Capítulo III – Cinema – Comunicação

A Double Look at Animated and Filmed Images

Um Duplo Olhar Sobre As Imagens Animada e Filmada

Eliane Gordeeff

Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA),
Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal
Universidade Veiga de Almeida, Brasil

Abstract

This paper aims to analyze the dichotomy between the filmed (live-action) and animated images: the daily and night aspects of the images proposed by Gilbert Durand. This look comes from a study on real and animated images, presented in the doctoral thesis “The Representation of the Diegetic Imaginarium by Animation in Live-action Cinema” (2018). In this thesis, based on the concepts of “cool and hot media” from “Understanding Media” (McLuhan, 1964), one considers Animation a Cool medium, while live-action a Hot medium. Therefore, as McLuhan’s work looks at the image dichotomy from the communication domain, it is possible to complete the analysis on this axis through the concepts of Durand’s image. Thus, these concepts start directly from the imaginary studies. The methodology for such an analytical development is the case studies about films that use animated images to represent a part of their narratives. Analyzing them, considering these images by both aspects: in the field of communication (Hot and Cool Media), and the imaginary (daily and night aspect of the image). These analyses are a complementary look to the one presented in the thesis, along with they offer a double look to the study of the Audiovisual image.

Keywords: Cool and Hot Media, Daily and night images, Gilbert Durand, Marshall McLuhan, Animated image, Live-action image

Introdução

No mundo do áudio visual, com todos os muitos avanços tecnológicos dos últimos 20 anos, o mix entre imagem filmada e animada é cada vez mais presente. Onde em muitos casos, é mesmo impossível dissociar um do outro — como em Life of Pi (2012), ou Avatar (2009).

Porém, em muitos casos, e também devido à facilidade oferecida pela tecnologia, é que as interações entre as imagem animada e filmada passaram a ser mais utilizadas pelos criadores de imagens. Com o objetivo de se contar uma determinada narrativa, onde cada estética se adequa, representa um estado, um nível diegético (Genette 1972). Como em filmes como, Frida (2002), The Priest (2011). Onde no primeiro a animação stop motion foi utilizada para representar um sonho, de Frida no hospital; e no segundo, a animação foi usada para contar parte do passado anterior à narrativa do filme.

Exatamente sobre esses casos, que a tese de doutoramento “A Representação do Imaginarium Diegético pela Animação no Cinema de Live-action” se debruça. Neste trabalho, foram considerados os conceitos de Marshall McLuhan (2001) “Cool and Hot Media”, apresentado a Animação como sendo um meio Cool (frio) e o live-action como um meio Hot (quente). Portando, enquanto através do trabalho de McLuhan essa dicotomia foi abordada pela via da comunicação, neste artigo, tenciona-se a complementar esta ótica, através dos conceitos da imagem de Gilbert Durand (1977), considerando o imaginário como ponto de partida. Nomeadamente, os Regimes Diurno e Noturno das Imagens.

A metodologia para tal desenvolvimento analítico, é o estudo de casos, dos filmes Annie Hall (1977), The Beach (2000) e The Fall (2006). Obras audiovisuais de massa, que utilizam a imagem animada para contar parte de suas narrativas, especificamente os seus níveis meta-diegéticos (Genette 1972). Com esse trabalho oferece-se, além de complementar ao que é apresentado na tese, um olhar em duplicado ao estudo da imagem audiovisual.

Breve Síntese: A Animação e o Cinema Live-action, como Cool and Hot Media

Para a melhor perceção do que será desenvolvido neste artigo, faz-se necessária a abordagem resumida do que foi desenvolvido no estudo académico, como ponto de partida para a reflexão e análise do que se objetiva desenvolver. Na tese1 em questão, são cruzados os estudos da comunicação de Marshall McLuhan (1975), da narrativa de Gérard Genette (1972), e as caraterísticas dos dois meios audiovisuais: Animação2 (imagem animada) e Cinema live-action (imagem filmada). O que resultou no contributo de um termo específico, “Imaginarium diegético”, para nomear situações narrativas em que são mostradas cenas que representam sonho3, pensamento4, lembrança e psicadelia/alucinação5 da personagem.

