Capítulo II – Cinema – Cinema

Women and the brazilian audiovisual narrative: reconfigurations from time frames

Mulheres e narrativa audiovisual brasileira: reconfigurações a partir de marcos temporais

Patrícia Cardoso D’Abreu

Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

Flavia Leiroz

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Abstract

In 2020, we celebrate 25 years of the Beijing Action Platform. In Brazil, we now have 14 years of the Maria da Penha Law and 5 years of the Feminicide Law. Based on these three time frames, we made a quantitative survey of Brazilian cinematographic and audiovisual documentary productions on feminicide. These works are analyzed qualitatively, based on Paul Ricouer’s triple mimesis and the relationships he established between time and narrative. The social and cultural context of insertion of the narrated cases, the possible mediations and the voices of the narrator are also problematized by three aspects: the reflections on women as negative, by Simone de Beauvoir; the notion of silencing worked on by Rebecca Solnit; and Judith Butler’s gender as performance approach. The chosen theme and methodology are potent tools for understanding the documentary narrative composition about feminicide that explains ruptures and permanences of gender stereotypes.

Keywords: Brazilian women, Audiovisual narrative, Documentary, Feminicide, Genre.

Introdução

Em 1995, quando a Organização das Nações Unidas completava 50 anos de existência, a Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim, estabelecia uma plataforma com propostas, objetivos estratégicos, ações e medidas recomendadas para “assegurar a plena implementação dos direitos humanos das mulheres e das meninas como parte inalienável, integral e indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” (ONU 1995, 151).

O documento representa uma síntese do que movimentos e organizações feministas haviam proposto, construído e refletido sobre demandas por direitos até 1995. No entanto, era a primeira vez, como ressalta Montserrat Boix (2002), que se levantava a reivindicação da comunicação como um dos direitos humanos básicos e peça-chave para mudança social demandada pelas mulheres na luta pela igualdade de direitos.

Dessa forma, há 25 anos, o olhar mais direcionado e pragmático sobre a perspectiva de gênero permitiu que a agenda feminista percorresse o caminho da voz como o direito de autodeterminação, de participação, de concordância ou divergência, de viver, interpretar e narrar.

Boix cita a ciberfeminista Joelle Palmieri para reforçar o quão importante foi essa decisão:

Podemos reverter a relação de forças porque temos o conteúdo e as práticas. É imprescindível ter uma estratégia ofensiva, mesmo agressiva. Não temos nada a perder e tudo a ganhar. É assim que podemos mudar a imagem na mídia: como atrizes (autores, designers, artistas, cineastas ...) como sujeitos (cotidiano, política, trabalho, violência ...) como público (Boix).

Desde então estudos relacionados ao percurso (Madsen 2016) e monitoramento de processos (GGMMP 2015) foram feitos, apontando que as desigualdades de gênero são partes da causa da invisibilidade política e da escassez de narrativas referenciais individuais e coletivas de mulheres no que conhecemos como mídia. No entanto, a invisibilidade e o silêncio não se restringem a uso de ferramentas e técnicas de comunicação e informação, mas dos sistemas e tecidos que os enredam.

No Brasil, há múltiplas e diversas perspectivas possíveis para percorrer o caminho de vozes femininas na produção de textos, imagens e narrativas, e a sutil e/ou explícita violência de seus silenciamentos e suas graves consequências na formação de nossa sociedade. Para este trabalho, escolhemos a produção de documentários sobre o crime de feminicídio. Previsto na legislação desde a entrada em vigor da Lei n.º 13.104/2015 (Brasil 2015) - que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) como circunstância qualificadora de crime hediondo, tal qual o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros – o feminicídio é o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino, isto é, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Os parâmetros que definem a violência doméstica contra a mulher, por sua vez, estão estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340) desde 2006: qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual. A tipificação do assassinato por motivo de gênero como feminicídio é importante porque a nomeação não se restringe a uma condição biológica de fêmea, mas sim a uma ideia de feminino que se articula à lógica de opressão contra as mulheres em suas diferentes condições (interseccionalidades).

Assim, 1995, 2006 e 2015 são âncoras temporais escolhidas para estabelecer um olhar que se constrói e se debruça sobre o recorte de gênero na narração de histórias presentes no tecido social de um país que tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, com uma média de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres, segundo a Organização Mundial da Saúde.

O que se fala, representa, produz sobre isso? De 1995 a 2020, houve produção de documentários cinematográficos que expusessem o assassinato de mulheres por motivo de gênero no Brasil? Se produtos midiáticos documentam e proporcionam transformações socioculturais mais amplas, entendendo que as práticas de comunicação são constituídas e delimitadas pelos recursos comunicativos, pelas disposições culturais e pelas condições sociais presentes numa sociedade em determinada época, as vozes das que morreram reverberaram em produções de e sobre mulheres?

Como forma de engajamento criativo no mundo, o documentário é potente no que se refere à mudança de perspectiva social sobre determinados temas ignorados, suprimidos ou mesmo silenciados por determinadas estruturas. No que tange às demandas identitárias, pode, inclusive, ser memorável no combate a opressões historicamente constituídas.

Um levantamento quantitativo e não exaustivo de documentários cinematográficos brasileiros feitos juntos à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), à Agência Nacional de Cinema (Ancine) e aos destaques do festival É Tudo Verdade (1996-2020) qualifica a presença e a abordagem do assassinato de mulheres. Ao mesmo tempo, a análise não formal, mas conjuntural, dos documentários O Silêncio das Inocentes (Gazzola 2010) e Eles Matam Mulheres (Lorenzini 2019), após a Lei do Feminicídio, nos permite observar que discursos constroem realidades e a nomeação de questões estruturais quebram o inaudito, promovem a reflexão necessária para a prática de existências femininas em nossa sociedade.

