Capítulo II – Cinema – Cinema

When art is political: Cinema, feminism and analysis

Quando a arte é política: Cinema, feminismo e análise

Ana Catarina Pereira

Universidade da Beira Interior, Portugal

Abstract

This communication focuses on the possibilities of analyzing a film, made by a woman, from a gender perspective. Based on the assumption that feminisms did not denounce “only” the non-places of women in art, still allowing, and essentially, their slow and difficult entry into a male universe, we focus on an art whose lack of representation in terms of gender, in management positions, has been particularly criticized. The proposed communication begins, therefore, in the study of feminist criticisms aimed at certain films that will have mimicked (or even perpetuated) the patriarchal order. The central objective, however, will be the realization of the reverse exercise, conjecturing the possibility of the exploitation of feminist themes by female filmmakers, in response to stereotypes and the invisibility of female characters created by male filmmakers.

Keywords: Analysis, Poetics, Gender, Women, Interpretation.

Introdução

A presente comunicação centra-se nas possibilidades de análise de um filme, realizado por uma mulher, a partir de uma perspectiva de género. Partindo do pressuposto que os feminismos não denunciaram “apenas” os não-lugares da mulher na arte, possibilitando ainda, e essencialmente, a sua lenta e difícil entrada num universo masculino, centramo-nos numa arte cuja falta de representatividade em termos de género, em cargos de direcção, tem sido particularmente criticada. A comunicação proposta inicia-se, deste modo, no estudo das críticas feministas apontadas a determinados filmes que terão mimetizado (ou mesmo perpetuado) a ordem patriarcal. O objectivo central será, no entanto, a concretização do exercício inverso, conjecturando a possibilidade da exploração de temáticas feministas por cineastas-mulheres, como resposta aos estereótipos e à invisibilidade das personagens femininas criadas por cineastas-homens. Por esse motivo, recorre-se a uma análise discursiva e poética que não atribui o esperado destaque, na área dos estudos fílmicos, aos aspectos técnicos dos filmes, como a decomposição exaustiva de planos, jogos de luz, sonoridade utilizada, entre outros. A arte é aqui percepcionada como meio de transmissão de mensagens mais ou menos políticas e socialmente geradora de pensamentos, teorias e modos de ver. A abordagem sociológica é, portanto, privilegiada em detrimento da psicanalítica, bem como uma análise textual e narrativa em detrimento de uma possível “meta-técnica” ou discurso produzido sobre a mesma. Busca-se uma hermenêutica do texto fílmico como meio de apropriação e interpretação do conteúdo e do tipo de personagens femininas criadas pelas mulheres-cineastas: como as apresentam e definem? Que estereótipos conservam ou rejeitam? A identificação das espectadoras poderá desencadear um processo mais naturalizado e quase inconsciente dado o realismo com que os temas são abordados? O filme, enquanto objecto de estudo, é simultaneamente pretexto e pré-texto para o debate de temas fracturantes na sociedade. A obra é menos encarada como um mecanismo de reflexão sobre a Escola a que a cineasta pertence do que como um “laboratório de ideias”, pelo que a abordagem teórica sobre os principais objectivos, valores e pensamentos que o filme reúne em si adquire preponderância.

Nota de intenções

A especificação do objecto de estudo a que procedemos na breve introdução realizada, levanta-nos algumas questões cariz mais específico, como as que em seguida enunciamos:

Face às questões formuladas, consideramos que as principais dificuldades com que nos iremos deparar ao longo da pesquisa se colocam ao nível da possível aplicação dos conceitos “feminino” e “feminista” ao corpus fílmico. A necessidade de construção de uma listagem de características que possam ser associadas ao mesmo comporta alguns riscos, dos quais nos encontramos cientes, pelo que nos propomos partir de uma análise à utilização destes conceitos nas teorias feministas do cinema. Em termos conceptuais, será ainda explorada a ideia de um “cinema de autor”, por oposição às produções habitualmente apelidadas de “comerciais” ou “blockbusters”. Os traços de um cinema português realizado por mulheres serão assim, espera-se, mais facilmente identificáveis.

Por outro lado, pretende estabelecer-se uma co-relação entre “autoria” e “identidade”, no sentido de conhecermos não apenas cada um dos filmes, mas também os objectivos e propósitos das realizadoras. No que diz respeito ao último conceito (identidade), seguiremos o pensamento de Amartya Sen, bem como a natureza difusa, ecléctica e complementar da definição que nos propõe. Na opinião do autor, conflito e violência são hoje sustentados pela ilusão de que os seres humanos se podem definir a partir de uma única identidade. O pressuposto segundo o qual o mundo é constituído por uma federação de religiões, culturas ou civilizações, implica, no seu entender, ignorar a relevância de aspectos como o género, a profissão, a língua, a ciência ou a política. No quotidiano, cada ser humano será membro de diversos grupos e pertencente a todos eles:

“O facto de uma pessoa ser mulher não entra em conflito com o facto de ser vegetariana ou advogada, não a impede de ser amante de jazz, heterossexual ou defensora dos direitos dos homossexuais. Qualquer pessoa faz parte de muitos grupos diferentes (sem que isso implique qualquer espécie de contradição) e cada uma destas colectividades a que simultaneamente pertence confere-lhe uma identidade potencial que – dependendo do contexto – pode tornar-se bastante importante.” (Sen 2007, 79)

A definição proposta pelo autor lança um interessante debate sobre as questões da inclusão com que o(s) feminismo(s) habitualmente se depara(m). Não existindo, nas mulheres, uma consciência da sua identidade enquanto mulheres (ou, em certos casos, uma completa rejeição da mesma), como poderá o feminismo cumprir os seus objectivos unificadores e inclusivos? De que forma, uma mulher que se define a si própria primeiramente como mãe, esposa, cristã, socialista, cabeleireira, portuguesa e, somente no final da listagem de uma série de características, “mulher”, sentirá alguma empatia ou possibilidade de identificação com os temas e debates propostos? Por outro lado, como poderá o feminismo cumprir esses mesmos objectivos sem ser acusado de etnocentrismo? Para efeitos práticos, será irrelevante que um discurso feminista seja proferido por uma mulher branca e heterossexual ou por uma mulher negra e homossexual?

