Capítulo II – Cinema – Cinema

Toc Toc – a reflection on the role of alterity in your aesthetic finish

Toc Toc – uma reflexão sobre o papel da alteridade no acabamento estético de si

Cátia Candido da Silva

Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal / Universidade de Brasília, Brasil

Waleska Karinne Soares Coutinho Souto

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira / Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal / Universidade de Brasília, Brasil

Fabrícia Teixeira Borges

Universidade de Brasília, Brasil

Abstract

This work is a critical review of the Spanish film “Toc Toc”, directed by Vicente Villanueva and released in 2017. The feature film was produced from the adaptation of a homonymous play written by the French author Laurent Baffie. It is a comedy that addresses in a fun, light and unusual way the very current theme of Obsessive Compulsive Disorder (OCD).
The present review carries out an analysis of the film “Toc Toc” seeking to discuss the idea of aesthetic finishing of itself in the light of the concepts of unfinished, alterity and exotopia proposed by the linguist Bakhtin and the assumptions of Hermans’ Dialogical Self Theory. In addition, it seeks to reflect on the psychological dynamics generated from cinematographic shots in order to ponder the role of cinema in human development.

Keywords: Cinema, Transtorno Obsessivo Compulsivo, Alteridade, Acabamento estético de si.

Introdução

A linguagem cinematográfica, também conhecida como a sétima arte, além de proporcionar o entretenimento, pode suscitar reflexões aos espectadores acerca das mais diversas esferas da vida, seja por meio dos temas abordados, seja pela gramática fílmica empregada. O filme “Toc Toc” pode ser citado como um exemplo desta característica do cinema. Com um nome absolutamente sugestivo, a obra aborda de uma maneira divertida, leve e inusitada a temática bastante atual do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e possibilita-nos refletir sobre como a presença do outro, da alteridade, pode contribuir para o acabamento estético de si dos sujeitos. “Toc Toc” se trata de uma produção espanhola lançada em 2017 e dirigida por Vicente Villanueva a partir da adaptação de uma peça teatral homônima escrita pelo autor francês Laurent Baffie em 2005. O filme conta a história do encontro casual entre seis pacientes, com diagnóstico de diferentes tipos de TOCs, na sala de espera do consultório de um concorrido e renomado psicólogo: o Dr. Palomero. No decorrer da trama, Federico, Blanca, Emílio, Otto, Lili e Ana Maria vivenciam inúmeras experiências e conflitos que os fazem confrontar-se com seus tiques, suas angústias e seus temores e os levam a buscar soluções para os seus problemas.

Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC)

O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) é um transtorno psiquiátrico catalogado tanto no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), de 2013, quanto na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11), de 2018. Caracteriza-se pela presença de obsessões e/ou de compulsões das mais variadas naturezas (Rosario-Campos & Mercadante, 2000). Conforme Torres e Smaira (2001), na maioria dos casos de TOC, há múltiplas obsessões e compulsões simultâneas, e a mudança de temas ou tipo de sintomas é muito comum entre os pacientes. Compreendem-se obsessões por “pensamentos, impulsos ou imagens mentais recorrentes, intrusivos e desagradáveis, reconhecidos como próprios e que causam ansiedade ou mal-estar relevantes ao indivíduo” (p. 06). Além das obsessões e compulsões, a presença ou o histórico de tiques também são ressaltados com um especificador do transtorno (Araújo & Lotufo Neto, 2014).

Por não existirem exames laboratorias ou radiológicos patognomônicos do TOC, seu diagnóstico é clínico e, para que seja conclusivo, é necessário que os sintomas causem interferências ou limitações nas atividades do indivíduo, consumam seu tempo (ao menos uma hora por dia) e causem sofrimento ou incômodo ao paciente ou a seus familiares.

O TOC é extremamente heterogêneo e com obsessões bastante variadas, sendo as mais comuns a obsessão agressiva (apresenta-se geralmente como fobias de impulsos agressivos), de contaminação, de repetição, pensamentos obsessivos “neutros”, compulsões de verificação, de contagem e de simetria, rituais de colecionamento (acumulação) e outros rituais diversos (sapatear, rezar, perguntar, pular).

Conforme Torres e Smaira (2001), a grande maioria dos pacientes com TOC apresenta conservada a sua capacidade crítica e envergonha-se de seus pensamentos e/ou comportamentos. Por esse motivo, esta doença costuma ter seu diagnóstico e tratamento tardios, uma vez que muitos pacientes só procuram ajuda em casos de piora dos sintomas ou quando não conseguem mais ocultá-los.

