Cinema documentário, memória, política e exílio. Vivências no feminino

José Francisco Serafim

Universidade Federal da Bahia, Brasil

Natália Ramos

Universidade Aberta, Portugal

Abstract

This communication seeks to address the issue of political movement, migration and exile through the documentary work of Chilean director Carmen Castillo, who in 1974 was forced to leave her country and to exile in France. Castillo was a militant of the MIR (Revolutionary Left Movement) along with his companion Miguel Enríquez. In 1974, after being betrayed by a leader of the left-wing movement, Castillo, pregnant and already the mother of two children, is confronted with a military operation in the house where they lived, in Santa Fe Street. She is arrested and her companion executed during the military operation. In order to understand this dramatic moment and which had serious repercussions throughout her life, Castillo makes two documentary films that relate to each other. The first La Flaca Alejandra; Lives and deaths of a Chilean woman (1994, 60 min.), presents the director’s meeting with the one that betrayed her to the military police in 1974. The second Calle Santa Fe (2007, 182 min.) is of another scope for the duration of almost three hours, during which we observe in a tone much more autobiographical and subjective than the previous film the questions of this woman who returns to the place where her personal tragedy began, that is, Santa Fe Street. Both films intriguingly address the past of a nation through, especially memory, whether personal or collective. These issues will be analyzed through authors like Beatriz Sarlo, Maurice Halbwachs and Laura Rascaroli.

Keywords: Documentary Film, Autobiography, Memory, Politics, Exile

Introdução

Como abordar a memória de todo um povo, sobretudo quando este povo foi vítima de fatos cruéis, traumáticos e por vezes irreparáveis que terão consequências para a sociedade como um todo, e isso apesar do passar dos anos e das novas gerações que não tiveram por vezes contato direto com as situações vivenciadas pelos seus antepassados, Podemos certamente pensar nos terríveis fatos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial e sobretudo o Holocausto que causou a morte de mais seis milhões de pessoas, sobretudo, judeus nos campos de concentração da Alemanha e da Polônia. A fim de não esquecer esses terríveis e dolorosos fatos, na Alemanha, quase diariamente, os canais de televisão exibem produtos audiovisuais que abordam essa questão, com o objetivo que as novas gerações possam ter consciência dos horrores cometidos pelos seus antepassados. O audiovisual aqui é então extremamente importante para dar conta de um aspeto da memória, já que são exibidos diferentes produtos, tanto ficcionais quanto documentais, sobre essa questão. Importante lembrar que sobre esses fatos vinculados ao holocausto dois documentários são emblemáticos e hoje já clássicos sobre o tema: Noite e Neblina (Alain Resnais,1956) e Shoah (Claude Lanzmann, 1985). O diretor cambojano Rithy Panh tem igualmente realizado uma obra documental das mais instigantes a fim de dar conta de compreender o ocorrido no seu país nos anos de 1970 e dos massacres perpetrados pelos Khmer Rouge.

Na América Latina ao longo, sobretudo, dos anos 1960 e 1970 ocorreram diversos golpes militares em vários países. No que diz respeito à Argentina e ao Chile observa-se uma densa produção audiovisual tanto ficcional, mas sobretudo documental, que busca trazer elementos para a compreensão desses momentos traumáticos e de exílio para a população dos dois países.

