Abstract
The film Parasites by Bong Jon-Hoo (2019) has raised numerous criticisms of the economic and social model that predatory capitalism has made in recent decades, especially in Asian countries. It is not just the conditions of employment or the exploitation of work, but the personal, familiar and social consequences that shape new behaviours and attitudes in this postmodern society. In fact, if the platonic cave myth serves us for the distinction between truth and falsehood, for the distinction between reality and fiction, Parasites poses an even greater challenge because it alerts us to the existence of multiples caves, to a certain underground that it is more real than that described by Dostoevsky in Notebooks of the underground. The human condition gains visibility in this dialectic movement between the visible and the invisible, between the seen and the unseen, between the known and the ignored; the hard reality, unlike the platonic model, is not on the surface, the place of hyper-modern fiction, but it is in the (at the level of the) underground, a place without fiction, where the fight and the survival strategies are designed to face the real. This essay seeks to make a critical reflection on the underground man and his circumstances through Parasites.
Keywords: Underground, Dostoevsky, Plato’s cave, Parasites, Plato.
A suprema finalidade senhores, é não fazer nada em absoluto. A inércia contemplativa é preferível a tudo! Portanto, viva o subsolo! Ainda que tenha dito que invejo o homem normal até à última gota da minha bílis, quando o vejo tal como é, renuncio à normalidade (mesmo que sem deixar de invejar a ser normal). Não, não; o subsolo é sempre preferível! Aí, ao menos pode-se… Ah, já estou a mentir outra vez! Minto porque estou convencido, tanto como de que dois e dois são quatro, de que não é o subsolo o que mais interessa, mas uma outra coisa muito distinta, à qual aspiro, embora não saiba bem o que é. Para o diabo com o subsolo!
F. Dostoiévski
Memorias del subsuelo
Entrada em cena: questões de e para sempre
A sociedade contemporânea, mormente os avanços culturais e tecnológicos, evidencia ainda e sempre as marcas existenciais da natureza humana, e com ela, as marcas da condição humana no mundo. Em termos muito genéricos, pode mesmo ser afirmado que as preocupações do homem moderno nada mais são do que a recolocação dos inúmeros quesitos metafísicos que já se encontravam plasmados, por exemplo, em Homero. No entanto, a realidade existencial, a realidade social, civilizacional, hoje é constituída por um véu de alienação que limita a própria capacidade interrogativa.
Quer isto significar que a urgência dos tempos e a vivência dos espaços – a introdução de espaços digitais e virtuais transmutou não só as relações sociais como a relação do sujeito consigo mesmo – delimitou e reconfigurou, como demonstram diversos estudos recentes realizados na psicologia e nas neurociências, as capacidades perceptivas-cognitivas do homem moderno e, portanto, também a forma como desenha a trajectória da sua vida e como sucumbe à ilusão da hiper-modernidade (estão aqui implicadas as teses e perspectivas de autores como Baudrillard, Debord, Virilio, Klossovski, Jappe, Bauman Lipovestky apenas para referir alguns). Neste cenário recuperar uma antiga dialéctica ou melhor, uma antiga alegoria pode ajudar a explicar e a compreender esta modernidade líquida. Referimo-nos à alegoria da caverna platónica que ajuda a reflectir criticamente não só sobre as condições do aparecimento e validade da verdade (e da mentira) mas também sobre a realidade social (e as condições em que esta se estrutura). Serve ainda a alegoria da caverna para sustentar e entrecruzar com as perspectivas criadas pelas obras artísticas de que faremos uso, redirecionando as questões metafísicas e existenciais que são ditadas pela natureza humana e pela condição humana.
Assim, nas perguntas a colocar, embora possam revelar e remeter para um fundo ético, importa lembrar o horizonte de mundo social vivido em que assentam e nesse sentido, perguntar pelo comportamento do indivíduo numa sociedade globalizada, capitalizada, mediatizada, que se dá como conjunto amorfo e que recai sob a égide da designação de pós-verdade. A análise (conjunta e comparativa) do filme Parasitas de Bong Jon-Hoo dá-nos a ilustração e a dimensão desta estranha era e das suas condições de (sobre)vivência. Não se trata tanto de colocar a pergunta pelo sentido da vida ou a pergunta pelos valores que norteiam a vida, mas de colocar pragmática e kantianamente nesta sociedade hiper-moderna a pergunta, o que é o homem, que sintetiza, como se sabe, aquelas três perguntas fundamentais (das Críticas) que poderiam ser aplicadas ao conjunto das personagens ditadas pelo enredo do filme Parasitas (que posso saber? O que devo fazer? E o que esperar?).
