Capítulo II – Cinema – Cinema

The Gate of Heaven: Miracle or Fraud?

A porta do céu: milagre ou fraude?

Luiz Nazario

Universidade Federal de Minas Gerais

Abstract

In the final months of fascism, the realization of “La porta del cielo” (“The Gate of Heaven”, 1945), produced by the Catholic Film Center of Rome and directed by Vittorio De Sica, would have served as an “inner exile” to the filmmaker, as well as a miraculous refuge for hundreds of Jews. Thanks to purposely endless footage, Jews hired as extras would have been able to save themselves from deportation to Auschwitz. A touching story, but how true would it be? Are we facing a fairy tale imagined to ennoble the political performance of the filmmaker in the final months of the regime, when the collapse of fascism was already evident? Almost invisible, the film keeps its secret: miracle or fraud? Analyzing a copy exhibited once by RAI, we intend to shed light on a little studied film of one of the masters of Italian neorealism.

Keywords: The Gate of Heaven, Vittorio De Sica, Italian neorealism, Fascism, Cinema.

Introdução

Em 2003, a revista Civilitá Cattolica exaltou o cineasta Vittorio De Sica por ter impedido a deportação de 300 judeus alojados em igrejas católicas ao aceitar empregá-los como extras de seu filme La porta del cielo (A porta do céu, 1943-1945).

Produzido pelo Vaticano, o filme teve, supostamente a pedido do Papa Pio XII, suas filmagens estendidas muito além do que seria normalmente necessário, de 1943 até o fim da ocupação alemã (DPA 2003).

Empregando figurantes judeus e outros perseguidos polítcos do nazismo, o filme teria evitado sua captura e deportação. Mas permanecem imprecisas as informações sobre os judeus e perseguidos politicos salvos, assim como as verdadeiras razões para o engavetamento de um filme supostamente tão importante para a História do Cinema e do Holocausto.

Até que ponto pode-se acreditar na abnegada ação do cineasta em salvar judeus da deportação? Teria sido De Sica - ao lado de Rauol Wallenberg, Aristides de Sousa Mendes, Chiune Sugihara, Giorgio Perlasca, Luiz Martins de Souza Dantas ou Oskar Schindler - um dos Justos do Holocausto?

Por que o projeto do “santo” Papa Pio XII, cuja omissão diante do Holocausto tantos historiadores reprovaram, não foi restaurado e exibido com orgulho pelo Vaticano, que produziu o filme e detém seus direitos, constituindo a fantástica realização uma prova evidente da resistência da Igreja numa importante ação humanitária antinazista?

Por que La porta del cielo não foi distribuído mundialmente quando De Sica tornou-se mundialmente famoso depois que filmes seus ganharam o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1948, 1950, 1965 e 1972?

Por que La porta del cielo permaneceu esquecido pelos historiadoes do cinema, sem merecer, como outros filmes do cineasta, um relançamento mundial em DVD e Bluray, sobrevivendo apenas três cópias dele nos arquivos, sendo um filme quase invisível?

A porta do Inferno

1. A colaboração dos artistas

O regime fascista proibia os filmes de Charles Chaplin, Jean Vigo, Jean Renoir ou Marcel Carné, mas empregava grandes cineastas, que ficaram mundialmente famosos no pós-guerra, como Luchino Visconti, Vittorio De Sica, Giuseppe De Santis, Roberto Rosselini, Alberto Lattuada.

Para sabermos até que ponto cada artista resistiu ao fascismo ou colaborou com ele, mesmo que superficialmente, é preciso acessar os filmes e os documentos. Michelangelo Antonioni, por exemplo, elogiou o filme nazista Jud Süss (Judeu Suess, 1940), de Veit Harlan, premiado no Festival de Cinema de Veneza com o Leão de Ouro. Rossellini realizou filmes de propaganda como Un pilota ritorna (Um piloto retorna, 1941) e La nave bianca (A nave branca 1941).

Nos anos de 1930, De Sica atuou em dezenas de filmes da produção fascista. Foi dirigido por Alessandro Blasetti em Nessuno torna indietro (1943). No período fascista, até o Centro Cattolico Cinematografico (CCC) do Vaticano produziu filmes através da empresa subsidiária Orbis, como o docudrama Tra gli incanti del Pacifico (1938), de Bernardo Wobken; o documentário Pastor Angelicus (1942), de Romolo Marcellini e Luis Trenker; e o drama La porta del cielo (A porta do céu, 1943-1945), de Vittorio De Sica.

Pouco se sabe sobre Bernardo Wobken e Romolo Marcellini. Mas Luis Trenker foi um dos atores mais populares do cinema nazista. Realizou um dos filmes prediletos de Hitler, Der Rebell (O rebelde, 1932), e inseriu-se com sucesso no cinema de propaganda, com Der verlorene Sohn (1934), Der Kaiser von Kalifornien (1936), Condottieri (1937), Der Feuerteufel (1940). Este último, ao exaltar a rebelião dos tiroleses contra Napoleão, teria irritado Hitler, mas não era a intenção do cineasta incitar uma revolta popular contra ele. Para demonstrá-lo, Trenker publicou Captain Ladurner, um romance pró-nazista (MOSSE, 1991).

2. As Leis Raciais

Na Itália, a perseguição aos judeus começou mais tarde que na Alemanha: o Manifesto della Razza (Manifesto da Raça), assinado em 14 de julho de 1938 por 10 cientistas (incluindo o neuropsiquiatra Arturo Donaggio e o zoólogo Edoardo Zavata), preparou a promulgação, em 11 de novembro de 1938, das Leis Raciais. A exclusão dos judeus da vida pública italiana criava as condições para sua deportação.

Em 1942, em sua homília de Natal, o Papa Pio XII mencionou “centenas de milhares de pessoas, que sem terem cometido alguma falta, e só por motivos de nacionalidade ou de origem, são destinadas à morte ou a um depauperamento progressivo”. Ele se referia aos judeus sem, contudo, nomeá-los.

Segundo Monsenhor Sergio Pagano, prefeito dos Arquivos do Vaticano, Pio XII preparava uma encíclica que condenaria o nazismo e outra sobre a perseguição dos judeus; infelizmente, elas foram engavetadas, permanecendo sem efeito político (DPA 2003).

3. O armistício

Roma foi bombardeada pelos Aliados em 19 de julho e em 13 de agosto de 1943, com um total de 3.000 mortos e 11.000 feridos. 45 mil romanos perderam suas casas. O quarteirão San Lorenzo foi destruído e a Cinecittà foi reduzida a escombros.

Pío XII escreveu uma carta ao Presidente Franklin D. Roosevelt implorando que os chefes militares não atacassem os civis inocentes e especialmente as igrejas, as instituições religiosas, as casas de caridade cristã para os pobres, enfermos e abandonados do rebanho de Cristo. Nas duas ocasiões Pio XII, quebrando o protocolo, saiu à rua sem sua guarda para acalentar pessoalmente as vítimas, chegando a distribuir maços de dinheiro. Sua segunda saída foi registrada pelos fotógrafos do Istituto Luce - na imagem mais célebre o pontífice abre os braços diante dos fiéis concentrados diante da Basilica di San Giovanni in Laterano (ARCIDIACONO 2017).

No dia 8 de setembro de 1943 foi firmado um armistício pelo governo do marechal Badoglio com as forças aliadas. Mussolini foi deposto e preso. Os alemães ocuparam imediatamente o norte e o centro do país, estabelecendo uma linha de defesa ao norte de Nápoles, e resgataram Mussolini da prisão em 23 de setembro de 1943. O Duce fundou a Repubblica Sociale Italiana (RSI) (República Social Italiana), em Salò, cidade às margens do Lago Garda, a capital do seu governo fantoche dos alemães. A Itália ficou dividida sob dois poderes irreconciliáveis: no sul, sob as tropas aliadas e no norte, sob as tropas alemãs, com os fascistas italianos combatendo a crescente resistência interna liderada pelos comunistas.

Quando os Aliados tomaram a Sicília, passaram a controlar um terço da península. Parte das forças italianas rendidas passou a lutar com os Aliados para libertar o resto da Itália da ocupação alemã. A Itália entrou numa guerra civil com o lado aliado ganhando Nápoles no final de 1943. Os Aliados esperavam libertar Roma até o Natal, mas foram bloqueados em Monte Cassino. (MATTHEWS 2012)

Goebbels decidiu que os italianos deveriam mover seu grande aparato cinematográfico para Veneza e colocá-lo a serviço do novo estado fascista. Isso se traduziu em “convites” para diretores famosos se mudarem para a República de Salò. (DE SICA, C 2008).