As artes da Animação e a do Cinema, apesar dos seus mais de 100 anos, possuem duas grandes diferenças: na primeira é preciso construir os fotogramas de raiz, enquanto na segunda, estes são capturados automaticamente pela objetiva da câmara. Em animação também há vários tipos de técnicas animadas para se criar a ilusão do movimento, que neste trabalho, como em todo o percurso investigativo da autora, se divide em: desenho animado (manual, clássico, ou 2D digital), stop motion (toda e qualquer animação feita através do “parada-movimento” (animação com bonecos, plasticina, objetos, recorte, areia, pixilation, strata-cut) e animação 3D (animação tridimensional digital executada em computador). Mas de todo, é irrelevante se num processo animado tem-se o computador, muitas vezes, como intermediário entre as mãos do animador e os desenhos (no caso da animação 2D) ou dos elementos (no caso da animação dita, 3D). De qualquer forma, é preciso que se crie visualmente todos os elementos que compõem a narrativa, além de seus movimentos. Porém, é possível criar também pequenas animações, simplesmente através de desenhos nos cantos de um caderno.

Por outro lado, para se ter um filme de ação real, é sempre necessário uma máquina, uma câmara, e por esse motivo muitos o consideram como uma arte da modernidade6. E é sobre essa diferença primordial que é possível a associação aos conceitos de cool e hot media, de Marshall McLuhan.

Já na década de 1960, na primeira edição de seu livro Understanding Media7, McLuhan disserta sobre vários meios de comunicação classificando-os com duas caraterísticas distintas. Meios que têm alta resolução, que fornecem informações diretas e integrais ao homem, que ele nomeia de hot media, e o oposto, meios de baixa resolução, que fornecem informações de forma pouco definida, onde é necessário uma “complementaridade” por parte de quem o vê, para o seu completo entendimento. Os quais ele denomina de cool media. Nessa divisão, o próprio McLuhan, classifica o cinema e a fotografia como sendo meios quentes — imagem real, mecanizada, de alta resolução — e as charges e desenhos animados (da época) como sendo meios frios — manual, pouco definido.

Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente, [...], de um meio frio, [...]. Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em “alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca informação visual.8 (McLuhan 2001, 22)

Diante deste contexto, uma das hipóteses comprovadas da tese foi a de perceber a Animação como meio cool. Representações pouco definidas, estilizadas, que demandam a interpretação da audiência, principalmente quando em representação gráfica linear ou cromática (desenho ou pintura)9. E obviamente, não em utilização da animação como um efeito especial, mas quando esta é utilizada para se representar momentos da narrativa, para ajudar a contar a história, não somente em termos da literalidade do texto narrativo, mas em termos de perceção emocional e psicológica através de sua plástica, do seu visual específico e particular - que é tão distinta da materialidade da imagem foto-realista. Mas tal situação se manifesta em que contexto? E neste ponto faz-se necessária um estudo específico, através dos estudos da narrativa de Gérard Genette (1972).

Uma das contribuições de Genette foi a planificação dos níveis diegéticos. Quando o teórico classifica:

- a narrativa principal, no nível intradiegético: pois apresenta o que ocorre “dentro” da diegese da história;

- o nível que mostra algo da história mas que está fora da linha narrativa principal, o meta-diegético: quando por exemplo, mostra um flashback, um forward, um pensamento;

- e o nível extradiegético, que faz parte do que se assiste em uma obra audiovisual, mas efetivamente não tem origem na diegese (como a banda sonora ou um narrador).

Portanto, como o próprio título da tese mencionada informa, é um estudo da representação do imaginarium diégetico pela animação no cinema live-action. Ou seja, a representação dos momentos meta-diegéticos da narrativa (sonho, imaginação, lembrança, alucinação) em animação (um meio cool), dentro de uma narrativa em imagem filmada (um meio hot), no nível intradiegético.

O estudo de Genette, forneceu a estrutura para a contextualização do que foi apresentado, concluindo e fornecendo as bases para o objetivo deste artigo, que é desenvolvido a seguir.

O Regime Noturno e Diurno, e as Imagens Animada e Filmada

O Regime Noturno e Diurno são conceitos desenvolvidos por Gilbert Durand no seu livro Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, de 196010. Como apontado no prefácio da sua edição de 2016, Durand procura o estudo de um imaginário do homem na sua generalidade, e não um imaginário específico e restrito a questões sociais, temporais ou culturais.