A exigente formulação de respostas a estas interrogações deverá surgir numa fase mais avançada da presente investigação, adquirindo especial premência no actual contexto de uma era designada como “pós-feminista” — na qual vulgarmente se considera ter atingido a igualdade de direitos e abolido o sistema patriarcal, enquanto um progressivo hibridismo de géneros suscita dúvidas na rígida atribuição de tarefas, objectivos e obrigações a mulheres e homens. O mesmo hibridismo ou relativa androgenia que Virginia Woolf denuncia, ainda no início do século passado, em obras como Orlando (1928) e Um quarto só para si (1929). Relembremos que, aquando da adaptação do primeiro romance, Sally Potter (Orlando 1992) recria esta personagem que muda repentinamente de sexo, sem sequer o ter planeado, sendo-lhe assim possibilitada uma existência dualista, primeiramente como homem e depois como mulher. Orlando, à semelhança do que é narrado no romance homónimo de Woolf, vive dezenas de anos em conflito com a imposição de uma masculinidade socialmente definida (ao contrário de qualquer homem do seu tempo, é incapaz de ver sangue ou de participar numa batalha) e outras tantas a lutar pelo direito a uma casa própria, naturalmente vedado ao sexo feminino. No filme, Sally Potter prolonga a existência da personagem até ao final do século XX atribuindo a Orlando um final feliz, concretizado na possibilidade de assumir a sua androgenia.

Em Um quarto só para si, por sua vez, Virginia Woolf define duas características que julga fundamentais para a autonomia (e progressivo desenvolvimento pessoal e profissional) de uma mulher: a independência económica e um espaço a que possa chamar seu. Na sua opinião, as melhores escritoras do século XIX foram aquelas que libertaram a sua escrita da condição escravizante de “ser mulher”. Ao contrário de Jane Austen — que apelida de ingenuamente fechada no seu mundo — ou de Charlotte Brontë — exagerada evocadora de todas as revoltas e injustiças que vitimam o sexo feminino —, Woolf postula que uma escritora que pretenda legar ao mundo uma obra memorável deverá possuir outro tipo de predicados, como os que atribui à cientista, pioneira no desenvolvimento de métodos de planeamento familiar, Mary Carmichael Stopes. Ao ler o seu primeiro romance, Life’s adventure, Woolf não pôde deixar de se surpreender com a abordagem de temas invulgares para a época: “‘Chloe gostava de Olívia’, li. E, então, descobri como ali a mudança era imensa. Chloe gostava de Olívia, talvez pela primeira vez na literatura.” (Wolf 2005, 121)

A partir do primeiro contacto, as expectativas foram crescendo. Woolf esperava de Carmichael um manancial de originalidades urgentes, exigindo-lhe (como se à própria se dirigisse) uma concentração absoluta nos objectivos e uma transposição constante de obstáculos:

“Se paras para praguejar, estás perdida, disse-lhe eu; o mesmo acontece, se paras para rir. Hesita ou fica atrapalhada e estás liquidada. Pensa apenas em saltar, implorei-lhe, como se tivesse colocado todo o meu dinheiro às suas costas; e ela saltou como um pássaro.” (Wolf 2005, 136)

A coragem e abnegação seriam assim atributos elogiados por Woolf, para além de uma identidade própria que não cede aos constrangimentos socialmente impostos:

“Ela não era um ‘génio’ — isso era evidente. […] Todavia, tinha certas vantagens que, há meio século, faltavam às mulheres com um talento muito maior. Para ela os homens já não eram a ‘facção oposta’; não precisava de desperdiçar o seu tempo a invectivá-los; trepar para o telhado e arruinar a sua paz de espírito ansiando por viajar, passar por experiências, e ter um conhecimento do mundo e uma reputação que lhe tivessem sido negados. O medo e o ódio ou os seus vestígios quase tinham desaparecido ou revelavam apenas um ligeiro júbilo pela liberdade, uma tendência mais para o tratamento cáustico e satírico do que para o tratamento romântico do outro sexo. […] ela tinha — comecei a pensar — dominado a primeira lição; escrevia como uma mulher, mas como uma mulher que tivesse esquecido que é mulher, de modo que as suas páginas estavam cheias daquela curiosa referência vinda do sexo que surge apenas quando o sexo se mantém inconsciente de si mesmo. Tudo isto era uma vantagem.” (Wolf 2005, 134-135)

Um certo hibridismo de géneros e uma recusa de encarar o sexo oposto como “o outro” (aqui descritos por Virginia Woolf) são paralelos à combinação de diferentes identidades (enumeradas por Amartya Sen), pautando o final do século XX e início do século XXI. A contemporaneidade (e obscuridade) destas tendências poderá, no entanto, dificultar a análise de um corpus fílmico exclusivamente centrado na perspectiva feminina (o que poderia caracterizar “um olhar feminino por detrás das câmaras”?). A subjectividade do conceito é comprovável pela simples observação do quotidiano: nos dias que correm, é comum cruzarmo-nos com homens vestidos de cor-de-rosa e mulheres que vibram intensamente com desafios de futebol, situação improvável há escassos 30 ou 40 anos. Poderão estes traços significar que os homens estão mais femininos e as mulheres mais masculinas? Passará esta mescla de costumes e traços identitários para a realização e interpretação de obras de arte? O conceito de “feminino” é, por tudo isto, passível de ser aplicado a uma tese de carácter científico que procura, a todo o custo, evitar a ambiguidade e a controvérsia?