Em meio à maior crise do cinema italiano, o produtor Salvo D’Angelo foi financiado pelo Centro Cattolico Cinematografico para fazer um filme de verdade, com atores importantes: Massimo Girotti, Roldano Lupi, Maria Mercader. O diretor seria Esodo Pratelli, um “fascista inofensivo que garantiu ao projeto a indispensável cobertura política para o regime”. (PALATELLA 2015). Em outubro de 1943, a Revista Film anunciou:

Uma notícia para os pessimistas: em 20 de outubro terão início as tomadas do filme La casa dell’angelo (A casa do anjo) sob os auspícios do Centro Cattolico Cinematografico, a partir de um argumento de Piero Bargellini, sob o fundo do grande santuário de Loreto.

Em novembro de 1943, os alemães levaram os equipamentos da Cinecittà para Veneza e transformaram seus estúdios em depósitos de material bélico. Com o saque, o cinema italiano foi paralisado.

Apenas o Vaticano foi poupado: algumas igrejas guardavam milhares de metros de filme. Salvo D’Angelo pode assim iniciar a produção de La casa dell’angelo (A casa do anjo), com roteiro de Adolfo Franci e do escritor católico Diego Fabbri. Para evitar problemas com os fascistas de Salò, D’Angelo contratou Esodo Pratelli, um fascista considerado inofensivo, para dirigir o filme, a ser estrelado por Roldano Lupi, Massimo Girotti e Maria Mercader.

Nascida em Barcelona em 1918, Maria Mercader era irmã do agente stalinista Ramòn Mercader, o assassino de Trotsky. Perdeu o pai na Guerra Civil Espanhola e, em 1938, quando Barcelona foi bombardeada por italianos aliados a Franco, sua casa foi destroçada, salvando-se ela e a mãe por milagre, abraçadas a uma imagem de Santo Antônio. Mercader estreou no cinema em Molinos de viento (Moinhos de vento, 1939), de Rosario Pi. A atriz catalã imigrou para a Itália e, na Cinecittà, conheceu De Sica, 17 anos mais velho, nas filmagens de Rose scarlatte (Rosas vermelhas, 1940). A relação dos dois se firmou quando ela atuou em Un garibaldino al convento (Recordações de um amor, 1942), o primeiro êxito de De Sica como diretor. (CONCEPCIÓN 2012)

Casado com a atriz e cantora Giuditta Rissone desde 1937, com quem tinha uma filha chamada Emy, De Sica apaixonou-se por Mercader, e passou a viver em pecado, dividindo-se entre a esposa e a amante. Quando Mercader deixou a Itália para protagonizar Madrid de mis sueños (Madri dos meus sonhos, 1942), de Max Neufeld; na Espanha. De Sicca escreveu-lhe confessando não poder viver sem ela e que se mataria se ela o abandonasse.

Mesmo reconhecendo os defeitos de De Sica - “mentriroso compulsivo, ciumento e um machista para quem era importante casar-se com uma mulher virgem” (CONCEPCIÓN 2012) - Mercader retomou seu romance italiano e continuou sua carreira no cinema fascista, estrelando Se io fossi onesto (1942), de Carlo Ludovico Bragaglia, fazendo par romântico com De Sica; Buongiorno, Madrid! (1942), de Max Neufeld e Gian Maria Cominetti; Musica proibita (1942) e Il treno crociato (1943), ambos de Carlo Campogalliani. O romance entre a atriz e o cineasta foi, contudo, ameaçado pelo armistício.

4. O dilema de De Sica

Com a nazificação do norte da Itália, De Sica foi convidado a dirigir, com Roberto Rosselini, a cinematografia da nova “cidade do cinema” da República de Salò, em Veneza, ao mesmo tempo em que o embaixador alemão em Roma transmitia-lhe o convite de Joseph Goebbels, chefe do Reichsministerium für Propaganda und Volksaufklärung (Ministério do Reich para Propaganda e Esclarecimento Público) para dirigir a cinematografia alemã em Praga. Em seu livro de memórias, La porta del cielo, De Sica escreveu:

Goebbels, através de seu embaixador em Roma, me convoca para convidar-me a dirigir a cinematografia alemã em Praga. Ao mesmo tempo, o então Ministro da Cultura Popular, Mezzasoma, me convida a dirigir a cinematografia da República Social em Veneza. Eu estava aterrorizado. Em Roma havia o toque de recolher e às cinco da tarde todos deviam se fechar em casa. Às 17h05 em ponto tocava o telefone e regularmente Cocco, um diretor de produção de fé profundamente fascista, me perguntava: “E então, De Sica, o que decidiu sobre Veneza?”. E então eu respondia que devo primeiro terminar o filme que o Vaticano me encomendou intitulado La porta del cielo. (DE SICA 2004, p. 88).

Sem citar sua fonte, Palatella descreveu um suposto diálogo que De Sica teria travado com o então Ministro da Cultura Popular da Itália, Ferdinando Mezzasoma:

Mezzasoma: Há uma necessidade de manter elevados o espírito e a moral das pessoas. Hoje mais do que nunca... Aquelas pessoas que adoravam ouvi-lo cantar e que amavam seus filmes... Aqueles camaradas que hoje lutam tenazmente em Salò para redimir a desonra do armistício... Bem, é para eles, De Sica, que te oferecemos com o beneplácito do Duce a direção da cinematografia da nossa república fascista ressuscitada no norte. O senhor irá para Veneza para organizar com Rossellini nossa Cinelândia. Goebbels, como sabe, também ficará lisonjeado. O senhor terá uma casa, um salário, um carro com motorista à sua disposição.

De Sica, “fortemente antifascista e italiano verdadeiro teria querido então cuspir-lhe num olho!” - Palatella bravateia. Mas o fato é que De Sica, como um forte antifascista e italiano verdadeiro, não ousou cuspir na cara do ministro fascista, nem fez nada desse tipo, apenas agradeceu a honra, da qual, contudo, se via obrigado a declinar:

De Sica: Excelência, essa proposta me gratifica e me lisonjeia... Esta oferta é um prêmio por toda a minha carreira de servidor da cultura e da arte... Embora relutante, devo salientar que já estou engajado numa frente diferente, mas igualmente importante...
Mezzasoma: Outro filme? Para quem?
De Sica: O Papa. Assinei um contrato para uma produção do Vaticano, pessoalmente auspiciada e desejada por Sua Santidade. Para fazer um filme sobre o milagre de Loreto. O título? La porta del cielo.
Mezzasoma: De Sica, você é um homem do mundo. Você não sabe quem te dará permissão para filmar? Eu.
De Sica: Rodaremos nos territórios vaticanos.
Mezzasoma: Retire-se, comediante! Cuidarei pessoalmente de enviar o senhor para a Alemanha assim que esse filme do Papa terminar. (PALATELLA 2015)

De Sica estaria blefando, pois não tinha nenhum contrato firmado. Tentando evitar comprometer-se com a produção fascista em Salò e com a produção nazista em Praga, De Sica disse estar engajado no projeto de filme do Vaticano - La casa dell’angelo, do qual tomara conhecimento através da Mercader - cujo título lhe fugira, inventando outro na hora, La porta del cielo.

Tentando desvencilhar-se de tantas pressões, o cineasta apelou à amante: “Marì, faça com que eles me contratem imediatamente ou acabo nas mãos dos fascistas. Eles me matarão.” (DE SICA 2004, 86; PALATELLA 2015). Mercader convenceu o produtor Salvo D’Angelo a substituir Pratelli por De Sica. Um ótimo negócio para De Sica e um excelente arranjo para a atriz, pois obrigaria seu amante a permanecer em Roma trabalhando com ela; melhor ainda para o Vaticano, já que De Sica era um ator renomado e cineasta promissor, enquanto Pratelli nada significava.

Convidado pela produção, De Sica ainda impôs a condição de que o roteirista fosse seu amigo Cesare Zavattini, com quem trabalhara em Teresa Venerdi (1941) e I bambini ci guardano (1943). Zavattini foi aceito, mas trabalharia junto com Adolfo Franci e o escritor católico Diego Fabbri. Enfm contratado, De Sica não precisaria mais mentir para Cocco, Mezzasoma e Goebbels.