A fim de trazer alguns elementos de compreensão para os fatos ocorridos no Chile a partir de 1973, quando o governo militar destituiu violentamente o governo democraticamente eleito de Salvador Allende e instaurou uma feroz ditadura que irá durar até 1990, com consequências trágicas para uma grande parcela da população e sobretudo para aquela que militava em grupos de esquerda, serão analisados dois produtos documentais realizados por Carmen Castillo, diretora chilena que foi obrigada pelos militares a deixar o seu país em 1974 e passou desde então a viver em França. Carmen Castillo realizou três documentários que abordam a sua memória pessoal que se entrelaça com a memória coletiva e histórica, como compreendida por Maurice Halbwacs “ Se essas duas memórias se penetram frequentemente; em particular se a memória individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças, para precisa-las, e mesmo para cobrir algumas de sua lacunas, apoiar-se sobre a memória coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela…” (Halbwachs 1990: 53). Este autor continua informando que podemos designar essas memórias “uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma memória pessoal, a outra memória social. Diriamos mais extamente ainda: memória autobiógrafica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda a história de nossa vida faz parte da história em geral.” (Halbwachs 1990: 55). É nesse sentido do pensamento que Halbwacs afirma que podemos compreender os dois documentários de Castillo, ou seja, como um vai e vem constante entre memória pessoal (e afetiva), memória coletiva se entrelacando com aspectos da memória histórica. Nos documentários La flaca Alejandra. Vidas e muertes de una mujer chilena (1994) e Calle Santa Fe (2007) Carmen Castillo retorna ao seu passado e a Santiago do Chile a fim de compreender, os fatos que marcaram definitivamente sua vida. No período entre 1994 e 2007, a diretora realizou o documentário El pais de mi padre. Una obstinada utopia chilena em 2004, que tem por foco apresentar sua família, e sobretudo, o seu pai, arquiteto e a relação dos seus familiares com o ocorrido no Chile nos anos 1970.

No documentário realizado em 1994, La Flaca Alejandra, a autora aborda sobretudo a dificil relação com a ex-integrante do grupo MIR (Moviemento de Izquierda Revolucionaria) que presa e sob tortura denuncia os companheiros do movimento, o que será uma das causas de trágicas consequências na vida de Carmen Castillo. Em Calle Santa Fe, a diretora retorna ao Chile em meados dos anos 2000 e realiza uma obra bem mais densa (e longa) sobre esses anos em que participou do movimento revolucionário, e sobretudo da relação com o seu companheiro e pai de sua filha, Miguel Enríquez que foi morto durante o assalto na casa em que viviam na clandestinidade, na Rua Santa Fe em Santiago do Chile.

Memória, história e autobiografia nos documentários de Carmen Castillo

O interesse da diretora nos dois documentários, objetos de análise, é abordar aspectos da história de seu país, o Chile, através da memória dos acontecimentos, tendo em vista que a própria diretora bem como os diversos atores sociais e diversas pessoas que estão presentes nos dois filmes vivenciaram os fatos apresentados. Mesmo que se trate de uma memória lacunar ela será apresentada sob a ótica daqueles que a viveram. Para Halbwacs esses aspectos da memória se entrelaçam numa rede na qual estão presentes tanto a memória pessoal como a coletiva que se enreda naquela mais ampla que o autor denomina de histórica. Essas questões da memória, sobretudo de fatos traumáticos e dolorosos, como é caso dos dois documentários de Castillo, serão tratados pela teórica argentina Beatriz Sarlo ao dizer que,

Vivemos uma época de forte subjetividade e, nesse sentido, as prerrogativas do testemunho se apoiam na visibilidade que o “pessoal” adquiriu como lugar não simplesmente de intimidade, mas de manifestação pública. Isso acontece não só entre os que foram vítimas, mas também e fundamentalmente nesse território de hegemonia simbólica que são os meios audiovisuais. “(Sarlo, 2009: 20-21).

Para Sarlo essas questões vinculadas à identidade dos sujeitos podem também ser compreendidas do ponto de vista de uma “guinada subjetiva”, pois “a história oral e o testemunho restituíram a confiança nessa primeira pessoa que narra sua vida (privada, pública, afetiva, politica) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada. “(Sarlo 2007: 19).