Como tempo e narrativa se tornam ações complementares, interdependentes e indissociáveis para nossa análise, seguiremos um roteiro proporcionado pela tríplice mimese de Paul Ricouer (2010). Para ele, o tempo se torna humano quando narrado, e a narrativa atinge seu significado quando se vincula à condição humana para significar e entender os acontecimentos. Texto e contexto são amalgamados em condições mais amplas do entorno social e cultural que possibilitam contar histórias. Nos traços simbólicos, a conjugação que se dá pela mediação narrativa, só é possível porque ação “já está articulada em signos, regras e normas: é, desde sempre, simbolicamente mediatizada” (Ricoeur 2010, 91). Uma vez tecido os enredos, as palavras e as vozes, é possível narrar, ler, ouvir e compreender a história contada.

Assim, o texto propõe a divisão em três partes, tendo por todo o percurso, a relação entre contexto social e cultural de inserção dos casos narrados, as possíveis mediações e as vozes de quem narra problematizadas pelas reflexões sobre a mulher como negativo, de Simone de Beauvoir; a noção de silenciamento trabalhada por Rebecca Solnit; e a abordagem de gênero como performance, de Judith Butler.

Desenvolvimento

Números que silenciam e re-existência criativa

O traço que mais se evidencia em mimese I de Paul Ricoeur (2010) é a sua exigência de uma necessidade ética, visto que toda trama, intriga e história está enraizada em situações concretas do mundo de referência para a narrativa que será feita. Os inúmeros símbolos e discursos que estruturam a narrativa, dando-lhe sentidos, estão inscritos na dinâmica das transformações sociais que, depois e concomitantemente, as próprias narrativas ajudarão a concretizar: “vê-se qual é, na sua riqueza, o sentido de mimese I: imitar ou representar a ação é, primeiro, pré-compreender o que ocorre com o agir humano: com sua semântica, com sua simbólica, com sua temporalidade” (Ricoeur 2010, 101).

Vale ressaltar que, para Ricoeur, a mimese não é imitação da vida, mas o ato de por em ação as relações entre tempo e tessitura da intriga. É nesse processo que a vida, articulada ficcionalmente ou narrada a partir de acontecimentos concretos e envolvendo pessoas reais (corpos que afetam e são afetados), ganha sentido. Assim, partindo de um mundo pré-configurado, a mimese I representa o mundo social em sua complexidade, ou seja, a composição narrativa tem raiz em uma pré-compreensão das estruturas inteligíveis, suas fontes simbólicas e sua temporalidade.

No campo de pré-configurações, os dados do Brasil aqui indicados, tornam-se fundamentais. De acordo com os últimos Mapas da Violência no Brasil, o país é o quinto mais violento do mundo para o sexo feminino: assassina uma mulher a cada duas horas, estupra cerca de 130 mulheres por dia, comete violência doméstica contra 20% da população feminina e agride fisicamente 503 vítimas por hora. Chutadas, socadas, estapeadas, amarradas e espancadas, as mulheres brasileiras também são ofendidas, perseguidas, xingadas, chantageadas e insultadas. Violentadas quando os parceiros se recusam a usar preservativo ou as obrigam a determinadas práticas sexuais, são molestadas e assediadas por estranhos nas ruas. Enclausuradas pelo casamento, são proibidas de trabalhar, não recebem os benefícios que têm direito e seu dinheiro é controlado. No cinema, no vídeo e na televisão, a violência simbólica estereotipiza e objetifica as mulheres.

Se os dados da Unicef alertam que uma menina é morta de forma violenta a cada dez minutos no mundo e se pesquisas divulgadas pelo Banco Mundial, a ONU Mulheres e o Fundo de Populações das Nações Unidas mostra que, a cada ano, 15 milhões de meninas se casam antes dos 18 anos, no Brasil essa violência adquire contornos de perversidade: além de uma pesquisa realizada pela revista The Economist ter divulgado que “novinha” é o termo mais pesquisado pelos brasileiros nos sites de pornografia, o país é o quarto do mundo em casamentos infantis, já que 40% das brasileiras se casam antes de alcançar a maioridade civil. Levando, muitas vezes, ao feminicídio, a violência atinge mais as mulheres negras que as brancas: dados da ONU Mulheres mostram um aumento de 54% nos homicídios das negras, enquanto a taxa de homicídio das mulheres brancas caiu 9,8%. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) fez um levantamento sobre o impacto simbólico do estupro de mulheres e revelou que 58% dos entrevistados consideravam o comportamento feminino como responsável pela violência sexual sofrida pelas vítimas.

No mercado de trabalho não é diferente. Relegada, desde o período colonial, a trabalhos subalternos dentro e fora de casa, as brasileiras representarem 51,6% da população do país, mas ocupam apenas 44% das vagas de emprego formal no Brasil. Ocupam as mais variadas funções e atividades profissionais, mas ainda ganham menos do que os homens: nos mesmos cargos e com mais tempo de estudo e qualificação, têm salários 16% mais baixos que os homens. Nos cargos de chefia, apenas 10% das organizações e empresas públicas e privadas são lideradas pelas brasileiras.

