Capítulo II – Cinema – Cinema

The found footage of Werner Herzog’s Grizzly Man

O found footage do filme O Homem Urso, de Werner Herzog

Filipe Freitas Chaves

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Luiz Roberto Pinto Nazario

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Abstract

Thomas Elsaesser (2014) presents us with a timely definition for found footage films, which consists of using archival material to create new contexts for those found images, which in turn allows for new associations and meanings that lead to new ideas and understandings. This article contends that Timothy Treadwell’s found footage fell into the hands of the one who could best make use of it, both from a creative point of view and from the perspective that Treadwell’s images would be treated respectfully. The film Grizzly Man (2005), by Werner Herzog (1942-), investigates the life and death of Timothy Treadwell (1957-2003), a conservationist and self-proclaimed savior of the Alaskan grizzly bear. He spent thirteen summers among these animals before being killed by one, together with his companion Amie Huguenard (1966-2003). Had some of Treadwell’s footage, seen in Herzog’s film, been used in a different context, the creation of a caricatural image of the adventurer would not have been unlikely. Werner Herzog has an extensive and successful career. For Lúcia Nagib, he tries, through cinema, “to recover something like a ‘virgin look’, which will determine, on the one hand, his way of filming and, on the other (as a result of the first), its whole theme”. Thus, considering his entire career as a director, it is unsurprising that upon hearing of a man who lived among wild bears in Alaska and was killed by one of them, Herzog would probably be interested in shooting this story.

Keywords: Grizzly Man, Werner Herzog, Timothy Treadwell, Found footage, Wildlife films.

Introdução

O filme O Homem Urso (Grizzly Man, 2005), de Werner Herzog (1942-), investiga a vida e a morte de Timothy Treadwell (1957-2003), um conservacionista e autodeclarado salvador do urso-pardo do Alasca que passou treze verões entre esses animais antes de ser morto por um deles. Amie Huguenard (1966-2003), companheira de Treadwell, o acompanhou por um momento nessa jornada e tragicamente também perdeu a vida no mesmo ataque.

A ideia que pretendo defender neste artigo é que o found footage de Timothy Treadwell caiu nas mãos de quem, acredito, melhor poderia fazer uso desse arquivo, tanto do ponto de vista criativo, quanto da perspectiva de que as imagens realizadas pelo filmmaker seriam tratadas de forma respeitosa, não o fazendo passar por ridículo. Construir uma imagem caricata do aventureiro não seria improvável caso algumas filmagens feitas pelo próprio Treadwell, que vemos no filme de Herzog, fossem usadas em outro contexto.

O cineasta Werner Herzog, nascido em Munique em 5 de setembro de 1942, possui uma carreira extensa e de sucesso. Ele fez seu primeiro filme em 1961, aos 19 anos. Desde então, produziu, escreveu e dirigiu mais de 60 longas-metragens de ficção e documentários, como Fata Morgana (1971); Aguirre, a Ira de Deus (Aguirre, Der Zorn Gottes, 1972); O enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle, 1974); Nosferatu, Fantasma da Noite (Nosferatu, Phantom der Nacht, 1978); Fitzcarraldo (1982); Onde Sonham as Formigas Verdes (Wo die grünen Ameisen träumen, 1984); Meu Melhor Inimigo – Klaus Kinski (Mein liebster Feind, 1999); para citarmos alguns títulos relevantes antes da produção de O Homem Urso, uma de suas maiores obras-primas. Depois deste, ainda realizaria, entre outros, Encontros no Fim do Mundo (Encounters at the End of the World, 2007) e A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Die Höhle der vergessenen Träume, 2010), aclamados pela crítica e pelo público. Além de filmes, Werner Herzog publicou mais de uma dúzia de livros de prosa, dirigiu séries, além de ter atuado em filmes e séries nas quais ele não dirigiu. Podemos considerá-lo, portanto, um cineasta-artista versátil.

Para Lúcia Nagib, que escreveu Werner Herzog: o cinema como realidade, em 1991, o diretor alemão, através do cinema:

[...] tenta recuperar algo como um “olhar virgem”, que vai determinar, por um lado, seu modo de filmar e, por outro (em decorrência do primeiro), toda a sua temática. A ânsia de conseguir a imagem “antes nunca vista” o afasta dos casos banais da vida corriqueira e o leva às narrativas heroicas e míticas, e aos personagens marcados pela diferença – os loucos, os deficientes físicos, os superdotados, os marginalizados sociais. Assim, seus filmes raramente se detêm nas paisagens urbanas […]. Herzog vai buscar nas selvas, nos desertos, nas montanhas escarpadas, nas geleiras imagens inéditas, que o espectador possa reconhecer como reais, mas que lhe sejam até então desconhecidas (Nagib 1991, 21).

