Capítulo II – Cinema – Cinema

Transpersonal approaches at school: a new subjective framework in cinema pedagogy

A Transpessoalidade na Escola: novas abordagens subjetivas da Pedagogia do Cinema

Verônica Valério Santos

Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal – Brasil

Abstract

Cinema as a universal art provides the construction of the historical, critic, aesthetic and philosophical knowledge. It represents, with the cross-disciplinary aesthetics of teaching, a real possibility of development of the cultural education by allowing us to understand the subjectivity of social life, within a worldview that commonly resonates in the school universe. In this study, it is aimed to understand, in experiential terms, how the pedagogical application of cinema could impact in Youth & Adult Education (EJA), by addressing the experience of a pedagogical intervention carried out with students in the capital of Brazil. Thus, one of the challenges of this project is to mediate a cross-cultural dialogue at curricular level, in compliance with the perspectives of Brazil’s Education Law (LDB, BRAZIL, 2013), in a way that those knowledges already constituted in the curriculum can be conciliated with elements of cultural diversity of these students, by means of cross-disciplinarity of cinema. With the purpose of an education of sensibility towards the construction of more healthy, harmonious and cooperative relations, aiming the personal and collective betterment of a culture of peace, a didactic method based on transpersonal psychology is also implemented.

Keywords: Cinema, Education, Diversity, Transdisciplinarity, Transpersonal approaches.

A Transpessoalidade na Escola: novas abordagens subjetivas da Pedagogia do Cinema

O presente artigo propõe um estudo acerca da atuação do cinema no percurso da escola. Ambos, o cinema e a escola, numa trajetória trans-histórica, sempre carregaram consigo as inquietações e as contradições existenciais, filosóficas, morais e estéticas de seu tempo. Como testemunhos vivos dos fenômenos socioculturais e comportamentais, desenvolveram-se no transcurso cósmico que dimensiona o próprio ciclo evolutivo da humanidade.

A educação e o cinema, quando alinhados com a complexa rede de significações da Transdisciplinaridade, influenciam na construção da pluralidade estética que repercute no microcosmos dos espaços escolares, justamente por serem duas áreas que promovem, entre outros aspectos, encontros de afetos. Muitas vezes, são encontros de afetos em narrativas de vidas que transcendem o próprio sentido do real. O cinema, como ferramenta pedagógica, também nos permite trabalhar a autonomia dos sujeitos da educação no processo de construção artística e histórico-cultural da realidade em que estão inseridos.

A partir dessa perspectiva da Transdisciplinaridade, pensando em uma nova Pedagogia do Cinema, realizei, com estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola pública do Distrito Federal, um Projeto de Intervenção Local. Nesse projeto, o cinema é apresentado dentro das suas múltiplas possibilidades técnicas e organizativas, e transformado em um instrumento pedagógico capaz de potencializar, para além da inserção social, cultural e artística, a dinâmica afetiva da educação por meio da Sétima Arte.

A EJA comporta uma clientela cujo perfil é fortemente demarcado pela heterogeneidade e pela diversidade. Por isso, para acolher a realidade pedagógica desses educandos, foi importante considerar o cinema pela ótica da subjetivação, na via da Transpessoalidade, como uma nova proposta para a Pedagogia do Cinema.

Transpessoalidade é uma expressão advinda da Psicologia Transpessoal, considerada a quarta força da Psicologia, que resultou, dentro desse projeto, num importante embasamento teórico, permitindo-me vislumbrar os educandos como indivíduos não somente em processo de emancipação social, mas também como pessoas que precisam ser acolhidas em suas subjetividades e complexidades.

Toda essa perspectiva de análise foi perfilada com base nas projeções da vida contemporânea. Sendo assim, fez-se imprescindível reconhecer como todos nós, docentes e discentes, também fazemos parte de um modelo de diversidade construído no contexto da “sociedade de informação” e da “sociedade do espetáculo”. Com repercussões diretas em nossos espaços escolares, em todas as suas especificidades.

Por meio desse projeto, tivemos a oportunidade de demonstrar como a educação e o cinema, quando conjugados como manifestações artísticas, numa estética de aglutinações, podem atuar em uma realidade pedagógica, de modo a estimular uma educação da sensibilidade em toda comunidade escolar e fomentar a construção de novas ideias e percepções subjetivas com vistas ao desenvolvimento de uma consciência plenamente alinhada com os propósitos da Transpessoalidade.

Quando o cinema vai à escola

Os primeiros registros fílmicos trazidos a público datam de 28 de dezembro de 1895. Foi numa sessão inédita, no Salão Indiano do Grand Café, no Boulevard des Capucines 14, em Paris, que os irmãos franceses Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862 -1954) e Louis Jean Lumière (1864-1948) fizeram a sua primeira projeção cinematográfica pública, para um grupo que não ultrapassava mais do que trinta pessoas. Cada espectador pagara o equivalente a um franco para assistir e presenciar aquela que seria a primeira sessão comercial da história do cinema mundial. Na programação fílmica, estava prevista a exibição de dez filmes de curta metragem, isto é, com três a quatro minutos de duração para cada película.

Incontáveis registros históricos remetem aos antecedentes genealógicos que nortearam e influenciaram diretamente a produção do cinematógrafo dos irmãos Lumière, exibido na ocasião com todas as suas singularidades e limitações técnicas, porém, reconhecido pela originalidade e audácia. A palavra cinema é a abreviação de cinematógrafo, cuja grafia no francês é cinématographie, que advém do grego antigo κίνημα (kínēma) e significa movimento, ligando-se ao verbo γράφειν (kinein), “mover-se”. Gráphein (ágrafo) também remete ao ato de escrever e de gravar.

Sendo assim, os irmãos Lumière recorreram à fotografia, colocando uma série de imagens gravadas em movimento. No entanto, o que fez daquela estreia no mais badalado Café de Paris um importante evento histórico não foi tão somente o alumbramento e a comoção causadas pelo impacto daquelas cenas documentais em movimentação, registrando a vida cotidiana, mas também, a inauguração de uma aura mítica, contemplativa e inventiva que para sempre acompanharia o cinema, consagrando-o, quase duas décadas depois, como a Sétima Arte. Um reconhecimento de sua condição de arte universal, catalisadora e agregadora, capaz de absorver muitos outros movimentos estéticos, tecnológicos, híbridos e comportamentais que delineariam o percurso histórico da humanidade, nestes cento e vinte seis anos de existência do cinema.