Geralmente o tratamento para o TOC envolve psicoterapia (individual ou em grupo) e intervenção medicamentosa, porém é mister ressaltar que, embora haja apresentações clínicas semelhantes, cada paciente reage ao problema em conformidade com a sua personalidade e com o seu contexto sociofamiliar, sendo necessário um acompanhamento individualizado.

Personagens masculinos

Entre os personagens masculinos, Federico é um senhor de 60 anos que possui uma desordem neuropsiquiátrica caracterizada por tiques motores e pela emissão involuntária de insultos e obscenidades a outras pessoas: a Síndrome de Tourette. Segundo Teixeira et al. (2011), essa síndrome é um distúrbio genético, geralmente iniciado na infância ou no início da adolescência, que se manifesta preponderantemente em indivíduos do sexo masculino, sendo caracterizada por fenômenos compulsivos que resultam em múltiplos e repentinos tiques de natureza motora (frequentemente piscar os olhos e/ou a protrusão da língua), vocal (palavras obcenas ou sons como estalos, grunhidos, ganidos, fungadas, espirros e tosse) e/ou sensorial. Geralmente causa grande sofrimento e prejuízo significativo no funcionamento social, ocupacional ou outras áreas importantes da vida do indivíduo, uma vez que gera rejeição pelas outras pessoas e ansiedade do sujeito quanto a ter os tiques em situações sociais. Desta feita, são inúmeras as dificuldades comportamentais e emocionais para os indivíduos e também para os seus familiares, uma vez que, usualmente, os tiques apresentados provocam grandes prejuízos psicossociais.

No filme, por repetidas vezes, o comportamento de Federico causou estranheza e distanciamento dos demais personagens; contudo, a partir das interações estabelecidas, eles foram, gradativamente, se aproximando dele. Ao apresentar-se para um dos personagens, Federico afirma que consulta médicos há tanto tempo em busca de uma cura para o seu problema que possui um arquivo enorme sobre vários transtornos, oferecendo um vestígio inicial sobre o desfecho da narrativa.

Os outros personagens masculinos são Emílio e Otto. Emílio é um taxista que apresenta TOC de natureza numérica, a Aritmomania, pois sente-se impulsionado a realizar cálculos mentais de modo incessante nas diferentes situações de sua vida diária. Além da aritmomania, o personagem também é um acumulador compulsivo de uma infinidade de objetos inúteis. Conforme o DSM-5, segundo a American Psychiatric Association (APA, 2014), o TOC de acumulação é definido como uma “dificuldade persistente de descartar ou se desfazer de pertences, independentemente de seu valor real, em consequência de uma forte percepção da necessidade de conservá-los e do sofrimento associado ao seu descarte” (p. 236). No quintal de sua casa, Emílio possui uma enorme quantidade de objetos desnecessários, os quais não consegue descartar, o que lhe acarreta frequentes conflitos conjugais, culminando com o fim de seu casamento.

Otto, por sua vez, é um desenhista obcecado por simetria que não consegue andar sobre linhas retas e repete insistentemente em suas falas a palavra “fenomenal”. O TOC do personagem é tão exacerbado que ele mudou seu nome de nascimento, Manolo, a fim de que ele fosse perfeitamente simétrico, uma vez que “Otto” possui quatro letras minusiosamente organizadas e apresenta a possibilidade de ser lido de trás para frente de maneira impecável. No decorrer do filme, Otto afirma o seguinte em uma de suas falas: “meu relacionamento mais longo com uma mulher durou três dias, elas não entendem os meus comportamentos (...), moro com minha mãe até hoje”. Essa fala de Otto corrobora a afirmação de Del-Porto (2001) de que “a OMS, em colaboração com o Banco Mundial e a Harvard University, incluíram o TOC na lista das dez doenças que maior impacto têm sobre a incapacitação social”.