Nesse sentido, pensando em toda a sua trajetória como realizador, é de se esperar que, ao saber de um homem que vivia entre os ursos selvagens no Alasca e fora morto por um deles, Herzog provavelmente se interessaria por contar a história. Mas não foi bem assim que aconteceu. O próprio diretor conta como ele chegou até ela em uma entrevista para Scott Simon, na rádio pública americana NPR:

Eu não estava realmente atraído pela história. Às vezes, esses personagens que eu amo tropeçam em mim, na minha vida. Erik Nelson, que produz programas para o Discovery e a National Geographic – ele tem uma mesa bagunçada com papéis, vídeos e livros espalhados. E eu estava olhando dentro dos bolsos – em todos os lugares porque havia perdido meus óculos de leitura. E estou olhando vagamente para a mesa, mas ele acredita que vi algo em particular, e me mostra um artigo sobre Timothy Treadwell e diz: “Leia isto”. Então eu li e imediatamente corri de volta para o escritório dele e perguntei: “Quem está dirigindo?” E ele disse: “Eu estou dirigindo”. E houve algum tipo de hesitação e, com meu forte sotaque alemão, eu disse: “Não... Eu vou dirigir este filme”. E foi isso. Apertamos as mãos e eu consegui (Herzog 2005).

Herzog, então, mergulha no mundo de Treadwell para entender como um ator marginal de Hollywood, que por um tempo foi viciado em álcool e outras drogas, se tornou um defensor dos ursos-pardos. Nessa mesma entrevista para Scott Simon, o diretor alemão afirma: “O Homem Urso é provavelmente um dos meus melhores longas-metragens” (Herzog 2005).

Desenvolvimento

No filme O Homem Urso, Werner Herzog, através de sua voz over e de entrevistas que fez com quem conviveu com o ambientalista aventureiro, narra a epopeia de Timothy Treadwell com os ursos-pardos, mas sem deixar de fazer um contraponto aos ideais do protagonista em alguns momentos.

Treadwell, para muitas pessoas, era apenas um maluco que estava esperando a hora de sua morte, ao viver tão próximo dos animais selvagens. Segundo as palavras de um descendente do povo nativo do Alasca, que cede entrevista a Herzog no filme, Treadwell havia ultrapassado a linha que separa os humanos dos animais silvestres.

A título de curiosidade, biólogos conservacionistas fizeram uma pesquisa para entender os fatores que influenciam e predizem a distribuição e abundância do urso-pardo (Ursus arctos) no Canadá. Nessa pesquisa, detectaram que essa espécie, a mesma com que Treadwell conviveu no Alasca, tem preferência por “paisagens de altitude relativamente alta, encostas íngremes, terrenos acidentados e baixo acesso humano” (Apps et al. 2004, 138). Isso indica que os ursos provavelmente viam Treadwell como um intruso de seus territórios.

Nos últimos cinco verões dos treze que ele passou no Parque Nacional Katmai, no Alasca, Timothy Treadwell filmou os ursos-pardos com os quais convivia e a si próprio, dando dicas, inclusive, de como gostaria que as imagens que produzia fossem montadas. De certa forma, talvez soubesse que não iria editar as filmagens que ele próprio realizava.

Herzog ressalta a morte de Treadwell desde o início do filme ao colocar seu nome e as datas de seu nascimento e morte – Timothy Treadwell 1957-2003 –, logo que ele aparece pela primeira vez na película. Assim, a ideia de sua morte nos acompanha durante todo o filme (Johnson 2013, 508).

Figura 1: Timothy Treadwell e urso-pardo (O Homem Urso 2005).

Ficamos ansiosos em algumas partes, principalmente quando ele fica tão próximo dos ursos selvagens. De certa forma, esperamos saber quando e como ele realmente irá morrer.