As desigualdades do mercado de trabalho também estão na representatividade política. Em um ranking de 193 países, o Brasil ocupa o vergonhoso 154º lugar – e o nível de participação feminina nas altas instâncias dos governos é um dos principais indicadores do amadurecimento das democracias em todo o mundo. Nas casas legislativas, o Brasil está abaixo da média global: têm 15% das cadeiras nas câmaras municipais, 10% do plenário dos deputados federais e são 16% do total de senadores. Como os diretórios dos partidos são, invariavelmente, liderados por homens, as mulheres recebem menos recursos para suas campanhas.

Mas a falta de direitos fundamentais se dá em um contexto no qual emerge um novo feminismo. Em 2011, as primeiras Machas das Vadias, convocadas pelas mídias sociais, precederam manifestações sob a hashtag #NãoMereçoSerEstuprada. Idealizada pela jornalista Nana Queiroz e a campanha #MeuPrimeiroAssédio, lançada depois que a menina Valentina Schultz, participante de apenas 12 anos de um reality show de culinária, sofreu uma avalanche de comentários pedófilos nas mídias sociais. Esses exemplos das relações de poder que, no Brasil, são histórica e perversamente desiguais entre os homens e as mulheres se articulam a um cenário comunicacional marcado também por assimetrias.

Na produção cultural brasileira, o lugar histórico destinado à mulher mostra que pintoras, musicistas, escritoras, escultoras, poetisas, diretoras, bailarinas, cantoras, chargistas, jornalistas e atrizes foram constantemente alienadas de uma visibilidade pública que fizesse justiça a seus talentos e suas trajetórias criativas. Seu apagamento da memória e do imaginário culturais do Brasil foi o castigo imposto por uma sociedade patriarcal que exige sua conformidade a papeis sociais opressores. No livro, Mulheres do Brasil – A história não contada (2018), Paulo Rezzutti resgata mais de 250 histórias de heroínas, revolucionárias, transgressoras, criminosas, cangaceiras e artistas que, invisibilizadas ou narradas exclusivamente por homens, têm o direito serem recontadas a partir de suas próprias vozes: “Assim como em diversas outras áreas, a das artes não foi o local mais fácil para a mulher se estabelecer e se destacar no Brasil [...] E completa: “Exibir-se, tornar-se pública para que todos a vissem em ação e comentassem livremente sobre elas era um verdadeiro escândalo” (Rezzutti 2018, 201).

A aura de escândalo em torno das mulheres que ousam a visibilidade cultural pública como autoras criativas permanece. No caso específico do cinema brasileiro, um estudo realizado por Érica Sarmet e Marina Cavalcanti Tedesco para o livro Explosão feminista – Arte, política, cultura e universidade (2018), organizado por Heloísa Buarque de Holanda, mostra as reações a uma série de produções dirigidas por cineastas como Ana Muylaert, Yasmin Thayná, e Anita Rocha. A partir da análise das autoras, a questão da diversidade no cinema brasileiro, em relação à produção feminina, é urgente. Três questões se destacam: a falta de percepção na abordagem da condição feminina pelas próprias mulheres, a representatividade das interseccionalidades femininas e o machismo entre os profissionais do audiovisual.

Ao narrar as reações à entrada em circuito do filme Que horas ela volta?, de Ana Muylaert, as questões sobre a percepção da condição da mulher e as reações machistas ficam explícitas. Em entrevista com a diretora, as autoras transcrevem o seguinte trecho:

Eu nunca pensei que seria um filme feminista, nunca passou pela minha cabeça isso. A pesar de a fotógrafa ser mulher, eu, as principais atrizes e tudo mais, era natural para a gente. Aí depois esse assunto veio. Eu comecei a sofrer ataques machistas, e aí as pessoas começaram a falar que o filme era feminista e eu: “Oba, é sim, é sim, vamos falar disso”. (Holanda 2018, 140).

A reação da diretora mostra que a falta de abordagens que valorizam a voz feminina na autoria de temas sobre o seu próprio universo corre o risco de ser imperceptível entre as próprias realizadoras. Longe de ser uma crítica à diretora, o que está em jogo, aqui, é o aspecto perverso da dinâmica cultural brasileira. Paradoxalmente, parece ter sido preciso que os “ataques machistas” sofridos materializassem a desestabilização que uma história de mulheres contadas na voz feminina pode provocar em um mercado tradicionalmente dominado por homens.

Sobre a questão das interseccionalidades femininas, a postura de Yasmin Thayná, por ocasião do debate Por um cinema negro no feminino durante a VIII Semana dos Realizadores, aponta a importância vital que a presença de realizadoras negras têm na relação entre cultura, cinema e subjetividades. As autoras transcrevem o seguinte trecho da diretora de Kbela:

Quando eu comecei a fazer Kbela, eu não tinha ideia de onde ele poderia chegar, ou o que ele se tornaria, mas eu tinha um pouco de consciência do que estava sendo feito, e eu tive essa consciência a partir do contato com as mulheres negras que quiseram fazer parte desse filme. Foi [...] um espaço de cura mesmo entre mulheres negras, um espaço de descobrimento, um espaço de transição. (Holanda 2018, 144).

O “espaço de cura” ao qual se refere a diretora está intrinsecamente ligado à dinâmica entre autoimagem, inserção social e a representação cultural da mulher brasileira. Como imagens são também ideias, a condição feminina na sociedade brasileira depende da circulação de produtos audiovisuais que resultem se seus próprios olhares, de seus próprios enquadramentos e de seus próprios desejos – que não podem ser confundidos com imposições sociais que interditem a pluralidade de vozes. Vem daí, a importância urgente de fomentar suas produções, dialogar sobre suas expressividades e criar uma memória social sobre suas criatividades.