A forma que Carmen Castillo utilizou nos seus dois documentários é a utilização da primeira pessoa, ou o método autobiográfico, já que a diretora estará presente em diversos momentos dos filmes e sobretudo na narração que assume o eu da primeira pessoa. Esta tendência autobiográfica no cinema tem tido uma importância crescente na atualidade (Lejeune, 2008), designadamente no cinema documental e dialoga com a questão colocada por Sarlo de uma “guinada subjetiva” que se dá sobretudo a partir dos anos 1970. No cinema documental essa é uma tendência de realização de produtos que dialogam com aspectos da subjetividade como afirma Laura Rascarolli,

But is crucial to recognise that, if much attention will be devoted to authors, one cannot forget that every “I” implies a “you”. Structuralism and enunciation theory have rightly been critiqued for presenting na abstract image of the reader/spectador, who used to be seen as a viewing position, as a standardised and passive figure produced and controlled by the text. The subjective enunciators of first-person films often address spectators directly, sometimes be looking into the camera lens, or else speaking to them, or simply by presenting their discourse as a confession, as a shared reflection, or as a persuasive argument.[...] Hence, spectators of first-person films may feel closer to the text and to this author – and may themselves have a more personal, subjective spectatorial experience than with other types of cinema.” (Rascaroli 2009: 14).

O documentário, favorece as narrativas e memórias autobiográficas e traumáticas, articula o público e o privado, a dimensão pessoal, coletiva, social e política, tornando-se ao mesmo tempo objeto estético, autobiográfico e histórico (Sarkar & Walker, 2010; Winston, 2013).

Carmen Castillo nos dois documentários objetos de análise traz esse diversos elementos pontuados acima e utiliza-se de várias estratégias de mise en scène na construção dos filmes, havendo muitos diálogos entre as estruturas dos dois documentários, que se encontram tanto um, quanto o outro, vinculados a estratégias subjetivas para a (re)construção da memória (pessoal, coletiva e histórica) através de um discurso visual e oral na primeira pessoa.

La flaca Alejanda ou o impossível perdão

La flaca Alejandra é uma obra documental realizada por Carmen Castillo e Guy Girard, tendo sido produzida pelo Institut National de l”Audiovisuel (INA) e por dois canais de televisão europeus, o francês France 3 e o britânico Channel 4. O documentário foi apresentado em diversos festivais de cinema tendo sido premiado no San Francisco Golden Gate Festival e no Human Rights Film Festival de New York. Foi premiado igualmente no Festival Internacional de Programas Audiovisuais de Biarritz onde ganhou o FIPA de Ouro.

Nesse documentário, o terceiro que Carmen Castillo realiza sobre o período em que viveu no Chile e que militou no MIR, a diretora, que vive exilada em Paris desde que foi obrigada a deixar o seu país, retorna a Santiago para reencontrar Marcia Alejandra Merino, também conhecida como “la flaca Alejandra”, por ser alta e magra, que foi um dos pivôs do desmantelamento da organização de esquerda. Marcia entrou ainda jovem, com 17 anos para o MIR e rapidamente alcançou postos bastante elevados na organização, ou seja, conhecia diversas estratégias e pessoa importantes do movimento. Poucos anos depois ela será presa e não suportando as sessões de tortura, denuncia os companheiros, o que terá consequências trágicas para muitos que nesse período irão não somente ser presos, como também serão assassinados pelos militares. O documentário aborda essa espinhosa questão e o encontro da diretora que teve a sua vida completamente destruida devido às atitudes da traidora. O filme também coloca uma importante questão: como filmar o inimigo e o “traidor”, ou melhor, a pessoa que era até um certo momento alguém próximo com quem tínhamos muitas afinidades afetivas e políticas e que a partir de um certo momento se torna um inimigo. Importante sublinhar que Marcia colaborou com a DINA (Diretoria de Inteligência Nacional) durante 18 anos, quando não suportando mais a pressão pessoal abandona a função de colaboradora. Importa acentuar que Marcia Merino havia sido libertada da prisão sete meses antes do encontro com Carmen Castillo e como forma de retratação irá igualmente a diversos tribunais do país a fim de denunciar os seus ex-chefes na DINA. Em certo momento do filme, vemos fotos em preto e branco de Marcia e a voz em off de Carmen Castillo pontuar que os militares diziam da delatora, “esta está sempre triste e com os olhos vazios”, o que evidencia igualmente as dificuldades e a ambiguidade de sentimentos que a denunciante tinha em efetuar este “serviço sujo” e de “traição” em relação aos amigos e companheiros políticos e de luta. Logo no início do filme quando vemos Marcia, ela quase imediatamente pede perdão a Carmen por todo o ocorrido, pela sua fraqueza e denúncia, denunciando alguma culpabilidade pelos seus atos. Durante todo o filme, que tem a duração de 60 minutos, acompanharemos esse longo e difícil percurso para a compreensão sobretudo de Carmen, do que havia ocorrido naqueles anos. No início do filme um plano geral mostra-nos a cidade de Santiago, para logo em seguida vermos fotografias de pessoas amigas presas e desaparecidas e ouvimos em off a voz de Carmen: “Para não esquecer.” Sim, para guardar a memória pessoal, coletiva e histórica. Logo em seguida a imagem apresenta uma casa, aquela em que viveu com o companheiro Miguel Enríquez, assassinado em 05 de outubro de 1974, quando a diretora grávida e ferida será levada para um hospital para em seguida ser expulsa do país pelos militares.