Estas e outras questões deverão ser respondidas em fases mais adiantadas da pesquisa. Voltamos, no entanto, a sublinhar que, por razões de simplicidade denominativa, o “cinema feminino” aqui enunciado corresponde, neste contexto, ao realizado por mulheres cineastas, da mesma forma que as personagens femininas a que nos iremos referindo serão as interpretadas por mulheres, no restrito sentido biológico do termo.

Operando a esta distinção, não pretendemos ignorar o facto de “masculino” e “feminino” constituírem, na sua utilização habitual, meras construções sociais. Em vez disso, sublinhamos o importante papel da linguagem como dispositivo comunicacional, retórico e expressivo, que reproduz o próprio género. Não obstante, acreditamos que, para além de excludente e bipolar, esta divisão comporta uma série de cânones (nomeados por Judith Butler na obra Gender trouble), motivadores de distinções e desigualdades aquando da atribuição de direitos e deveres a cada um dos sexos. Por essa razão, bem como pela subjectividade e falta de actualidade de quaisquer definições extra-biológicas que se possam apresentar para as duas categorias, optámos por recorrer à sua utilização no seu sentido primordial.

De uma perspectiva feminista (que transcende, naturalmente, os estudos sobre as mulheres), consideramos que a análise das ficções de longa-metragem realizadas por mulheres ultrapassa também a questão da procura de um olhar feminino por detrás das câmaras, no sentido de buscar uma vulnerabilidade, sensibilidade ou cuidado maiores (características historicamente atribuídas ao género feminino) na captação de imagens. O propósito da presente investigação concentra-se, desta forma, no estudo das críticas feministas apontadas a certos filmes que terão perpetuado a ordem patriarcal, avançando para a indagação de um possível “contra-cinema” realizado por mulheres. O que procuraremos estudar é assim, grosso modo, a eventualidade de exploração de temáticas feministas pelas mulheres cineastas, como resposta aos estereótipos e à invisibilidade das personagens femininas criadas por realizadores. De início, não sabemos se essa resposta terá sido unânime (ou, sequer, se ela terá existido), mas o seu desvendamento ou negação constitui o nosso objectivo central.

A definição política de uma autora

Nesta fase preambular do nosso estudo, prosseguindo ainda a delimitação das hipóteses de trabalho que procuraremos testar, mas fornecendo já o mote para o traçar de uma metodologia, sublinhamos que a noção de “autora” não se restringe aos limitados parâmetros estabelecidos por uma politique des auteurs, enquanto discussão iniciada por François Truffaut, em 1955, na edição francesa de Cahiers du Cinéma. Nessa perspectiva, um realizador só poderia ser considerado autor quando os seus filmes fossem a expressão da sua personalidade, representando marcas de estilo cinematograficamente coerentes e específicas da mesma arte. A politique tomava como objecto de análise, relembramos, não apenas um filme, mas o conjunto da obra do/a cineasta, tendo em vista a avaliação do seu universo fílmico. A constância estilística seria então potencialmente reconhecida a partir das referências de cada um, prevalecendo o critério da repetição das metáforas e figuras de estilo (ainda que exageradas ou levadas ao limite da obsessão). As marcas poderiam ser igualmente procuradas na relação contextual do autor com o cinema (outras obras e autores), bem como na sua própria biografia (família, classe, sociedade, país, cultura), sendo nesta última que, segundo Tito Cardoso e Cunha “se vive a experiência da dialéctica entre o universal e o singular.” (Cunha 2004, 100)

Excessivamente preocupados em louvar determinados cineastas (parte integrante do que Jean-Claude Bernardet (1994) chamou de “olimpo”), críticos como Truffaut, Chabrol e Rohmer seriam intensamente apontados tanto pela categórica rejeição da qualidade de obras de não-autores, como pelo esforço paralelo de provarem que os seus realizadores de eleição cabiam na designação. Neste sentido, Truffaut chegaria a afirmar, em 1957, que o pior filme de um bom cineasta-autor seria indubitavelmente melhor que o melhor filme de um não-autor:

“É possível que um cineasta medíocre bem mediano consiga fazer um filme de sucesso de tempos a tempos, mas esse sucesso não conta. Ele tem menos importância que um equívoco de Renoir, se é que é possível Jean Renoir se equivocar num filme.” (Truffaut 2005, 296)

Cronologicamente seguida a uma fase de pós I e II guerras mundiais, na qual o star system atribuiu maior visibilidade ao trabalho de actrizes e actores, em detrimento dos realizadores/as, os Cahiers du Cinema viriam tentar colmatar esta falha, caindo, no entanto, no extremo oposto. Não existiriam obras que valessem por si, independentemente do seu autor? E como classificar as primeiras obras de cada potencial autor, sem conhecer ainda a necessária repetição das marcas estilísticas? Por outro lado, como resiste esta politique ao argumento freudeano da intencionalidade contrária à afirmada?

Pelos objectivos que se procuraram então atingir, e tal como André Bazin, reconhecemos os méritos deste manifesto político, mas também as suas limitações e incongruências, consubstanciáveis no que designou por “culto estético à personalidade”. Ainda que de forma indelével, não poderia este nublar a suposta imparcialidade do juízo crítico? Bazin contesta afirmativamente, sustentando que a politique des auteurs teve como principal consequência a negação da obra em benefício da exaltação daquele que a produz. No seu entender, “autores medíocres podem, acidentalmente, realizar filmes admiráveis […], por outro lado, o próprio génio é ameaçado por uma esterilidade não menos acidental. A politique des auteurs ignorará os primeiros e negará a segunda.” (Bazin 1957, 116)1