O fator do cuidar de si e do cuidar do outro, tão bem trabalhado por Rebecca Solnit em termos de comportamento, as reações femininas são mais marcadas por um padrão de “cuidar-e-ajudar” (Solnit 2017, 29). Assim, a escolha dessas mulheres representa também a busca por caminhos que nos façam entender o silêncio, a fala, a exposição mediada intencionalmente, a “escolha” por ser ou não ser protagonista e dona dos relatos de suas vidas, configurando para si, seus corpos e suas vozes – ou permitindo que suas falas sejam reproduzidas ou produzidas por terceiros – a relação entre história, memória e narrativa e o risco de pensar e conhecer enquanto se vive – e no caso brasileiro, sobrevive, propondo novas formas de existência.

Como não há método ou conceito descarnado, o acúmulo de bens simbólicos está inscritos nas estruturas de pensamento e, consequentemente, no corpo. Dessa forma, os dados e depoimentos aqui levantados explicitam que os acontecimentos não são neutros em termos de gênero.

Por isso, há 25 anos, a Plataforma de Ação de Pequim (ONU 1995, 232, 233) é um marco ao dedicar a seção J ao tema direito à comunicação e definir dois objetivos estratégicos que deveriam (e devem) orientar a ação de governos e sociedades:

J.1. Aumentar o acesso das mulheres aos processos de expressão e de tomada de decisões na mídia e nas novas tecnologias de comunicações, aumentar também sua participação nessas áreas, bem como aumentar a possibilidade para elas de expressar-se pelos meios de comunicação e as novas tecnologias da comunicação.

J.2. Promover uma imagem equilibrada e não-estereotipada da mulher nos meios de comunicação.

Também por isso reafirmamos que o documentário é potente no que se refere à mudança de perspectiva social sobre determinados temas ignorados, suprimidos ou mesmo silenciados por determinadas estruturas. No que tange às demandas identitárias, pode, inclusive, ser memorável no combate a opressões historicamente constituídas. Especificamente nas questões de gênero, a deformação criativa sobre determinadas opressões mostra como a visão pessoal de determinados diretores e realizadores é também engajamento pessoal. Nesse sentido, documentários são esforços criativos cuja dimensão imaginativa deve ser analisada segundo suas características ético-políticas.

Mais que apenas abordar fatos e/ou pessoas reais, uma vez que a ficção comercial também tem essa capacidade, um documentário faz isso “sob o risco do real” (Comolli 1999). Isto porque, num contexto no qual o enquadramento das realidades regula os dispositivos sociais e econômicos, a roteirização da vida segundo códigos moralizadores retrógrados investe repetidamente no aniquilamento e no silenciamento do que não é normatizado – o negativo sobre o qual Beauvoir (2009) nos faz refletir. Este negativo passa, então, a servir às ficções políticas e sociais, tornando-se bastante identificável no audiovisual de mercado que ajusta o mundo ao que é (moralmente falando) “familiar”. Especificamente no Brasil, a ficção seriada de mercado se coaduna a isso. Como gênero de largo consumo no país, a ficção seriada das emissoras abertas de televisão têm levado ao ar temas relativos às mulheres em telenovelas bíblicas e em tramas “laicas” que reforçam as ideias de meritocracia e maternidade. Com forte apelo referencial, essas abordagens tendem a roteirizar as relações sociais, a intersubjetividade e as fantasias. Para Comolli (1999), isto faz com que o documentário se abra ao risco do real, direcionando os olhares para as resistências, os restos, as exclusões e silenciamentos. Em fricção com o mundo, o documentário também é engajado nele.

Expressão, lugar de fala no mundo

Para Ricouer (2010), a mimese II é o ato de tecer a intriga, mediadora entre o mundo que precede a narrativa e o que vem após ela ser posta em circulação. Dar sentido ao mundo e permitir a emergência de novos sentidos no mundo é o papel pragmático desta mimese. Forma estabelecida de narrativa em diálogo com a pré-figuração e a reconfiguração, ela é mediação, afinal, narrativas são formas privilegiadas de tomada de conhecimento do mundo.

Atravessado pelas materialidades, o documentário que se dá sob o risco do real opera como práxis. O que é filmado aparece também para mostrar o que está fora do projeto de filme, o que não é visível, o fora de campo, o extra-imagem, o impossível de roteirizar. Se o documentário é esta lida com o que está fora, ele é criação, na medida em que vai sempre em busca do que não é reduzido às imagens familiares do mundo, aos programas e aos automatismos do audiovisual-mercadoria precavido pela roteirização em sentido amplo. O que a ficção calculada esconde, o documentário que se dá sob o risco do real, mais que mostrar, faz irromper.

Cabe, aqui, perguntar: por que, então, realizar documentários sobre feminicídio? Que voz dar às vítimas da violência que mata? A solução pode estar no registro das vozes que, mesmo sob o risco da morte, denunciam as violências que sofrem. Sob este aspecto, produzir essas narrativas documentais (que articulam a criatividade ao risco do real) se relaciona a uma práxis cujos critérios são:

parecidos com os de exatidão factual e coerência interpretativa que governam a escrita da história. A separação entre documentário e ficção, como a separação entre historiografia e ficção, depende do grau em que a história corresponde fundamentalmente a situações, acontecimentos e pessoas reais versus o grau em que ela é principalmente produto da invenção do cineasta. Sempre há um pouco de cada. A história que um documentário conta tem origem no mundo histórico, mas ainda assim, é contada do ponto de vista do cineasta e na voz dele. (Nicholls 2016, 35).

