Capítulo II – Cinema – Cinema

Symbols, religiosity and belonging. Dialogues between the history of Brazil and Africa in three documentaries

Símbolos, religiosidade e pertencimento. Diálogos entre história do Brasil e da África em três documentários

Ivana Denise Grehs

UNESA, BRASIL

Abstract

The persistent search for visibility of the influence of African culture for the history of Brazil, travels through three recently produced documentaries: Àkàrà, no fogo da intolerância; Sankofa: a África que te habita; Chico Rei entre nós. Their narratives promote dialogues between the past and present, religiosity and resistance, culture and ancestral memory, life and death, while exposing the intimate relationship between photography and cinema. Which memory wires do we weave when we connect images of Africa, Bahia, Minas Gerais and Rio de Janeiro, images in which black bodies are the protagonists? Voices that cross the Atlantic Ocean, in both directions, echoes through the ages.

Keywords: Blakness, religion, Africa, photography, documentary

Por que entender as africanidades no Brasil?

Este artigo tem por objetivo analisar três documentários realizados nos últimos dois anos, que estão inseridos em um panorama amplo de pesquisas, estudos e produções audiovisuais de luta contra a persistência do racismo estrutural e intolerância religiosa no nosso país. O que vemos é que, apesar de tantos estudos e esclarecimentos a respeito do legado da cultura africana disponíveis e em constante debate, ainda encaramos grupos de negacionistas da nefasta herança da nossa história escravista.

Nossa intenção neste texto foi estabelecer uma articulação entre os três documentários em questão a partir da análise de três temas que eles têm em comum: os símbolos, a religiosidade e o pertencimento. Todos os três relacionados à africanidade presente na cultura brasileira. Ademais, temos em vista o enfoque à história do tempo presente e sua conexão com o passado. Essas três obras do audiovisual contemporâneo nos apontam para a necessidade de se intensificar e motivar estudos sobre a cultura africana presente na formação cultural do Brasil, bem como esclarecem pontos primordiais sobre o racismo e a intolerância tão enraizados em muitos brasileiros. Os três documentários também apontam para a formação de uma cultura afro-brasileira a partir da religiosidade e do sentimento de pertencimento de coletivos de pessoas negras, assim como desvelam alguns símbolos de África e a importância epistemológica para as identidades de negritude no Brasil.

A partir de trechos específicos de cada uma das obras, buscamos analisar as formas de visualidades destes conhecimentos na linguagem cinematográfica. Escolhemos três temas para nossa análise fílmica das três obras. Nossa articulação será baseada por esses temas que chamaremos de categorias. O que nos pareceu mais pertinente e premente. E são as seguintes categorias: Símbolos, religiosidade e pertencimento. Sabemos que cada categoria abre espaço para muitas questões, ainda assim entendemos ser possível, dentro de toda a complexidade dos temas abordados, uma articulação temática e visual entre esses três documentários citados. Nosso primeiro desafio é provocar uma reflexão que se mostra primordial nos tempos de hoje: entender a história da escravidão e da construção da cultura negra no Brasil a partir de uma cultura africana que remonta também aos tempos de liberdade.

A história não é apenas um apanhado de fatos e personagens que colocamos em uma linha do tempo e apresentamos como algo contínuo e progressivo, a história se faz de forma dialógica com o passado e o presente. Este conceito está presente nos textos de Benjamin (1994) e de muitos outros pensadores atuais, os quais procuram interpretar e aplicar um possível método de pensamento e análise para uma nova forma de compreensão da história do tempo presente. Antes de começarmos nossa análise fílmica, devemos, então, entender um pouco dos estudos de alguns pensadores da negritude e da história africana. De início, nos fazemos as perguntas – O que foi a escravidão? O que ficou como memória da escravidão até os dias atuais?

A resistência à condição de escravizado sempre existiu, desde que o homem começou a escravizar seu semelhante. Sendo assim podemos dizer que há mais de 4.000 anos cada ser subjugado tenta se desvencilhar desta sina. Porém, a luta antirracista precisou crescer com o aparecimento de ideias sobre raças e desculpas biologizantes sobre superioridade de algumas raças sobre as outras. Segundo o prof. Dr. Kabengele Munanga,

(...) o conceito de raça pura foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que houvessem diferenças morfo-biológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes. (artigo eletrônico)

Durante o século XIX, essas ideias tomaram proporções gigantescas com as defesas de cientistas que estudavam frenologia e raciologia, cujos estudos agradavam a classe dos aristocratas latifundiários nas Américas e, em especial, no Brasil. A teoria da raciologia se desenvolveu mesmo após a abolição no Brasil. Consistia em uma pseudociência que hierarquizava as classifiações de raças e justificava as relações de poder e dominação racial que não cessaram após o fim da escravidão legalizada. Ainda durante a escravidão, era o discurso perfeito para os cafeicultores que começavam a desenvolver seus impérios particulares, ao mesmo tempo em que outras ideias, contrárias à escravidão, começavam a populularizar pelo resto do mundo e por entre intelectuais brasileiros, tanto brancos(as) abolicionistas quanto negros(as) libertos(as).