[...] ele levará em consideração alguns dos dados mais positivos e científicos (Pavlov, Piaget), mas também as conquistas das ciências tradicionais, experiências da mente como relacioná-las e amplificá-las, gnose, teosofia, esoterismo, alquimia, místicos, não só do Ocidente cristão, mas também do Judaísmo e do Islã, ainda mais das sociedades africanas, indianas e chinesas. Esse descentramento e ampliação antropológica pretende, de várias maneiras, romper com uma filosofia e as ciências humanas, acusadas de ser muito etnocêntricas e logocêntricas11. (Wunenburge 2016, XI-XII)

Nessa busca, o filósofo cunha os conceitos de Regime Diurno e Noturno das imagens, que correspondem a uma conceção de Durand, sobre alguns elementos, formas e símbolos presentes em várias culturas e sociedades, em vários momentos ao longo da história do homem. E sobre os quais ele descreve cultural, histórica e filosoficamente, analisando as suas similaridades. Assim sendo, Durand nomeia como a dicotomia e duplicidade primordial entre o Dia e a Noite, o Sol e a Lua, o homem e a mulher, o animus e a anima (Durand 2010, 37), os lados esquerdo e direito do cérebro (Durand 2010, 42) como sendo “representantes” desses dois grandes regimes de imagem. Onde o primeiro refere-se a tudo que é luminoso, claro, ativo, reto, definido. Enquanto o regime noturno engloba tudo o que é escuro, sombrio, passivo, sinuoso, indefinido.

Semanticamente falando, pode-se dizer que não há luz sem trevas enquanto o inverso não é verdadeiro: a noite tem uma existência simbólica autônoma (Durand 2010, 67)12.

Tal observação de Durand, nos induz a conclusão de que a escuridão precede a luz em termos cronológicos, assim como no desenvolvimento humano: a selvajaria e o primitivismo humano cedeu lugar ao racionalismo, à lógica, e à ciência.

Portanto, sob essa influência e observando as características dos dois regimes classificados por Durand, é possível associar o regime diurno das imagens àquela luz, através da qual, ocorre a criação da imagem instantânea da fotografia e da imagem filmada. O que nos leva na sequência da reflexão ao regime noturno, que é escuro, fantasmagórico, remetendo-nos por sua vez, às imagens das lanternas mágicas, à animação Fantasmagorie (1909) de Émile Cohl, e portanto, às origens da arte animada.

Consequentemente, por esse caminho, podemos estabelecer a conexão entre a imagem real e o regime diurno, enquanto a Animação alinha-se ao regime noturno de Durand. Tal associação é coerente inclusive em termos cronológicos pois, primeiramente desenvolveu-se a animação, com o germinar da lanterna mágica e dos brinquedos óticos13. Somente depois com o desenvolvimento da Fotografia, é que se tornou possível a captação do movimento em imagem real14.

Porém, há ainda outras observações relevantes como justificação a essa consideração - o alinhamento dos meios animado e filmado com os regimes noturno e diurno das imagens, respetivamente. E estas são de viés estrutural, de como o meio, no caso a animação, processa-se. Pois esta “surge primeiro” como já observado, e sendo coerente com a própria afirmação de Durand: “o regime diurno da imagem defini-se, portanto, de uma maneira geral, como regime da antítese” (2010, 67).

Primeiramente, uma das principais características do regime noturno é o “eufemismo”, assim como o tornar pequeno das formas (Durand 2010, 200-213). O que é tão presente nas animações com a miniaturização das personagens, ambientes — nomeadamente nas animações stop motion — e mesmo o eufemismo das narrativas — quando se apresentam situações dramáticas de forma mais lúdica e metafórica - como em obras como Ruca (Jiri Trnca 1965) e Aria (Pjotr Sapegin 2001).

Por outro lado, uma das mais importantes características animadas é a metamorfose - não há como representar visualmente uma transformação física de um elemento, se não for através da utilização de animação. Ao abordar o Regime Noturno, Durand menciona a “metamorfose” implícita e explicitamente, ao refletir sobre as fase da lua, os mitos lunares, o “I Ching, livro das mutações”, a germinação da semente, sem falar nos mais diversos mitos gregos, egípcios, hindus, entre outros (Durand 1997, 294-298). Porém, diversos elementos e a própria caraterística deste regime está vinculado à maleabilidade, à incerteza, à mutação — a água, a noite, a bruma, o engolir, a morte (Durand 1997, 193-374).