Diga-se em boa verdade que uma sociedade que se encontra submersa num paradigma que estimula a competição desenfreada e a obtenção do sucesso, que advoga o direito (senão mesmo o dever) à felicidade pela aquisição e acumulação de bens, que recria os tempos de lazer de acordo com os ditames da moda e do consumo, não pode permitir que o conhecimento (sobretudo científico) ultrapasse as barreiras da academia. Percebe-se nas entrelinhas da política e da economia global a viragem que ocorreu na significação das perguntas essenciais que se davam na interioridade do espírito humano; percebe-se, no fundo, a metamorfose semiótica que na transição do século e do milénio subordinou as perguntas kantianas, destituindo-as da sua extensão estética, ética, metafísica e ontológica – ou para sermos fieis ao espírito da palavra, da racionalidade advogada por Kant - para se darem como vácuos critérios de um paradigma materialista e ficcional que se instituiu socialmente. Se é verdade que a (ir)racionalidade do homem moderno se deixa ler e reduzir pelo alcance que a sua imagem alcança de sucesso (medido pela ostentação que faz de si próprio, seja por exemplo através das redes sociais), não é menos verdade que é ainda o fetiche da mercadoria que o molda e formata nessa materialidade desenfreada do hiper-consumismo. O capitalismo, como referia Anthony Giddens, é “simplesmente uma via irracional para dirigir o mundo moderno, porque ele substitui a satisfação controlada das necessidades humanas pelos caprichos do mercado” (Giddens 1991, 123-124). A sustentabilidade do capitalismo global depende da força que imprime às ilusões que cria e, talvez por isso, também a ignorância e a mediocridade vinguem com a mesma vitalidade, o que explicaria (em parte pelo menos) o retrocesso civilizacional a que se está a assistir nestas duas primeiras décadas de 2000. O regresso do fascismo, do racismo, da xenofobia, da misoginia, é a face visível de um sistema esgotado que aliou política, economia e religião e gerou descrédito e desgovernação (e que a crise pandémica iniciada em 2020 viria a por a descoberto).
Ainda que com uma boa dose de ironia, a citação inicial de Dostoiévski com se abriu esta ensaio reflecte uma inquietação que agora se apresenta segundo uma moldura societal (já não são indagações ontológico-existenciais profundas): permanecer imerso nessa massa amórfica que (sobre)vive num mundo cruel e subterrâneo ou vir à superfície, conquistar o sucesso e celebrar o paradigma fetichista da hiper-modernidade?
Nada de novo sob o sol: a caverna de Platão e o subterrâneo de Dostoiévski
Como referimos inicialmente, para o homem que pensa sobre a realidade que o circunda, a urgência de clarividência, a necessidade de compreensão impõe-se como definidoras da sua própria forma de estar no mundo. Platão que queria pensar a cidade e o homem na sua totalidade, sente a necessidade, quer no plano metafísico quer no plano epistemológico, de definir as condições de validação da verdade e da falsidade, da natureza material e ideal, da realidade e da ilusão, e nesse sentido, a alegoria da caverna apresentada no Livro VII de A República propõe-se ser um exercício de esclarecimento. Na verdade, ela surge como um intuito maior. Isto é, ela surge como um exercício didáctico e pedagógico que urge aplicar nos dias de hoje: trazer luz a um mundo de escuridão e sombras que outros projectam para nós (sendo que os outros são pouco mais de uma dúzia de instituições financeiras e de multinacionais que operam a nível global).
A alegoria da caverna platónica coloca uma série de interessantes e valiosas interrogações (depois da famosa descrição inicial dos homens acorrentados e imobilizados desde a infância que veem serem projectadas as sombras na parede para onde olham desde sempre, em 514a – 515c) como por exemplo, as fornecidas na seguinte passagem:
Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para os objectos mas reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam? (Platão 1996, 515d).