A este respeito, Tito Cardoso e Cunha questionará ainda: “é a instância do Autor entendível como uma existência coexistente com as suas manifestações? Coexiste a multiplicidade das obras com a identidade do autor que as produz? Serão as obras, os filmes, relativamente ao director/realizador, uma manifestação de si?” (Cunha 2004, 89). Outros obstáculos à politique des auteurs seriam colocados por Jacques Aumont e Michel Marie, para quem, por sua vez, é essencial que uma análise fílmica se aproxime de formulações teóricas bem construídas, funcionando como verificação e demonstração destas últimas. Um dos propósitos da análise consiste, portanto, na revisitação de uma (ou várias) teoria(s), relacionando-a(s) com a obra mencionada e expondo-a(s) de modo convincente. Análise e teoria partilham assim, na opinião conjunta dos autores, as seguintes características:

“— uma e outra partem do fílmico, mas levam com frequência a uma reflexão mais ampla sobre o fenómeno cinematográfico;
— uma e outra têm uma relação ambígua com a estética, relação muitas vezes negada ou recalcada, mas visível na escolha do objecto;
— por fim, no essencial, uma e outra têm hoje lugar no ensino, especialmente nas universidades e institutos de investigação.” (Aumont, Marie 2004, 14)

Na perspectiva de Aumont e Marie, a politique des auteurs não deverá ser encarada como um método de análise fílmica que se constitui a si própria como teoria acerca do modo de fazer cinema (ainda que tenha sido esse o objectivo originário). Na nossa opinião, não terá existido, no manifesto criado, um incentivo à procura dos modos de funcionamento interno de cada filme e dos seus potenciais efeitos no/a espectador/a, independentemente dos traços de autoria e do brilhantismo do/a realizador/a. Para além do reconhecimento de uma constante em termos de recursos estilísticos na obra do/a cineasta, é essencial que se verifique a utilização e repercussão dessas marcas distintivas dentro de cada filme: tome-se então, atrevemo-nos a sugerir, a parte para atingir o todo, e não o inverso.

Sob este ponto de vista, procuraremos, na presente investigação, não conotar a qualidade de uma obra isolada com a sua realizadora (e vice-versa). Embora analisemos a primeira no contexto do percurso da segunda, e como traço de uma identidade, estaremos em maior conformidade com a definição adiantada por Glauber Rocha: “Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução.” Para o icónico realizador do Novo Cinema Brasileiro, o cinema comercial é realizado por artesões, numa perspectiva reaccionária, enquanto aos autores cabe a imensa responsabilidade da procura da verdade: “Sua estética (a do autor) é uma ética, sua mise-en-scène é uma política.” Delineada a missão, Glauber questiona:

“Como pode então, um autor, olhar o mundo enfeitado de maquilhage, iludido com refletores gongorizantes, falsificado em cenografias de papelão, disciplinado por movimentos automáticos, sistematizado em convenções dramáticas que informam uma moral burguesa e conservadora? Como pode um autor forjar uma organização de caos em que vive o mundo capitalista, negando a dialética e sistematizando seu processo com os mesmos elementos formativos dos clichês mentirosos e entorpecedores? A política do autor é uma visão livre, anticonformista, rebelde, violenta, insolente.” (Rocha 2003, 36)

Partindo do pressuposto que a autoria de uma obra ultrapassa o parâmetro da reflexão biográfica, ou da permanência de uma mesma história ao longo de toda a obra do seu autor, articularemos as tomadas de posições intrinsecamente políticas de cada realizadora no filme com as propostas conceptuais de Glauber Rocha. Centrando-nos num objecto de estudo que revela um discurso minoritário (o menor número de mulheres cineastas comparativamente ao dos homens), importa, no nosso entender, reconhecer as suas causas, propósitos e efeitos, sobretudo quando estes se mostrarem desestabilizadores de um poder instituído. E como poderiam tais representações ter lugar num “enfeite maquilhado” ou num “cliché mentiroso e entorpecedor”? De modo algum. Por outro lado, estamos conscientes de que, se um discurso minoritário coloca em causa as estruturas de poder, também uma análise feminista cumprirá o mesmo propósito. Nesse sentido, resistências e obstáculos semelhantes são já aguardadas.

Metodologia e desenho da investigação

“Um conjunto concertado de operações que são realizadas para atingir um ou mais objectivos, um corpo de princípios que presidem a toda a investigação organizada, um conjunto de normas que permitem seleccionar e coordenar as técnicas. Os métodos constituem de maneira mais ou menos abstracta ou concreta, precisa ou vaga, um plano de trabalho em função de uma determinada finalidade.” (Grawitz 1993, 175)

Definir a metodologia que se pretende utilizar implica traçar um caminho com várias etapas, necessários momentos de reflexão, visionamento, procura, expectáveis avanços, recuos e constrangimentos. É também, e essencialmente, uma manifestação dos valores que norteiam a investigação, bem como dos princípios éticos que justificam a escolha de um tema tão filosófico quanto moral e político. Se o feminismo é um movimento social que busca determinados fins (consubstanciados numa igualdade de direitos entre os sexos), o meta-feminismo também o será — assunção que clarificamos desde o início.

Para tal, iremos socorrer-nos do esquema previsto por Jacques Aumont e Michel Marie que configuram quatro tipos de análise, encarando o filme como

“obra artística autónoma, susceptível de engendrar um texto (análise textual) que fundamente os seus significados em estruturas narrativas (análise narratológica) e em dados visuais e sonoros (análise icónica), produzindo um efeito particular no espectador (análise psicanalítica).”
(Aumont e Marie 2004, 11)

Paralelamente, os mesmos autores alertam para a inexistência — da qual estaremos igualmente cientes no decurso da investigação — de um método de análise fílmica universal, sendo esta interminável, pois “seja qual for o grau de precisão e extensão que alcancemos, num filme sempre sobra algo de analisável.” (Aumont, Marie 2004, 30) Se “debaixo de cada imagem, há sempre outra imagem”, como pretendia Douglas Crimp (2001, 186), por detrás de um filme existirão sempre outros filmes, associados a constantes e eternos processos de citação, extracto e encenação que procuraremos descortinar.