Por sua essência universal e transgressora, reiteradamente avessa aos convencionalismos estéticos, o cinema, desde a sua fase embrionária, firmou-se como uma composição artística aglutinadora. O prestigiado crítico de cinema italiano, Ricciotto Canudo, foi quem melhor traduziu essa capacidade genuína que o cinema tem de fazer interligações artísticas. Em 1912, Canudo escreveu o “Manifesto das Sete Artes” que somente seria publicado em 1923. Nesse momento, o renomado crítico italiano consagra o cinema à condição de a Sétima Arte, por englobar, em realidade cinematográfica, as seguintes artes, sequencialmente: música (som), dança/coreografia (movimento), pintura (cor), escultura (volume), teatro (representação), literatura (palavra) e, cinema, como a sétima arte que integra todos os elementos das artes anteriores, além da oitava, a fotografia (imagem).

Para Milton José de Almeida (1994, 32), em “Imagens e Sons: a nova cultura oral”, o cinema é um produto de muitas faces, pois se em sua totalidade de produto não podemos afirmá-lo como obra de arte, podemos, assim, considerá-lo, em determinados momentos, um conjunto de cenas sequências:

Momentos em que ele nos remete para além de si mesmo; momentos em que luz, enquadramento, atores, fala, som, música etc. alcançam significado histórico, cinematográfico, estético, de maneira a nos fazer presenciar algo inteiro, ambíguo, ao mesmo tempo, esclarecedor. Ideias, informações, visões de mundo, sensações e percepções estéticas que somente o cinema pode mostrar, diferentemente de outras expressões artísticas, de modo especialmente novo e próprio. Nesses momentos, o cinema aproxima-se da música, em seu apelo sensual; dos sentidos; de uma participação corporal do espectador, mais completa e menos sujeita à racionalização (Almeida, 1994, 32).

O cinema se tornou o grande testemunhador de nossa trajetória humana, a partir do final do século XIX. Com linguagem própria, formulada por uma sintaxe cinematográfica evolutiva, ele vem consolidando a nossa memória afetiva em todas as suas subjetivações e, ao mesmo tempo, também nos ajuda a reconstruir a nossa memória coletiva. Rosália Duarte (2002), em “Cinema & Educação”, reflete sobre o tema:

Nas sociedades mais ricas e desenvolvidas do mundo contemporâneo, os bens culturais audiovisuais, incluindo os cinematográficos, são considerados recursos estratégicos para a construção e a preservação de identidades nacionais e culturais (Duarte, 2002,19)

A reconstituição das imagens e dos cenários de vidas nos tempos de outrora, por meios dos vestígios históricos que cintilam nas projeções da grande tela azulada, permite-nos, ainda, dimensionar a nossa trajetória individual e existencial dentro de uma coletividade, uma vez que o nosso sentimento de pertencimento também se constrói no resgate de nossas memórias individuais identificadas e reconhecidas no inconsciente coletivo. Sobre essa perspectiva de representação, o filósofo Walter Benjamin (1994) pondera:

Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência e, por outro, assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade (Benjamin, 1994, 189).

A reprodução dessas imagens fílmicas que compõem o imaginário individual e coletivo também repercute diretamente em nossos sentidos e em nossa percepção sensorial, de modo a influenciar mais incisivamente na (re)construção das memórias de toda a humanidade. Benjamin (1994) ressalta:

Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabem unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começa a situar-se no mesmo nível que a palavra oral (Benjamin, 1994,167).

Na transcendência do tempo e do espaço, o cinema registrou, por meio de câmeras analógicas e digitais, com a sua ótica documental e ficcional, os eventos bélicos das muitas guerras que destroçaram a humanidade, acompanhando a queda de regimes políticos e de governos em todo o mundo. Anteviu os avanços tecnológicos e as conquistas espaciais que mudariam para sempre o nosso cotidiano. Testemunhou o progresso e a degeneração das cidades, cujos resultados revelam não somente uma catástrofe ambiental sem precedentes históricos, como também uma degradação nas próprias relações humanas, com os seus conflitos existenciais cíclicos, como consequência de uma dinâmica de vida mapeada pelo modus operandi de um sistema capitalista que se manifesta em seus estágios finais, em plena saturação. Como indústria, o cinema também se consolidou nessa mesma conjuntura política e econômica que o obriga continuamente a se reinventar como arte de consumo e de entretenimento das massas.

Graças a sua imensa capacidade de estabelecer intersecções entre as artes, o cinema transita por entre espaços variados e se comunica voluntariamente com realidades distintas. O universo escolar é uma dessas realidades comumente revisitadas, estabelecendo parcerias oportunas; seja como enredo, seja como ferramenta pedagógica. Muito embora concordemos que ainda haja muita resistência de ambos em se reconhecerem como parceiros, nesse longo e desafiador processo de formação das pessoas.

Há décadas que o cinema vem retratando o ambiente escolar, nos denominados “filmes de escola”, abordando os dilemas e os problemas escolares em contextos conflitivos. Em geral, as produções de origem norte-americana acabam por reiterar os estigmas e os estereótipos que contradizem a pluralidade e a diversidade desse universo. Assim, pondera Duarte (2002):

Não é por acaso que a abnegação, o espírito missionário e a dedicação quase sacerdotal prevalecem nas representações de professores. E não é arbitrário, também, o fato de o currículo escolar ser frequentemente representado como colcha de retalhos e totalmente desprovido de sentido. Na verdade, grande parte dessas produções reflete e reforça concepções românticas e conservadoras a respeito do que é a vida em ambiente escolar (Duarte, 2002, 85-86).