Duas referências merecem a nossa atenção: a primeira, aponta para a libertação do homem, isto é, para a libertação da ignorância que o conduziria ao contacto com a realidade; a segunda, para o confronto com os objectos da realidade. Nesta última, pode encontrar-se também (pelo menos num certo sentido) o confronto do homem com a verdade, o que por si só é motivo de inquietação e de indagação pois ressalta a questão inevitável (que de Nietzsche a Teixeira de Pascoaes, de Einstein a José Marinho sempre se colocou): como reagir perante a verdade ou ainda, como reconhecer a verdade e o que fazer com ela? Ora, Platão e a sua alegoria da caverna não podiam estar mais no centro do debate: a realidade não está (não parece estar) acessível a todos.
À luz da hiper-modernidade o modelo platónico revela a sua validade e extensão: o homem moderno vive mediatizado pelas imagens, e nesse sentido também a teoria platónica da cópia eco em fundo. O homem moderno (seja ocidental ou oriental) vive num limbo mediado entre a aparência do real e o real da aparência (e por isso re-inventa continuamente o mito da caverna platónica) nunca se permitindo à exposição e compreensão da realidade. Significa isto que quanto mais o indivíduo se vir na contingência de viver na aparência, menos consciência terá da realidade, criando um espaço próprio (quase teatral) para essa aparência momentânea do real. A ordem da realidade já não é a mesma; a apreensão da realidade não se faz exclusivamente pela via tradicional (leia-se no contacto directo e imediato com a realidade) mas através de instrumentos, de próteses tecnológicas que enviesam as relações e minam a percepção da realidade. As relações sociais, em que se devem incluir as relações laborais, comunitárias, familiares estão sujeitas à tecnologização mercantilista ditada pela hiper-modernidade e nesse sentido passam a valer sob o escrutínio da aparência mediatizada pelas imagens. Como refere Goffman a este propósito,
«Uma vez que a realidade com que o indivíduo se encontra cometido é momentaneamente inapreensível na sua totalidade, o indivíduo terá de se valer das aparências disponíveis. E, paradoxalmente, quanto mais o indivíduo se encontra empenhado numa realidade a que a perceção não lhe faculta acesso, mais a sua atenção se concentrará nas aparências» (Goffman 1991, 291)
O tema, como já percebeu, não é novo e atravessa um leque de áreas distintas para o caracterizar. Pegando na ideia que preside à constituição da República de Platão – da concepção da cidade ideal, a Kallipólis (cidade bela) – Platão discorre através de Sócrates um conjunto de teses de cariz ético e político que são já reveladoras do estabelecimento de níveis e hierarquias na sociedade grega. A partir deste começo enfermo ditado pela utopia platónica, a literatura (filosófica ou política) nunca mais abandonaria a ideia reitora e quiçá necessária da existência de hierarquias sociais (até mesmo em Thomas Moore se encontra essa distinção). Mas se quiséssemos um exemplo cinematográfico para ilustrar o que temos vindo a referir, o filme Metropolis (de Fritz Lang, 1927) baseado na obra literária com o mesmo nome de Thea Von Harbou, desempenha bem essa função (entre o minuto 3 e 5): “muito abaixo da superfície da terra encontra-se a cidade dos trabalhadores” (Metropolis 1927). Aliás, este filme acaba por inaugurar em termos visuais um paradigma que veremos repetir-se em inúmeros filmes. De certo modo, quando entramos no enredo do filme Parasitas, percebemos que é também ao nível do subsolo, que os trabalhadores se encontram. Quer dizer, é ao nível das caves (as cavernas modernas da sociedade) que se organizam as perspectivas daqueles que sonham ascender à realidade, à contemplação do sol, da entrega à vida. Os países asiáticos, fortes no avanço tecnológico e mais fortes ainda na facilidade de mão de obra, permitiram o renascimento de novas cavernas, quer ao nível produtivo – caves muitas vezes sem fontes naturais de ar e luz em que trabalham, comem e dormem os trabalhadores fabris – e caves em que habitam na esperança da ascensão social prometida por um modelo social que não pode vingar.