Isso remete ao caráter comprobatório dos documentários. Como representações do mundo que podem fazer circular visões não previstas sobre aspectos factuais, os documentários precisam sustentar as alegações que fazem; precisam envolver o espectador envolvendo o mundo nessa afetação. Nesse processo, os testemunhos se mostram fundamentais, principalmente por que “não existe outro treinamento específico para a autoapresentação além da experiência de se tornar membro de uma sociedade” (Nicholls 2016, 32). Isso pode se dar pela linguagem.

Judith Butler revela logo na introdução de Corpos que importam (2019) que descobriu não poder fixar corpos como simples objetos do pensamento, uma vez que tendem a indicar um mundo além deles mesmos. Ela propõe pensar o corpo não mais como um dado natural, mas como uma superfície politicamente regulada, tão cultural como o gênero. É assim que a autora problematiza os limites de gênero, pensando-o como performance, uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. A forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero, ou seja, a performance de rituais padronizados culturalmente reproduzem, reforçam e renovam o efeito do gênero (Butler 2020, 200).

Butler, ao pensar o gênero como performativo, intensifica a percepção do discurso como construtor de mundos, explicitando a fabricação de identidades sexuais. Ela propõe, então, que pensemos sobre três dimensões da corporeidade: sexo anatômico, aquele dado pela biologia; identidade de gênero, que Beauvoir trabalha como construção social; e performance de gênero, apontando que não há essência em signos corporais para questionar associações binárias sexo/gênero, sexo/performance, gênero/performance. Dessa forma, performance aponta para uma “contingência radical” (Butler 2020,196) e para o caráter imitativo de todo gênero.

A linguagem se torna também encenação reencenação de um conjunto de significados estabelecidos socialmente, produzindo a ideia de feminino. Se as ações fazem parte de um quadro de dependências interativas de histórias e discursos sociais, as ações não são explicadas por meio de causas naturais. Por isso, não podem somente ser explicadas ou descritas de acordo com esquemas de racionalidade, causualidade, estratégica resolução de problemas, intencionalidade, emoção ou realização de motivos. Todas essas instâncias são importantes e não podem ser negligenciadas.

Corpo, produção e expressão têm, assim, se articulado segundo a tendência de fazer com que as mulheres sejam, na concepção de Michelle Perrot em Minha história das mulheres (2015), “expectadoras de si” e “copiadoras” diante das obras que as representam. Ressaltando que a maior revolução na história das mulheres é a função reprodutora (maternidade) que se desloca da ideia de fatalidade biológica para o direito de escolha sobre o próprio corpo, a autora questiona as estereotipizações de discursos e expressividades, ressaltando a necessidade urgente de problematização da relação entre as mulheres e suas imagens. Com isso, infere-se a necessidade de uma sexta “onda” nos movimentos constituídos historicamente em busca de representatividade: às lutas e conquistas pelos diretos ao saber, ao salário, à cidadania, à política e ao corpo, junta-se a peleja pelo direito à autoria dos produtos culturais especificamente ligados à imagem técnica.

Em 2017, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) divulgou a lista dos “100 Melhores Documentários Brasileiros”, que mobilizou cem críticos e pesquisadores de cinema. No total, apenas 11 títulos tinham assinatura feminina: sete realizações solo e cinco em parceria. Os documentários tratam de questões biográficas que envolvem ditadura militar e família, justiça social para jovens infratores, política, música e dança. Nenhum fala diretamente sobre feminicídio, a agressão letal contra o corpo das mulheres.

O silêncio na lista da Abraccine se relaciona com levantamento feito pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) sobre a presença feminina no audiovisual brasileiro. Em 2016, ano do último relatório da agência,apenas 24% e 22% dos documentários produzidos foram dirigidos e roteirizados por mulheres, respectivamente. Mesmo ano em que A Girl in the River: The Price of Forgiveness ganhou o Oscar de Melhor Documentário de Curta-Metragem no Oscar. No curta, a cinegrafista Sharmeen Obaid-Chinoy conta a história de Saba Qaiser, uma jovem paquistanesa de 18 anos de idade cujo pai tentou matá-la por não concordar com a escolha dela de se casar com o homem que amava. Ela foi amarrada, colocada dentro de uma sacola e atirada no rio. Saba conseguiu sobreviver, e sua história se converteu em um símbolo da luta das mulheres.

No atual contexto do consumo das imagens técnicas em constante fluxo, o impacto entre homogeneização social e diversidade cultural torna importante o questionamento acerca do papel desempenhado pelos meios de comunicação em geral e pelo audiovisual em particular. Determinantes para os percursos e discursos da vivência humana (ou dos corpos na cultura), os equipamentos coletivos de produção de sentido se tornam estratégicos, principalmente no que se refere ao controle social de realidades marcadas pela desigualdade. Entre esses equipamentos, o audiovisual brasileiro é um instrumento especialíssimo.

Nesse sentido, a produção das imagens técnicas é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais que fazem com que o autorreconhecimento se articule à interpretação de representações hegemônicas. Através de sistemas de representação, as indústrias da comunicação, astutamente, inventam universos não-naturais para a projeção e a identificação com essas representações hegemônicas. Atualmente, essas indústrias temem quaisquer formas criativas dissidentes que interfiram em seus sistemas modelizantes de identificação. Ao propor sempre quadros de referência imaginários (e as mulheres, como outro sempre imaginado, é um dos personagens sociais que mais habitam esses quadros), a produção dominante pensa e organiza por nós a produção e a vida social, incidindo nos esquemas de conduta dos corpos, nas dinâmicas expressivas dos gêneros e na memória sobre as autorias. Tudo o que surpreende deve ser enquadrado, deve remontar a uma referenciação controladora.