Outra característica animada é o uso da repetição. Os ciclos animados de caminhada, o movimento automático das bocas de um personagem ao falar, ou a continuidade do movimento de uma árvore ao vento, por exemplo, são realizados através de repetição contínua de um ciclo de animação em looping, com uma quantidade fixa de desenhos. E Durand destaca também esse aspeto, a repetição, também dentro do regime noturno:

O espaço sagrado possui esse notável poder de ser multiplicado indefinidamente. [...] “A noção de espaço sagrado implica a ideia de repetição primordial, que consagrou esse espaço transfigurando-o.” O homem afirma assim o seu poder de eterno recomeço, o espaço sagrado torna-se protótipo de tempo sagrado. A dramatização do tempo e os processos cíclicos da imaginação temporal, só vem, parece, depois desse primordial exercício de redobramento espacial. (2010, 249)

Assim sendo, a maleabilidade, a imprevisibilidade da imagem animada, que “tudo pode fazer” em contraponto à dureza e realidade da imagem foto-realista da imagem filmada se ajustam aos regimes noturno e diurno, respetivamente de forma coerente e conclusiva. O que demanda a análise in loco dessa proposição — o estudo de casos —, fazendo entrelaçamento com o exposto no item anterior deste artigo.

Estudo de Casos

Com o objetivo de apresentar o estudo proposto, faz-se necessário uma explanação de facto sobre as interligações entre, imagem animada + cool media + Regime noturno, e imagem filmada + hot media + Regime diurno. O que é apresentado em um estudo de casos de três obras dos audiovisuais, em live-action, que utilizam animações para representar momentos do imaginarium diegético de suas narrativas.

Destaca-se que, como referido na tese (Gordeeff 2019, 42), devido a semelhança de impressão visual entre as imagens de sonho, lembrança, imaginação, e pelas dimensões do artigo, optou-se por apresentar apenas duas dessas situações. Porém, uma em cada um dos “tipos” de animação: desenho animado, stop motion e 3D. Os filmes selecionados foram selecionados a partir de uma lista de filmes que foram avaliados durante o processo de tese, e que não foram utilizados na altura. São eles:

- Annie Hall (Woody Allen 1977): longa-metragem estadunidense (comédia/romance) que utiliza desenho animado, ao representar o pensamento / a fantasia de Alvy Singer (Woody Allen).

- The Beach (Danny Boyle 2000): longa-metragem anglo-estadunidense (drama / aventura) que apresenta um momento de delírio da história, representado através de animação 3D digital.

- The Fall (Tarsem Singh 2006): longa-metragem anglo-estadunidense (drama/fantasia) que apresenta um momento de sonho da história, representado através de animação em stop motion dos irmãos Lauenstein.

As Análises

Annie Hall (Woody Allen 1977)

Um dos mais reverenciados filmes de Woody Allen, esta comédia romântica conta a história de Alvy Singer (Woody Allen) que, divorciado e em terapia há mais de 10 anos, apaixona-se por uma jovem cantora, Annie Hall (Diane Keaton). Eles resolvem morar juntos, mas logo surgem as crises conjugais.

No filme, o diretor-ator-personagem-narrador foge do paradigma da narrativa fílmica que se conta sozinha, onde o espetador é um simples voyeur. Por diversos momentos Alvy quebra a “quarta parede”, e dirige-se ao espetador, como narrador que é, refletindo sobre suas inquietações, emoções e expetativas.

Em uma dessas cenas, apresentam-se à audiência as lembranças de Alvy Singer quando criança, como um pensamento seu, sobre as origens das suas frustrações amorosas. Ele, então, era apaixonado pela “Madrasta” da Branca de Neve. A sequência foi realizada em desenho animado tradicional (na altura, não havia informatização do meio) e com uma estética semelhante a de Walt Disney (produtor da clássica longa-metragem de animação Snow White and the Seven Dwarfs, de 1937, e citada por Woody Allen e Marshall Brickman, os guionistas do filme). Na cena animada, Alvy (em desenho) apaixonado, contracena com a Madrasta, que não lhe dá muita importância.

Como um pensamento, ou lembrança, ou mesmo imaginação da personagem, a sequência animada encontra-se no seu nível meta-diegético, segundo Genette (1972), pois está fora da cronologia da narrativa principal, e mesmo fora da sua linha narrativa principal (o nível intradiegético).