Outro dos aspectos a que nos comprometemos estar atentas prende-se com a procura de um equilíbrio entre os discursos analítico e crítico, aquando da interpretação dos filmes que irão constituir o corpus do presente estudo: a complementaridade que buscaremos atingir será, no nosso entender, uma mais-valia para uma pesquisa que assume a perspectiva feminista como dominante. Sobre este assunto, sublinha Manuela Penafria, é importante que se proceda a uma clara distinção entre análise e crítica cinematográfica, tendo em conta que a primeira terá sido vulgarizada pela excessiva comparação a diversos tipos de discursos sobre filmes, que vão dos comentários, monografias e textos meramente publicitários às próprias investigações académicas:

“Numa primeira abordagem, a análise aparenta ser uma actividade banal que pode ser praticada por qualquer espectador sem que o mesmo se veja obrigado a seguir um determinado enfoque ou uma determinada metodologia.” (Penafria 2009, 1)

Na sua opinião, analisar um filme é realizar um processo de decomposição e descrição detalhadas (recorrendo a conceitos relativos à imagem, ao som e à estrutura da obra), que deve associar-se a uma profunda interpretação (estabelecendo e compreendendo as relações entre os elementos decompostos).

Criticar um filme será, por sua vez, avaliá-lo e determinar o seu valor em relação a um determinado fim. Considerando que a crítica cinematográfica se tem vindo a afastar cada vez mais da análise, Penafria defende que, não existindo uma equivalência de conceitos, a primeira deverá sempre partir da segunda. Segundo afirma, o discurso crítico não analisa as características singulares ou especificidades de cada filme, apresentando um número exagerado de adjectivos que o transformam numa apreciação abstracta e subjectiva, passível de ser aplicada a obras indiferenciadas. Ao que julgamos ser uma visão demasiado restrita deste tipo de discurso, Jacques Aumont e Michel Marie contrapõem, no entanto, uma defesa da actividade crítica, à qual associam três funções primordiais: informar, avaliar e promover. Um bom crítico terá assim, nas suas perspectivas, um profundo discernimento e “agudeza sintética”, que lhe permite eleger e apreciar a obra que a posteridade irá conservar: “Ele (o crítico) é um pedagogo do prazer estético, que se esforça por fazer partilhar a riqueza da obra com o maior público possível” (Aumont, Marie 2004, 13).

Já no entender de David Bordwell (1991), para quem os críticos são essencialmente construtores de significado, a legitimidade da prática advém da sustentabilidade das suas bases teóricas, sendo que um exemplo de interpretação fílmica freudiana seria aquela que enuncia o modo como o desejo é tratado no filme. Genericamente, acrescenta Bordwell, até mesmo os críticos que garantem analisar o filme “por si” (sem subscreverem qualquer teoria) podem ser conotados com uma teoria tácita (humanista, orgânica ou outra) que molde o seu acto interpretativo. A adesão a teorias equivalentes por parte de dois críticos não implica, no entanto, e como reitera, a formulação de discursos concordantes, existindo sempre a hipótese de surgimento de propostas díspares e alternativas. A verificabilidade ou correcção destas é, ainda assim, impraticável para Bordwell, pelo que nenhuma crítica deverá ser submetida a um teste de “indutivismo eliminador” que a torne melhor candidata do que as suas rivais. Semelhante conclusão pode ainda ser transposta para a apreciação do crítico relativamente ao filme. Considerar que este último é “bom”, “mau”, “extraordinário” ou “medíocre” não corresponde a uma enumeração de factos incontornáveis, facilmente assimiláveis por um critério de objectividade, mas antes a juízos de valor e sentenças proferidas por elementos a quem um determinado público atribuiu credibilidade suficiente para tal. Em termos práticos, juízos de valor ou sentenças não são verdadeiros ou falsos, mas antes argumentações instáveis, susceptíveis de correcção, que devem sempre ter em vista a chegada ao seu destinatário, como Perelman sublinha:

“Como o fim de uma argumentação não é deduzir consequências de certas premissas, mas provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento, ela não se desenvolve nunca no vazio. Pressupõe, com efeito, um contacto de espíritos entre o orador e o seu auditório: é preciso que um discurso seja escutado, que um livro seja lido, pois, sem isso, a sua acção seria nula.” (Perelman 1993, 29)

Revisitando esta posição, Tito Cardoso e Cunha relembra que, nos discursos do crítico profissional, deveriam exprimir-se as opiniões, juízos e apreciações de um público não traduzível num pequeno grupo conversacional e interactivo, nem tão pouco numa multidão massificada relegada para a unidimensionalidade da incomunicação. O alvo será antes um colectivo (disperso, mas estável) que partilha o interesse comum no género, sem abdicar do seu próprio gosto e capacidade de julgamento. O produto gerado será, por esse motivo, um meio de interpretação (função hermenêutica) e argumentação do valor (função retórica) da obra de arte, sendo que a primeira solicita a existência da segunda. Uma possível visão do crítico sobre o filme requer, portanto, uma defesa de argumentos convincentes perante os receptores aos quais se dirige. Nas palavras de Tito Cardoso e Cunha: “Enquanto interpretação, a palavra crítica dissipa o enigma da obra e enquanto argumentação, obtém o assentimento do público.” (2004, 95) Desta forma, e seguindo a perspectiva habermasiana, o crítico configura-se como um “árbitro das artes” (Habermas 1984, 57): o que ensina a ver, informa, contextualiza, questiona e leva a questionar.