Vem daí a necessidade de, a partir dos dispositivos coletivos de produção de sentido, encontrar novas formas de ampliação da polifonia, “formas” estas que, para além da estética (mas também e principalmente através dela), se oponham ao silenciamento. No caso específico das mulheres, Rebecca Solnit aponta, em seu livro A mãe de todas as perguntas – Reflexões sobre os novos feminismos (2017), que a possibilidade de contar as próprias histórias é também a possibilidade de romper a clausura imposta por histórias herdadas compulsoriamente, em um movimento de liberdade que conquista um lugar na História:

A violência contra as mulheres muitas vezes se dá contra as nossas vozes e as nossas histórias pessoais. É uma recusa das nossas vozes e do que significa uma voz: o direito de autodeterminação, de participação, de concordância ou divergência, de viver e participar, de interpretar e narrar. Um marido bate na mulher para silenciá-la; um namorado ou um conhecido estuprador impede que o “não” de sua vítima signifique o que deveria significar, isto é, que a jurisdição sobre seu corpo pertence apenas a ela; a cultura do estupro afirma que o depoimento das mulheres não tem valor, não merece confiança; os ativistas contra o aborto também procuram silenciar a autodeterminação das mulheres; um assassino silencia para sempre. São afirmações de que a vítima não tem nenhum direito, nenhum valor, não é uma igual. Esses silenciamentos ocorrem nas menores coisas: as pessoas assediadas se entocam no silêncio on-line, abafadas ou interrompidas na conversa, menosprezadas, humilhadas, desconsideradas. Ter voz é fundamental. Os direitos humanos não se resumem a isso, mas isso é essencial para eles, e assim podemos considerar a história dos direitos e a falta dos direitos das mulheres como uma história do silêncio e do rompimento do silêncio. (Slnit 2017, 30).

Essa perspectiva se coaduna aos trabalhos de Svetlana Aleksiévich. Tanto em As vozesde Tchernóbil – História oral do desastre nuclear (2016) como em A guerra não tem rosto de mulher (2016 B), a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2015 diz que o fim da agenda midiática engendra o início de um trabalho de escuta que traz à tona sentimentos e pensamentos de uma “história omitida”. Especificamente sobre os relatos de guerra, ela atenta para o fato de que:

Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações “masculinas” da guerra. Das palavras “masculinas”. Já as mulheres estão caladas. (...) Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar (...). Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra “feminina” tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível.(...) Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida... Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres. (Aleksiévich 2016 B, 12).

O silenciamento do qual falam as autoras aponta para o fato de que a redução das mulheres ao sexo biológico foi historicamente paradigmática não só para a definição de suas imagens como também para a memória de suas expressividades na sociedade moderna. Nessas imagens, o corpo se tornou matéria-prima para representações polarizadas. No caso brasileiro, por exemplo, a mulher se tornou um signo estético do patriarcado.

A relação entre a mulher e o patriarcado brasileiro (entendido como regime social que atravessa os períodos colonial, imperial e republicano) tende a ser delineada pela imobilidade polarizada entre a imagem da autossacrificada mulher “de família” e a imagem da lasciva mulher de classe e etnia consideradas inferiores – ambas formas que dão a ver a materialização de uma exploração destrutiva que articula a vida íntima às práticas sociais. Historicamente, as práticas sociais delimitaram a mulher como uma “categoria” à qual se aplicavam as noções de dualidade, inferioridade e dependência, em uma espécie de círculo vicioso através do qual um bimorfismo biológico e simbólico dava a ela o duplo estatuto da fragilidade e da selvageria, que obrigaria o homem tanto a proteger sua natureza passiva como a domar sua essência de fêmea. Inferia-se, assim, uma noção de mulher como propriedade do macho, noção esta que, hibridizada a outras concepções, transformaria a mulher em um ser colonizado e, posteriormente, proletarizado pelo homem. Impunha-se às mulheres uma ontologia de ser-para-o-homem calcada em eficazes imagens paradoxais de santidade e de inferioridade que atravessavam fortemente suas identidades e personalidades como objetivo de estabilizar a cultura, a política e a economia vigentes.

Esta personagem da mulher-estabilizadora impõe até hoje restrições à sua influência direta sobre a vida comum, reservando-lhe especializações consideradas inferiores, a nulidade de reivindicações e uma vida sexual doméstica e domesticada extremamente conveniente para o homem-ator da dominação/opressão social. Extrodeterminada, a mulher brasileira é prefigurada por discursos e imagens aos quais deve se projetar e com as quais é pressionada a se identificar. Na coletânea de artigos História das mulheres no Brasil (2015), assinada por Mary Del Priore, Norma Telles analisa a dominação dessa razão superior masculina. Segundo ela:

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa dos homens. (Del Priore 2015, 403).

É nesse sentido que a imaginação e o “pulso firme do machos” criaram um tipo de mulher composto pela artificialidade: uma personagem coletivamente aceita e sobreposta a uma atriz socialmente interditada. Atravessados por diferentes contingências e contextos, os sentidos da cultura patriarcal demandam reflexão por ainda serem determinantes na interpretação e na elucidação das relações contemporâneas – relações estas marcadas por uma intensa desigualdade social e uma violência endêmica contra os corpos femininos.