Por outro lado, ainda sobrevém o preconceito e o desinteresse em reconhecer o cinema como arte e como fonte de conhecimento acessível a nossa realidade pedagógica. Especialmente, porque, para muitos de nós, professores e professoras, assim como para o público em geral, o cinema está muito mais associado à ideia de diversão e de entretenimento, limitado a um exponencial de consumo de massa, do que necessariamente, uma portentosa manifestação artística. Sobretudo, agora, em que os locais de exibição dos filmes estão restritos aos elitizados Shopping Centers, os novos templos do consumismo. Esse fenômeno mundial de deslocamento espacial das salas de cinema vem alterando sobremaneira a relação afetiva e a percepção sensorial do público quanto ao espaço físico que abriga essas salas. Além de estabelecer um outro tipo de envolvimento e conduta com os próprios filmes, enquanto produção artística.

Nós, os profissionais da educação, também estamos inseridos nesse novo contexto de formação de espectadores que vem definindo a vida contemporânea e modelando o comportamento do público. Esse público de hoje é muito mais percebido como consumidor de uma ampla e variada cadeia de diversão e de entretenimento, em cuja lógica do capitalismo se enaltece a massificação e a celeridade do consumo. O filósofo Guy Debord (1997) cunhou o termo “sociedade do espetáculo” para definir esse novo modelo de consumismo que tende propositadamente a subestimar o público em seu potencial analítico e crítico:

É lamentável que a sociedade humana encontre tão graves problemas no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil, momento em que a dominação – justamente porque o espetáculo a protege de toda reação a suas decisões e justificativas fragmentadas ou delirante – acha que não precisa pensar; na verdade, já não sabe pensar (Debord, 1997,196).

Esse “não saber pensar” na qual se refere Debord também se corporifica quando revelamos a nossa inexperiência e limitação no manejo de produções audiovisuais na escola, pois, em geral, renegamos essas produções à condição de recurso didático secundário, atribuindo-lhes uma função meramente ilustrativa. Quase sempre são utilizadas como um reforço lúdico a um conteúdo que já está presente em outras “fontes oficiais”, consideradas mais confiáveis e sempre recorrentes ao ambiente escolar, como os livros didáticos.

E por que isso ainda acontece? Esse questionamento deveria nos levar a muitas vias de reflexão. Afinal, como professores, encontramo-nos numa posição perpendicular: estamos nos dois polos dessa realidade irrefletida, pois, somos, simultaneamente, consumidores e reprodutores dessa cultura de massificação e de consolidação do discurso dominante. “É a dualidade existencial dos oprimidos que, ‘hospedando’ o opressor, cuja ‘sombra’ eles ‘introjetam’, são eles e, ao mesmo tempo, são o outro” (Freire, 2005, 54). Ademais, endossa Michel Foucault (2004,14), “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem”.

Como consumidores, estamos numa condição em que muitos de nós nem sequer se percebe como um agente passivo dentro dessa cadeia de consumismo autômato e acrítico. No outro extremo, também reforçamos esse estado de dominação quando em nossos ambientes escolares reproduzimos esse discurso dominante, ignorando a riqueza e a grandeza do patrimônio artístico e cultural da humanidade para muito além de um circuito comercial limitador. Da mesma forma que ignoramos a dinâmica de vida do próprio organismo social a que pertencemos, com todos os seus recursos artísticos e culturais disponíveis para serem amplamente utilizados como instrumentos de transformação e de mobilização social. Caso todos esses recursos fossem adequadamente utilizados, perceberíamos novos caminhos, capazes de nos conduzir a muitas outras percepções, em outros espaços de subjetividade. Recorro, mais uma vez, à lucidez sempre atualizada de Paulo Freire (2005):

Há, por outro lado, em certo momento da existência dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar desses padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação, querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada classe “superior” (Freire, 2005, 56).

É sempre pertinente refletir sobre como essas ações conscientes e inconscientes repercutem em nossas práticas pedagógicas e de que modo as nossas omissões como professores também nos inserem nesse fluxo de consumismo distorcido, comprometendo a formação política e cultural de nossos estudantes. Como adverte Freire (2005, p. 54), “enquanto não chegam a localizar o opressor concretamente, como também enquanto não cheguem a ser ‘consciência para si’, assumem atitudes fatalistas em face da situação concreta de opressão em que estão”.

Zygmunt Bauman (2008a) teceu oportunas reflexões sobre a edificação dessa “sociedade de consumo”, nestes tempos de liquidez e fluidez, termos utilizados por ele para descrever a cultura de nossa época. Segundo Bauman, saímos de um modelo de “sociedade de produtores” para um novo ambiente existencial de “sociedade de consumidores”. Nestes termos, pondera Silva (2011):

O novo indivíduo consumista assume características líquidas e extrai a postergação do prazer de consumir e desloca-o para o imediato. Os bens duráveis perdem o brilho. (Silva, 2011, 33).

Por outro lado, esclarece-nos Bauman (2008a), os membros dessa “sociedade de consumo” se tornam eles próprios “mercadorias de consumo”, objetos vendáveis a serem oferecidos, sobretudo no universo virtual, com adjetivações “fluidas e líquidas” que lhes determinam prazos de validade e de sobrevivência. Portanto, uma descartabilidade previsível. Vivemos a era dos produtores de conteúdos digitais que dominam o universo das mídias e redes sociais, os denominados digitais influencers. A nossa clientela estudantil costuma ser o público alvo destinado ao consumo dessas informações e mercadorias digitais, estimulada por um consumismo exacerbado, cuja consequência mais direta é o superficialismo existencial, com desdobramentos repercutindo especialmente na escola.

Todas essas mudanças paradigmáticas no contexto atual dessa “sociedade de informação” também inseriu a escola numa nova ambientação virtual. Para L. Manovich (2005),

as décadas de 1900 foram sobre o virtual, as décadas de 2000 provavelmente estarão voltadas para a fisicalidade – isto é, um espaço físico preenchido com informação eletrônica e visual
(L. Manovich, 2005 apud Paraguai, 2008, 249).