Para Barthes, por sua vez, a função da crítica é colocar a obra em relação com o mundo, depois de uma análise intrínseca das suas representações: “a ‘prova’ crítica, se existir, depende de uma aptidão, não para descobrir a obra interrogada, mas pelo contrário, para a cobrir o mais completamente possível pela sua própria linguagem.” (Barthes 1964, 352) A crítica não é, portanto, “uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou à verdade do ‘outro’, é construção do inteligível do nosso tempo.” (Barthes 1964, 354) O crítico desdobra assim os sentidos, fazendo pairar, acima da primeira linguagem da obra, uma segunda linguagem ou coerência dos signos. Não produzindo um mero reflexo do objecto estudado, deverá, no entanto, obedecer a certas regras, que o autor estipula:

“— (a crítica) deverá transformar tudo o que reflecte;
— transformar apenas segundo certas leis;
— transformar sempre no mesmo sentido.” (Barthes 1966, 63)

A exigência do estabelecimento de critérios de objectividade na atribuição de valores constitui portanto, no seu entender, uma das regras que imprime credibilidade ao discurso crítico — regras a que estaremos atentos ao longo da investigação em curso e, em particular, aquando do necessário aprofundamento das metodologias de análise e crítica fílmica que, naturalmente, se seguirão aos primeiros capítulos teóricos. No seguimento destas reflexões, e novamente segundo Bordwell, a crítica não será nem uma ciência nem uma arte, assemelhando-se, todavia, a ambas:

“Como estas [a ciência e a arte], [a crítica] depende de competências cognitivas; requer imaginação e bom gosto; e consiste na prática de resolução de problemas institucionalmente sancionada. A crítica é, penso eu, melhor definida como uma arte prática, um pouco como acolchoar ou fabricar móveis. E porque o seu produto inicial é um fragmento da linguagem, ela é também uma arte retórica.” (Bordwell 1991, XII)2

Neste encontro entre ciência e arte (que também uma investigação em teorias feministas do cinema pressupõe) recorreremos portanto, ao longo das diversas fases de investigação, a uma “arte prática”, assumindo o suporte teórico que Bordwell considera atribuir credibilidade à actividade crítica, bem como a necessidade de estabelecimento de uma metodologia que oriente a investigação aprofundada do corpus seleccionado.

Neste âmbito, Manuela Penafria fixa a existência de quatro tipos de processos de análise fílmica que poderão ser utilizados como metodologia qualitativa, e dos quais seleccionaremos os mais pertinentes no contexto da temática.

1. Análise textual:

segundo a qual “o filme é um texto”. Ecoando a teoria proposta por Christian Metz em Grande sintagmática, esta análise infere que os filmes possuem três tipos de códigos: perceptivos (capacidade do espectador reconhecer os objectos no ecrã), culturais (capacidade do espectador interpretar o que vê no ecrã recorrendo à sua cultura geral) e específicos (capacidade do espectador interpretar o que vê no ecrã a partir dos recursos cinematográficos). Decompor o filme será assim exibir a sua estrutura, dividi-lo em segmentos, unidades dramáticas ou sintagmas e seguir a vertente estruturalista de inspiração linguística criada nos anos 60 e 70. Para Penafria, este tipo de análise tem como principais desvantagens o facto de ignorar toda a riqueza visual da obra e ser mais adequada aos filmes narrativos do que a qualquer outro género. Na nossa opinião, a similitude entre palavra e imagem aqui proposta é também demasiado forçada, uma vez que, tal como pretende Roland Barthes (1984) ao proceder à desmistificação do lema “uma imagem vale mais que mil palavras”, o texto fixa e vem ancorar as significações possíveis da imagem. Desse modo, irá acrescentar-lhe valor, em vez de se assemelhar ou ser comparável a esta.

2. Análise de conteúdo:

pressupõe que “o filme é um relato”. Este processo, segundo Penafria, é igualmente limitado, por se restringir à identificação e exploração do tema e enredo da obra. Completar a frase: “Este filme é sobre…”, resumir a sua história e decompô-lo — tendo em conta o que diz a respeito do tema — seriam as tarefas exigíveis numa estratégia deste tipo. Frequentemente confundida com a análise de discurso, distingue-se desta por se centrar unicamente no texto do objecto (fílmico), utilizando metodologias orientadas para a compreensão. A análise de discurso, por sua vez, procura desvendar os discursos (ou novos textos) emergentes do objecto, utilizando metodologias orientadas para a interpretação. Apesar de a autora não consagrar a análise discursiva como passível de ser aplicada a um filme, cremos que é sobretudo nela que deverá centrar-se a nossa investigação, por ser a que mais fixa — à semelhança das próprias teorias feministas — a linguagem enquanto prática social.

Sustentada em teorias como a dos actos de fala de Austin (“Eu faço coisas, ao dizer coisas. (…) o acto locutório tem um significado — o acto ilocutório tem uma certa força ao ser dito.” – Austin 1986, 1213), a análise discursiva pressupõe que tudo o que tem um significado pode ser dito ou mostrado, estabelecendo uma inter-relação entre o discurso e o social. Terá como principal objectivo evidenciar e interpretar a utilização da linguagem e as significações e finalidades expressas através do próprio discurso, centrando-se não apenas em quem fala (sujeitos da enunciação), mas também nos sujeitos e/ou situações sobre os quais se fala, atentando aos dispositivos retóricos de argumentação utilizados. Ao longo da sua implementação, prevê-se um reconhecimento, segundo autores como Dominique Maingueneau e Michel Foucault, de uma infinita intertextualidade da obra com textos anteriores (que terão servido de base) e posteriores (gerados a partir deste). Uma análise discursiva de carácter feminista pretenderá, especificamente, analisar o modo de funcionamento das relações de poder e resistência patriarcais no seio da sociedade a partir dos discursos que a modelam, bem como das práticas alternativas que se configuram como respostas.