A existência desses níveis (ou classes) justifica-se assim pela crescente exigência de bens e serviços que o capitalismo global instituiu como necessidades; a existência de classes desfavorecidas na sociedade é proporcional ao grau de crescimento da máquina que as hostiliza e obriga à permanência na ilusão de o deixarem de ser. O capitalismo não advoga a apreensão da realidade nem tão pouco a compreensão da mesma, mas revitaliza-se pela fantasia que incute, pela ilusão hedonista que celebra por que o
capitalismo é a ordem mais pluralista que a história já conheceu, sempre transgredindo limites e desmantelando oposições, misturando formas distintas de vida e sempre excedendo a medida. Toda essa pluralidade, é preciso dizer, opera dentro de limites muito rigorosos; mas isso ajuda a explicar por que alguns pós-modernistas sonham avidamente com um futuro híbrido, enquanto outros estão convencidos de que esse futuro já chegou. O pós-modernismo, em suma, rouba um pouco da lógica material do capitalismo avançado e a volta agressivamente contra seus fundamentos espirituais (Eagleton 1998,128-129).
O homem subterrâneo de Dostoiévski não é um acaso da literatura. É fruto de uma época conturbada em que se desenha o existencialismo e como tal, em que se questiona o sentido da existência. Em Memorias do subsolo (também apresentado como Cadernos do subterrâneo) Dostoiévski apresenta-nos o anti-herói que se confessa ao mundo como vivendo no subsolo, como sendo esse espécimen de homem, que pode ser mau ou bom (divido na sua interioridade pelo peso moral que carrega), que pode ambicionar a ser como os homens de acção, mas que conclui sem grande expectativa para a sua vida que o melhor talvez seja não fazer nada. Dostoiévski está aqui a deixar implícita uma crítica aos conflitos políticos e ideológicos da sua época e o subsolo é esse lugar miserável onde os militantes revolucionários se reúnem de forma clandestina para procurarem ascender. Dostoiévski quer apresentar um homem novo – ideia que Nietzsche perfilhou –, e que afinal é esse homem que está imerso na tragédia da existência. O homem novo é o duplo do homem do subterrâneo. Talvez por isso, o anti-herói não chora, ele refugia-se no subsolo, entregue a si próprio, à sombra e escuridão, à imagem de si:
Destruam os meus desejos, derrubem o meu ideal, apresentem-me uma meta melhor e eu os seguirei. Dir-me-ão, talvez, que não vale a pena preocuparem-se por mim; mas pensem que eu posso responder-lhes o mesmo. Estamos a discutir com seriedade, mas advirto-os que se não se dignam conceder-me a vossa atenção, não me verão chorar. Tenho o meu subterrâneo. (Dostoiévski 2005, 56).
O subterrâneo configura-se como lugar de espera, como lugar que marca a vivência de quem aguarda a oportunidade de reivindicar o direito a existir. O filósofo e escritor Dostoiévski não quer ceder a tentação de negligenciar a ambição, a esperança que deve presidir à condição humana, por mais longa que seja a espera, por mais cruel que possa ser o espaço sem tempo:
Por isso, que me importa que as coisas não possam ser arranjadas assim e que tenha de conformar-se com um alojamento económico? Por que tenho semelhantes desejos? Não estarei eu constituído de forma a poder comprovar que esta constituição é só uma piada de mau gosto. Mas será este o único objectivo? Não o admito. Por outro lado, sabem o que lhes digo? Que estou persuadido de que nós, os homens do subterrâneo, devemos estar presos. O homem do subterrâneo é capaz de permanecer silencioso no seu abrigo durante quarenta anos; contudo, se sai do abrigo, começa a falar e já não modo de o deter (Dostoiévski 2005, 57).
É aqui que ganha sentido a obra de Dostoiévski: o autor sabe que o homem do subterrâneo está encurralado nesse modelo ditado pelos discursos vigentes, pelas acções de uma sociedade que o remete para o subsolo; mas é aqui que o homem do subterrâneo aguarda a sua oportunidade. A sociedade hiper-moderna transmutou-se e nada se configura de acordo com o passado recente, tudo é fugaz
a existência burguesa assentava na instituição da carreira – uma trajetória que se percorria ao longo de uma vida inteira de trabalho. Hoje, as profissões e as ocupações ativas estão a desaparecer. Em breve serão coisas tão velhas e arcaicas como os estatutos e as ordens dos tempos medievais. […] Na Europa e no Japão, a vida burguesa sobrevive. Na Grã-Bretanha e na América, reduz-se a material decorativo dos parques temáticos. A classe média é um luxo que o capitalismo já não consegue suportar (Gray 2007, 140-141).