Em termos práticos, significa a realidade de transição do modelo convencional dos computadores para os objetos móveis, como os celulares, os tablets, entre outros. Com os seus infinitos recursos digitais, tornando muito mais célere e menos burocrático o acesso à fotografia, ao Youtube, bem como a muitas outras redes e mídias sociais.

Apesar dos avanços tecnológicos prementes, sabemos que ainda há muita resistência por parte dos profissionais da educação em enveredar por caminhos mais audaciosos, nessas novas realidades virtuais e digitais, além do desinteresse em acessar os conhecimentos artísticos e culturais a fim de transformá-los em saberes pedagógicos. Em boa parte das escolas brasileiras, há um ambiente favorável à utilização de produções audiovisuais. Contudo, ainda há desinteresse, apatia e muita desmotivação que acabam por singularizar as ações desafiadoras dos que anseiam por mudanças profundas.

No Brasil atual, com um governo de extrema direita, temos assistido à inserção da pauta neofascista em nossas instituições republicanas. Um controle ideológico que passa pelo filtro religioso do neopentecostalismo, na contramão da ciência e do progresso, com o cerceamento da nossa liberdade de expressão em todas as áreas. A escola brasileira, tristemente, também vem sendo submetida a essa patrulha ideológica. Diante disso, o cenário está cada vez menos promissor, sem deixar de considerar também o trágico contexto da Pandemia do Coronavírus.

Em meio aos desalentos e às desmotivações diárias, tornar-se imprescindível fazermos reflexões críticas consistentes sobre todos esses processos que repercutem diferentemente nos variados contextos da vida brasileira e demandam de todos nós, professores e professoras, diferentes níveis de resistências e de posicionamentos. É preciso resistir e construir caminhos que nos permitam vislumbrar esse encorajamento nas ações cotidianas práticas, visando a transformação de nossos espaços escolares, agora híbridos. O cinema com toda a sua complexidade e com a sua incrível capacidade de agregar as outras manifestações artísticas pode ser uma importante ferramenta de transgressão e de resistência. Pois, como uma arte universal, ele também nos permite compreender o processo de construção do conhecimento histórico, crítico, estético e filosófico que compõem a história da humanidade. Como ressalta a poeta Danielle Villar (2013), “a arte liberta, pois não há dogmas capazes de impedir que as imprevistas ideias e conversão de sentimentos se encontrem no momento exato”.

Na estética transdisciplinar do magistério, o cinema também representa uma possibilidade real de desenvolvimento da educação artística e cultural ao nos permitir compreender a subjetividade da vida social, dentro das mais variadas cosmovisões que comumente repercutem no universo escolar. A educação e o cinema repercutem na construção dessa pluralidade estética e humana, em realidade pedagógica, por serem duas áreas que promovem, entre outros aspectos, encontros de afetos e a construção de memórias individuais e coletivas, em meio a tantas singularidades. Ademais, o cinema também nos permite trabalhar a autonomia dos sujeitos da educação no amplo processo de construção artística e histórico-cultural da realidade em que estão inseridos. Nesse processo de sensibilização dos espaços escolares, na perspectiva transdisciplinar, vislumbremos, por conseguinte, uma nova Pedagogia do Cinema.

A Transdisciplinaridade na construção de uma nova Pedagogia do Cinema

Pensar o cinema na escola exige sensibilidade e disposição com uma significativa ascendência à arte e à cultura. Mas, para além dessa inclinação artística, espera-se, também, uma outra compreensão de mundo que permita enxergar a educação como um processo de socialização e de subjetivação. Portanto, uma retórica transdisciplinar capaz de ampliar o conceito de educação.

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1979), desenvolvemos, por meio do cinema, a chamada “competência para ver”. Em outras palavras, fazemos parte das gerações “socialmente capacitadas” para compreender, analisar e apreciar diferentes narrativas contadas em linguagem cinematográfica. Porém, essa “competência para ver” não provém diretamente dos filmes que assistimos. O meio social em que estamos inseridos e a nossa experiência interpessoal com esse grupo coletivo são fatores determinantes nesse aprendizado. Assim como, a nossa experiência escolar, a formação cultural que emerge da escola e da família, a nossa afinidade com as manifestações artísticas e a própria mídia. Na atualidade, consideremos ainda a relação que estabelecemos com as mídias e redes sociais. Todos esses elementos determinarão a forma como iremos nos relacionar com os mais variados produtos culturais, inclusive com o cinema. Destarte, o “gostar de cinema” ou o “hábito de ir ao cinema” também estão diretamente associados a nossa origem familiar. Nestes termos, argumenta Rosália Duarte (2002):

Nesse contexto, ir ao cinema, gostar de determinadas cinematografias, desenvolver os recursos necessários para apreciar os mais diferentes tipos de filmes etc., longe de ser apenas uma escolha de caráter exclusivamente pessoal, constitui uma prática social importante que atua na formação geral das pessoas e contribui para distingui-las socialmente. Em sociedades audiovisuais como a nossa, o domínio dessa linguagem é requisito fundamental para se transitar bem pelos mais diferentes campos sociais (Duarte, 2002, p. 14).

No Brasil, um país com um vergonhoso histórico de desigualdades socioeconômicas, o acesso ao cinema é recorrente entre as classes média e alta. Portanto, um perfil de clientela mais elitista, muito bem ambientada à comodidade e à sensação de segurança dos Shopping Centers, nas grandes cidades brasileiras. Ademais, essa mesma clientela também adotou um estilo de vida norte-americano (american way of life) que associa o costume de “ir ao cinema” ao consumo do combo já bastante tradicional entre os brasileiros: pipocas, refrigerantes e guloseimas. Torna-se, desta feita, um hábito caro e muito distante da realidade das camadas populares que não dispõem de recursos financeiros para essa empreitada familiar de diversão e lazer.

Se a televisão aberta ajudou a difundir o acesso democrático da população às produções fílmicas, por outro lado, no Brasil, esse acesso contabilizou o monopólio das produções hollywoodianas, em detrimento da produção nacional e de outras nacionalidades. Com a chegada da televisão fechada e o advento da internet, com serviço de streaming por assinatura, como a Netflix, a Amazon e próprio Youtube, vem ocorrendo uma mudança de hábitos em relação ao consumo de filmes: há mais acesso aos filmes, que, agora, também competem diretamente com a programação das séries.