Do material de arquivo a que Herzog teve acesso, ele nos conta no filme que há em torno de 100 horas de gravação, tendo sido feitas provavelmente com duas câmeras Sony, das quais vemos uma delas em determinadas cenas, enquanto a outra grava o ativista. É preciso destacar o apuro técnico de Treadwell para fazer as filmagens, tanto pelos enquadramentos belíssimos, quanto para captar momentos mágicos da natureza selvagem, que Herzog nos convida a contemplar em alguns momentos. Vale lembrar que Treadwell utilizava filmadoras camcorders simples, ao contrário das filmadoras extremamente caras e com grande alcance de zoom utilizadas geralmente nos filmes do gênero wildlife films.

O arquivo com o qual Herzog trabalha trata-se de um material found footage (que na tradução literal seria como filmagens encontradas). Thomas Elsaesser, em seu artigo “The Ethics of Appropriation: Found Footage between Archive and Internet”, compara as reivindicações concorrentes sobre material de filme de arquivo. Segundo esse autor, as definições de filmes found footage, com o tempo, tornaram-se mais estreitas e precisas:

Em contraste com o filme de compilação que reúne cenas de material pré-existente, a fim de ilustrar um argumento, os filmes found footage não combinam material, mas compõem o material em uma nova totalidade ou unidade coerente e, portanto, tende a criar novos contextos para as imagens, o que por sua vez permite novas associações (Elsaesser 2014, 4).

Sabrina Tenório Luna nos lembra que o uso do found footage é mais comum no documentário e nos filmes experimentais devido à liberdade artística que esses gêneros permitem. A autora ainda destaca que, no cinema documentário, “o arquivo é usado, muitas vezes, devido ao seu conteúdo discursivo, servindo tanto como elemento de prova, quanto enquanto fonte de investigação” (Tenório Luna 2015, 28).

A transformação do material bruto em filme era incerta nas mãos de Treadwell. Não podemos afirmar como seria; talvez ele poderia fazer toda a montagem com um editor que o orientasse ou simplesmente decidir não editar esse material. Porém, essas mesmas cenas, nas mãos de um experiente cineasta como Herzog, ganham outra proporção.

Em um determinado instante do filme, Herzog narra um momento em que Treadwell filma a si próprio emergindo da mata: “No modo de filme de ação, Treadwell provavelmente não percebeu que os momentos aparentemente vazios tinham uma beleza estranha e secreta” (O Homem Urso 2005).

Nesse trecho do filme, Herzog se atenta para a questão do realismo no cinema que nos faz recordar a reação de Méliès quando viu um dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, como nos conta Jacques Aumont:

Lembramo-nos da surpreendente reação de um dos primeiros espectadores do Lanche do bebê, Georges Méliès. Desdenhando comentar o que é, hoje ainda, o charme do filme, – as caretas da garotinha, seu jogo perverso com a câmera, a atitude incomodada e afetada dos pais –, Méliès só nota uma coisa: no fundo da imagem há árvores, e, maravilha, as folhas dessas árvores são agitadas pelo vento (Aumont 2004, 4).

Christian Keathley observa que os apreciadores da sétima arte fetichizam regularmente detalhes marginais e ocasionais na imagem cinematográfica: o gesto de uma mão, o vento nas árvores. Keathley demonstra que são os momentos fugitivos que interessam mais a quem se propõe a produzir tais encontros cinematográficos – uma prática de observação marcada por um desvio na atenção visual para longe dos principais elementos visuais em exibição, que tem ligação com a origem do cinema (Keathley 2005, 8). “As folhas se agitando ao vento”, era com essa “qualidade material e sensual do cinema ”que Bazin estava tão fascinado (Keathley 2006, 53).

Isso nos remete também ao que Béla Balázs escreveu sobre a novidade histórica do cinema: a câmera, que “revelou novos mundos, até então escondidos de nós: como a alma dos objetos, o ritmo das multidões, a linguagem secreta das coisas mudas” (Balázs 1983, 84).

No artigo intitulado “You must never listen to this: Lessons on Sound, Cinema, and Mortality from Werner Herzog’s Grizzly Man”, David T. Johnson nos lembra “que uma câmera não faz distinções depois que é acionada”. Ela capta tudo o que passa por ela. Esse autor comenta que é nesse instante que encontramos o interesse de Herzog em reanimar questões bazinianas, sobre a ideia do realismo nos filmes. Para Johnson, as cenas mais tranquilas do filme são, portanto,

[...] cúmplices – e nem ao menos se opõem – ao desenvolver um forte vínculo entre a imagem cinematográfica e a mortalidade, porque estabelecem um vínculo fundamental entre a câmera de Treadwell e uma realidade espontânea e incontrolável que existe à sua volta (Johnson 2013, 515).