A estrutura do filme acompanha essa busca dolorosa e sofrida de conhecimento e de preservação da memória pessoal por parte de Carmen Castillo de partes de sua história, vivências e na relação que estabelece com aquela que a denunciou. A diretora utiliza-se do recurso de uma viagem de carro pelas ruas da cidade, as duas mulheres sentadas no banco traseiro do carro e que abordam aspectos do passado. Ouvimos a voz de Marcia, fraca, indecisa, quase se desculpando constantemente da sua denúncia e com frequência essa voz é sobreposta à voz da diretora em off, mais vibrante e forte que relembra outros aspectos do passado, apresentando muitas imagens de arquivo, como a de Miguel Enríquez discursando numa assembleia. Essa estratégia será recorrente ao longo do filme, ou seja, a sobreposição de imagens e sons. Em outro momento vemos Carmen caminhar por um cemitério com cruzes pelo chão, e em off escutámo-la dizer: “Uma estranha amnésia se encontra no país, túmulos sem nomes, só datas. Onde se perdeu a história dos vencidos?”

Quase na metade do filme a diretora modifica a estratégia. Agora as duas mulheres estão frente a um edifício que foi para onde Marcia Merino foi levada quando foi presa, e aqui ocorre algo interessante no que concerne a aspectos da memória que pode ser imprecisa e lacunar. Marcia lembra-se do local como um espaço bem mais amplo do que o cubículo que é na realidade e diz que ali naquele pequeno espaço ficavam entre 25 e 30 presas e complementa: “Tanta gente passou por aqui!” Em seguida pulam uma janela do imóvel e adentramos naquela que era a sala de tortura e de sofrimento. Marcia se lembra dos objetos que mobiliavam o espaço agora vazio e afirma: “Eu tentei me matar”.

Logo após um plano geral da cidade ouvimos a voz de Carmen: “Santiago está alheia, indiferente a esta história. Esta cidade poderia ser Berlim, Houston, Paris...com dinheiro tudo pode ser comprado aqui.” E finaliza “uma sociedade inteira que deve esquecer. Que inclusive se esqueceu que tem que esquecer.”

Na parte final do filme, enquanto vemos imagens de velas acesas, imagem com pouca estabilidade e sombria, fazendo referência aos mortos e desaparecidos, ouvimos Carmen em off, “Como perdoar a quem te traiu?”, fazendo aqui menção à situação de delatora da Flaca Alejandra.

O filme apresenta igualmente um almoço num restaurante com antigas companheiras do movimento que relembram situações dolorosas e traumáticas vivenciadas na prisão ou na tortura, uma das mulheres irá abordar mesmo um falso fuzilamento de que foi vítima, dizendo: “para mim, eu seria morta, porque não acreditar que de fato eu iria morrer naquele momento”.