Em termos dos estudos de McLuhan, a sequência pode ser considerada cool, pois esta assemelha-se a uma charge. Os desenhos que representam a Madrasta e Alvy Singer, apesar do estilo de caráter “Disneyano”, são mais estilizado que este, utilizando cores planas sem sombras (o que fornece a ilusão de tridimensionalidade na imagem bidimensional). O storyboard da sequência, bem poderia ser uma pequena banda desenhada de jornal. Portanto, são imagens de “baixa resolução” (McLuhan 2001, 22-23), ou seja, que demandam do espetador um outro entendimento sobre seu significado. Pois, esta traz para a narrativa de imagem real, um outro nível de informação, mais lúdica e de diferentes natureza e graus de representação.

Sob o ponto de vista do trabalho de Durand, identifica-se o regime noturno da imagem, na miniaturização da personagem (1997, 211-214), que passa a ser um desenho que contracena com uma personagem de animação. Outra característica desse regime, é a completa fantasia (no sentido de fantasiar, de absurdo) que esta sequência mostra ao espetador, criando um momento cómico dentro da narrativa de romance. Além da questão feminina apresentada, onde a personagem (masculino, solar, diurno, segundo Durand) está emocionalmente à mercê dos poderes e da personalidade enigmática da Madrasta da Branca de Neve. Recorda-se que na história original, ela é na verdade uma “bruxa” com poderes mágicos, expressão da anima, outra qualidade inserida no regime noturno (Durand 1997, 382).

The Beach (Danny Boyle 2000)

O filme é baseado no romance homónimo de Alex Garland, de 1996, e conta a história de um grupo de jovens que em viagem na Tailândia, encontram uma ilha paradisíaca (que na verdade esconde uma plantação para produção de drogas), e uma comunidade que vive isolada da sociedade. Porém, com liberdade inclusive para consumo de drogas (apesar de ser gerida sob a férrea mão de uma líder). O que para os jovens, em especial Richard, é mesmo o paraíso. A sequência analisada, é um excerto de 28 segundos, em que Richard, já foi banido da comunidade e está vivendo na selva vizinho, a consumir entorpecentes e experimenta um estado de delírio.

Nesta cena, ele se vê como se estivesse dentro de um videogame, com tarefas a cumprir, recebendo consequentes pontuações. A estética de game é coerente, e não cria atrito com a narrativa, uma vez que, Richard é um jovem que gosta desse tipo de passatempo. Em termos narrativos, esta sequência do imaginarium diegético de Richard, encontra-se no nível meta-diegético, enquanto o estado do jovem que se encontra na floresta está no intradiegético da história.

Analisando ainda sob a ótica dos conceitos de McLuhan, a sequência também pode ser considerada um meio cool, pois a representação 3D, é típica dos games do início do século XXI, e ainda com muito pouca semelhança foto-realista, como a dos games da atualidade. Ou seja, esta apresenta “baixa resolução” (termo de McLuhan), demandam do espetador algum raciocínio a respeito da nova imagem, animada, de visual diferente da foto-realista apresentada até o momento. Os efeitos digitais foram realizados pela companhia britânica Framestore.

Analisando em termo dos conceitos de Durand, as imagens da alucinação de Richard, apresentam algumas características do regime noturno: há uma série de pequenas repetições (Durand 1997, 249), principalmente na movimentação da personagem inserida no game. Observa-se também a eufemização (Durand 1997, 200-206) da morte da personagem que, como um avatar de game, tem “vidas” que podem ser consumidas, na estratégia de conseguir chegar à próxima fase. Ou ainda, de gastá-las todas, perdendo a partida. E é o que ocorre com o avatar de Richard. Outra característica é a imagem circular (Durand 1997, 247-249), a centralização, que se percebe na narrativa do game, que também é repetitiva: a cada nova “vida” da personagem, as movimentações, as contagens e ações dentro da fase, repetem-se ciclicamente.

The Fall (Tarsem Singh 2006)