O silêncio das inocentes: eles matam mulheres

A mimese III é a capacidade de mobilizar pelo ato de leitura. Ricoeur (2010) nos diz que aqui se congrega a potencialidade de progressão estabelecida pelo círculo da mimese, a capacidade da tessitura da trama de modelar a experiência, a criação de referência pelo ato da leitura, e as proporções da mediação entre tempo e narrativa (Carvalho 2012). Sempre em estreita ligação com o contexto, a reflexão de Ricouer nos remete, então aos três marcos temporais elencados neste trabalho. O primeiro, do lançamento da Plataforma de Pequim, em 1995, se articula a um omemnto muito específico do audiovisual brasileiro. No começo dos anos 1990, o governo Fernando Collor de Mello extinguiu a Embrafilme e impactou de forma profundamente negativa a produção cinematográfica nacional. Condicionada pela captação em vídeo, a produção documental passou a contar com a tecnologia digital e foi fomentada pelas Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685 de 1993), que abriu espaço para os documentários nos canais por assinatura. Nessa década, a variedade de assuntos e estéticas resgataram temas nacionais: assuntos como esporte, literatura, urbanismo, meio ambiente, cultura popular e religião foram tratados em documentários de destaque por diretores como João Moreira Salles, Pedro Bial, Claufe Rodrigues, Maurício Dias, Toni Venturi, Daniel Sampaio, Aurélio Michilis, Ricardo Dias, Marcelo Masagão, Eduardo Coutinho e Ricardo Dias – todos homens.

É nesta década que também começa a ser curadoria do o festival É tudo Verdade (1996). Espaço importante para o documentário nacional, o festival, em suas 25 edições, destacou apenas uma vez uma obra sobre feminicídio: Elegia de um crime, de Cristiano Burlan, documentário no qual o diretor conta a história do assassinato de sua mãe pelo companheiro. O filme, longe de ser um manifesto sobre um crime tipificado, se articula às memórias que o filho tenta resgatar sobre sua mãe.

Dois anos após a promulgação da Lei do Feminicídio, a já citada lista dos 100 melhores documentários brasileiros não inclui nenhum filme sobre o assassinato de mulheres. Recentemente, uma importante iniciativa para o cinema de mulheres, o Festival Cabíria (2019-2020), não registrou nenhuma obra documental sobre feminicídio.

Na importante plataforma Porta Curtas, que reúne e disponibiliza milhares de obras, a pesquisa por temas de filmes não possui a palavra “feminicídio”, apesar da busca pelo tema “mulher” oferecer nada menos que 6.241 títulos. Na página principal do Porta Curtas, o primeiro filme da aba Mais Vistos é o documentário Quem matou Eloá? (Lívia Perez, 2015), que aborda a espetacularização da mídia nos casos de violência contra a mulher, em especial no episódio do assassinato da jovem de 15 anos, Eloá Pimentel, pelo namorado Lindemberg Alves, de 22 anos, depois de mantê-la refém por cinco dias, em 2009. Eloá foi assassinada três anos após a promulgação da Lei Maria da Penha, sobre a violência doméstica.

É, de fato, essa lei, mais que a do Feminicídio, que marca as produções documentais de destaque sobre o assassinato de mulheres. Nesse sentido, três filmes se sobressaem: Silêncio das Inocentes (2010), Se Você Contar (Roberta Fernandes, 2017) e Eles Matam Mulheres (2019). Como o segundo possui uma estética que dialoga com Jogo de Cen (Eduardo Coutinho, 2007), destacamos o primeiro e o último nessa relação estabelecida com os marcos temporais apontados por nós.

Dirigido por Ique Gazzola (2010), o documentário Silêncio das Inocentes conta a história da criação da Lei Maria da Penha e da luta das mulheres contra a violência doméstica. Contando com depoimentos de vítimas, autoridades e especialistas no tema, o objetivo da produção é promover o debate sobre a questão, contribuindo para fortalecer o discurso de combate à violência contra as mulheres, principalmente, aquela que é perpetrada no âmbito familiar. Com uma abordagem marcada por uma concepção um tanto essencialista de mulher, o filme traz especialistas que apontam a dificuldade dos homens falarem sobre suas emoções numa espécie de processo de cura para agressores. Além disso, ideias como “famílias estruturadas”, “tradição familiar” e “paz doméstica” são evocadas como possíveis raízes das violências cometidas, ao mesmo tempo em que especialistas e vítimas nomeiam como “amor” o afeto que sobreviventes de violência sentem por seus agressores. Ressaltando a necessidade da conscientização das vítimas sobre a situação, o filme é entremeado por depoimentos da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, autora do livro “Sobrevivi, posso contar” e que lutou durante 20 anos para que seu agressor (de quem levou um tiro que a deixou paraplégica) fosse punido (a lei brasileira que tipifica a violência doméstica é batizada com seu nome). Mas suas cenas finais trazem uma canção na qual se destacam aa frases “mulheres são as flores dos jardins das emoções” e “mulheres são flores, poesia, canções”.

É com uma das maiores vozes da Música Popular Brasileira que começa o filme Eles Matam Mulheres: Elis Regina (1945-1982). Após um trecho em áudio de uma entrevista na qual a cantora se mostra indignada diante da apatia em relação à violência contra as mulheres, o filme atenta para dois pontos: questiona o silenciamento das mulheres apesar das Leis Maria da Penha e do Feminicídio e chama a atenção para o fato de meninas e mulheres não enxergarem a violência que se instaura e cresce em suas relações íntimas. Nas entrevistas, o destaque é para mulheres especialistas e para crimes cometidos por diferentes tipos de mulheres: negras, brancas, periféricas, ricas, trans, cis.