A porta do Céu

1. O roteiro

La porta del cielo consolidou a célebre parceria que De Sica manteve com Zavattini ao longo de 30 anos. Sobre essa parceria o roteirista escreveu:

Nós dois somos como o cappuccino, onde não se sabe onde está o leite, onde está o café, mas é o cappuccino. Isso significa que foi uma espécie de vocação que nos uniu, nos unimos sobre uma base real, humana; e quando digo humana me refiro a certos valores expressivos sobre os quais concordamos de partida, e com isso quero dizer a simplicidade, a clareza. (ZAVATTINI apud PALATTELLA 2015)

O roteiro inicial de La casa del angelo foi reescrito por Cesare Zavattini, Diego Fabbri e Adolfo Franci entre novembro de 1943 e fevereiro de 1944 no Hotel Bristol de Roma, onde De Sica e a amante Mercader residiam em quartos separados. (BONACCORSO 2020)

Zavattini teria resistido à ideia do milagre presente no roteiro original de Franci - que escreveria Sciucià (Vítimas da tormenta, 1946) para De Sica, sendo por este trabalho indicado ao Oscar de Melhor Roteiro - e Fabbri - dramaturgo e roteirista católico, secretário do Centro Cattolico Cinematografico de Roma entre 1940 e 1959, encarregado de garantir que o filme se adequasse à ortodoxia religiosa (DE SICA 2008).

2. A ideia por trás do filme

A rodagem de La porta del cielo era um empreendimento arriscado, no momento mais difícil da história de Roma. Para garantir que tudo corresse bem, o Vaticano nomeou Monsenhor Giovanni Battista Montini, então Secretário de Estado, o supervisionor das filmagens. A pedido do Monsenhor Montini, De Sica prolongou as filmagens de La porta del cielo para estender a produção ao máximo, se calhasse até o fim da ocupação alemâ (DPA, 2003). O cineasta pode, assim, continuar negando o convite para ir a Veneza e a Praga, uma vez que devia absolutamente terminar o filme que o Centro Cattolico Cinematografico de Roma esperava dele, e que não terminava nunca...

Os produtores e o diretor estavam igualmente interessados no prolongamento dos trabalhos de filmagem. A razão de uma filmagem que, ao contrário de todas as outras, devia durar além do necessário, é que a produção era na verdade uma grande fachada.

Mais de 1.000 judeus romanos foram deportados para Auschwitz em outubro de 1943. Com La porta del cielo, o Vaticano teria tido a ideia de proteger da deportação tantos judeus alojados em igrejas católicas quanto fosse possível. A produção de La porta del cielo daria trabalho aos perseguidos e evitaria sua captura e deportação.

Embarcando por suas próprias razões nessa missão católica, De Sica acabou de bom grado ajudando o Vaticano a prolongar ao máximo a finalização da película. Era de seu interesse não se desengajar do filme para não ser obrigado a trabalhar para os nazistas, e assim possibilitou aos perseguidos escapar ao cerco nazifascista.

Cada membro da trupe tinha um passe especial para circular. Era uma apólice de seguro de vida em Roma. Alguns usaram o passe para as compras no mercado negro, outros para ajudar a Resistência. Como bem observou Christian De Sica,

O clima de guerra, a perseguição aos judeus, a espera da libertação [...], a ficção do filme e a extraterritorialidade garantida pela Basílica transformaram o lugar sagrado num cenário de filme de Buñuel, no qual as pessoas eram praticamente forçadas, de forma quase claustrofóbica, devido às perseguições que ocorriam do lado de fora, a permanecer trancadas ali dentro. (DE SICA, C. 2008).

Apesar dos enormes perigos, parece ter sido uma atividade prazerosa para Montini, que se tornou, em 1963, o Papa Paulo VI. Ao lado de De Sica durante as tomadas de La porta del cielo em abril de 1944 ele visivelmente se diverte no set de filmagem.

3. Os sets de filmagem

Segundo De Sica, o filme começou a ser rodado no porão de uma igreja no quarteirão Salario de Roma, dentro do qual, com o perigo dos rastreamentos alemães, a equipe se fechou com comida e cobertores. Boa parte da ação do filme transcorre nos vagões de um trem ocupado por doentes que vão a Loreto na esperança de um milagre. Esse chamado “trem branco” foi recriado nos subterrâneos da igreja. (DE SICA, C 2008). Curiosamente, o “trem branco” dos doentes evocava os perseguidos do regime nazista: judeus, homossexuais, opositores políticos.

Não podendo deslocar-se até Loreto para rodar a última sequência do filme, De Sica pediu ao bispo pároco da Basilica di San Paolo Fuori le Mura (Basílica de São Paulo Fora dos Muros), uma das quatro igrejas pontifícias de Roma, o consentimento para ali terminar as filmagens. Obteve a concessão e ali reproduziu o Santuario della Madonna di Loreto (Santuário de Nossa Senhora de Lorerto).

A Basílica era um território vaticano, gozando da imunidade concedida pelo Direito Internacional à sede dos agentes diplomáticos dos Estados estrangeiros, conforme o Tratado de 1929. Contudo, De Sica teria sido alertado pelo Monsenhor Montini de que as autoridades nazifascistas sabiam perfeitamente tudo o que estava acontecendo dentro da Basílica. Legalmente, não poderiam intervir nos territórios vaticanos. Mas os nazistas não respeitavam lei alguma.

Ele deveria, contudo, responsabilizar-se pelo comportamento sério e respeitoso dos figurantes pelo grande número deles necessários à cena. De Sica admite que sua promessa foi vã, pois não conseguiu controlar aquela turba:

Como eu podia obter daqueles 2.000 mal educados o respeito para o lugar onde ocorreriam cenas desagradáveis? Enquanto aumentava o bombardeio de Roma que precedeu de poucos dias a entrada das tropas americanas na cidade, alguns dos meus fiéis no Milagre de Loreto faziam suas necessidades atrás das colunas, outros usavam os confessionários para fazer amor. E eu, sentado na grua próxima da câmara, ignorando aquelas ignomínias, gritava: Força, cantem, cantem: ‘Jesus renascido protegei-nos, protegei-nos.’ Fiquei comovido com o êxito maravilhosamente enfático da cena. Deixando a Basílica e desejando agradecer pessoalmente ao bispo, este recusou dar-me a mão e pediu-me gentilmente que eu saísse de seu escritório. (DE SICA 2004, 88-89).

4. As datas da filmagem

O diretor teria escrito em seu Diário: “O filme não será terminado até que os alemães se retirem de Roma. Se eles ficarem um ano, vamos filmar por um ano; se 10 anos, vamos filmar por 10 anos.” (DE SICA apud MATTHEWS 2012). Desse modo, o fim das filmagens coincidiria necessariamente com a Libertação da Roma. As filmagens transcorriam sem novas cenas, com a cumplicidade de produtores complacentes e uma equipe que fingia trabalhar, atores que fingiam atuar, diretor que fingia dirigir:

A certa altura, no entanto, chegamos realmente no limite. Temia que a SS nos levasse a todos e nos mandasse para um campo de concentração para acabar com a comédia. [...] Estávamos filmando externas na Basílica de São Paulo. O continuísta se aproxima. Era por volta das cinco da tarde. “Doutor, começamos a filmar?”, ele me pergunta. Respondo com a pergunta usual que eu vinha fazendo há meses: “Estão todos descansados?”. O continuísta ia dizer alguma coisa quando acreditei ter ouvido um ronco à distância. Percebo de onde vem e que é de onde estão os anglo-americanos. Eram os canhões deles. Então dou um berro que faz todo mundo se levantar num pulo. “Vocês não têm feito nada há meses! Esse filme tem que acabar! É uma porcaria! Vou ensinar vocês a se mexerem!”. (DE SICA a STEFANI 1969).

Em 4 de junho de 1944, as tropas aliadas chegaram a Roma e todos [os que trabalhavam em La porta del celo] finalmente puderam sair à luz do dia e se dizerem salvos. (MOLINARI 2021)

O Centro Católico pediu a Vittorio De Sica para prolongar a filmagem até que os aliados chegassem a Roma, o que ocorreu no dia 5 de junho de 1944, um día antes do día D na Normandia. (CONCEPCIÓN 2012).

