Santaella 2012, 7). Ou seja, o que observamos são as audiovisualidades que se atualizam em uma determinada materialidade, o vídeo em questão, que é composto entre a ilusão do cinema em suas técnicas, e a produção/construção do medo segundo sua circulação um meio digital e técnico, assim como as suas lógicas. Segundo esta perspectiva porém, as audiovisualidades não devem ser vistas somente como um processo contemporâneo e de âmbito digital, mas constituídas antes e para além da criação do cinema como aparelho ou dispositivo técnico. Para tanto, o conceito de dispositivo deve ser pensado para além da técnica ou matéria, pois suas características o constituem como um dispositivo entre as imagens, e não somente como um dispositivo ligado ao cinema culturalmente conhecido como projeção de imagens em movimento.
De acordo com Parente (2007, 4), a evolução técnica do cinema designa dois tipos de dispositivo: o técnico, que parte do princípio do dispositivo espetacular e da fantasmagoria e o outro, o dispositivo “fruto de um processo de institucionalização sócio-cultural do dispositivo cinematográfico [...] o cinema enquanto formação discursiva”. Para o autor, estas relações podem ser vistas como esferas, e dentre elas estão:
as técnicas utilizadas, desenvolvidas, deslocadas; o contexto epistêmico em que esta prática se constrói, com suas visões de mundo; as ordens dos discursos que produzem inflexões e hierarquizações nas “leituras” e “recepções” das obras; as condições das experiências estéticas, entre elas os espaços institucionalizados, bem como as disposições culturais preestabelecidas; enfim, as formas de subjetivação, uma vez que os dispositivos são, antes de qualquer coisa, equipamentos coletivos de subjetivação (Parente 2007, 16)
Neste caso é importante questionar sobre a sua atualização enquanto audiovisualidade se tratando de sua incorporação nos meios digitais.
Dentro dessa proposta podemos relacionar as audiovisualidades à ideia de tecnocultura, perspectiva que propõe a dimensão da técnica enquanto um construto cultural. Conforme Fischer (2015, 64), é “o surgimento e desenvolvimento dos meios de comunicação e representação como resultantes de processos de mútuo contágio entre tecnologia e cultura”. Portanto, o audiovisual não diz somente sobre o cinema, mas deve ser visto como um conjunto de aspectos de cinema que duram e são atualizados de diferentes formas em imagens e em outros dispositivos, inclusive os que percebemos nos meios digitais, assim como a sua convergência entre a cultura e a sociedade. Isso se dá, nesse caso, a partir da construção do medo em narrativas, como a do vídeo, segundo técnicas e estéticas audiovisuais, dentro de uma perspectiva tecnocultural, ou o vídeo como um produto da tecnocultura.
O caso em questão pode ser estabelecido “na relação de pensar culturalmente as tecnologias e entender as propriedades tecnológicas em ação na cultura” organizadas em uma “reflexão que permite perceber os contágios entre diferentes temporalidades” (Fischer 2013, 14). Ou seja, para o autor em diálogo com Debra Shaw, é nessa articulação entre tecnologia e cultura que as audiovisualidades são percebidas como potência - o devir que se atualiza em diferentes formatos, suportes e mídias – como o cinema para os meios digitais e como o medo como um construto audiovisual.
Para Braga (2015), a materialidade inicial das tecnologias disponíveis nos meios são modificadas em decorrência do exercício das apropriações desenvolvidas em outros ambientes sociais, que em determinado momento se tornarão as lógicas da mídia ao inverter o sentido da incidência (produção e reconhecimento). Diante disso, há divergência com o que se pode fazer com um dispositivo, quando o dispositivo é transformado em outra coisa não prevista pela instituição. Nesse caso, quando o construto do medo é proposto em outras lógicas narrativas, para além do cinema, passa a durar também a partir do meio onde está sendo exposto e segundo apropriações possíveis nesse ambiente. Ao mesmo tempo, pensando na questão da duração do medo nos meios digitais, a imagem técnica do vídeo em questão pode acionar outras imagens técnicas a partir de sua circulação nos meios onde o construto do medo atualiza-se em outros formatos.