No engajamento do mundo pela representação, o documentário tem a potencialidade de reconfigurar a memória popular e a história social. Pode fazer isso retratando o mundo que nos é familiar, ressignificando de forma representativa determinados grupos e defendendo determinados pontos de vista inovadores. De acordo com Nicholls (2016), podemos afirmar que ambos os documentários não apenas fazem isso como também se relacionam com modelos da não ficção, como a grande reportagem, a defesa de uma causa, a história, o testemunho e a sociologia. Ambos possuem indícios relativos a um ethos específico (são críveis pela credibilidade das testemunhas e autoridades), a determinado pathos (apelam para estados de espírito favoráveis ao ponto de vista de repúdio às violências sofridas pelas mulheres) e buscam apreender um determinado logos (são convincentes e demonstrativos sobre os afetos que evocam). Em ambos, também há a personificação do discurso direto pelas entrevistas.

O Silêncio das Inocentes e Eles Matam Mulheres se diferenciam, porém, numa característica fundamental: a autoria. Evidentemente, não estamos diminuindo a relevância de um filme assinado por uma não-mulher que denuncie a violência e a morte das mulheres. Mas é necessário ressaltar a importância de obras como essas marcarem a ruptura do silêncio tanto nos seus textos como nos seus contextos – uma demanda estabelecida por um compromisso global de 25 anos.

Nesse sentido, a reconfiguração que se dá pelo engajamento criativo se articula aos modos expositivo, reflexivo e performático sobre os quais fala Nicholls (2016). Assim, se o modo expositivo privilegia o comentário verbal e a lógica argumentativa, Eles Matam Mulheres fomenta o exercício discursivo da produção de sentido que permite a autonomia da ressignificação às mulheres. Se o modo reflexivo chama atenção para as convenções documentais e reforça a consciência sobre a construção da representação da realidade, o documentário de Vanessa Lorenzini aponta as escolhas prefigurativas a serem feitas pelas mulheres. Se o modo performático enfatiza o aspecto subjetivo do engajamento do cineasta em um tema, a abordagem do assassinato de mulheres por motivo de gênero feita por elas mesmas adestra o público a ouvi-las.

Conclusão

A artificialidade da mulher do patriarcado brasileiro disciplina sua aparição por uma apologia lisonjeira que objetiva e, ao mesmo tempo, esconde sua submissão. Diacronicamente, as representações da mulher brasileira se reconfiguraram, ora ratificando ora negando e ora rompendo com a cultura patriarcal. Codificando a mulher como dependente e constituindo sua alteridade submissa, os homens também se constituíram ontologicamente: “ele só se atinge através dessa realidade que ele não é” (BEAUVOIR: 2009, p. 207). Isso equivale a dizer que, para sair da solidão em que se encerra, é preciso projetar-se no mundo em busca de objetos que não são o próprio sujeito, busca esta que provoca uma inquietação existencial. Assim, é para aplacá-la que o homem cria o outro absoluto e sem reciprocidade. Esta escrita de si pela agrafia do outro funciona como uma espécie de autenticação autoritária de uma consciência: a masculina heteronormativa.

Como um conjunto de performances que podem ser desempenhadas por escolha ou por opressão, o gênero, tradicionalmente, se mostra de forma essencialista no audiovisual brasileiro de mercado – seja ele ficcional, informativo ou documental. As consequências desta mulher-personagem extrodeterminada intensifica a necessidade de se contrapor as expressões calcadas na ideia de um feminino opressor às reconfigurações pertinentes às inteserccionalidades demandadas pelas diferentes condições das mulheres brasileiras.

Como investir nisso quando, a cada dois minutos, uma sofre violência doméstica; quando, a cada oito minutos, uma é estuprada; quando, a cada seis horas, uma é vítima de feminicídio?

Movimentos estéticos são engendrados quando um grupo significativo compartilha determinada perspectiva. Mas alguns movimentos cinematográficos podem se insinuar a partir de certas rupturas estruturais. O deslocamento (ou mesmo a concomitância) da mulher-personagem extrodeterminada para a mulher-autora, no Brasil, merece que o olhar se volte para a produção de documentários. Em termos mercadológicos, inclusive: o primeiro documentário brasileiro a ser indicado ao Oscar, Democracia em vertigem, é assinado pela jovem diretora Petra Costa. No filme, Petra aborda um dos episódios nacionais que melhor mostraram a face misógina, machista e simbolicamente violenta da sociedade brasileira: o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff. Como afirma NICHOLLS (2016), a voz do documentarista em sua obra “é uma escolha sobre como agir e filmar sobre o mundo que compartilhamos” (p.89).

Quando produzimos sentido sobre o passado, temos a possibilidade de predizer o futuro. Quando narramos, a reconfiguração das nossas experiências opera no mundo, configurando sentidos que habitarão prefigurações. Como ressalta RICOUER (2010), “é sempre a linguagem, assim como a experiência, a ação, que esta articula, que resiste ao assalto dos céticos (p.25-26). Isso pressupõe que nossos modelos de realidade, histórias e discursos são construções que dependem de nossa interação com o mundo social que vivemos e os limites impostos socialmente entre esferas de saber, realidade e ficção, coletivo e individual. Na escola, em família, em textos, vídeos e redes sociais, nas informações que consumimos, construímos nossa identidade e memória. Daí a intensa e fundamental importância da mídia na construção de papéis, identidades e memórias pessoais e sociais.

Daí o título do livro de Maria da Penha: Sobrevivi, posso contar. Daí a necessidade de burlar, sem permissão, o restrito sistema de comunicação que por tanto tempo vem silenciando as mulheres. Daí a necessidade do ativismo, da militância, da reflexão teórica e da produção que conjuguem urgentemente o femihacker: para que, ao fim da leitura de um texto como este, no Brasil, 69 mulheres não sejam vítimas de violência doméstica, 17 não sejam estupradas e 1 tenha menos de três horas de vida.

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