No dia 5 de junho de 1944, toda Roma parou, as luzes da cidade eram mantidas por geradores da estação ferroviária. No set de La porta del cielo, falsos padres celebravam falsas missas para falsos fiéis que rezavam com falsas famílias que choravam juntas, e o próprio De Sica filmava em falso, fazendo a câmara girar sem filme, porque o estoque de película acabara e era preciso continuar filmando, mesmo sem filme na câmara, até que de repente todos ouviram o som dos tanques americanos chegando. (DE SICA, C 2008).

Se há consenso quanto ao filme ter sido concluído com a libertação de Roma, entre os dias 4 e 5 de junho de 1944, há importantes divergências sobre quando as filmagens começaram.

Segundo Christian De Sica, foi no dia 1˚ de março de 1944. (DE SICA, C 2008). A data entra em contradição com o episódio mais sinistro supostamente ocorrido durante as filmagens, quando, na noite de 3 para 4 de fevereiro de 1944, um furioso tenente Pietro Koch, célebre torturador que chefiava um departamento especial da polícia da República Social Italiana conhecido como a “gangue Koch”, que operava em Roma e Milão cometendo crimes e torturando judeus e opositores (Koch seria fuzilado depois da Libertação), irrompeu com suas hordas facistas na Basílica e, num “descuido da produção”, levou 60 judeus, deportados para campos de concentração. (PIQUÉ, 2003; ALGAÑARAZ 2003; KURIOSO 2005).

Na verdade, as SS invadiram a Basília violando as leis internacionais e os tratados de 1929 duas vezes: em 9 de setembro de 1943 e na noite de 3 para 4 de fevereiro de 1944. Houve grandes protestos internacionais. Talvez, depois disso, De Sica a tenha chamado de “fortaleza sitiada” (SCHÜMER 2003), considerando-a um local mais seguro que outros, graças aos protestos contra as invasões. (BONACCORSO 2020).

Mas se as filmagens começaram no dia 1˚ de março de 1944 como afirmou Christian De Sica, o episódio da invasão da “gangue Koch” não ocorreu durante as filmagens num “descuido da produção”. Às datações divergentes somam-se às imprecisas lembranças sobre a duração das filmagens:

Os trabalhos de filmagem duraram quase um ano. E eu regularmente dizia que não poderia aderir ao convite de ir a Veneza ou a Praga porque devia absolutamente terminar o filme que o Centro Católico Cinematográfico de Roma esperava de mim. (DE SICA 2004).

As tomadas do filme se estenderam durante todo o período da ocupação nazista [ou seja, de setembro de 1943 a junho de 1944, o que daria 10 meses]. (DE SICA a STEFANI 1969).

A certa altura, no entanto, chegamos realmente no limite. Temia que a SS nos levasse a todos e nos mandasse para um campo de concentração para acabar com a comédia. [...] Estávamos filmando externas na Basílica de São Paulo. O continuísta se aproxima. Era por volta das cinco da tarde. “Doutor, começamos a filmar?”, ele me pergunta. Respondo com a pergunta usual que eu vinha fazendo há meses: “Estão todos descansados?”. O continuísta ia dizer alguma coisa quando acreditei ter ouvido um ronco à distância. Percebo de onde vem e que é de onde estão os anglo-americanos. Eram os canhões deles. Então dou um berro que faz todo mundo se levantar num pulo. “Vocês não têm feito nada há meses! Esse filme tem que acabar! É uma porcaria! Vou ensinar vocês a se mexerem!”. (DE SICA a STEFANI 1969).

De Sica prolongou as filmagens de La porta del cielo por oito meses, ao invés das habituais quatro semanas. (DPA, 2003).

La porta del cielo fala de milagres. O primeiro milagre - me parece - é o próprio filme, completado após sete meses de trabalho entre dificuldades incríveis. (FLAIANO, 1945 / 1978).

De Sica faz as filmagens durarem seis meses, em vez das habituais quatro semanas. (CARTA CAPITAL, 13 set. 2003).

5. A trama de La porta del cielo

La porta del cielo conta a história da longa viagem de trem de Roma a Loreto de um grupo de operários e camponeses doentes para pedir milagres de cura à Madonna no Santuário da Basilica della Santa Casa de Loreto.

Estranhos passageiros lotam um vagão reservado com exclusividade para eles. Todos são enfermos e devem viajar juntos nesse vagão e não em outro. As pessoas sãs não têm acesso a esse vagão, com a exceção das abnegadas enfermeiras que cuidam dos sofredores e reconfortam as almas infelizes. Durante a longa viagem, alguns doentes recordam os momentos mais traumáticos de suas vidas.

Estes viajantes ganham flashbacks que fornecem mais detalhes sobre as suas desgraças: um menino paralítico acompanhado por uma jovem; um homem aparentemente normal, mas misterioso e solitário, que entra no restrito vagão dos doentes sem estar cadastrado como um de seus passageiros; um operário cego que viaja com seu amigo; uma velha confeiteira que se finge de doente, mas guarda um segredo que a corroi por dentro, almejando obter um milagre para seu patrão.

Flashback 01: o menino paralítico (Claudio Gorini) arrasta-se pelos cantos em cadeira de rodas e muletas, maltratado pelo pai bêbado, sem uma mãe que possa cuidar de si. Ao ver seu pai ser despejado do imóvel por falta de pagamento, o menino foge e se abriga na estação de trem. Agora, apenas sua jovem vizinha (Maria Mercader), que perdeu há dois anos o irmão, o melhor amigo do menino, cuida para que ele não morra de frio e de fome. Ela o toma pelo irmão que perdeu e decide levá-lo até Loreto, certa de que um milagre há de curar suas pernas. Os dois ocupavam-se em fazer enfeites de festa e com a pouca renda que obtinham da venda de seus balões e guirlandas conseguiam sobreviver. Durante a viagem de trem, um engenheiro também paralítico (Giuseppe Forcina), mas rico e empreendedor, fica impressionado com os enfeites que os dois fazem.

Flashback 02: A velha confeiteira Filomena (Elettra Druscovich) trabalha como governanta na casa de um rico senhor que é odiado pelos filhos pequenos, pois ressentem a falta da mãe e, na visão deles, o pai é o culpado pela separação. As refeições são tensas e, no dia do aniversário de um dos meninos, elas explodem à mesa e a precária família parece prestes a se desmoronar. O homem revela então à governanta que pretende contar para os filhos que a culpa é da esposa, que os abandonou, mostrando as cartas de amor que ela trocava com seus amantes. A velha implora que ele não faça isso e parte para Loreto para pedir o milagre do silêncio do patrão, para que os filhos sejam poupados do sofrimento de saber a verdade sobre a terrível mãe que eles amavam.

Flashback 03: Em pleno concerto, um pianista (Roldano Lupi) de sucesso teve a mão paralisada. Os médicos recomendaram diversos tratamentos, mas todos fracassaram. Parece que agora só um milagre poderia fazer com que ele recuperasse os movimentos de seus dedos antes tão ágeis. Carregado de pensamentos sombrios, ele leva consigo uma arma, pois se um milagre não ocorrer em Loreto, ele está decidido a terminar com sua vida, que para ele não tem mais nenhum sentido. Ele é acompanhado de perto por uma enfermeira da Cruz Vermelha (Marina Berti) atraída por sua personalidade sombria. De olho nos movimentos do pianista, a enfermeira acaba descobrindo que ele carrega uma arma e percebe suas intenções, redobrando sua vigilância amorosa.

Flashback 04: Outro desesperado é um operário (Massimo Girotti) que se apaixonou perdidamente por uma interesseira (Elli Parvo). Seu amigo (Carlo Ninchi) resolveu conquistar a garota para provar que ele não devia se envolver com aquela sirigaita. Ele monta um teatro para seduzir a mulher que o amigo tanto deseja subindo com ela no elevador para que todos na fábrica possam testemunhar o beijo que ele vai cravar nos lábios dela. O plano dá certo, mas ele não contou com a reação do amigo, que se sente duplamente traído e publicamente humilhado. A mágoa se transforma em fúria silenciosa e o enganado forja um acidente que deixa o amigo cego. Ele agora acompanha aquele cuja vida arruinou, esperando um milagre que o faça recuperar a visão, aliviando ao mesmo tempo sua alma atormentada pela culpa.