E isto significa também que é aqui que podem surgir os parasitas, alojando-se no hóspede que o capitalismo ajudou a criar, nesses que vivem no paradigma do sucesso, da ostentação do brilho.
A caverna asiática: Parasites everywhere
O filme Parasitas de Bong Jon-Hoo (2019) desde o seu lançamento reconheceu um êxito imediato – o primeiro filme sul-coreano a receber a palma de ouro em Cannes em 2019 e 4 óscares, sendo que nesse particular foi o primeiro filme de língua não inglesa a receber o óscar de melhor filme. A crítica aplaudiu e geraram-se diversas leituras sobre a obra de arte Parasitas.
O filme expõe muito daquilo que é a sociedade asiática e em concreto a sociedade sul-coreana que se erigiu nos moldes de um capitalismo selvagem que segrega e corrói o coração do tecido social. Presta-se por isso a um extraordinário exercício de desmontagem, de desconstrução hermenêutica que não se subsume na mera análise fílmica, mas que se dá como uma séria reflexão crítica filosófica (embora a análise de mise-en-scéne revele pormenores delicados e de grande acuidade como a forma como o tempo está gerido ou os planos dados a partir da cave em que a família dos protagonistas vive, isto é, a partir do subsolo). Significa isto que ao vermos o filme Parasitas entramos imediatamente na dimensão económica e social que caracteriza grande parte da população sul-coreana. O recorte da montagem do filme dá-nos a dimensão da realidade do ambiente suburbano em que vivem e das dificuldades que apresentam as famílias (como a protagonista do filme) que tenta sobreviver num ambiente hostil (tal comos parasitas sem hospedeiro). A família dos protagonistas é composta por um motorista desempregado, Ki-taek (interpretado por Song Kang-ho), que vive com a mulher, Chung-sook (interpretado por Jang Hye-jin), o filho Ki-woo (interpretado por Choi woo-shick) e a filha Ki-jung (interpretado por Park So-dam) numa diminuta cave. Nessa vivência subterrânea tudo ganha importância, desde a tentativa de obter rede (sinal) de internet até à cena da fumigação que ocorre na rua – poderosa metáfora para a eliminação de parasitas indesejáveis – em que os protagonistas não fecham as janelas da cave onde habitam para terem uma fumigação gratuita.
Eles esperam e vão sobrevivendo aos dias com trabalhos precários de pouco rendimento, até que um amigo do filho, Min-hyuk (Park Seo-jon) antes de partir lhe ofereça uma pedra da sorte e a oportunidade de ocupar o seu lugar como professor de inglês da filha mais velha da abastada família Park. Num primeiro momento Ki-woo não percebe como pode exercer essas funções (não tem habilitações adequadas) mas rapidamente engendra um esquema de falsificação de um diploma para não perder essa possibilidade. É neste quadro que surge a possibilidade de olhar para lá da caverna platónica e ascender à realidade. Note-se como a chegada de Ki-woo à mansão da família Park se faz pela subida de umas escadas e pela intensidade da luz solar que parece cegar Ki-woo.
O homem subterrâneo que emerge na expectativa dos acontecimentos que podem melhorar a sua vida, vai ainda levado pelo entusiasmo momentâneo que a oportunidade suscita. Não se trata (ainda) de uma exaltação da existência, mas da possibilidade de ver uma outra realidade (a que não saberia dar resposta tal como o prisioneiro platónico confrontado com a realidade) que só muito remotamente teria acesso; aquilo que Mathiesen refere como sendo a constituição de uma viewer society, quer dizer, uma sociedade em que vinga o synopticism, termo proposto para descrever o fenómeno que através dos modernos mass media possibilita que “muitos têm tido acesso a poucos – ver os VIPs, os repórteres, as estrelas, quase uma nova classe na esfera pública” (Mathiesen 1997, 19).