Figura 2: Timothy Treadwell e raposas (O Homem Urso 2005).

As cenas que Treadwell consegue captar são de uma beleza cinematográfica única. Na maior parte do tempo, Treadwell estava sozinho com os animais e ele mesmo ligava a câmera de vídeo e entrava no quadro para se filmar e o que presenciava na natureza selvagem. É nesse momento que Herzog faz uma defesa do realizador, quando, em uma das cenas, uma pequena raposa tenta rasgar a barraca em que está e ele sai para brincar com ela. O diretor diz através de uma voz em off:

Eu também gostaria de lutar em sua defesa, não como um ecologista, mas como um filmmaker. Ele captou momentos gloriosos tais que o grupo de diretores de estúdio e as suas comitivas nunca sonharam ser possível (O Homem Urso 2005).

Em outro instante do filme, Treadwell está se despedindo com um urso ao fundo da cena, quando, de repente, há um silêncio e uma raposa e seus filhotes passam correndo pelo quadro inesperadamente. Herzog narra da seguinte maneira:

Agora, a cena parece que terminou, mas, como filmmaker, às vezes as coisas caem em seu colo, o que você não poderia esperar, nem mesmo sonhar. Existe qualquer coisa como uma inexplicável magia do cinema (O Homem Urso 2005).

Além das cenas extraordinárias que Treadwell filma com suas duas camcorders, no momento crucial do filme, aos 50 minutos, sabemos da existência de uma fita que registrou o ataque do urso ao casal. Como a câmera permaneceu com a tampa da lente, apenas há o registro do áudio do acontecimento. Nesse instante, as circunstâncias em torno das mortes de Timothy Treadwell e Amie Huguenard ganham ainda mais dramaticidade, quando descobrimos detalhes de suas mortes, através de uma performance estranha do legista que trabalhou no caso. Não duvidamos da veracidade da fita, embora nunca a escutemos. Aqui podemos considerar a fita do ataque como um found audio que apenas Herzog provavelmente tenha ouvido e que pertence a Jewel Palovak, a amiga e ex-namorada de Treadwell que herdou seus pertences.

Figura 3: Werner Herzog e Jewel Palovak (O Homem Urso 2005).

A cena inicia-se com o enquadramento de Palovak com uma das filmadoras de Treadwell no colo. Um homem – que depois sabermos se tratar de Werner Herzog – em primeiro plano, de costas para o espectador, ouve o áudio da fita com fones de ouvido provindo da câmera.

Ele está com sua mão esquerda na têmpora, de olhos fechados, em uma atitude de concentração. “Esta é a câmera de Timothy”, afirma Herzog. “Durante o ataque fatal, não houve tempo para remover a tampa da lente. Jewel Palovak me permitiu ouvir o áudio”, Herzog continua. A câmera dá um zoom in lentamente em Palovak enquanto observamos Herzog na mesma posição de concentração, ouvindo atentamente o áudio. “Ouço chuva e ouço Amie, afaste-se, afaste-se, afaste-se”. Herzog reproduz o áudio que escuta. O filme então corta para uma cena da posição original, e Herzog, após uma longa pausa que leva Palovak a rir nervosamente, diz a ela: “Jewel, você nunca deve ouvir isso”. Herzog diz a Jewel Palovak – e, por extensão, ao público. Depois, Herzog a aconselha a destruir a fita, “porque será o elefante branco em seu quarto a vida toda” (Johnson 2015, p. 508).