Personagens femininas

No grupo de personagens femininas, Blanca é uma auxiliar de laboratório obsessiva por limpeza que apresenta pânico de contaminação biológica por microorganismos. Por esse motivo, ela demonstra dificuldades em tocar pessoas e objetos, o que a faz lavar e desinfetar as mãos insistentemente e a se distanciar das outras pessoas. Durante o filme, em uma das cenas, Blanca relata: “a limpeza ocupa tanto o meu dia a dia, que não possuo tempo para viver a vida (...), acabei ficando isolada do mundo”. Essa afirmação ratifica, uma vez mais, as limitações de natureza social provocadas pelo TOC (Del-Porto, 2001). Além disso, a personagem declara que “existe outra Blanca que vive dentro dela que a força a fazer coisas absurdas”, o que nos remete ao conceito bakhtiniano de polifonia, isto é, à pluralidade de vozes que participam do processo dialógico de produção dos significados construídos na convivência e na interação (Bezerra, 2018).

Lili é uma professora de dança que apresenta palilalia desde a morte do seu pai. Ela sempre repete duas vezes as mesmas frases ou as sílabas finais das palavras. Em suas aulas, os alunos não percebem que a repetição das frases é involuntária; ao contrário, consideram que esse é um método utilizado para que obtenham melhores resultados. A esse respeito, Lili argumenta: “de tanto repetirem as mesmas séries de exercícios, eles acabam suando muito”. Por esse motivo, as aulas de Lili são sempre cheias, tendo até lista de espera para novos alunos.

Por fim, Ana Maria é uma senhora muito religiosa que reza constantemente, faz o sinal da cruz sem parar e tem TOC de verificação (confere se fechou a porta ou a janela, se apagou a luz ou desligou o gás, se fechou a torneira do banheiro ou da cozinha). A este respeito, a certa altura, ela relata que sempre chega atrasada nos encontros com suas amigas por ter que verificar milhares de coisas antes de sair de casa e que, por isso, parou de ser convidada para os eventos sociais, reiterando mais uma vez as dificuldades de caráter social acarretadas pelo TOC (Del-Porto, 2001).

Outra fala muito interessante de Ana Maria é aquela na qual ela enuncia que às vezes pode ser muito má, como se outra pessoa vivesse dentro dela, ou duas ou três. Essa enunciação remete-nos ao conceito de self dialógico, proposto por Hermans e colaboradores (Moreno & Branco, 2014), no qual o “self é compreendido como o campo onde coexistem diferentes posições, sendo que cada uma das posições traz uma voz singular, repleta de valores específicos, que se entrecruzam nos diálogos intrapessoais, em concordâncias e disputas, tal qual ocorre nos diálogos interpessoais” (Silva, 2017).

Reflexões sobre a linguagem fílmica e a psicologia

Já no início da narrativa, quando os personagens começam a ser apresentados, percebe-se que o diretor, com o objetivo de controlar a “direção psicológica” do espectador (Pudovkin, 2003), lança mão do método de montagem da simultaneidade, pois, embora as cenas sejam exibidas em uma sequência temporal e em lugares diferentes para cada personagem, o público tem a nítida impressão de que as coisas ocorrem ao mesmo tempo com todos eles. Conforme Baláz (2003), essa “simultaneidade das imagens evoluindo no tempo não é produzida automaticamente pela montagem, mas o espectador é levado a participar dessa construção por meio da associação de ideias e da síntese de consciência e imaginação” (p. 87).

É importante destacar que no decorrer do filme, em muitas cenas, o diretor valeu-se também da aproximação proporcionada pelo close-up para direcionar a atenção do espectador, pois, de acordo com Munsterberg (2003), “o close-up transpõe para o mundo da percepção o ato mental de atenção” (p. 34). Assim, em diversas situações do filme “Toc Toc”, o close-up foi propositalmente utilizado para destacar as características compulsivas demonstradas pelos personagens, como, por exemplo, Federico fazendo gestos obscenos, Blanca lavando as mãos incessantemente, Ana Maria fazendo o sinal da cruz, Emílio realizando cáculos mentais, Lili repetindo frases e Otto evitando pisar sobre linhas retas. Ademais, em um outro close-up, por exemplo, a câmera enquadrou uma placa que continha as informações do responsável técnico pela clínica: Dr. F. Palomero Quiroga. Este fato oferece ao espectador uma pista sobre o desfecho da narrativa. Conforme Baláz (2003), “o close-up retira o véu de nossa imperceptibilidade e insensibilidade com relação às pequenas coisas escondidas” (p. 92) revelando partes misteriosas de nossa vida polifônica.