3. Análise poética:

para Wilson Gomes, o grande impulsionador deste tipo de estudo, analisar um filme é enumerar os efeitos da experiência fílmica e, a partir destes, perceber a estratégia utilizada pelo realizador/a (efectuando o percurso inverso ao processo criativo). Para tal, quem analisa deve estar atento a todos os meios e recursos expressivos utilizados no filme, desde os visuais (escala de planos, fotografia, enquadramento, luz, movimentos de câmara), aos sonoros e cénicos (banda sonora, direcção de actores, cenários e figurinos), passando inevitavelmente pelos narrativos (argumento e composição da história). Passível de ser aplicada a diversos tipos de obras de arte, a análise poética tem como principal vantagem, no caso específico do cinema, auxiliar na determinação do tipo de composição fílmica preponderante. Esta última poderá ser estética (caso o filme desperte sensações invulgares no espectador, como frequentemente acontece no cinema experimental), comunicacional (se o filme apresentar um forte argumento, pretendendo transmitir uma determinada mensagem e apelar aos sentidos da audiência), ou poética (sobretudo no caso de filmes com uma forte componente dramática que perturbam as emoções e sentimentos do/a espectador/a):

“A poética estaria, deste modo, orientada para a identificação e tematização dos artifícios que, no filme, solicitam uma ou outra reacção, este ou aquele efeito no ânimo do espectador. Neste sentido, estaria capacitada a ajudar a entender porquê e como pode levar-se o apreciador a reagir desta ou daquela maneira diante de um filme.” (Gomes 2004, 43)4

4. Análise da imagem e do som:

segundo a qual “o filme é um meio de expressão”. Ao contrário da anterior, este tipo de análise é especificamente cinematográfica, procurando descortinar o modo como o/a cineasta concebe o cinema (como coloca a técnica ao serviço da sua arte ou ofício). Centrando-se na forma como são captadas as imagens em movimento, e na sua posterior edição, este tipo de análise evidencia o cinema como meio de pensar e lançar novos olhares sobre o mundo.

Por não se pretender desenvolver uma investigação exclusivamente destinada a futuros realizadores e realizadoras de cinema, privilegiaremos uma análise discursiva e poética, que não irá atribuir o esperado destaque ao estudo dos aspectos técnicos dos filmes (decomposição exaustiva de planos, jogos de luz, sonoridade utilizada, entre outros). Procuramos essencialmente realizar um trabalho que desperte o interesse de todos aqueles que se movem em torno dos estudos artísticos e que percepcionam a arte como uma forma de transmissão de mensagens mais ou menos políticas e socialmente geradora de pensamentos, teorias e modos de ver. Neste sentido, e como já referimos anteriormente, optaremos por uma abordagem sociológica em detrimento da psicanalítica, bem como uma análise textual e narrativa em detrimento de uma possível “meta-técnica”, enquanto discurso produzido sobre a mesma.

Através das referidas opções, será privilegiada uma hermenêutica do texto fílmico como meio de apropriação e interpretação do conteúdo que as cineastas portuguesas optam por trabalhar nos seus filmes. As conclusões fundamentais a que pretendemos chegar prendem-se com o tipo de personagens femininas que filmam: como as apresentam e definem? Que estereótipos conservam ou rejeitam? Serão maioritariamente mulheres de personalidade forte e vincada, as escolhidas para serem retratadas nas imagens das realizadoras? A identificação das espectadoras e espectadores poderá constituir-se como um processo mais naturalizado e quase inconsciente, pelo realismo com que os temas são abordados? Os temas escolhidos estarão, por sua vez, relacionados com formas de discriminação das quais muitas mulheres ainda são vítimas?

Nesta perspectiva, os objectos de estudo (os filmes) poderão vir a ser usados como pretexto para o debate de certos temas fracturantes na sociedade contemporânea, entre os quais citamos a ausência de mulheres em cargos de poder, a dificuldade de conciliação entre vida profissional e familiar, a prostituição e a sexualidade femininas. Procuraremos assim analisar os aspectos em que o filme nos faz pensar, actuando como um “laboratório de ideias”, ao invés de um mecanismo de reflexão sobre a Escola a que a cineasta pertence. Propomos, pelas razões apresentadas, uma abordagem teórica sobre os principais objectivos, valores e pensamentos que o filme reúne em si, sem deixar de elaborar um juízo crítico e uma análise à evolução que o percurso cinematográfico da realizadora terá conhecido nos anos mais recentes. Pretendemos, em síntese, realizar um diálogo com os elementos sociológicos do filme, na perspectiva dos estudos feministas.

A metodologia que iremos seguir, para levar a cabo as tarefas enumeradas, é a proposta por John B. Thompson em Ideologia e cultura moderna (1998). Fortemente influenciado por uma tradição hermenêutica dos séculos XIX e XX — com particular incidência em Dilthey, Heidegger, Gadamer e Ricoeur — o professor e investigador da Universidade de Cambridge defende que o estudo das formas simbólicas é essencial e inevitavelmente um problema de interpretação. Por formas simbólicas, Thompson entende “um amplo espectro de acções e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos.” (Thompson 1998, 79) Sublinhe-se, no entanto, que apesar de reconhecer que as expressões linguísticas (faladas ou escritas) são cruciais à formulação citada, o autor não exclui formas de natureza não-linguística (como imagens ou combinações de imagens e palavras) do seu âmbito. Formas simbólicas serão, deste modo e em última instância, construções que exigem uma interpretação: “elas são acções, falas, textos que, por serem construções significativas, podem ser compreendidas.” (Thompson 1998, 357) Apesar de estruturalmente teóricas, as discussões e interpretações originadas têm ainda, e na sua opinião, repercussões na prática, da mesma forma que esta última influencia o debate teórico.