Esse novo panorama de mundo globalizado que também repercute em nossa realidade pedagógica não nos isenta da responsabilidade e do compromisso com a formação cultural de nossos estudantes. Ao contrário, a ampliação do acesso ao conhecimento, às artes e à cultura, por meio dos recursos digitais cada vez mais atualizados, ajudam a definir o perfil do público contemporâneo, trazendo-lhe, portanto, novas “competências para ver” o cinema e o mundo em que estão inseridos. Essa nova realidade exige de nós mais destreza e, especialmente, mais sensibilidade para absorver do conceito de socialização, compreendendo-o como um fenômeno em permanente construção. Pois a arte e a cultura nos ajudam a compreender “os aspectos mais subjetivos da vida social” (Duarte, 2002,19). Por isso, é essencial também considerar o papel social do cinema em todas as suas vicissitudes, a partir de uma perspectiva transdisciplinar, no contexto de uma nova Pedagogia do Cinema.

A expressão “Pedagogia do Cinema” foi cunhada pela professora Guacira Lopes Louro, na propositura de um novo currículo cultural. Essa proposta, entre outras acepções, visa resgatar a Transdisciplinaridade no cinema, notabilizando-o como um rico instrumento pedagógico. Em sua composição etimológica, o prefixo trans vem do “latim e deriva da preposição trans ‘através de, para além de’” (Cunha, 2010, 644). Transdisciplinaridade é um termo recorrente na educação. Tanto por seu caráter teórico quanto pela práxis pedagógica.

O físico romeno Basarab Nicolescu escreveu “O Tratado da Transdisciplinaridade” em 1999. As psicólogas Arlete Acciari e Vera Saldanha (2019) nos trazem pertinentes observações sobre essa obra de Nicolescu. Segundo o físico, a Transdisciplinaridade objetiva compreender o mundo presente e isso somente será possível com a unificação do conhecimento, que ocorre por meio de três pilares: os níveis de realidade, a lógica do terceiro incluso e a complexidade:

Propõe considerarmos o fator multidimensional da realidade estruturada em múltiplos níveis e sugere que há uma autoconsciência que rege os processos evolutivos. Esses distintos níveis de realidade tornam-se acessíveis ao conhecimento humano pelos diferentes níveis de percepção que o indivíduo pode desenvolver; sendo que a coerência dos níveis de percepção se dá, especialmente, pela não resistência à percepção (Saldanha e Acciari, 2019,18).

Há muitas formas de ver e de se viver o cinema, inclusive, fazendo-o, sentindo-o em distintos níveis de percepção. Em realidade escolar, o cinema pode vir a ser o caminho para emergência de um ser humano transdisciplinar, “que se traduz pela orientação consciente do fluxo de informação que atravessa os níveis de realidade e pelo fluxo de consciência que atravessa os níveis de percepção” (Nicolescu, 1999, 57). A Sétima Arte não somente aglutina as outras artes, mas também contrapõe todas as ações que visam a fragmentação do conhecimento. Em tempos de recursos digitais abundantes e de uma maior acessibilidade à informação e ao conhecimento, o significado real e prático da Transdisciplinaridade na escola pode ser mais facilmente apreendido, desde que busquemos compreender toda a subjetividade que compõe a vida social de nossos estudantes, reconhecendo-nos igualmente nesse processo de subjetivação e de acolhimento de novas percepções. Sobre essa temática, discorrem Inês Assunção de Castro Teixeira e José de Sousa Miguel Lopes (2014):

Entendemos a educação como uma complexa e delicada arte de tecer vidas e identidades humanas, fazendo fruir as capacidades lógico-cognitivas, estético-expressivas e ético-morais existentes, potencialmente, em cada criança e em cada jovem. Sabemos, ainda, que os educadores também devem ser educados, desenvolvendo tais capacidades e sensibilidades, para bem realizarem seu ofício e responsabilidade histórica e social (Teixeira e Lopes, 2014, 9).

A educação e o cinema são duas artes que se encontram e se encantam mutuamente num plano de sutilezas, alegorias e metáforas. Constituem-se na produção dos afetos e das memórias que emergem dos espaços escolares e se interligam pela geometria da Transdisciplinaridade. Na resenha do comportamento humano, esse aspecto transdisciplinar “é uma atitude empática de abertura ao outro e ao seu conhecimento; subsiste na compreensão, aceitação e convivência com as diferenças” (Acciari e Saldanha, 2019, 17).

Quando o cinema decide visitar a escola e vice-versa, ampliam-se as possibilidades de se trabalhar a autonomia dos sujeitos da educação no processo de construção artística e histórico-cultural da realidade em que estão inseridos. A Transdisciplinaridade, portanto, permite-nos caminhar e experienciar outros campos da percepção, nesse processo que visa, entre muitos aspectos, a construção de relações humanas mais saudáveis, harmoniosas e cooperativas, intencionando o aprimoramento pessoal e coletivo de uma cultura de paz. Nesse propósito, a Psicologia Transpessoal, com o seu campo teórico consistentemente embasado, permite-nos pensar num trabalho mais afetivo, prático e vivencial, resenhando a Transdisciplinaridade no âmbito da Educação de Jovens e Adultos e acolhendo a diversidade que naturalmente desse público emana.

A Transpessoalidade na Educação de Jovens e Adultos

Há vinte seis anos, desde que enveredei pela educação como Professora de Português da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, trabalho com a Educação de Jovens e Adultos. Há exatos oito anos, cheguei ao Centro de Ensino Médio 01 do Gama – o CEM 01 –, uma das escolas mais antigas do Distrito Federal, localizada a trinta e três quilômetros do Plano Piloto – Brasília –, o centro do poder político do Brasil. Desde a sua inauguração, em 09 de abril de 1962, o CEM 01 mantém a tradição de acolher trabalhadores oriundos do Gama e de outras cidades, incluindo o Entorno Sul do Distrito Federal.