Essa é considerada a cena mais perturbadora e talvez a principal de todo o filme. Entretanto, uma cena que acontece um pouco antes dela, onde Treadwell “conversa” com uma raposa que repousa a seu lado – e, novamente, por extensão, com o espectador –, ficamos sabendo de um detalhe da vida pessoal do protagonista que nos é revelador. Herzog comenta que a câmera servia como um confessionário para Treadwell. Nesse momento do filme, ao filmar a raposa, de nome Íris, o aventureiro fala:

Te amo. Olhe pra você. É a melhor raposa pequena. Mas como é que acabei neste trabalho, Íris? Você já ouviu a história alguma vez? Eu estava com problema. Eu estava com problema. Bebia muito. Sabia disso? Você nem faz ideia o que é isso. Mas eu bebia, até ao ponto de eu achar que, ou eu ia morrer daquilo, ou me libertar. Mas nada, nada, Íris, me livrava de... deixar de beber. Nada! Fiz programas de recuperação. Tentei sozinho. Fazia tudo o que podia para não beber, e depois fazia tudo o que podia para beber. E... e estava me matando, até que descobri esta terra de ursos e percebi que estavam em grande perigo, que precisavam de um zelador, de alguém que olhasse por eles. Mas não um bêbado. Não uma pessoa desorientada. Então, prometi aos ursos que, já que eu iria tomar conta deles, eles me ajudassem a ser uma pessoa melhor, e tornaram-se uma inspiração tão grande, e viver com as raposas também, que consegui, deixei de beber. Foi um milagre. Foi um absoluto milagre. E o milagre foram estes animais. O milagre foram os animais. (Pausa) Eu vivo aqui. É muito perigoso. É de fato muito perigoso. Eu fico feliz com estes ursos. Fico tão feliz, tão livre, pareço uma criança com estes animais. É muito legal. E é algo muito sério (O Homem Urso, 2005).

Na entrevista já citada para Scott Simon, Herzog comenta que, de certa forma, “os ursos salvaram Timothy Treadwell tanto quanto ele tentou salvá-los”. Treadwell trata os animais como se fossem seus amigos, de forma infantil. Mesmo sabendo do perigo, ele desconsidera que fazemos parte da natureza e que, por isso, podemos, inclusive, servir como alimento para alguns desses animais selvagens – embora o mais comum seja o contrário – ou simplesmente sermos uma ameaça em seus territórios. Ele vê harmonia na natureza e é nesse ponto que Herzog diverge de seu personagem. Quase no fim do filme, Treadwell vê uma raposa morta e diz: “Oh, meu Deus! Te amo. Te amo, mas não consigo entender. É um mundo doloroso”. Herzog, com sua voz over, comenta:

Aqui eu discordo de Treadwell. Ele parece ignorar o fato de que na natureza há predadores. Eu acredito que o denominador comum no universo não é a harmonia, mas o caos, hostilidade e assassínio (O Homem Urso, 2005).

Em outro instante, Treadwell diz: “Tudo relacionado com eles (ursos) é perfeito”. Herzog o contesta em outra narração over:

A perfeição pertencia aos ursos. Mas de vez em quando Treadwell via-se cara-a-cara com a dura realidade da natureza selvagem. Isso não encaixa na sua visão sentimentalista que tudo na natureza era bom, e o universo em equilíbrio e em harmonia (O Homem Urso, 2005).

O diretor possui essa ideia há muitos anos. No documentário Burden of Dreams (1982), de Les Blank, sobre os bastidores do filme Fitzcarraldo, onde filma na Amazônia, Werner Herzog comenta sobre as dificuldades de se filmar em um local tão inóspito:

(Klaus) Kinski sempre diz que (a Floresta Amazônica) é cheia de elementos eróticos. Não vejo tanto erotismo. Vejo-a mais cheia de obscenidade. A natureza aqui é vil e ordinária. Não veria nada erótico aqui. Eu veria fornicação e asfixia. Enforcamento e luta por sobrevivência e crescimento... e apodrecimento [...] Não há harmonia no universo. [...] Mas, quando eu digo isso, eu digo cheio de admiração pela selva. Não é que eu a odeie. Eu a amo. Eu a amo demais. Mas eu amo contra meu melhor julgamento (Burden of Dreams 1982).

No filme O Homem Urso, há uma discussão contínua entre Werner Herzog e Timothy Treadwell sobre suas visões básicas da natureza. Mas, mesmo discordando do aventureiro, Herzog, desde o início do filme, parece ter se alimentado de uma admiração por Treadwell, como certificamos pela entrevista cedida a Simon e já citada:

Então, é claro, eu discordo e tenho uma discussão, mas é uma discussão – que eu teria com meus irmãos. Eu os amo, mas discuto com eles. E constantemente nas filmagens que ele deixou – cerca de cem horas ou mais – há momentos repetidos em que ele pisa bem no meio dos ursos à distância de um braço e canta para eles e diz a eles o quanto os ama. E eu acho que isso está errado. Você não deve amar os ursos; você deve respeitá-los. Mantenha distância e respeite-os (Herzog 2005).