Esta longa-metragem conta a história de Roy Bandit Walker, um ator que se restabelece em um hospital, depois de um acidente nas gravações de um filme, em que ele passou por deceções amorosas. No hospital, deprimido, ele encontra amizade com Alexandria, uma menina de cinco anos. Com o passar do tempo, Roy começa a contar uma história à menina, o que é um tipo de catarse para a sua questão romântica. A longa apresenta então, várias sequências dessa história contada, ao longo da narrativa fílmica. Mas são situações que são “fictícias” — meta-diegéticas — dentro da narrativa principal, que é intradiegética. Como também o é, o sonho de Alexandria, que ocorre durante o tempo que a menina está inconsciente, mas assistida no hospital, depois de sofrer uma queda —como ocorreu com Roy, no início da história. Esta sequência é realizada em stop motion com bonecos, e com uma estética semelhante a dos Quay Brothers (sombrio, enigmático, mórbido), onde uma boneca está congelada. O gelo derrete, e mostra-se a boneca em uma pequena plataforma de madeira, como se estivesse em um local de tortura. Outros três personagens (bonecos) de túnicas vermelhas, observam um tipo de ecrã circular. Que mostra a radiografia da cabeça da personagem. Eles a espetam com alfinetes (como se fazem com borboletas, e isso está explicito na imagem), cortam-lhe a cabeça e tiram-lhe o cérebro. Este é uma folha de papel furada que eles examinam com atenção. Logo após, surge a boneca com a cabeça enfaixada, seguida da imagem da menina, deitada, também com faixas na cabeça.

Considera-se a sequência como um mau sonho — Gleitman, Fridlund e Reisberg (2014, 7-10) consideram os sonhos como manifestações mentais, que podem ser afetadas pelo ambiente e pela Cultura. Neste caso, o sonho15 de certa forma, é a interpretação inconsciente de Alexandria, a partir do que percebe do ambiente enquanto esteve desacordada.

A partir deste contexto, é possível perceber a sequência animada como algo indefinido, pouco claro e que demanda do espetador uma interpretação, um raciocínio para entendê-la dentro do contexto do filme. Portanto, esta apresenta as caraterísticas de um meio Cool, seguindo McLuhan, e como as análises anteriores.

Por outro lado, comparando-se com as longas precedentes, é a sequência mais “noturna”, observando-se os estudos de Durand. Ela apresenta um ambiente sombrio, primeiramente molhando, com um bloco de gelo que derrete, gerando água (Durand 1997, 222, 226) que escorre, deixando ver a boneca. É possível identificar vários elementos circulares (gotas que derretem, o ecrã, a cabeça da boneca, o corte na cabeça, a cabeça do alfinete) (Durand 1997, 312-325) e a imagem de animais (no caso, as borboletas), todos considerados como presentes, no Regime Noturno da Imagem.

FilmesCool MediaRegime Noturno
Annie Hall (Woody Allen 1977)Imagens de baixa definição;
Demandam a participação da audiência para a sua perceção
(que pode variar de acordo com a capacidade e conhecimento individual de cada espetador)
Miniaturização
Uso de fantasia
Elemento feminino
The Beach (Danny Boyle 2000)Repetição
Eufemização
Ações em ciclos
The Fall (Tarsem Singh 2006)Ambiente sombrio
A água e sua metamorfose
Formas circulares
Presença de animais

Tabela 1 – Características identificadas nas análises Filmes X Cool Media X Regime Noturno das Imagens

Conclusão

Como foi desenvolvido no item precedente (e tendo em consideração as imagem animadas quando utilizadas para representar o Imaginarium diegético das narrativas), foi possível perceber como os estudos da “estrutura antropológica do imaginário” de Durand, são convergentes com os estudos da comunicação de McLuhan. Ou seja, como a noite, o feminino, a água, são “cool”, e por sua vez, o dia, o masculino, o fogo, são “hot”.

O mesmo favorecimento que o nível meta-diégetico propicia a qualquer animação ao representá-lo dentro de uma narrativa de vida real — pois ele está em outro nível da narrativa, o que em si já valoriza o senso como sendo algo de outra natureza —, o mesmo ocorre em relação ao conceito de “noturno” de Durand. Tanto pela natureza dos temas (são momentos de representação do Imaginairum diegético da narrativa), como por ser algo mais estranho ao “diurno”. Mais diverso, “misterioso” à realidade objetiva do visual foto-realista do Cinema live-action.

Outra constatação é que a metamorfose (potência animada) termina também por ser utilizada, devido à necessidade de adaptação nas representações, em todas as produções que tenham o mesmo perfil, das abordadas neste estudo. Não como processo transformativo, mas como resultado da adaptação da representação da personagem: da imagem real para o ambiente animado. E para que essa transposição se realize, é necessário ainda “tornar pequeno”, o que mais uma vez, denota a valorização do Regime Noturno. Observando ainda que, ao fazer uso da miniaturização, esta não deixa de ser uma espécie de metamorfose (como mudança da forma) necessária à personagem, para que esta adentre neste novo nível diegético.