Finalmente, o trem chega a seu destino e todos desembarcam com uma esperança que cresce a cada passo em direção à Igreja, a cada vela ali acesa, a cada oração proferida, a cada benção do sacerdote. O imenso templo antes vazio agora está repleto de velas acesas, de almas infelizes que rezam e cantam. Silenciosamente ou com murmúrios todos imploram por um milagre. De repente, uma senhora paraplégica sente-se iluminada e forte, e decide levantar-se da cadeira de rodas e andar sem as muletas. Ela se levanta e anda, para o espanto das enfermeiras que a cercam, temendo por um tombo.

Figura 1 – O milagre de Loreto em La porta del cielo (1945), de Vittorio de Sica. Captura de tela do autor.

Nenhum dos personagens que acompanhamos, através dos flahbacks de suas vidas, na longa viagem de trem, é contemplado com um milagre. O único milagre que ocorre no filme é o de uma senhora que não fora antes destacada na trama. Mas a multidão dos aflitos sente-se iluminada pela esperança: “Graças ao Senhor! Um de nós foi curado! Um como nós!”. O brado ecoa no santuário e penetra na alma dos personagens que acompanhamos.

Assim como cada doente que segura sua vela integra a comunidade das almas sofridas, a esperança que se encarna no único milagre que Deus concedeu em Loreto, entre milhares de outros que não foram atendidos por Ele, é suficiente para produzir uma miríade de pequenos milagres psicológicos, dando sentido aos flashbacks do filme.

Entendemos, assim, o gesto do músico ao depositar seu revolver sobre o altar da Igreja de Loreto, ao lado da muleta da senhora que se curou: se sua mão permanece paralisada, e se nesse estado ele preferiria morrer, o milagre da senhora paralítica renovou sua fé e curou a ferida de sua alma. Ele sai da Igreja ao lado da enfermeira que se apaixonou por ele, entrevendo com ela uma vida nova e feliz.

O engenheiro paralítico, ao perceber a possibilidade do milagre, sente-se inspirado e confiante para começar um novo negócio com o menino paralítico e sua jovem amiga, os três agora antevendo um futuro feliz de trabalho e prosperidade numa nova família.

Os privilegiados pela trama - crianças ou adultos que aparentemente perderam a fé - vivenciaram em Loreto uma epifania que, verdadeira ou falsa, fez com que recuperassem a fé em Cristo. Eles voltam a ter a esperança de um dia, talvez, terem a saúde recuperada, a mutilação desfeita, as feridas sanadas, a vida feliz anterior ao mal restaurada.

Bonaccorso bem observou que os roteiristas estavam familiarizados com a história do milagre do transporte da Santa Casa da Virgem Maria em Nazaré, arrancada das pedras e carregada por anjos a vários locais em busca de segurança, até Loreto, onde foi definitivamente pousada, e em torno da qual o templo foi construído. A viagem no “trem branco” em busca do milagre de Loreto faz um contraponto à viagem dos anjos, assim como em 1920 a Madonna de Loreto foi consagrada pelo Papa Bento XV (1914-1922) a patrona universal da aviação...

O filme também reconstroi fielmente a atmosfera que reinava no interior dos “trens brancos”, a peregrinação moderna aos santuários de Lourdes, Loreto e Fátima. Essas viagens eram organizadas pela Unione Nazionale Italiana Transporto Ammalati (UNITAL). Os roteiristas se inspiraram na história real do fundador da UNITAL, Giovanni Battista Tomassi, filho de um funcionário do príncipe Barberini, que foi a Lourdes em 1903 na esperança de curar-se de uma artrite deformante que o impedia de andar. O nobre havia decidido que, se o milagre falhasse, ele se mataria na gruta de Massabielle, onde Nossa Senhora aparecera a Bernadette. Mas a fé dos peregrinos o demoveu da ideia e ele entregou sua arma ao guia da peregrinação, confiando-lhe o desejo de criar uma fundação para organizar a viagem dos doentes a Lourdes. De volta à Itália, Tomassi criou a UNITAL com a ajuda do jovem sacerdote Don Angelo Roncalli (futuro Papa João XXIII) que o acompanhara na viagem ao santuário. (BONACCORSO 2020).

As viagens do “trem branco” a Lourdes foram proibidas em maio de 1936 no bojo das sanções impostas à Itália pela Sociedade das Nações contra a ocupação da Etiópia. O governo facista e a UNITAL desviaram então os “trens brancos” para Loreto. A sigla UNITAL foi modificada para UNITALSI, com o acréscimo de “Santuari Italiani” (Santuários Italianos) (BONACCORSO 2020).

As modernas peregrinações a Loreto foram, assim, uma bem sucedida manobra do fascismo no interior da milenar tradição católica, uma politização da fé e do milagre tão essenciais à vida cristã do povo italiano. La porta del cielo poderia ser interpretado, desse ponto de vista, como uma propaganda moderna do milagre após sua nacionalização operada pelo fascismo.

A porta do Purgatório

1. A hipótese dos milagres psicológicos

Segundo alguns críticos, o roteiro original de Franci e Fabbri teria sofrido alterações com a entrada do ateu Zavattini, que não teria querido que os milagres ocorressem. Teria havido sérias discussões, e Zavatttini teria conseguido impor seu ponto de vista. Essa hipótese é discutível, uma vez que o mesmo Zavattini não se furtou a criar, em Miracolo a Milano (Milagre em Milão, 1951), um conto de fadas neorrealista repleto de milagres sobrenaturais, anjos emissários de Deus perseguindo a alma fugida do Paraíso de uma senhora que doa ao filho adotivo (que ela encontrou bebê atrás de um reolho de sua horta) uma pomba que realiza desejos e faz vassouras voarem até a porta do céu.

Além disso, na sequência final na Basilica de Loreto ocorre um milagre: a senhora paralítica consegue andar, sendo suas muletas depositadas sobre o altar em agradecimento e prova da graça recebida. Pode-se interpretar (e De Sica estimulou essa interpretação em entrevistas) que a paralisia seria um caso de histeria, e por isso o milagre ocorrido não seria verdadeiro. Mas em nenhum momento a histeria da senhora foi revelada no filme. Ao contrário dos personagens que acompanhamos na viagem de trem e cujos problemas psicológidos conhecemos através dos flashbacks dos eventos traumáticos de suas vidas, a senhora agraciada com o milagre de Loreto só aparece nessa sequência e nada sabemos sobre sua vida.

Essa é a genialidade do roteiro: do único milagre de Loreto não temos nenhum flashback psicológico do evento traumático e não podemos, assim, afirmar que se trata de um milagre real ou de um milagre psicológico. Essa ambiguidade foi evidentemente calculada pelos roteiristas como um compromisso entre o catolicismo de Fabbri e o ateísmo de Zavattini, de modo a contemplar tanto a visão católica quanto a visão marxista do milagre.

2. As versões contraditórias

Quem teria tido a ideia de salvar judeus e perseguidos políticos com a filmagem prolongada ao máximo de La porta del cielo, até a libertação de Roma da Ocuapação nazista pelos Aliados? Segundo Christian De Sica, na noite em que seu pai convenceu Zavattini a participar do filme os dois estariam jantando num restaurante do gueto e teriam testemunhado a deportação de alguns judeus romanos em dois caminhões, um com mulheres e crianças e outro com homens. Teriam tido então a ideia de reunir os judeus e membros da resistência e trancá-los na Basílica de São Paulo. (DE SICA, C 2008).

Essa versão dos fatos entra em conflito com aquela que assegura ter partido do Vaticano a ideia de salvar judeus e perseguidos políticos ameaçados de deportação através do filme.

O filme não entrou para a história do cinema, mas sua produção ganhou uma nota de rodapé e ainda luta para ser mais do que uma nota. Isso se deve ao fato extraordinário de que, durante as filmagens, entre 1943 e 1944, numa Roma ocupada pelos nazistas, De Sica transformou a Basílica de São Paulo Fuori I Muri numa espécie de abrigo de refugiados.

Surge de imediato uma primeira dúvida: a multidão de figurantes judeus que teriam encontrado sua salvação no refúgio de uma produção do Vaticano teriam se submetido a um trabalho forçado, já que as Leis Raciais excluíam os judeus do mundo do trabalho? Tornara-se uma questão de vida ou morte para os envolvidos permanecer trabalhando em La porta del cielo por menor que fosse sua participação. O trabalho forçado seria, na iminência da deportação, um mal menor, mas não isentaria De Sica e o Vaticano de torturantes questionamentos morais. Eis aqui uma boa razão para o engavetamento do filme.