Carmen nessa busca de compreensão de seu passado e de reencontro com a sua história e memória irá igualmente conversar com um dos militares, agora preso, que esteve presente quando do assassinato de Miguel Enríquez. Ele é bastante eloquente, mas em off ouvimos a voz de Carmen se sobrepondo à do militar e dizendo: “Ele não fala nada, mas sabe muito, ele estava presente quando mataram Miguel.” Um outro militar que Carmen busca encontrar, por estar vinculado à sua história e ao assassinato de seu companheiro, nunca será encontrado, e Carmen afirma: “Não responde, vive tranquilo em um regimento em Valdivia, no entanto vejo nessa tarde de inverno em Santiago, que os militares despojados de seu poder absoluto, são homens comuns.” E finaliza o filme com uma imagem em plano geral da cidade e em off ouvimos sua voz: “Há tantos fios para desatar. Não há artigos, nem relatos e tantas memórias com os sobreviventes. A verdade apesar de tudo terá que ser dita, uma e outra vez, para que os espectros do passado deixem de acossar a democracia, para que a vida volte a fluir.”

(Re)Construção do passado em Calle Santa Fe

Calle Santa Fe realizado por Carmen Castillo em 2007, é uma produção envolvendo três países e três produtoras, a chilena Parox, a francesa, Les Films d”Ici e a belga Les Films de la Passarelle. O documentário de 167 minutos foi exibido no Festival de Cannes na seleção Un Certain Regard, e foi premiado no Festival Contemporâneo da Cidade do México, no Festival de Cinema Documental do Equador e no evento Artes Nacionais do Chile.

O filme dá, em certo sentido, continuidade à problemática do filme La flaca Alejandra na busca de compreensão de sua história pessoal e coletiva, através da memória da diretora, bem como de pessoas que estiveram envolvidas com o seu passado, a começar pelos vizinhos da casa onde morava com o seu companheiro Miguel Enríquez, como também de militantes do MIR e de familiares de Carmen Castillo. Todos esses depoimentos são entrecortados por uma grande quantidade de imagens de arquivo das mais variadas origens: material pessoal, familiar, televisivo, material militante etc. A diretora busca através do seu filme, ao longo de quase três horas de duração, restabelecer uma ligação com o seu passado e memória, desatando certos nós a fim de melhor compreender a sua história. O documentário transita com frequência entre a história e memória coletiva, buscando inclusive retraçar a história do Movimento de Izquierda Revolucionaria, do qual o seu companheiro foi um dos fundadores e líder, bem como a sua história e memória pessoal e familiar. O filme transita com frequência entre essas diversas narrativas, mas tem por fio condutor a rua Santa Fe, que dá nome à obra, e os eventos traumáticos vivenciados pela diretora na casa azul dessa mesma rua. Nessa obra já não há mais espaço para um acerto de contas com os militares ou delatores (tal qual foi observado no filme anterior), aqui a memória é ativada com o objetivo de buscar um sentido para o movimento de esquerda do qual fez parte. Nesse sentido é interessante observar a diferença de opinião da geração mais jovem militante do MIR. O filme apresenta sobretudo o depoimento de pessoas mais velhas que vivenciaram experiências similares à da diretora, e com as quais ela se sente confortável para rememorar e partilhar o passado. O documentário também apresenta com grande riqueza de detalhes a história de Miguel Enríquez, na voz off de Carmen: “foi morto aos 30 anos pelos militares, ele era médico e pai de dois filhos.” Serão apresentados diferentes materiais de arquivo, tanto fotos como vídeos, sobre a militância do seu companheiro. Na parte final, haverá mesmo uma homenagem a Miguel Enríquez que será realizada em 2002 no Estádio Victor Jara, onde com o estádio lotado, todos cantam uma música em homenagem ao militante. Carmen está presente aparentando estar bastante emocionada por aquele tributo ao seu companheiro desaparecido tragicamente. Mais a frente vemos na imagem fílmica a mãe de Carmen escrever uma carta a sua filha e em off no final da escrita dizendo, fazendo referência à sua filha: “É preciso seguir adiante, virar a página.” Em seguida num plano apresentando as ruas da cidade ouvimos em off a diretora que, num efeito retórico e afirmativo, responde a sua mãe: “Mas como virar a página? A realidade que deu nascimento a ela nos anos 1960 não mudou muito, a mesma injustiça social, a mesma opressão e desprezo pelo sofrimento. Não sabemos até agora onde estão os corpos dos desaparecidos. Os criminosos não foram condenados.”