Ora, acontece que perante a realidade, os parasitas não perdem o sentido de oportunidade e começam a organizar-se de modo a ficarem todos como funcionários altamente qualificados (o pai como motorista, a filha como professora de arte e a mãe como governanta, sem revelarem os graus de parentesco) dessa família abastada.
Mas como se diz no trailer, espera-se que o parasita seja uma coisa, mas ele metamorfoseia-se noutra coisa. Na verdade, o parasita humano que se distingue do parasita animal por não se contentar com a mera hospedagem, aloja-se e acaba por começar a desejar assumir a posição do próprio hospedeiro e nesse sentido, pode ser encontrado aqui o eco de uma teoria mimética, não tanto no conteúdo, mas na forma:
Dizer que os nossos desejos são imitativos ou miméticos significa que se enraízam não nos seus objectos ou em nos mesmos, mas num terceiro, o modelo ou o mediador, de que imitamos o desejo na esperança de nos parecermos com ele, na esperança de vermos “fundirem-se” os nossos dois seres, como gostam de dizê-lo certos personagens de Dostoievski. (…) O que convém sublinhar é a convergência sobre o mesmo objecto de dois ou vários desejos, que é susceptível de aumentar ao infinito o valor do objecto, qualquer que seja. O desejo mimético é uma teoria realista que mostra porque é que os seres humanos são incapazes de realismo (Girard 2007, 154 e 159)
Os parasitas dão conta, numa reviravolta inesperada do filme (a anterior governanta escondia num compartimento secreto da cave o seu marido) que há mais caves, que há mais homens subterrâneos e que no coração da realidade se apresentam dificuldades inesperadas, como desejar aquilo que outros antes deles e depois deles (como se deixa antever no final do filme) podem igualmente fazer. Parasitas apresenta-nos um modelo de realidade que vai ao encontro de uma repetição dos acontecimentos, vai ao encontro do esgotamento dos modelos, a essa espécie de eterno retorno do mesmo (dos parasitas que parasitam na sociedade), vai ao encontro das imagens que o modelo capitalista ajudou a fabricar como medida do sucesso. Na verdade, o subterrâneo existe como exigência de sustentabilidade de um sistema que segrega e atira para a marginalidade aqueles que serão os parasitas. Ora, acontece aqui a suprema ironia pois o grande parasita da vida moderna é o capitalismo global que fez da sobrevivência do homem subterrâneo a condição a partir do qual emerge. Parasitas não é apenas um filme sobre a sociedade sul-coreana mas é uma obra de arte que nos faz pensar sobre o exaustão da nossa condição humana e das cavernas em que vivemos.
Bibliografia
Dostoiévski, F. 2005. Memorias del subsuelo. Traduzido para espanhol por Alejandro Ariel Gonzáles. Buenos Aires: Colihue.
Eagleton, Terry. 1998. As ilusões do pós-modernismo. Traduzido por Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor.
Giddens, Anthony. 1991. As Consequências da Modernidade. Traduzido por Raul Fiker. São Paulo: UNESP.
Girard, René. 1966. Deceit, Desire and the Novel: Self and the Other in Literary Structure. Tradução Inglesa de Yvonne Freccero. The John Hopkins University Press, Baltimore.
Girard, René. 2007. A Voz Desconhecida do Real. Uma teoria dos Mitos Arcaicos e Modernos. Traduzido do francês por Filipe Duarte. Lisboa: Instituto Piaget.
Girard, René. 2012. Resurrection from the Underground: Feodor Dostoevsky. Tradução do francês de James G. Michigan, Michigan State University Press.
Goffman, Erwin. 1993. A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Traduzido do inglês por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio d’Água.
Gray, John. 2007. Sobre Humanos e Outros Animais. Traduzido do inglês por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Lua de Papel.
Jappe, Anselm. 2012. Sobre a Balsa da Medusa. Ensaio acerca da Decomposição do Capitalismo. Traduzido por José Alfaro. Lisboa: Antígona Editores Refratários.
Mathiesen, Thomas. 1997. “The Viewer Society: Michel Foucault’s ‘Panopticon’ Revisited” in Theoretical Criminology, N.º 1: 219
Platão. 1996. A República. Tradução de Maria H. da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Filmografia
Parasitas. 20190. De Bong Jon-Hoo. Coreia do Sul: CJ Entertainment. DVD.