O filme supostamente impediu que De Sica fosse engajado como o chefe de produção do cinema fascista nos estúdios da República de Salò em Veneza. O filme salvava tanto De Sica de uma colaboração mais comprometedora com os fascistas e os nazistas, quanto seus figurantes e técnicos ameaçados de deportação e extermínio. Mas o número dos eleitos empregados em La porta del cielo permanece impreciso. De Sica teria reivindicado em seus “diários” (inéditos?) a salvação de 3.000 pessoas, sem especificar se judeus ou perseguidos políticos:

O filme não será feito antes que os alemães se retirem de Roma. Se eles ficarem um ano, vamos filmar por um ano; se ficarem 10 anos, vamos filmar por 10 anos. O filme serve como salvação para mim e para um grande número de pessoas. Em dado momento, a Basílica tornou-se uma fortaleza para 3.000 pessoas. (De Sica apud Alberto Melloni, Corriere della Sera, nov. 2008, apud MATTHEWS 2012).

Mais tarde, em suas memórias publicadas em 2004, De Sica reduziu o número de judeus e perseguidos políticos salvos para 2.000 (DE SICA 2004, 88).

No dia 6 de maio de 1945, o escritor Ennio Flaiano, corroteirista e assistente de direção do filme anterior produzido pelo Vaticano, Pastor Angelicus (1942) publicou no semanário Domenica uma nota elogiosa a La porta del cielo e ao seu diretor, citando o número de 800 extras e técnicos sem explictar se eram judeus ou perseguidos políticos:

A porta do céu fala de milagres. O primeiro milagre - parece-me - é o próprio filme, concluído após sete meses de trabalho através de dificuldades incríveis. Você não lê o diário de produção deste filme sem ficar atordoado pela série de incidentes dramáticos que retardou seu curso. Basta lembrar que no dia 3 de junho do ano passado [1944], enquanto a poucos quilômetros de distância a batalha por Roma foi decidida, 800 pessoas entre extras e vários técnicos estavam por ordem do diretor no interior da Basílica de São Paulo, com a intenção de filmar, mostrando um desprezo pela guerra que só Arquimedes compartilharia. De Sica disse que ele os havia trancado, caso contrário, alguns deles teriam tentado tolamente escapar. E riu como se tivesse contado uma boa piada. O filme foi rodado em Roma nos meses da ocupação alemã. Provavelmente teria permanecido inacabado se não tivesse sido uma resposta proposital a essa ocupação, aos atos que a caracterizaram, e até mesmo à filosofia que a havia provocado fatalmente como episódio de uma guerra direcionada mais contra o Homem que contra certas nações. (FLAIANO 1945 / 1978)

Flaiano não explica porque esses figurantes alheios à guerra precisaram ser trancados por De Sica para não fugirem dali. Se fossem judeus e perseguidos políticos fugir desse refúgio não seria a última coisa que desejariam? Contudo, o artigo de Flaiano foi a fonte de muitos comentadores que replicaram sua contagem de 800 pessoas salvas. A explicitação dessas pessoas salvas como “judeus e perseguidos políticos” foi feita, contudo, pelos comentadores.

Em 2000, Christian De Sica chamou seu pai de “Schindler italiano” ao salvar “1.200 pessoas entre judeus, comunistas, homossexuais, prisioneiros políticos e mendigos” (Corriere dela Sera / El país, 30 jul. 2000). Nessa revisão numericamente ampliada da salvação de judeus e perseguidos políticos por De Sica, foram incluídas outras categorias entre os eleitos à porta do céu: homossexuais e mendigos.

Mas em sua autobiografia Figlio di Papà, Christian De Sica refez a conta e cravou o número de 400 judeus e perseguidos políticos salvos (DE SICA 2004). Em outra memória familiar, Di figlio in padre, Manuel De Sica fala menos precisamente em “centenas de fiéis de religião hebraica” (DE SICA, M. 2013, 59).

Outros estudiosos e jornalistas preferiram apostar em 300 judeus e opositores políticos salvos pelo filme (ALGAÑARAZ 2003; ITALIAUSA 2003; PIQUÉ 2003; SCHÜMER 2003; KURIOSO 2010; CONCEPCIÓN, 2012; SAENZ, 2015; VEGA 2015; KALIL 2016).

3. O engavetamento do filme

Uma primeira projeção do filme teve lugar em Roma, no dia 21 de dezembro de 1944, reservada às autoridades ecliesiásticas (DELLA MAGGIORE; SUBINI 2017, p. 15, apud BONACCORSO 2020).

O filme custou 6.700.000 liras e arrecadou pouco mais de 8.000.000 liras, ou seja, quase um fracasso. Bonaccorso atribui a fraca resposta do público à atmosfera de fim de mundo em que o filme foi lançado, em 1945, quando ninguém ansiava em ver um filme realista sobre as misérias da vida (LONERO; ANZIANO 2004, pp. 104-105, 136-137, apud BONACCORSO 2020).

A escassa fortuna crítica de La porta del Cielo é geralmente atribuída ao desgosto do Centro Cattolico Cinematografico pela visão materialista de Zavattini e De Sica, que teriam ficado evidente demais na trama, fazendo com que os ansiados milagres de Loreto não ocorressem, ou só ocorressem nos ânimos dos fiéis.

Mesmo o único milagre visível permanece ambíguo: deve-se atribuir a Deus a causa motora que fez a senhora de muletas andar ou à emoção que a possuiu no auge da euforia religiosa, sendo a sua não uma paralisia orgânica, mas histérica?

Com a libertação de Roma, a Cinecittà transformou-se num campo de refugiados e o estúdio Pisorno di Tirrenia foi usado pelas forças americanas como base logística. O cinema italiano estava quase liquidado.

O filme ganhou uma crítica positiva, mas sem entusiasmo, de Antonio Pietrangeli, na Revista Star, e obteve um retorno limitado de público, logo desaparecendo das salas. Contudo, foi premiado em Veneza e exibido na Espanha, conforme atesta o cartaz espanhol de La porta del cielo: “La película laureada en Venecia”.

Outro mistério que cerca La porta del cielo é o seu desaparecimento. Por que o filme foi “engavetado” pelo Vaticano? Por que ele deixou de circular?

Segundo Molinari, o Centro Cattolico Cinematografico teria tirado o filme de circulação descontente com a visão pouco ortodoxa do milagre na história imaginada pelo comunista ateu Cesare Zavattini.1

Segundo Schümer, circularia um boato de que a Igreja Católica “mais tarde” (ele não precisa quando) rejeitou a promoção e distribuição do filme devido à “bigamia” de De Sica, que vivia simultaneamente com sua esposa e sua amante, a estrela do filme. Mas ele mesmo questiona essa razão: “Na realidade, porém, como relata o Corriere della Sera, as autoridades responsáveis recomendaram o filme às paróquias da Itália.” (SCHÜMER 2003)

À “bigamia” de De Sicca, Concepción acrescenta outra razão para o Centro Católico não ter promovido a película: a estrela do filme abortou o primeiro filho que teve com o diretor. Mesmo assim, a própria Concepción registra que La porta del cielo foi lançado em Madri no cine Rialto no verão de 1953. As críticas da época assinalavam que a espanhola María Mercader era “esposa de De Sica”, casados no civil, em 1952, no México, um matrimônio que não era válido na Espanha franquista nem na Itália católica da época, onde o divórcio não era legal. A censura espanhola não podia aceitar que os dois estivessem casados civilmente, e que ele estivesse casado oficialmente com outra mulher. (CONCEPCIÓN 2012)

Pouco antes de morrer, De Sica ouviu dizer que os negativos originais de La porta del cielo haviam sido destruídos. Chegou a ver na Espanha uma cópia em 16 mm com som incompreensível, o que o desagradou “porque o filme tinha qualidade de forte humanidade e de grande comoção.” (DE SICA 2004, 86-88)

Em 1996, no 53˚ Festival International do Filme em Veneza, La porta del Cielo ganhou o Prêmio Especial do Ofício Católico Internacional do Cinema (OCIC) “pelo esforço em restaurar o filme” realizado pela Fondazione Ente dello Spettacolo (IMDB).