O filme tem início com cartelas informando sobre o golpe militar que teve início em 1973 e a repressão ao MIR que se perpetuou até 1990. Em seguida assistimos a um material de arquivo apresentado por um jornalista que informa sobre o ataque militar que ocorreu na Calle Santa Fe, no qual foi morto o militante Miquel Enríquez e feriu a sua companheira Carmen Castillo, nesse momento aparecendo a data do ocorrido 05/10/1974. A imagem agora mostra fotos e revistas dos anos 1970 ao som de uma música instrumental e então aparecem os créditos iniciais do filme. No plano seguinte um carro circula por uma rua e a voz em off de Carmen Castillo, informa-nos sobre o período de dez meses que viveu nessa rua, para em seguida dizer: “Tudo começou nesta casa”.

Observamos aqui, desde os minutos inicias do documentário, os interesses que movem a diretora em busca de compreender o seu passado que está totalmente vinculado a esse país e ao momento político e de militância nos anos1970, ao mesmo tempo que se detém ao longo da narrativa na rua onde viveu com o seu companheiro. Ou seja, o filme traz em sua construção um imbricamento de situações que aos poucos vai dando coerência aos propósitos da diretora nessa busca de compreensão sobre fatos pessoais e afetivos, mas igualmente coletivos e históricos.

A casa azul como Carmen denomina a sua última morada nesse subúrbio de Santiago será o fio condutor da narrativa documental. Acompanhada de uma amiga militante, cujo marido também foi morto pela ditadura, Carmen caminha pelas ruas da vizinhança da sua antiga casa. Entra em lojas e mercados do local, muitos a reconhecem e ajudam-na a reconstruir elementos de sua narrativa pessoal. Querendo em certo momento saber quem a ajudou para que o socorro fosse acionado e ela pudesse ser levada a um hospital, um vizinho identifica o nome da pessoa, Sr. Manuel, e Carmen imediatamente fala que quer vê-lo. Ela o encontra numa esquina do bairro e conversam sobre o ocorrido, o homem abordando os graves ferimentos de Carmen, a necessidade de ajuda que demonstrava, pois ela estava igualmente grávida. Nesse momento, Carmen interrompe-o e diz: “por isso perdi meu bebé”. Ele continua a sua fala dizendo ter visto Miquel Enríquez sair à rua e logo depois volta a entrar na casa quando explode uma bomba. É um reencontro de muita emoção e de memórias dolorosas, percebendo-se que os dois, e sobretudo Carmen, sabem da importância dessa ajuda para sua sobrevivência. Nesse sentido, logo no início da conversa, Manuel diz: “Fico feliz em tê-la ajudado”. No plano seguinte vemos Carmen olhando a cidade através de uma janela ao som de uma música instrumental. Em off ela rememora o encontro: “Obnubilada pelo mal, durante muito tempo no Chile, só via torturadores e fascistas, as humildes palavra de Manuel ‘fiz o que tinha que fazer, é normal’, removem minha memória.”