Considera-se como Educação de Jovens e Adultos (EJA), a modalidade de ensino semestral regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 2013). Esse dispositivo legal reitera a responsabilidade do poder público ao determinar a oferta de educação regular para jovens e adultos trabalhadores, dentro das suas necessidades de adaptação, garantindo-lhes o pleno acesso e permanência na escola.

A EJA, portanto, destina-se a esse público cujos direitos, acesso e permanência na escola, durante a infância e/ou adolescência, foram negligenciados: seja pela oferta irregular de vagas, seja pelas inadequações ao sistema de Ensino Regular (diurno) ou pelas próprias condições socioeconômicas desfavoráveis. Trata-se de uma clientela diversificada: são trabalhadores domésticos, manicures e pedicures, cabeleireiros, pedreiros, motoristas e cobradores de ônibus, comerciários, trabalhadores rurais, desempregados, donas de casa e jovens egressos do diurno. Em sua grande maioria, são histórias de vidas demarcadas pelo drama da violência doméstica em todas as dimensões, pela fome, pela escassez de recursos materiais, além das próprias adversidades familiares, como o alcoolismo e as drogas.

Como professora de Português, sempre gostei de realizar atividades pedagógicas que me permitissem, entre outros objetivos, trabalhar a ludicidade de meus alunos. Nessa jornada profissional, foram muitos os projetos pedagógicos que me permitiram transcender em nível de criatividade, além de experienciar outras qualidades da percepção, proporcionando, ao mesmo tempo, o meu crescimento acadêmico. Experiências promissoras que constituem um modelo de pedagogia proposto por Paulo Freire. Momento em que os agentes envolvidos no processo educativo têm a oportunidade de sobrepujar os papéis previsíveis do saber convencional: o professor (sujeito ativo) “deposita informações” no aluno (sujeito passivo). Portanto, é impossível falar da Educação de Jovens e Adultos sem mencionar o Mestre Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, desde 2012. Em especial, neste ano de 2021, na celebração de seu centenário.

Freire subverte essa construção de papéis pré-definidos pelo modelo de educação tradicional e propõe uma ação educativa emancipadora, capaz de gerar agentes sociais transformadores e autônomos. Essa concepção se aplica tanto a nós professores quanto aos educandos, considerados por ele como os verdadeiros atores sociais. Segundo Freire, “não há docência sem discência” (1996, 21). Essa subversão de paradigmas também constitui uma das demandas da Transdisciplinaridade, incorporando, desta feita, a própria dinâmica de construção do ser social emancipado, como propunha Paulo Freire. Nesses termos, ressalta Mario Simões (2008):

A Transdisciplinaridade é uma abrangência de linguagem e conhecimentos numa fronteira porosa, terra comum a duas ou mais disciplinas. Os cultores de cada uma aprendem a linguagem da outra e apreendem conhecimentos sem, no entanto, perderem a sua identidade cultural e científica (Simões, 2008,18-19).

O cinema, na proposição freiriana, como círculo de cultura com saberes já constituídos, enaltece os valores humanistas universais que embasam e formam as identidades sensíveis, igualitárias e compromissadas com o desenvolvimento de projetos voltados para a arte e a cultura. Portanto, uma concepção transdisciplinar da Pedagogia do Cinema adaptada para um novo tempo. No Brasil atual, também pode significar uma estética de resistência em todas as dimensões. Afinal, o cinema “é uma arte inquieta demais e rebelde o suficiente para se submeter integralmente à homogeneidade” (Duarte, 2002, 26).

Por outro lado, considerando a Transdisciplinaridade freiriana, o cinema na EJA também nos permite articular e dialogar facilmente com todas as dimensões críticas e discursivas da temática da diversidade em seus muitos caracteres de inclusão que permeiam a vida contemporânea. Quando do reconhecimento da diversidade afetivo-sexual e de gênero, da promoção de uma educação sensibilizadora nas temáticas etnicorraciais, na perspectiva da educação inclusiva, das premissas da educação ambientalista, pautada nos novos princípios norteadores da sustentabilidade, entre outras pautas reivindicativas.

Mas, como transformar tudo isso em práxis pedagógica? Dentro dessa concepção transdisciplinar da Pedagogia do Cinema, como desenvolver projetos e atividades com os educandos da EJA, a partir dessas abordagens que visam uma formação humanista e emancipadora? Como estimular o aprimoramento da percepção crítica da realidade em que estão eles inseridos? Como promover uma educação da sensibilidade?

No ano de 2018, decidi ampliar a minha formação acadêmica e comecei a cursar duas Especializações Lato Sensu: “Educação e Saúde com formação em Psicanálise Clínica”1 e “Psicologia Transpessoal”2. Duas experiências que mudariam definitivamente a minha percepção de vida. Com base nesses novos entendimentos teóricos e nas experiências vivenciadas por meio desses cursos, decidi aplicar esses novos conhecimentos em minha prática pedagógica, especialmente, a temática da Transpessoalidade. Afinal, como esclarece, Régis Morais (2007), “a Transpessoalidade se alicerça em examinar as vidas dos seres humanos, mas sem perder a força de transcendência que, ultrapassando as facticidades, reconhece o sentido maior que a destinação desses seres tem” (2007, 26).

No segundo semestre de 2019, realizei com um grupo de estudantes do noturno (EJA), um Projeto de Intervenção Local – PIL –, apresentando o cinema na escola, dentro das suas múltiplas possibilidades técnicas e organizativas, e transformando-o em um instrumento pedagógico capaz de estimular a sensibilidade e a fomentar a construção de novas ideias e percepções subjetivas, desenvolvendo a consciência em outros níveis, com base em pressupostos da Psicologia Transpessoal, aplicados à educação.

A Psicologia Transpessoal é definida pelo psicólogo americano Abraham Harold Maslow como sendo a quarta força dentro da Psicologia. É antecedida pelas seguintes forças: o Behaviorismo ou Comportamental – John B. Watson; a Psicanálise – Sigmund Freud e Jacques Lacan; a Humanista: Carl Gustav Jung, Carl Rogers e Abraham Harold Maslow.