Em 2003, a imprensa noticiou a existência de uma cópia única do filme, em 16 mm, em péssimo estado, pertencente à família de De Sica, no Centro Esperimentale di Cinematografia, a escola de cinema da Cinecittà (CARTA CAPITAL 2003). Haveria ainda duas cópias em 16 mm do filme guardadas nos Arquivos do Vaticano. (KURIOSO s/d)

A Associazione Amici di Vittorio De Sica (Associação Amigos de Vittorio De Sica) promove a restauração de toda a obra do cineasta, mas não há previsão de lançamento de La porta del cielo em vídeo ou DVD. Pudemos estudar o filme a partir de uma exibição da cópia da família De Sica pela emissora italiana RAI: de fato, a cópia estava longe de ser boa.

Em 2012, a Fondazione Ente dello Spettacolo e o Centro Sperimentale di Cinematografia – Cineteca Nazionale promoveram, em colaboração com o Pontificio Consiglio per la Promozione della Nuova Evangelizzazione, na ocasião do “Ano da Fé” (segundo o Papa Bento XVI), a mostra “Cinema e Fede” (Cinema e Fé), que atravessou “todo o arco da história do cinema testemunhando a procura humana pelo infinito” - limitando-se, contudo, ao cinema italiano. A mostra foi aberta em 23 de outubro, no Cinema Trevi (Cineteca Nazionale), em Roma, com a exibição de La porta del cielo, após uma saudação introdutória de S.E. Mons. Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho pela Promoção da Nova Evangelização. (FONDAZIONE ENTE DELLO SPETTACOLO 2012)

O crítico italiano Domenico Pallatella considera o filme uma “película mágica”, saudando o “heroísmo de Zavattini e de De Sica.” (PALLATELLA 2015) Entre os judeus salvos pelo filme ele cita mesmo o nome de alguns famosos: Piperno, Lattes, Carlo Levi e Modena - seria preciso acessar e ler com atenção os diários, as memórias e as cartas deixadas por eles para verificar a veracidade dessa afirmação cuja fonte parece ser Christian De Sica. Consta, por exemplo, que Carlo Levi nem estava em Roma e sobreviveu refugiado em Florença, no Palácio Pitti, onde escreveu Cristo si è fermato a Eboli. (WARD 2007, 1037)

A jornalista israelense Hulda Liberanome foi, contudo, peremptória ao afirmar inexistir memória desses fatos na comunidade judaica italiana, que seria a primeira a reconhecer o feito do grande cineasta. Ela se pergunta onde estão os testemunhos dos judeus salvos: porque não escreveram seus relatos pessoais sobre um acontecimento tão memorável? Que razão eles teriam para silenciar sobre o evento extraordinário de dever suas vidas à realização de um filme, ainda mais realizado por um dos maiores diretores da história do cinema? (LIBERANOME 2002)

Não haveria, no Centro Judaico de Documentação em Milão nenhuma informação sobre o assunto. Na comunidade judaica de Roma, também inexitiria documentos ou testemunhos sobre judeus salvos na produção do filme de Sica. Liberanome se pergunta como é possível que mais de meio século após a guerra as atividades do estimado ator e diretor não tenham sido oficialmente reconhecidas. Líderes da comunidade judaica argumentam que os judeus que se abrigaram no Vaticano poderiam estar agindo por conta própria e não como parte de um elaborado plano de salvação. (LIBERANOME 2002)

Caberia ao Vaticano, que provavelmente conserva a lista do elenco e os documentos da produção de La porta del Cielo, esclarecer a história contada por De Sica sobre a salvação de centenas de judeus e outros perseguidos do nazismo segundo um suposto plano secreto do silencioso Papa Pio XII.

A comprovação desse episódio não apenas tornaria De Sica um dos Justos das Nações, com direito a homenagens em Israel, como também melhoraria consideravelmente a visão negativa que boa parte dos historiadores da Segunda Guerra mantem sobre o papel histórico do Papa Pio XII durante o fascismo, o nazismo e o Holocausto, acusando-o de omissão e até de colaboração.

A Igreja tenta melhor sua imagem e disponibilizou aos seus críticos, no site do Vaticano, 3,5 milhões de documentos sobre prisioneiros de guerra. (DPA. 2003) Mas até agora nada veio à luz sobre os “refugiados judeus” nas filmagens de La porta del cielo.

Sem uma pesquisa apurada nos documentos da produção do filme que se espera estejam guardados nos Arquivos do Vaticano não se pode afirmar até que ponto o emocionante episódio da filmagem salvadora de judeus de La porta del Cielo em pleno Holocausto é verdadeiro ou apenas uma fantasia de De Sica, alimentada por seus filhos, amigos e admiradores.

4. O docudrama familiar de Christian De Sica

Vivendo com Maria Mercader, De Sica não se divorciava de Giuditta alegando não querer fazer a filha Emilia (Emi) sofrer, mesmo depois de gerar com a amante os filhos Manuel, em 1949, e Christian, em 1951. De Sica cuidava das duas famílias e atrasava os relógios das duas casas para festejar o Natal e o Reveillon com as duas mulheres.

Em 1954, a Rissone concedeu o divórcio e, em 1959, De Sica casou-se com Maria Mercader no México. Mas o casamento não foi reconhecido pelo Estado italiano. Mercader e De Sica casaram-se novamente em San Marino, mas para evitar uma denúncia por bigamia na Itália, o cineasta obteve a cidadanía francesa e casou-se pela terceira vez em 1968, em Paris, onde passou a residir. (CONCEPCIÓN 2012)

Emi cresceu com a mãe Rissone e só decidiu revelar-se aos irmãos Manuel e Christian quando eles estavam crescidos. Telefonou para a casa do pai. Christian atendeu e ouviu: “Alô? Sou tua irmã”. Marcaram um encontro e os três se conheceram. Quando o pai soube ficou inquieto. “O que ela disse para vocês?”. Christian respondeu: “Que era nossa irmã! E você, papai, poderia ter dito antes, não?”. Uma vez reunidos, os três irmãos não se deixaram mais. Trabalharam juntos na conservação do legado do pai. Emi o adorava e dedicou sua vida a restaurar seus filmes e organizar mostras. (COSTANTINI 2020)

Quando Emi soube que realizavam um remake de La ciociara pediu ajuda a Sophia Loren para bloquear o projeto, que considerava um insulto à arte de seu pai. Ela saiu vitoriosa da peleja. Vivia em Roma, na casa dos pais, onde na sala brilhava o Oscar de Ladri di biciclette. Com Gianluigi Rondi criou o Prêmio De Sica, que obteve o reconhecimento do Presidente da República. Era casada com Sergio Nicolai (que apareceu em Os dois papas, de Fernando Mereilles) e teve com ele uma filha. (ANTONIO 2020)

Na juventude, Christian De Sica passava férias com a família Rossellini. Chegou a ficar noivo de Isabella Rossellini, mas casou-se com Silvia Verdone, irmã do ator, roteirista e diretor Carlo Verdone e filha de Mario Verdone, um dos maiores críticos e historiadores do cinema italiano.

Christian fez apenas um pequeno papel no último filme de De Sica, Una breve vacanza, ainda era um rapazinho e seu pai morreu dois anos depois. Não puderam trabalhar juntos. Christian tornou-se popular na Itália fazendo dupla cômica com Massimo Boldi nos chamados cinepanettoni, comédias popularescas estreadas no Natal produzidas por Aurelio De Laurentiis, numa tentativa vã de reviver o “grande cinema italiano”. (ANTONIO 2020; GAZZETTA DEL SUD 2021)

O milagre de La porta del cielo voltou à tona quando Costa-Gravas renovou a acusação sobre o silêncio do Papa em Amén (2002). Christian De Sica anunciou então o projeto de um docudrama baseado nas memórias do pai, La porta del cielo, que contaria o episódio da salvação dos judeus pela filmagem de La porta del cielo e que seria igualmente intitulado La porta del cielo: “Estou trabalhando no roteiro há dois anos, talvez comecemos a filmar no próximo ano. Ainda não sei se serei o diretor ou se outra pessoa dirigirá o filme.” (CINECITTÀ NEWS 2002)

A película seria produzida por Fabrizio Lombardo e Carlo Bixio, da Miramax, que teria adquirido os direitos de produção do roteiro que ele escrevera com Graziano Diana. O acordo com a Miramax foi firmado com Stuart Ford, Vice-Presidente Senior das aquisições e operações internacionais. Fabrizio Lombardo declarou: “Como italiano estou entusiasmado em produzir um filme sobre Vittorio De Sica, interpretado pelo filho Christian e produzido com Carlo Bixio. O argumento e a qualidade do material desse projeto me entusiasmaram como nos tempos de La vita è bela de Roberto Benigni.” (MARI 2002)

Christian de fato guardava certa semelhança física com Vittorio De Sica. O projeto tinha para ele um grande significado emocional: estrelado por sua mãe, dirigido por seu pai, escrito pelo seu padrinho Zavattini, La porta del cielo era um álbum de família. E ao desejar encarnar seu pai em plena paixão por Maria Mercader, Christian poderia realizar uma forte fantasia edipiana: ele “mataria” o pai cuja sombra lhe pesara por toda a vida, e “casaria” com sua mãe, ainda bem mais jovem que ele na época do filme.