Ao longo do filme muitos militantes de esquerda e do MIR darão depoimentos a Carmen, os quais serão muitos mais no estilo de uma conversa do que entrevista, existindo uma proximidade e empatia entre as pessoas que falam no filme. Muitas delas perderam entes queridos nessa longa e cruel batalha contra a ditadura militar. Um dos casos é bem emblemático de um casal já idoso que aborda a perda dos três jovens filhos mortos pelos militares. A mãe que terá um papel mais ativo nessa conversa, ao mesmo tempo que fala com Carmen, mostra a foto dos três jovens que, nos anos 1980 iniciaram a militância no MIR, sendo que dois foram mortos no mesmo dia e o terceiro pouco tempo depois. Relato dramático de uma enorme tristeza por essas jovens vidas perdidas e famílias despedaçadas.

Esse é igualmente o caso da diretora que em vários momentos faz menção à sua situação de exilada e quando relembra a situação dos desaparecidos ela diz em voz off : “Sobrevivi, não fui torturada, fui expulsa do país, não conseguiram fazer de mim uma presa desaparecida.” Em decorrência dessa situação Carmen, após viver em alguns países instala-se em França, em Paris, onde vive há mais de quarenta anos. Esse percurso doloroso e traumático terá igualmente consequências para a sua vida pessoal, não tendo forças para criar a sua filha de seis anos e deixando-a com amigos em Cuba por mais de dez anos. Nesse sentido, numa sequência em que vemos manifestações contra a ditadura chilena em Paris, a diretora em off evoca a dificuldade, complexidade e subjetividade da situação de exilio: “Não há um relato único sobre o exilio, há tanto exílios como exilados e muitos exílios no exilio de cada um.”

O filme no seu final retoma a questão que moveu praticamente toda a narrativa, a casa da rua Santa Fe. Em certo momento, Carmen, após uma visita ao local e de conversar com o novo morador, decide comprar o imóvel a fim de transformar o espaço físico da casa num espaço de memória de Miguel Enríquez. Nesse sentido ela tentará convencer um jovem militante do MIR sobre seu projeto, mas não encontrará apoio. Segundo este militante, a homenagem que se quer fazer a Miguel ou a qualquer outro companheiro, tem que ser na prática e não através desse tipo de homenagem, pois para ele: “A história pessoal está presente na história coletiva, mas a pessoa tem que se desapegar da história pessoal para apostar na história coletiva.” Numa sequência mais a frente vemos Carmen e a filha sentadas em frente à casa ela dizendo não sentir mais necessidade de recuperar o imóvel. Mas haverá uma homenagem a Miguel em outubro de 2005, feita por um pequeno grupo de pessoas frente à casa da rua Santa Fé, onde na calçada são colocadas com cimento placas em homenagem ao militante, enquanto que na banda som ouvimos uma música instrumental extra-diegetica, melódica e triste e um militante faz um discurso em homenagem a Miguel.

No final do filme ao som da música Compañero de Marcelo Puente, interpretada por Marcia Montalvo, são apresentadas as pessoas que participaram no documentário através dos seus depoimentos, sobretudo os militantes do MIR, com informações escritas na imagem: o nome, militante, preso, expulso, torturado, regresso.

Compañero, ni por un día te olvidaste de seguir,
siempre aferrado a tu consciencia de existir,
quitando cercos, trabajando de aprendiz,
siempre sembrando esa alegría de vivir,
en ti, en mi, en nosotros,
por esta historia sin perdón

Considerações finais

Aspectos da memória foram trazidos por esses dois documentários que a abordam numa perspetiva e tonalidade pessoal e autobiográfica. Essa memória pessoal entrelaça-se com outras mais amplas em contexto coletivo e histórico. Certamente a questão da história poderá estar presente em muitos relatos pessoais e autobiográficos, mas observamos que no caso dessas duas obras a História de um país está intimamente vinculada à história pessoal da diretora que teve parte importante nos acontecimentos ocorridos no Chile nos anos 1970. Trata-se com certeza de uma (re)construção de memórias, passados e identidades que se entrelaçam de forma subjetiva entre a história na primeira pessoa, através da voz da diretora presente nos dois filmes, sobretudo com o recurso da voz off, como também da história coletiva e política apresentada pelos diversos depoimentos que compõem as obras, como também com o uso de vasto material de arquivo (fotos, programas televisivos, material audiovisual pessoal etc.). Esses dois documentários inserem-se naquilo que Beatriz Sarlo denomina de “guinada subjetiva” ao privilegiar o sujeito e a subjetividade na narrativa. Os dois produtos se complementam em muitos aspectos visando uma compreensão da história chilena, dos duros anos da ditadura militar e do exílio e morte neste período difícil e doloroso (1973-1990).