Assim sendo, adicionalmente é possível concluir que, se o Regime Noturno está alinhado com a Animação, como Cool Media, por oposição lógica — e de acordo com o expresso por Durand (1997, 67) e mesmo por McLuhan (2001, 31) —, o Regime Diurno está alinhado com o Cinema live-action, como Hot Media. Portanto, é possível refletir que, se calhar, as imagens do ecrã possuem uma atração tão definitiva, exatamente por abarcarem, ao mesmo tempo de alguma forma (e de acordo com os objetivos de cada obra), os dois Regimes das Imagens: a imagem objetiva projetada (mesmo somente em live-action) e as ficções, as fantasias, o que é imaginado, falso, apresentado em sua narrativa16. Portanto, com o uso da Animação em uma obra de vida real, esta oferece mais informações visuais ao espetador.

Para finalizar este estudo, conclui-se que a Animação pode ser analisada por diversos prismas de forma a compreendê-la melhor, enquanto meio, corpus, imagem, sensações e representações. Observando inclusive, caminhos menos objetivos, por assim dizer, como os estudos de Durand, que não excluem os já trilhados, mas agregam outros significados, ampliando o campo de possibilidades da Animação, enquanto meio e expressão artística.

Notas finais

1A tese também aborda o “arrefecimento” da imagem filmada, a “eletrificação” e o “aquecimento” da imagem animada, mas que não se fazem necessários para este estudo.

2Considera-se “animação” o que é definido pela ASIFA (2021): “The art of animation is the creation of moving images through the manipulation of all varieties of techniques apart from live action methods.”

3Ocorre durante o sono. “[…] trata-se de uma série de cenas, umas vezes inteiramente comuns, outras vezes estranhas e desarticuladas, […]. Enquanto se desenrola, a representação do sonho é, em regra, experimentada como real. […]” (Gleitman, Fridlund & Reisberg 2014, p. 6).

4Momentos de sonhos, de lembranças (memórias, recordações, factos do passado), de pensamentos (elaborações mentais conscientes, “sonhar acordado”, pensamentos sobre alguma coisa ou facto) e de alucinações (efeitos visuais inconscientes ou incontroláveis, movidos por algum motivo interno ou externo à personagem)

5Alucinações “consistem em experiências que são percebidas na ausência de estimulação sensorial real” (Gleitman et al. 2014, 1048). Muitas vezes “se devem a uma incapacidade para distinguir entre experiências que se originam no interior e experiências exteriores, ou seja, entre memórias e fantasias e percepções exteriores” (1048). A alucinação pode ser uma consequência de uma psicopatologia (como um estresse extremo, depressão, perturbações do pânico ou obsessivo-compulsivo, síndromes, esquizofrenia, etc) (1029-1100). Estas podem ter origem também no consumo de barbitúricos ou entorpecentes.

6Esse assunto foi analisado em outro artigo, já editado pelo Avanca Cinema: Modernidade e Pós-modernidade no Audiovisual (Gordeeff, Queiroz 2016).

7Neste artigo, foi utilizada a edição Estado-unidense de 2001.

8Tradução da autora, a partir do original: “There is a basic principle that distinguishes a hot medium […] from a cool one […]. A hot medium is one that extends one single sense in ‘high definition’. High definition is the state of being well filled with data. A photograph is, visually, ‘high definition’ A cartoon is ‘low definition’, simply because very little visual information is provided”. (McLuhan 2001, 22)

9Há outras considerações a esse respeito, onde as animações 3D podem ser consideradas meio Hot, o que é amplamente desenvolvido e estudado na citada tese, mas que não cabe dentro do enquadramento deste artigo.

10Essa foi a data da primeira edição. Neste trabalho foi utilizada a versão brasileira de 1997, editada pela Martins Fontes.

11Tradução da autora,a partir do original: “[...] il va prendre en compte certaines données les plus positives et scientifiques (Pavlov, Piaget), mais aussi les acquis des sciences traditionnelles, des expériences de l’esprit telles que les relatent et les amplifient, les gnoses, la théosophie, l’ésotérisme, l’alchimie, les mystiques, non seulement de l’Occident chrétien, mais aussi du judaïsme et de l’islam, plus encore des sociétés africaines, indiennes, chinoises. Ce décentrement et cette amplification anthro-pologiques se veulent en rupture à plusieurs titres avec une philosophie et des sciences humaines, accusées d’être trop ethnocentrées et logocentrées”. (Wunenburge 2016, XI-XII)

12Lembrando o aforismo bíblico alegórico do Géneses: “e fez-se a Luz” - o que significa que a escuridão a precedia.