O referencial metodológico utilizado por Thompson para analisar as formas simbólicas é designado por “hermenêutica de profundidade”5 (HP), comportando uma tríplice análise e a sua consequente aplicação ao corpus seleccionado. Recorde-se que, mitologicamente, o deus grego Hermes, a quem a origem do conceito se encontra associada, é apresentado como o descobridor da linguagem e da escrita. Segundo Chevalier e Gheerbrandt (2002), Hermes era um mensageiro celestial, mediador entre o divino e o terreno, a cuja existência eram atribuídos dois significados: um primeiro relacionado com a assimilação que Hermes realizava de todo o conhecimento produzido no mundo inteiro e que transmitia às entidades superiores; e um segundo relativo às diversas interpretações de diferentes pessoas para uma mesma palavra ou situação, tendo todas elas a noção de haverem compreendido a mensagem. Desta forma, inscrevendo-se a génese da palavra hermenêutica no verbo grego hermeneuein (traduzível por “interpretar”) e no substantivo hermeneia (correspondente a “interpretação”), esta é vulgarmente identificada como a teoria ou filosofia da interpretação.

Sobre a mesma temática, Dilthey e Schleiermacher relacionaram interpretação e compreensão com o reconhecimento das intenções do autor na situação original do discurso, enquanto Paul Ricoeur propôs uma libertação da hermenêutica daquilo a que chamou “preconceitos psicologizantes e existenciais.” (Ricoeur 1976, 34) Para Ricouer, um texto escrito é uma forma de discurso com idênticas condições de possibilidade:

“Sem impor à nossa discussão uma correspondência demasiado mecânica entre a estrutura interna do texto, como discurso do escritor, e o processo de interpretação, como discurso do leitor, pode dizer-se, pelo menos à maneira de introdução, que a compreensão é para a leitura o que o evento do discurso é para a enunciação do discurso, e que a explicação é para a leitura o que a autonomia verbal e textual é para o sentido objectivo do discurso.” (Ricoeur 1976, 83)

O conceito existencial de “apropriação” do que anteriormente era estranho é assim, segundo Ricoeur, o primeiro objectivo da hermenêutica:

“A interpretação no seu último estádio quer igualizar, tornar contemporâneo, assimilar, no sentido de tornar semelhante. Este objectivo consegue-se na medida em que a interpretação actualiza a significação do texto para o leitor presente” (Ricoeur 1976, 103).

Ricoeur acredita ainda que a ficção, através da sua linguagem metafórica, é o meio privilegiado da realidade, sendo a linguagem poética aquela que, de acordo com a filosofia aristotélica, efectua uma mimesis da realidade: “a Tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria, através de um mythos, de uma fábula, que atinge sua mais profunda essência” (Ricoeur 1988, 57).

Reunindo as diferentes visões sobre os pressupostos da experiência hermenêutica, Thompson corrobora ainda a sua divisão em três fases, que procuraremos distinguir e aplicar:

1. Análise sócio-histórica (ASH):

“A tarefa da primeira fase do enfoque da HP é reconstituir as condições e contextos sócio-históricos de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, examinar as regras e convenções, as relações sociais e instituições, e a distribuição de poder, recursos e oportunidades em virtude das quais esses contextos constroem campos diferenciados e socialmente estruturados.” (Thompson 1998, 369)

2. Análise formal ou discursiva (AD):

traduz-se num estudo semiótico das relações entre os elementos que compõem a forma simbólica ou o signo com os de um sistema mais amplo (do qual a primeira pode fazer parte integrante). Thompson reconhece, no entanto, que a adopção desta perspectiva implica uma abstracção metodológica das condições sócio-históricas de produção e recepção das formas simbólicas. Ao centrar-se unicamente nas últimas, identificam-se essencialmente as suas características estruturais internas (os seus elementos constitutivos e relações), interligando-as aos sistemas de códigos dos quais formam parte. A limitação referida, identificada pelo próprio autor, reforça, no entanto, a necessidade de articulação com outros tipos de análise, como a de discurso, sintáctica e/ou argumentativa.

3. Interpretação/reinterpretação:

a última fase da experiência hermenêutica é consequência natural das anteriores, na qual se pretende revelar os padrões e efeitos que operam dentro de uma forma simbólica. Segundo o autor, por mais rigorosos e sistemáticos que os métodos da segunda fase possam ser, não eliminam a necessidade de uma construção criativa do significado, à qual corresponde uma explicação interpretativa do que é dito ou representado. Considerando que todas as formas simbólicas apresentam um “aspecto referencial” (por representarem, se referirem ou dizerem algo sobre alguma coisa), Thompson declara que o mesmo deve ser descortinado no processo de interpretação, transformando-o, simultaneamente, num processo de reinterpretação (uma segunda análise por parte dos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico). Nesta situação, o conflito de interpretações é previsível e, por vezes, interminável.

Em traços gerais, consideramos assim definida uma metodologia de análise possível de aplicar a filmes realizados por mulheres-cineastas.

Notas Finais

1No original: “médiocres auteurs pouvaient, par accident, réaliser des films admirables […] en revanche, le génie même était menacé d’une stérilité non moins accidentelle. La politique des auteurs ignorera les premiers et niera la seconde.”

2No original: “Like them, it depends upon cognitive skills; it requires imagination and taste; and it consists of institutionally sanctioned problem-solving activities. Criticism is, I think, best considered a practical art, somewhat like quilting or furniture-making. Because its primary product is a piece of language, it is also a rhetorical art.”

3No original: “I do things, in saying something. (...) the locutionary act has a meaning – the illocutionary act has a certain force in saying something.”

4No original: “La poética estaría, entonces, orientada para la identificación y tematización de los artificios que, en la película, solicitan ésta u otra reacción, éste o aquel efecto en el ánimo del espectador. En este sentido, estaría capacitada a ayudar a entender por qué y cómo puede llevarse al apreciador a reaccionar de ésta o de aquella manera frente a un filme.”

5Salvaguardamos que o conceito nos parece algo tautológico, na medida em que não consideramos a hipótese antagónica de realização de uma “hermenêutica da superficialidade”.

Bibliografia

Livros

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Artigos em revistas

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