Assim, com base no que Sodré (2013, 244) conceitua como bios midiático e que a partir de Latour pode ser considerado como o sujeito e objeto que “convergem” na rede eletrônica, “dialogando”, exercendo influências mútuas e dando força à hipótese de uma “vida eletrônica”, consideramos um novo sistema de inteligibilidade no meio virtual, que acrescentaria a atitude crítica, a imprevisibilidade e liberdade da criação. Para o autor, isto definiria uma mutação nos sistemas dominantes. Compreendemos que dentro desse bios virtual, construído pela tecnologia, há possibilidades de reinvenção a partir dos novos modos de ler, dados recursos orais ou softwares de computador. Fazendo alusão a esse novo ambiente, envolvido pela técnica e pelos acessos, Serres (2013, 36) reflete que nossa cognição passa a ser externa, vista dentro da caixa-computador “nossa cabeça foi lançada à nossa frente, nessa caixa cognitiva objetivada”. Dentro desta caixa o aprendizado é coletivo e acessível, nos permite inventar. As informações estão ali disponíveis e organizadas, quando os “motores de busca” trazem textos e imagens. O que se percebe é que a técnica interfere nos processos interacionais que acontecem nesse meio. Ou seja, esta perspectiva nos dá a ver um ambiente midiático onde o ator social não pode mais ser considerado como passivo, mas como parte da estrutura da comunicação, onde ele passa a usar, apropriar e produzir materiais (Verón, 1997). Para o autor, ao entender que um meio de comunicação, segundo uma perspectiva sociológica, deve ser visto a partir de uma dimensão coletiva, leva à questão do acesso coletivo aos materiais ou às mensagens e como os fenômenos midiáticos derivam da circulação e acesso à eles.
Partindo das lógicas de um ambiente midiático que permite uma dinâmica onde um vídeo possa circular, consideramos um meio onde outras imagens técnicas circulam e onde usuários desse meio fazem parte do processo de construção do medo. Assim, tensionamos o vídeo proposto a partir do dispositivo, as possibilidades da circulação e da memória da mídia dentro deste ambiente – plataforma e imagens técnicas na internet como uma construção de rede.
O vídeo fake news - registro da morte de uma pessoa no Hospital da Santa Casa
O vídeo analisado nesta proposta foi compartilhado via whatsapp no início da crise sanitária causada pelo Covid-19 no Brasil, em março de 2020, apontado na época como um registro documental da morte de uma pessoa no Hospital da Santa Casa em Curitiba. O primeiro contato com a notícia, segundo a pesquisa exploratória, foi a partir de uma nota emitida pela comunicação do hospital da Santa Casa no dia 18 de março de 2020, informando sobre o ocorrido. A informação que constava na nota era de que as imagens que circularam sobre o suposto caso de morte pelo vírus eram falsas (Comuninação Santa Casa, 2020). Em um segundo momento da pesquisa, na busca pelas imagens do vídeo, foi encontrado o material no site do Jornal Tribuna do Paraná junto a uma publicação que desmentia e considerava o vídeo como fake news - publicação feita no site no mesmo dia, 18 de março de 2020, por Alex Silveira, repórter do Jornal Tribuna do Paraná. Como o vídeo foi compartilhado por whatsapp, a análise dele para este texto foi possível apenas a partir do site da Tribuna, junto ao seu canal no Youtube.
No canal da Tribuna no Youtube foi possível verificar os comentários feitos por usuários questionando sobre o vídeo ser falso ou não. Ou seja, mesmo com a afirmação do hospital sobre o vídeo não ter sido feito em sua propriedade, e do jornal da Tribuna alertar sobre a notícia ser falsa, alguns usuários do canal ainda questionavam a falsidade do vídeo. A partir deste fato notamos duas reações possíveis descritas por Cerf (2017, 9), ante notícias falsas na internet: da Tribuna que checou os fatos e, a partir da nota da Santa Casa afirmou que o vídeo é falso na intenção de informar o público; e os comentários de usuários do canal no Youtube que diante do vídeo já desmentido pela Tribuna, rejeitaram a informação dada pelo jornal por ser contrária às suas visões de mundo.
Em uma pesquisa feita sobre a detecção de fake news envolvendo 83 usuários das redes sociais, foi constatado que mesmo com o aviso de fake news em determinadas notícias, a crença sobre a veracidade da notícia não sofreu alteração nos usuários. Ao contrário, havia aumento cognitivo nos usuários quando a notícia estava alinhada com as suas opiniões, o que demonstrou propensão na crença sobre a notícia. Já as notícias que desafiavam a opinião desses usuários estavam menos propensas a serem acreditadas (Moravec et al 2019).
Saveri (2018) considera que o fato do público acreditar que algo considerado falso possa ser verdadeiro reside na estrutura da mensagem, ou seja, a relação entre o que é falso e o que é verdadeiro na notícia implica na construção da fake news. Para o autor, em um diálogo entre um antropólogo e um entrevistado, por exemplo, uma declaração falsa pode ser vista como forma de fortalecer um relacionamento e não uma forma de ameaçá-lo. Dito isto, podemos supor que o vídeo em questão tenha sido feito com a intenção de alertar sobre os perigos de contágio e morte nos casos de Covid-19 no Brasil, mas não deixa de ser uma informação falsa. Nesse caso, com base em Saveri, observamos que para compreender como a narrativa do vídeo constrói o medo disseminando desinformação sobre a situação pandêmica no Brasil, devemos refletir sobre a forma específica como ela foi estruturada.