Nascida das contribuições provenientes de muitas correntes psicológicas, a Psicologia Transpessoal, oficializada em 1968, recebeu influências de grandes expoentes como C. G. Jung, Abraham H. Maslow, Viktor Frankl, Fritjof Capra, Ken Wilber, Pierre Weil, Roberto Assagioli, James Fadiman, Antony Sutich, Stanislav Grof, entre outros. Também foi fortemente influenciada por outras correntes holísticas e espiritualistas orientais e ocidentais, além da Filosofia, Antropologia, Sociologia e Ciências Quânticas.

A psicóloga Dra. Vera Saldanha (2008) é uma das principais expoentes da Psicologia Transpessoal no Brasil, criadora da Abordagem Integrativa Transpessoal – AIT –, e Presidente da ALUBRAT. Segundo Saldanha (2008), a Psicologia Transpessoal pode ser entendida como um estudo de práticas psicológicas que repercutem em várias áreas:

Na saúde, educação, organizações, instituições, incluindo não só sua natureza, variedades, causas e efeitos, seu desenvolvimento, bem como a sua manifestação na Filosofia, arte, cultura, educação, religiões (2008, 42).

Saldanha (2008) ainda tece importantes considerações sobre a abordagem transpessoal na educação:

Visa não somente estimular o desenvolvimento do ser humano em seus aspectos físico, mental, emocional e intuitivo, como também favorecer a emergência de valores humanos e a otimização do ensino na situação da aprendizagem” (2008, 27).

Idealizei um projeto em que a perspectiva transdisciplinar da Pedagogia do Cinema me permitisse trabalhar com a abordagem transpessoal em minha realidade pedagógica, considerando a diversidade e as complexidades dos estudantes da EJA. Para Martha Kohl:

O imaginário expresso por meio da poesia, da literatura, da imagem, da música, da cena, do cinema, da dança, da pintura, é um precioso canal de produção de sentidos, que organiza a nossa visão do mundo, e dá a ele consistência, alma. Quando podemos ser autores de uma visão de mundo que faça sentido, podemos nos constituir como cidadãos deste mundo, mantendo com ele uma relação crítica, sensível, efetiva e feliz (Kohl apud Ivas e Feldman, 1998, p. 30).

Desenvolvi o projeto CG em MovimentAÇÃO Criativa, numa alusão ao nome popular que afama a escola CEM 01, junto à comunidade local. Numa perspectiva de inclusão sociocultural, idealizei algumas etapas fundamentais com um trabalho de sensibilização corporal, terapêutico, intelectual e estético, precedendo as filmagens do documentário de curta metragem Cinema e Corpo: o mundo sob a pele que habito3 – como resultado final do projeto.

Esses momentos em que nomeei como “etapas laboratoriais” foram desenvolvidos em três oficinas, no formato de workshop. Convidei profissionais que atuam em cada uma dessas áreas e que não trabalhassem em nossa escola. A ideia era trazer facilitadores que pudessem colaborar com as suas experiências profissionais, surpreendendo os alunos, como de fato aconteceu. Para Basarab Nicolescu, na Transdisciplinaridade, o prefixo trans “diz respeito àquilo que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das disciplinas e além da disciplina” (1999, 46).

Para o primeiro encontro, Oficina de Dança: Sensibilização dos Corpos Pulsantes, convidei a professora Vana Chagas. Nessa Oficina de Dança, a intenção foi dar a esses alunos da EJA, a oportunidade de participar de um projeto cultural cuja temática fosse o corpo em movimentação, como uma expressão artística que se manifesta por meios das danças populares brasileiras. Como respalda Vera Saldanha, “a educação pode ser um instrumento na profilaxia da saúde mental, no desenvolvimento de uma aprendizagem significativa no indivíduo, na comunidade e na própria nação” (2008, 246).

Mais um momento feliz e dignificante, celebrando o conhecimento sobre a história da dança no Brasil, numa vivência teórico-prática e na própria experiência do autoconhecimento corporal, num belo trabalho de sensopercepção. A partir do tema musical, Danças Circulares: corporeidade brasileira, constituiu-se as seguintes etapas de elaboração: 1. Desenvolvendo a consciência corporal; 2. Exposição das danças brasileiras; 3. Danças de matrizes africanas; 4. Percepção musical e corporal: cancioneiro popular brasileiro com as canções Escravos de Jó, Coco, Caranguejo, Sambas de Roda e Cirandas.

Essa preparação corporal foi essencial para as demais oficinas e para o processo de maturação do filme que exigia uma presença física mais consciente e integrada. Ao todo, foram selecionados quinze alunos, muito embora a divulgação do projeto tenha acontecido entre todos os alunos do noturno. A ideia era atrair os estudantes que tivessem afinidade com as artes. Sabemos que nem todos os educandos se afinam com esse perfil. Depois de uma entrevista detalhada em que se pontuou o interesse deles pelas artes e pela cultura em geral, os quinze estudantes foram selecionados por mim.

No segundo encontro, realizamos a Oficina de Arteterapia: acordando o corpo e acessando os talentos, ministrada pela professora e arteterapeuta Fabianny Alves. Um encontro sensível, com uma abrangência terapêutica capaz de promover um crescimento transpessoal necessário a esse grupo de estudantes. Essa abrangência referenciada pela Arteterapia provém de sua própria natureza interdisciplinar, como um novo campo do saber constituído pela interface de múltiplos saberes e competências, amalgamado pela transdisciplinaridade. A Arteterapia amplia a percepção sobre a realidade multidimensional ao dispor a arte como uma ferramenta de trabalho que estimula as qualidades do indivíduo em sua vida cotidiana, reconectando-o consigo mesmo e, criando assim, um canal de comunicação entre os seus conteúdos conscientes e inconscientes.