13Primeiro se desenvolve a Lanterna Mágica de Athanasius Kircher (1602-1680). Já no século XVIII, surgem os brinquedos mecânicos como o taumatroscópio, o fenaquistoscópio, o zootrópio e o cineógrafo (Flipbook) (Furniss 2008). E no século XIX, Émile Reynaud (1814-1918) estreia o Praxinoscópio, que projetou imagens animadas, pela primeira vez em público, em 28 de outubro de 1892 (três anos antes do cinematógrafo dos irmãos Lumière), no Musée Grévin, em Paris, sendo considerado como data oficial do “nascimento” do Cinema de Animação (ASIFA).

14Em 28 de outubro de 1892 (três anos antes de o cinematógrafo ser apresentado pelos irmãos Lumière), no Musée Grévin, em Paris, Émile Reynaud começa a divertir o público, com o seu “Teatro Ótico”, um instrumento chamado Praxinoscópio (um tipo de lanterna mágica).

15O animadores que produziram esta sequência afirmam em seu website que é um “nightmare” (pesadelo, mau sonho) da personagem (https://www.lauenstein.tv/the-fall.php).

16Talvez, devido a completude que esse conjunto oferece — seguindo as reflexões de Durand, sobre a dualidade intrínseca de todas as culturas.

Referências

Livros

Durand, Gilbert. 1997. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à arquetipologia geral; São Paulo: Martins Fontes.

Durand, Gilbert. 2010. O Imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem (4ª. Ed.). Rio de Janeiro: Difel.

Furniss, Maureen. 2008. The Animation Bible! London: Laurence King Publisher.

Genette, Gérard. 1972. Figures III. Paris: Editions du Seuil.

Gleitman, Henry, Fridlund, Alan. J., Reisberg, Daniel. 2014. Psicologia. 10ª. Ed.. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Livro eletrónico e textos em linha

ASIFA- International Animated Film Association. 2021. Statutes.

Lauenstein & Lauenstein. S.d. The Fall - animated sequence. https://www.lauenstein.tv/the-fall.php. Acedido em 15 de março de 2021.

McLuhan, Marshall. 2001. Understanding Media (9ª Ed.). Massachusetts: MIT Press. https://archive.org/details/understandingmed0000mclu_w5u1/page/n5/mode/2up. Acedido em 10 de março de 2021.

Wunenburge, Jean-Jacques. 2016. “Préface à la nouvelle édition (2016)”. In: Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire: Introduction à l’archétypologie générale 12e édition. Bordas, Paris: Dunod. https://www.dunod.com/sites/default/files/atoms/files/9782100737796/Feuilletage.pdf. Acedido em 15 de março de 2021.

Tese/Dissertação

Gordeeff, Eliane (2018). “Representação do Imaginarium Diegético pela Animação, no Cinema Live-action”. Tese de Doutoramento, FBAUL-Universidade de Lisboa

Filmografia

Annie Hall. 1977. De Wood Allen. USA: Rollins-Joffe Productions.

Aria. 2001. De Piotr Sapegin. Canadá/Rússia: National Film Board of Canada/Pravda. https://www.onf.ca/film/aria_fr/.Acedido em 15 de março de 2021.

Avatar. 2009. De James Cameron. USA: Twentieth Century Fox Film Corporation. DVD

Fantasmagorie. 2009 [1909]. De Émile Cohl. In Le Cinéma Premier [DVD]. France: Gaumont Vidéo.

Frida. 2002. De Julie Taymor. USA, Canada, Mexico: Handprint Entertainment et al. DVD.

Life of Pi. 2012. De Ang Lee. USA, Taiwan, UK: Fox 2000 Pictures et al. DVD.

Ruca. 1965. De Jiri Trnka. República Tcheca: Kratky Film Praha, 1965. On-line (18 min), cor. https://vimeo.com/116020986. Acedido em 15 de março de 2021.

The Beach. 2000. De Danny Boyle. UK, USA: Figment Films.

The Fall. 2006. De Tarsem Singh. USA, South Africa, India: Googly Films et al. DVD.

The Priest. 2011. De Scott Stewart. USA: Michael De Luca Productions et al. DVD.