Assim, antes observamos no vídeo as suas imagens técnicas e como elas se relacionam com a construção do medo em plataformas digitais.
Figura 1 - Registro da morte de uma pessoa no Hospital da Santa Casa em Curitiba, 2020. Fonte:Jornal da Tribuna / Youtube - Adaptado pela autora, 2021.
Percebemos na figura 1 a legitimação visual do ambiente de um hospital a partir do primeiro plano: há pessoas com jalecos brancos nas duas primeiras imagens. Já o registro visual de morte por algo contagioso devido ao traje de proteção amarelo acontece nas duas últimas imagens.
Da mesma forma que o cinema oculta as suas marcas técnicas buscando relações com as experiências do real em suas ficções, formando, segundo Parente (2007, 5), um “espetáculo que gera no espectador a ilusão de que ele está diante dos próprios fatos e acontecimentos representados”, o vídeo em questão demonstra a mesma intenção em um registro factual dentro de um contexto maior onde já se conhece a narrativa, mas que propõe a aproximação do público aos acontecimentos em seu território, ameaçando sua segurança. Dessa forma se dá a construção do medo segundo dois aspectos a partir do vídeo: o enquadramento utilizado e seu compartilhamento.
O enquadramento e o construto do medo audiovisual
Ao observar os elementos da composição do vídeo, o medo é construído a partir da busca no imaginário por imagens técnicas que apresentam um contexto parecido – sai do enquadramento do vídeo para outras imagens técnicas acionadas no imaginário/lembrança. Filmes como Epidemia (1995) (figura 2) ou mais recentes como Contágio (2011) (figura 3) trazem referências visuais semelhantes ao ocorrido com o Covid-19 e ao vídeo em questão. Nesses filmes a narrativa apresenta vírus que se espalham por contato e atingem um grande número de pessoas causando mortes.
Figura 2 - Imagem técnica do filme Epidemia,1995. Fonte: IMDB
Figura 3 - Imagem técnica do filme Contágio,2011. Fonte: IMDB
O construto do medo nesses dois filmes se dá a partir da narrativa de cada um, que pode ser percebida a partir de suas linguagens, cada qual com suas técnicas próprias, mas que já se tornam imagens técnicas do imaginário/lembrança. Aqui não buscamos a origem da imagem, mas a percebemos na imagem técnica que aciona outras imagens-lembranças. Segundo Didi-Huberman (1998) em diálogo com Benjamin, o termo origem não pode ser visto somente como uma restauração ou restituição de algo, mas deve ser percebido pelo consequente de algo que é inacabado, que está sempre aberto. Ou seja, a imagem não reproduz o passado em um sentido da história - passado e presente - mas é vista como a imagem da memória de forma anacrônica, sempre em duração. É essa duração do medo audiovisual que pode ser percebida na materialidade das imagens do vídeo analisado. Para tanto, os elementos de composição confirmam o espaço de um hospital ao apresentar personagens de jalecos brancos, além dos trajes especiais amarelos, visual que buscaria na experiência já vivida em outras imagens, aproximações na construção do medo, segundo a narrativa da morte também proposta no vídeo.
Como percebemos nas imagens técnicas de outros filmes, possíveis de serem encontrados dentro de plataformas streaming como o Now online, além das imagens apresentadas aqui serem encontradas em sites como o IMDB (Internet Movie Database), as relações entre as imagens são muito próximas e acessíveis, seja por meio do filme ou por meio de outras imagens dentro da mesma ambiência. O que se propõe então é que se o dispositivo do cinema tem capacidade de produção sígnica, a sua inscrição em um ambiente rodeado por outras imagens promove a circulação de sentidos quebrando a linearidade entre produção e recepção ao ser acionado ou ser potencializado por outras imagens fora de sua produção. O uso desse recurso atualizado nos meios revela a complexidade do ambiente digital dentro da tecnocultura, quando a mídia é descentralizada como produtora de imagens e onde o meio possibilita o acesso a outras imagens que estão relacionadas à ela e ao seu conteúdo, assim como produtos audiovisuais onde as lógicas do cinema estão presentes, como no vídeo analisado. O construto do medo materializado no vídeo faz parte de um ambiente carregado de imagens, ou seja, não pode ser visto pelo prisma de uma origem só, segundo um momento na história originado no e pelo cinema. Ele constitui uma imagem dialética, crítica, que problematiza o seu construto segundo imagens várias, contextos diversos, que não podem ser vistos por momentos e sim como duração, visto que acionam imagens lembranças nesse cenário tecnocultural. O pensamento dialético “nas quais coalescem imagens e imagens pensamento de todos os tempos” (Kilpp, Montaño 2015, 13) - proposta que procuro apresentar para o caso - não busca reproduzir o passado ou buscar a origem do construto do medo, pois a imagem é vista como a imagem da memória produzida a partir de uma situação anacrônica - como um presente remanescente, que relaciona passado, presente e futuro.