A última oficina realizada em três encontros foi a Oficina de Cinema: o mundo sob a pele que habito. Reitero que uma das intenções deste projeto foi elaborar um diagnóstico intervencionista pautado nas características do público-alvo da EJA, comumente desprestigiado ao acesso de bens culturais e, efetivar, dentre as diversas possibilidades pedagógicas do cinema em sala de aula, a confecção/produção de um documentário de curta metragem feito em parceria, com os próprios alunos, por meio de oficinas de cinema. Essas oficinas foram coordenadas por mim e tiveram a direção e o apoio técnico da jornalista e cineasta Nina Caldas, uma profissional muito sensível e bastante adaptada a essa clientela da EJA. Nina Caldas é formada pela Escuela Internacional de Cine y Television (EICTV) de Cuba.

Durante os três encontros das oficinas, houve intensos momentos de interação e de sensibilização corporal, bem como a explanação sobre o conhecimento técnico das etapas de confecção de um filme e sobre a história do cinema. Nina Caldas, juntamente com a sua competente equipe, formada por Adriana Gomes (Direção de Fotografia) e por Paula Cinquetti (Fotografia Still), trabalharam e registraram com muita maestria e sensibilidade esse momento de entrega, autodescobertas e cumplicidade entre os alunos. Marcos do Valle fez o trabalho de edição e montagem dos dois filmes.

Como parte desse trabalho de sensibilização corporal, primou-se também pelo desenvolvimento da percepção dos alunos sobre as suas próprias narrativas de vidas, igualmente resenhadas por todos os contextos trazidos à discussão teórica, nesse artigo científico. Durante as oficinas, foi perceptível a dificuldade que manifestaram em acessar o seu universo transpessoal e discorrer sobre as suas aflições diárias, mesmo quando estas foram trazidas ao debate, motivadas por temas transversais que fazem parte de sua realidade, como a gordofobia, o racismo, a homofobia, a misoginia, o preconceito socioeconômico, entre outros.

Para Marilena Chaui (1999), a percepção envolve a nossa história pessoal, a nossa personalidade, a nossa afetividade, os nossos desejos e paixões, isto é, a percepção é uma maneira de os seres humanos estarem no mundo. Percebemos as coisas e os outros de modo positivo ou negativo. Percebemos as coisas como instrumentos ou como valores:

O mundo percebido é um mundo intercorporal, isto é, as relações se estabelecem entre nosso corpo, os corpos dos outros sujeitos e os corpos das coisas, de modo que a percepção é uma forma de comunicação que estabelecemos com os outros e com as coisas [...].
Por isso, se diz que, na realidade, só temos sensações sob a forma de percepções, isto é, de sínteses de sensações (Chaui, 1999, 120-123).

Com a intenção de aprimorar o conhecimento cultural desses estudantes, exibimos curtas nacionais e internacionais como uma forma de estimular os debates e de fomentar nesses alunos a percepção crítica acerca de temas geradores e transversais recorrentes em suas realidades. Pela ordem sequencial, essas foram as obras fílmicas trabalhadas durante as oficinas: Minuto Lumière: Chegada do trem à estação / A saída da fábrica / O menino e o jardineiro (Arrivée d’un train em gare à La Ciotat - 1895); Para os nossos netos - Projeto Vídeo nas Aldeias (2008); Mar de Elas (2018); Megg – A margem que migra para o centro (2018); e Baraka, de Ron Fricke (1992).

A realização efetiva de todas as oficinais permitiu que cada um desses eventos, por meio dos seus facilitadores, agregasse conhecimentos teóricos e vivenciais experienciados de forma entusiasmada por todos os alunos. Ressalto, ainda, o apoio fundamental que recebi da Direção da minha escola, especialmente da Supervisora Pedagógica da EJA, Maristela Neves. Também não poderia deixar de registrar que todos os demais colegas, os professores do período noturno (EJA), foram bastante solícitos e compreensíveis quando da dispensa dos estudantes para a participação nas oficinas. Reiterando que a educação é uma ação coletiva para a construção do presente e do futuro. A Transdisciplinaridade atua, portanto, na interseção de saberes e de sensibilidades, produzindo ações para a transformação social e para a edificação de seres humanos mais integrados ao Universo da Transpessoalidade.

Conclusão

O cinema e a educação são duas artes que se amalgamam na profusão dos sentimentos, das emoções e das sensações. É pulsão de vida. É pulsão de morte. É na morte (em vida) que se revelam os equívocos, os medos, as dores, as fragilidades, as desumanidades, os dissabores, os ruídos, as sombras. No outro extremo, é o impulso da vida, a força, a transformação, a mudança, a alegria, a resiliência, o renascimento, a antifragilidade, o amor.

Assim se constroem os enredos das narrativas dos filmes que são projetadas nas grandes telas dos cinemas. Da mesma forma, com essas mesmas substâncias psíquicas, materiais anímicos, são feitas as pessoas que ocupam os bancos escolares, os nossos estudantes. São eles que nos ensinam o que vem a ser a diversidade, a heterogeneidade, para além dos academicismos. Também nos ensinam o que é a cultura e a arte popular, segundo os preceitos do Mestre Paulo Freire. Portanto, sem presunção e com muita espontaneidade.

As experiências do cinema na escola nos remetem à afetividade desses dois lugares, pois revelam em que lugares sagrados dentro de nós, eles habitam: são os espaços das nossas memórias transpessoais. As atividades que realizamos com nossos educandos produzem um deslocamento metafísico. É como se passasse um filme de nossas vidas em nossas mentes: os estudantes que fomos, nos mestres que nós somos. Na Transpessoalidade, não há convenções de tempo ou espaço, assim como também não há na magia do cinema.

Por meio desse projeto, nas vivências e nas escutas terapêuticas de cada oficina, reconhecemos muitas identidades em nós. Empoderamento, diríamos! Mas, sobretudo, reconhecemos que no “tempo do afeto”, é onde reside o respeito ao próximo, o respeito à dignidade e à diversidade, o respeito aos ecossistemas, o respeito à manifestação religiosa. Tudo isso está no aqui e no agora. Foi o que nos disseram esses jovens estudantes. Devemos todo esse aprendizado a eles...

Notas Finais

1Na Escola de Psicanálise de Brasília/DF.

2Na Associação Luso Brasileira de Transpessoal (ALUBRAT).

3Filme inscrito para a participação, no 25º Festival de Cinema de Avanca, em 2021.

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