Conforme os personagens vão chegando ao consultório, a secretária explica que, por um erro no sistema de marcação de consultas, os pacientes foram agendados para o mesmo dia e horário, o que acabou gerando o encontro surpreendente entre eles. Quando todos estão reunidos na sala de espera, são comunicados de que o voo do Dr. Palomino, vindo de Londres, está atrasado, não havendo a previsão do seu horário de chegada ao consultório. A secretária, então, sugere que os pacientes se apresentem e falem um pouco de suas vidas uns aos outros enquanto aguardam, designando “um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem” (Amorim, 2018, p. 105). Compreendemos, assim, que o posicionamento da secretária favoreceu a interação entre os personagens, provocando em cada um deles, segundo uma visão bakhtiniana, a possibilidade de identificar-se com o outro e de ver o mundo através de seu sistema de valores, isto é, tal como ele o vê (Bakhtin, 1997).

Neste momento do filme, quando cada personagem fala de si para o grupo, o diretor lança mão do recurso cutback, isto é, em que se volta a uma cena passada, com o objetivo de mobilizar as funções imaginativa e mnemônica do espectador. Conforme Munsterberg (2003), “o cutback apresenta um certo paralelismo com o close-up: neste identificamos o ato mental de prestar atenção, naquele, o ato mental de lembrar” (p. 37). No caso dessa sequência do filme “Toc Toc”, é como se o espectador acessasse a mente dos personagens, pois a tela exibe cenas ainda inteiramente desconhecidas por eles, mas que estão vivas na memória dos protagonistas. Assim, por meio dessa montagem, em que cenas do passado se ligam a cenas do presente, memória e imaginação são conjuntamente mobilizadas.

O papel da alteridade no acabamento estético de si

A sequência de cenas em que os personagens falam de suas experiências com o TOC para os demais leva-nos a refletir sobre o conceito de inacabamento e exotopia propostos pelo linguista Bakhtin. Para esse autor, conforme Tezza (2005), “só um outro pode nos dar acabamento, assim como só nós podemos dar acabamento ao outro” (p. 211). Desta forma, durante o filme, enquanto cada personagem expunha para o grupo suas dificuldades, os demais argumentavam, questionavam e os faziam refletir. O personagem Otto, por exemplo, não tinha se dado conta de que repetia constantemente a palavra “fenomenal”, mas Blanca o sinalizou sobre isso. Ou seja, apenas o olhar do outro foi capaz de observar aquilo que para ele era inacessável dada a limitação do seu próprio olhar sobre si. Isso ocorre porque, em uma perspectiva bakhtiniana, o sujeito emerge na relação com o outro, é incompleto, inacabado, tornando impossível uma formação individual sem alteridade. O outro não é alguém que está fora do sujeito, mas alguém que o constitui (Scorsolini-Comin & Santos, 2010).

Outro exemplo ocorreu com a própria Blanca, uma vez que, mesmo sendo muito evidente para todos que ela tinha uma grave compulsão por limpeza, a personagem verbalizou que quase ninguém sabia de seu problema, ou seja, ela não tinha noção de como as pessoas a viam, de como seu TOC era notório. Foi necessário que, em conformidade com as assetivas bakhtinianas (Tezza, 2005; Borges et al., 2016), os outros com seu olhar “de fora”, sinalizassem a ela sobre isso, ou melhor, que lhe oferecessem um acabamento estético sobre ela mesma.

No decorrer do encontro no consultório do Dr. Palomero, Lili e Otto iniciam um processo de aproximação afetiva, uma vez que, na opinião de Otto, “repetir tudo é o auge da simetria”. Dessa maneira, em um dado momento da narrativa, os dois se beijam e a câmera se aproxima dos pés de Otto para mostrar que ele estava pisando sobre as linhas retas do carpete sem sofrer um ataque de pânico, demostrando que a alteridade endereçada a Lili o fez tirar o foco de sua obsessão (Ponzio, 2008).

Na sequência do filme, propõe-se um desafio para cada personagem: eles tinham que permanecer durante 3 minutos sem sucumbirem aos tiques do TOC. Enquanto isso, os demais lhes provocariam. Ao final do exercício proposto, liderados por Federico, todos concluem que, em alguns momentos específicos, a maioria deles acabou esquecendo, mesmo que brevemente, suas próprias obsessões para lidarem com as necessidades e urgências demonstradas pelos outros, corroborrando com o conceito bakhtiniano de alteridade (Ponzio, 2008). Na opinião de Federico, “aí está a solução para os nossos problemas: pensar menos em nós mesmos, pois lidar com as urgências dos outros nos faz esquecer a nossa própria obsessão”.