No primeiro filme, La flaca Alejandra, a diretora parte ao encontro daquela que denunciou o movimento de esquerda ao qual pertencia e que terá graves consequências para sua vida pessoal e de muitos outros jovens companheiros e militantes. Nesse filme Carmen Castillo busca o encontro com pessoas que causaram a morte de seu companheiro bem como a sua expulsão do país, nesse sentido, ela não somente encontra-se com Marcia Merino, “la flaca Alejandra”, que denunciou o MIR, como se encontra também com um militar preso buscando, sem sucesso, ao longo do filme encontrar-se com o coronel que comandou o ataque à casa em que vivia. Já em Calle Santa Fe, com a democracia instaurada no país, Carmen Castillo retorna a Santiago para reencontrar amigos, familiares, militantes e juntos reconstruir a sua história através dessas múltiplas vozes, memórias, espaços e tempos. O tempo passou, as pessoas envelheceram, há um certo reencontro e apaziguamento na voz de Carmen, que assume um tom quase confessional.

Essas duas obras assumem uma importante função de dialogar com o passado para melhor compreender o presente e projetar o futuro. O passado, tantas vezes traumático, silenciado e doloroso, ainda necessita ser revisitado em muitos países da América Latina a fim de que a memória e história de golpes, ditaduras, torturas, perdas, sofrimentos, desaparecimentos, possa enfim ser resgatada, partilhada, ter voz, visibilidade e ser debatida e refletida para que não se repita. O Chile, através da obra documental de Carmen Castillo e de Patricio Guzmán, entre outros, tem, nesse sentido, cumprido um importante papel político, de reconciliação, de resgate da memória e de cidadania, em dar voz, visibilidade e identidade aqueles que por tantos anos foram amordaçados e obrigados a viver e a sofrer em silêncio e na invisibilidade. O cinema, sobretudo documental, constitui um poderoso instrumento e desempenha um importante papel a ser realizado com esse objetivo, resgatando essas narrativas e memórias traumáticas, histórias pessoais, mas que são igualmente coletivas e históricas e que são fundamentais na confrontação com as diversas narrativas oficiais.

Referências bibliográficas

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Traduzido do francês por Laurent Léon Shcaffter. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 1990

LEJEUNE, Philipe. O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2008.

RASCAROLI, Laura. The Personal Camera. Subjective Cinema and the Essay Film. London &New York: Walflower Press, 2009

SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Traduzido do espanhol por Rosa Freire d’Aguiar. Belo Horizonte: Companhia das Letras & Editora UFMG, 2007

SARKAR, Bhaskar; WALKER, Janet. (orgs.). Documentary testimonies: global archives of suffering. New York: Routledge, 2010.

WINSTON, Brian. (org.). The documentary film book. London: Palgrave Macmillan, 2013.

Referências filmográficas

Calle Santa Fe. 2007. Carmen CASTILLO. Chile/França/Bélgica, DVD

La flaca Alejandra. Vidas e muertes de una mujer chilena. 1994. Carmen CASTILLO. França/UK, DVD

El pais de mi padre. Una obstinada utopia chilena. 2004. Carmen CASTILLO. França, DVD

Noite e Neblina (Nuit et Brouillard). 1956. Alain RESNAIS. França, DVD

Shoah. 1985. Claude Lanzmann. França/UK., DVD