Em 2003, a grande imprensa glorificou De Sica como “o Oskar Schindler italiano”. (CONCEPCIÓN 2012). Mas a produção da Miramax / Bixio foi reagendada para 2004 após o revés de um plágio de outro diretor italiano, Maurizio Ponzi, que conseguiu rodar rapidamente um filme com trama semelhante: A luci spente (Com as luzes apagadas), titulo que evocava a sala de projeção e os valores anulados pelo fascismo. O filme contava a história um diretor de cinema que no final da Ocupação rodava um filme numa igreja com extras que ali se refugiavam da perseguição nazista.

Os advogados de Christian De Sica analisaram o roteiro de A luci spente para iniciar as ações legais, com Christian alegando ter anunciado seu projeto em 2000 e que ainda pretendia realizar La porta del cielo, pois para seu pai essa história era importante: o filme fizera com que ele encontrasse sua mãe e no plano artístico o levou ao neorrealismo (PIQUÉ, 2003). Na verdade, o encontro entre De Sica e Mercader aconteceu antes do filme, e seu filme anterior I bambinio ci guardano já antecipava o neorrealismo.

Ponzi negou veementemente todas as acusações; era apenas a mesma cor do tempo, meras coincidências, havendo várias diferenças entre as duas histórias. (SCHÜMER 2003). Em 2005, A luci spente (Com as luzes apagadas, 2004) foi lançado na Itália. O filme se passa em 1943 e conta a história das filmagens de Redenzione (Redenção), produzido com o apoio do Vaticano por Ettore Benedetti, que oferece o papel da protagonista, uma nobre que vende seus pertences para ajudar os doentes e necessitados, à famosa atriz Elena Monti. Os acontecimentos são narrados pelos atores e membros da equipe, alguns ligados ao fascismo, outros à resistência.

Pouca repercussão teve uma entrevista telefônica dada por María Mercader à emissora Continental de Buenos Aires, e na qual ela negou a presença de judeus em La porta del cielo. (CONCEPCIÓN 2012). Para desfazer o mal-estar que essa declaração causou em todos os níveis - as mídias encantadas com o novo “Schindler” De Sica; a igreja sonhando com uma resposta a Amém; o incansável projeto de recriação de La porta del cielo por Christian De Sica - assacou-se que só De Sica sabia que havia judeus no set de La porta del cielo, tão secreto era seu acordo com o Vaticano! E pasmem - ele soube manter esse segredo por toda a vida para a estrela do filme, sua amante e esposa Mercader, que supostamente jamais leu as memórias do cineasta!

Felizmente para muitos em 2011 María Mercader faleceu em Roma aos 92 anos. Mais que depressa Christian De Sica, com 60 anos, voltou a anunciar La porta del cielo: “Agora tenho produtores entusiasmados com meu projeto: Marco Cohen, Benedetto Habib e Fabrizio Donvito, da Indiana Production Company, que criou La prima cosa bela, de Paolo Virzì. Eles são muito bons, pessoas sérias. O ponto de partida certo”. A direção estaria a cargo de Peter Chelsom. (IL SUSSIDIARIO.NET 2011).

Christian finalizou o roteiro de La porta del cielo com Graziano Diana (roteirista de Edda Ciano e il comunista). Para interpretar sua mãe, Christian sonhava com Mélanie Laurent (a estrela de Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino). Aleksey Guskov (o maestro de O concerto, de Radu Mihaileanu) já teria aceitado participar do filme. No centro da trama estaria a filmagem de La porta del cielo e a história de amor entre Vittorio e Mercader. (BOGANI 2011).

Em 2012, satisfeito por ter a Indiana Production Company conseguido tornar La primera cosa más bela o candidato da Itália ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Christián externou sua intenção de fazer de La porta del cielo uma superprodução em homenagem à sua mãe recentemente falecida, assim como ao seu pai. (CONCEPCIÓN 2012).

Em 2013, Maunuel De Sica publicou suas memórias, Di figlio in padre, onde dedicou duas páginas a La porta del cielo - o filme do pai e o projeto do irmão. Não trouxe informações novas sobre a misteriosa salvação dois judeus, mas deixou claro que não via com bons olhos o projeto do docudrama familiar:

Imaginem a que porcaria a massa de extras e figurantes reduziu a Basílica durante esses meses de prisão forçada. [...] Um dia, o pároco tomou conhecimento da Sodoma e Gomorra que o local sagrado estava se transformando, e ameaçou com extrema severidade e firmeza expulsar a todos, se o devido respeito por esse lugar não retornasse. Christian tinha como objetivo desempenhar o papel de nosso pai, e queria torná-lo o herói da Basílica de São Paulo: o refúgio que salva centenas de fiéis da religião judaica. Quando me pediu uma opinião sobre o projeto, fui desfavorável. Primeiro, a ele interpretar De Sica. Seria melhor que ele se limitasse à direção, chamando um grande ator, talvez do Leste, que nem se parecesse com o pai em traços somáticos. Inevivelmente Christian acabaria por fazer uma emulação, como acontece em todas as imitações, até mesmo a mais perfeita. Também sugeri respeitar a verdade histórica, para evitar que sua versão falsa provocasse a insurreição de toda a comunidade judaica romana. Respondeu que não era seu desejo fazer o papel do meu pai, mas uma reivindicação do produtor. Colocada ao corrente do que Christian pretendia, minha mãe se limitou a responder: “Antes de realizá-lo, espere até que eu esteja morta!”. Minha mãe faleceu no dia 26 de janeiro de 2011. O projeto, temporariamente deixado de lado, permaneceu largado no canto. (DE SICA, M 2013, 58-59).

Em 2014, Christian De Sica revelou à imprensa que La portal del cielo viria finalmente à luz, agora numa coprodução da Rai Cinema com a Indiana Production Company. Mas, sem novos alardes depois deste, o trombeteado projeto caiu outra vez no esquecimento.

Em janeiro de 2021, contudo, o reiterado sonho nunca materializado renasceu quando a produtora milanesa 42, fundada por Gianluca Neri, Nicola Allieta, Marco Tosi, Christine Reinhold e Andrea Romeo, responsável pela série documental da Netflix SanPa: luci e tenebre di San Patrignano (2020), anunciou que produziria La porta del cielo. (MOLINARI 2021).

Mas veio a pandemia do Sars-Cov 2 e o projeto foi suspenso. Hoje com 70 anos, Christian de Sica, recuperado de uma forma leve da Covid 19, talvez não possa mais encarnar seu vigoroso pai no episódio das filmagens de La porta del cielo. Mas ainda não desistiu do projeto. (AGI 2021).

O filme original de 1945 continua invisível, sem perspectiva de um relançamento mundial. As restaurações dos filmes de De Sica eram realizadas pelos três filhos do diretor. Manuel morreu em 2014; Emi, em 2021. (IL MESSAGGERO, 2021). Diante das tentativas fracassadas de Christian de filmar La porta del cielo, caberá ao neto de Vittorio De Sica, o filho de Christian e já diretor Brando De Sica, ou mesmo ao outro neto de Vittorio De Sica, o filho de Manuel, o já também diretor Andrea De Sica, realizar o eternamente adiado docudrama da família?

Alguns segredos são levados para a tumba e enterrados para sempre. Talvez os mistérios, as dúvidas, as histórias nebulosas que cercam La porta del cielo nunca se esclareçam e o filme permaneça um enigma que recusa ser decifrado. Outro filme com o mesmo título, Heavens Gate (O portal do Paraíso, 1980), superprodução de 115 milhões de dólares, levou a United Artists à falência e acabou com a carreira do talentoso diretor Michael Cimino. Maldições do Paraíso aos maravilhosos pecadores do cinema?

Notas Finais

1Chiara Molinari. Il miracolo di un film senza miracolo. La straodinaria storia de “La porta del cielo” diventa un film. Bookciak Magazine, 7 jan. 2021.

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