Figura 4: Timothy Treadwell e urso-pardo (O Homem Urso 2005).

Conclusão

Assim como Werner Herzog amava o caos e a brutalidade da floresta, tendo realizado alguns filmes nela, Timothy Treadwell também amava os ursos, como declarava, mesmo sabendo que poderia ser vítima de um deles, como de fato foi. Infelizmente, sua namorada também foi vítima. Mas, como tudo na vida, o acaso e nossas escolhas possuem consequências que fogem do nosso controle.

Pensando em uma analogia na área do cinema, se colocarmos diretores ou diretoras de fotografia em um mesmo set cinematográfico, a iluminação resultante feita por cada profissional para uma determinada cena será distinta de seus colegas de profissão. Da mesma maneira, se disponibilizarmos qualquer material fílmico que seria utilizado para outra finalidade – o que chamamos found footage – a diversos diretores ou diretoras de cinema e sugerir que façam um filme com aquele arquivo, é certo que resultará em filmes totalmente diferentes. Tudo isso acontece porque cada um de nós tem histórias de vida diferentes, conhecimentos técnicos diversos e uma visão peculiar sobre o mundo em que vivemos.

Para finalizar, voltando ao escopo do artigo, de que as imagens de Treadwell caíram nas mãos de quem deveria ter caído para que resultasse em um filme incrível; penso que os deuses e as deusas do cinema – se é que eles existem –, para fazer jus à audácia – irresponsável –, à coragem e a todo o esforço de Timothy Treadwell fazer o que fez, colocaram à vista de Werner Herzog – um dos maiores documentaristas de todos os tempos – o found footage que resultou na história magnífica de O Homem Urso.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Além da CAPES, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, programa do qual faço parte no Doutorado. Ao meu professor orientador doutor Luiz Roberto Pinto Nazario. Ao professor doutor Leonardo Alvaves Vidigal, que ministrou uma disciplina sobre found footage, que foi quando pensei na elaboração deste trabalho. Agradeço também a Werner Herzog, por me inspirar tanto com seus filmes e livros, dedico a ele este trabalho.

Bibliografia

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Aumont, J. 2004. Lumière, “O último pintor impressionista”. In: O olho interminável. São Paulo: Cosac & Naify. 256p.

Balázs, Béla. 1983. “Nós Estamos no filme”. In A Experiência do cinema: antologia / Ismail Xavier organizador. – Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes. 484p.

Elsaesser, T. 2014. “The Ethics of Appropriation: Found Footage between Archive and Internet”. Found Footage Magazine, Issue 1, 1 -11. Link de acesso: http://2014.doku-arts.de/content/sidebar_fachtagung/Ethics-of-Appropriation.pdf. Acedido em 08 de abril de 2021.

Herzog, Werner. 2005. ‘Grizzly Man,’ Herzog’s Human Nature Tale. Estados Unidos da América. [Entrevista concedida a] Scott Simon. NPR, Washington, D.C. Data da entrevista 30/07/2005. Link de acesso: https://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=4778191. Acedido em 08 de abril de 2021.

Johnson. David T. 2013. “You must never listen to this: Lessons on Sound, Cinema, and Mortality from Werner Herzog’s Grizzly Man”. In: Org. Barry Keith Grand e Jeannete Sloniowski. Documenting the Documentary: Close Readings of Documentary Film and Video. Chapter 30; Wayne State University Press. 507-521p.

Tenório Luna, Sabrina. 2015. “Found Footage: uma introdução”. Esferas. Ano 4, n. 7, Julho a Dezembro de 2015. 27-36p.

Keathley, Christian. 2006 “Cinephilia and history, or, The wind in the trees / Christian Keathley.”. Indiana University Press. 216p.

Nagib, Lúcia. 1991. “Werner Herzog: o cinema como realidade”. São Paulo: Estação Liberdade. 288p.

Filmografia

Burden of Dreams. 1982. De Les Blank. Estados Unidos da América. Flower Films. 95 min.

O Homem Urso (Grizzly Man). 2005. De Werner Herzog. Estados Unidos da América: Discovery Docs e Real Big Production. 104 min.