O compartilhamento do vídeo e a duração do medo
O compartilhamento pelos meios digitais como o whatsapp promove ainda mais a repercussão do vídeo e em consequência do medo: sem a espera pelas instituições e autoridades que comprovem o assunto, o vídeo passa de um espectador comum para outro formando assim uma rede familiar, visto a plataforma escolhida para o seu compartilhamento. Para Saveri (2018), ao ser dada voz à notícia, ela se repete e se torna verdadeira entre os mais crentes. Se torna comum e próxima. A identidade do criador do vídeo é “borrada” e se torna semelhante à do público. Nesse caso percebemos uma montagem entre o vídeo e a sua distribuição, onde há uma narrativa, e onde o construto do medo continua durando. Percebemos isso pelo fato da montagem não estar relacionada com a da narrativa visual do vídeo, mas principalmente pela forma em que ele foi compartilhado nas plataformas de comunicação, quando em meio ao contexto de mortes noticiadas por outros países, nos deparamos visualmente com este registro, podendo relacioná-lo à outras imagens técnicas dentro de outras plataformas digitais ou na mesma plataforma, segundo outros vídeos divulgados e compartilhados. O enquadramento do vídeo também já informa o tipo de suporte técnico, visto que vídeos feitos com a câmera do celular podem ser caracterizados pelo enquadramento vertical. Isso reforça a identidade da produção que se assemelha aos vídeos mais comuns encontrados nas plataformas. Como dito anteriormente, ao familiarizar o público com este tipo de referência visual a crença é compartilhada não porque é falsa ou verdadeira, mas porque é co-construída entre o mensageiro e seus destinatários.
Já observando os comentários dos usuários no canal da Tribuna no Youtube, percebe-se uma circulação da notícia dentro da plataforma que faz durar o medo. Quando há dúvidas acerca do vídeo ser realmente falso, apesar dos avisos sobre a fake news, há possibilidade dele circular dentro dos meios digitais, ou mesmo acionar outras imagens técnicas. Fica evidente que a roupa de proteção contra doenças apresentada no vídeo é apontada pelos usuários como uma forma de apresentar a veracidade dele diante do acontecimento. Observamos na figura 4 e 5 dois momentos que verificam que a imagem técnica pode acionar outras imagens técnicas como proposto anteriormente, mesmo com os avisos de fake news na descrição do vídeo.
Figura 4 - Aviso de fake news no Youtube do Jornal da Tribuna, 2020. Fonte: Jornal da Tribuna/ Youtube. Adaptado pela autora, 2021.
Figura 5 - Comentários de usuários sobre o vídeo fake news, 2020. Fonte: Jornal da Tribuna/ Youtube. Adaptado pela autora, 2021.
Nesse caso, apesar do vídeo ter sido compartilhado pelo whatsapp, considerado falso no site da Tribuna e apresentado como fake news na plataforma do Youtube, o medo continua durando para além dele mesmo a partir do que observamos na interface da plataforma do Youtube: dentre a possibilidade dos usuários comentarem o acontecimento há o acionamento de outras imagens/lembranças propondo a duração desse medo dentro e fora da plataforma e das redes sociais.
Considerações finais
O acesso às ferramentas técnicas de registro como câmeras de celular e a possibilidade de carregar e compartilhar vídeos na internet se relacionam com as lógicas do cinema. A narrativa visual da morte no vídeo passa a ser parte do construto do medo audiovisual ao relacionar as imagens técnicas com o contexto histórico de 2019/2020, durante seu compartilhamento e acesso através de plataformas digitais. Mesmo quando considerado falso, como apontado no canal da Tribuna no Youtube - como um vídeo que mais parece ficção científica - o medo provocado pelo vídeo continua durando segundo os comentários de usuários, que desacreditam que a informação é falsa. O construto do medo audiovisual parte da cultura e da técnica – da sua constituição, duração e apropriação de outros elementos dentro da memória do dispositivo e do circuito de imagens na internet. Não é somente ele dentro do vídeo, mas as imagens lembranças que estão fora dele, por outras linguagens dentro do ambiente midiático, da circulação, do audiovisual.
O ambiente onde ele foi compartilhado permite manter essas relações próximas entre imaginário e imagens técnicas – do cinema – e outras imagens compartilhadas nos meios, formando uma rede de informações entre verdadeiras e falsas, técnicas e do imaginário nessa construção do medo audiovisual.
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