A fala de Federico nos revela que a produção de significados de cada um dos personagens sobre o seu próprio TOC foi construída no processo dialógico de interação com o outro, pois somente o olhar do outro a partir de seu lugar exotópico foi capaz de mostrar a cada indivíduo aquilo que ele mesmo não conseguia enxergar. A exotopia expressa justamente essa relação entre dois pontos de vista: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando fora desta experiência, mostra-lhe o que vê a partir do olhar do outro (Amorim, 2018). Numa visão bakhtiniana, toda fala é dirigida ao outro em uma proposta polifônica de interação verbal do eu-para-mim, do outro-para-mim e do eu-para-outro (Bakhtin, 1997).

Desta maneira, o ato estético em cada um dos personagens foi elaborado com a participação do outro, uma vez que somos constituídos pelas narrativas que o outro elabora sobre nossa própria imagem. Por isso, na relação eu-outro, é o outro quem elabora um acabamento do eu na medida em que o ato estético em mim só pode ser percebido pelo outro (Bakhtin, 1997, 2018). Assim, a constituição identitária do eu acontece na interação com o outro a partir dos posicionamentos dialógicos organizados semioticamente como uma estética de si (Borges et al., 2016), pois é o excedente de visão do outro que possibilita nossa percepção sobre nós.

No desfecho do filme, o close-up foi empregado, mais uma vez, para ressaltar sapatos masculinos subindo, apressadamente, as escadas do edifício da clínica psicológica. Após a aproximação, a câmera retoma o corpo do homem por inteiro, momento em que a imagem do personagem Federico é revelada. No decorrer da cena, a secretária aparece na porta do consultório e os dois iniciam uma conversa reveladora. No diálogo estabelecido entre eles, fica esclarecido que, na verdade, Dr. F. Palomero Quiroga e Federico são a mesma pessoa e que a secretária é uma atriz desempregada que auxilia o Dr. durante as sessões terapêuticas com os pacientes.

De forma envolvente, durante todo o filme, o diretor apresenta de forma cômica as características compulsivas apresentadas por cada personagem e uma solução grupal para amenizá-las: pensar menos em si mesmo para dar suporte às necessidade do outro, o que exemplifica, novamente, o conceito de alteridade bakhtiniano, uma vez que, na concepção de Bakhtin, somente o outro é capaz de nos oferecer um acabamento estético completo de nós mesmos (Ponzio, 2008).

Nas últimas cenas do filme “Toc Toc”, Emílio aparece ao lado de sua esposa jogando fora, com certo pesar, muitos de seus objetos. Ana Maria se contém ao perceber que iria fazer o sinal da cruz, mas procura desesperadamente as chaves na bolsa. Blanca se permite a pegar uma criança no colo – embora, imediatamente, vá se lavar. Lili continua repetindo suas frases e aparece caminhando feliz de mãos dadas com Otto pelas ruas da cidade. Ao atravessarem a faixa de pedestres, ela o beija de modo a evitar que ele se esquive de pisar nas linhas. Neste momento, a câmera dá um close-up nos pés de Otto, revelando que, embora um pouco desconfortável, ele consegue seguir o caminho, pois está envolvido emocionalmente com Lili.

Nesse sentido, compreendemos que o sujeito é constitutivamente dialógico, pois o princípio geral do agir é baseado nas relações que cada um de nós estabelece com os outros. Como estamos sempre em relação com o outro, nunca estamos completamente acabados, fechados, completos, mas em constante e permanente vir a ser, porque é somente na alteridade que cada um de nós se constitui. Portanto, a singularidade de cada um de nós emerge justamente da interação viva das vozes sociais, pois os indivíduos se constituem situados social e historicamente e são resultado do processo cultural de produção de significados (Fiorin, 2020).

Notas finais

Evidentemente, não se pode perder de vista que o filme “Toc Toc” se trata de uma obra ficcional e que, dada a complexidade do Transtorno Obsessivo Compulsivo, uma única sessão de terapia coletiva não “solucionaria” as crises dos pacientes. Contudo, ocupando o seu lugar na arte, o filme nos leva a transpor a realidade por meio da imaginação e nos faz refletir sobre a pluralidade de singularidades da experiência (Larrosa, 2011), visto que cada um dos personagens experienciou singularmente a situação retratada. Daí, as interações e as experiências vividas colaboraram para que aqueles que as vivenciaram tenham se reorganizado psicologicamente e, deste modo, se constituído idiossincraticamente.

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