Durante o século XX, foi se desenvolvendo uma interpretação etnosemântica da palavra “raça”. Portanto o que começou como um termo biológico e principalmente botânico, chegou ao século XX como um conceito que define o lugar do sujeito no mundo. O prof. Kabengele Munanga nos lembra que a raça, hoje, é determinada pela “estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam”,e, por isso, a manutenção do temo “raça” para classificar os seres humanos, alimentou e alimenta o racismo no mundo todo. Essas e outras explicações sobre raça, racismo e preconceitos são fundamentais para o entendimento da nossa história da escravidão, da pós-abolição e do racismo estrutural e institucional. Muitos grupos antirracistas como Grupo Geledés, o Alma Preta e outros tantos promovem debates e incitam as pessoas a se informaram sobre as origens do povo brasileiro como um todo, sobre as religiões e as culturas vindas de África e lembram sempre que uma conquista dessa luta antirracista foi o avanço das políticas afirmativas e, especificamente, a implatação da lei 10.639/03, que obriga o ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas.

Esta lei é uma reação da comunidade afrodescendente à herança das relações escravocratas e das teorias raciais que fomentaram a crença sobre desigualdades entre brancos e negros.

É o que nos diz Alexsandro Gomes da Conceição (Conceição 2019). O que de fato tem-se visto é que muitas escolas não conseguem desenvolver esta prática, por sofrer ora resistência dos próprios alunos influenciados por seus pais ora limitações dos(as) próprios(as) professores(as) que não sabem como abordar o tema. Mas o que queremos lembrar e reiterar, aqui, é que faz-se imprescindível a educação da população com relação às nossas origens culturais que devem muito à cultura africana. Talvez com maior conhecimento e informação possamos, no futuro, ter uma geração que conheça melhor sua própria história e possa encarar melhor suas diferenças em comunidade.

Os três documentários que iremos confrontar e analisar neste artigo, podem nos trazer muitos caminhos para futuras pesquisas e com certeza fazem o papel de disseminadores de informação sobre africanidades no Brasil.

Os principais conceitos para análise dos três documentários

Nossa escolha em analisar três documentários produzidos recentemente intenta ressaltar as semelhanças e as diferenças que podemos observar nas abordagens dos estudos sobre africanidades. O que vemos atualmente é que cada vez mais temos esses estudos disponíveis para que todos possam conhecer, digerir e refletir. O primeiro documentário escolhido refere-se a uma série de episódios curtos com relatos das experiências do professor Maurício Barros de Castro e do fotógrafo Cesar Fraga sobre a recente viagem de pesquisa feita à costa africana. Todo o trajeto da viagem foi planejado seguindo os arquivos sobre rotas escravistas. Uma primeira temporada desses episódios já está disponível na plataforma Netflix. O próprio título já sugere muito sobre as intenções do roteiro de Zil Ribas. Chama-se Sankofa: a África que te habita. Dirigido por Adriana Miranda, os primeiros episódios intercalam as fotografias atuais de Cesar Fraga com imagens de arquivo e depoimentos de historiadores.

O segundo documentário que analisaremos é Àkàrà: no fogo da intolerância, realizado pela diretora peruana Claudia Chavez. Apresenta os depoimentos e o dia a dia de três baianas de acarajé intercalando com explicações de sociólogos, pesquisadores e ativistas de lutas anti intolerância religiosa.

O terceiro filme incluído em nossa articulação e análise foi lançado no final de 2020, dirigido por Joyce Prado com pesquisa de Luana Rocha. Sua equipe foi quase que inteiramente composta por mulheres e seu roteiro basicamente composto pelos relatos de comunidades pretas em torno da festa do Reinado. Estamos falando de Chico Rei entre nós.

Aludiremos apenas alguns trechos específicos das três obras ao discorrermos sobre as categorias propostas, os símbolos, a religiosidade e o pertencimento. Abordados em subtítulos separados, as três obras aparecerão na mesma ordem em cada uma das categorias. Antes de iniciarmos vamos estabelecer alguns conceitos elegíveis dentro desses assuntos, pois há dois desafios em nossa abordagem conceitual: a primeira delas é o significado de cada uma das três categorias para diferentes áreas. Costumamos ver uma disputa por essas terminologias em diferentes ramos de estudo. Como exemplo, vemos que a palavra “símbolo” em comunicação visual pode ser entendida de maneira diferente da antropologia ou da filosofia. O segundo desafio é analisar separadamente cada categoria respeitando os entrelaçamentos entre eles.

Sendo assim, primeiro vamos esclarecer de que formas estamos abordando o conceito de símbolo. A primeira definição que nos ocorre é que o símbolo é algo que substitui um pensamento ou uma ideia. Este algo para a área da comunicação diz respeito aos signos, como bem nos legou os estudiosos da semiologia e da semiótica como Charles Sanders Peirce, Ferdinand de Saussure e Pierre Guiraud, sendo este último quem afirma “ser o símbolo de natureza iconográfica” (Guiraud 1983, 41), os signos “constituem portanto a linguagem e fornecem os elementos para a continuação da vida e da cultura de um povo” (Citelle et al 2014, 504 – 506).

Para Carl Jung (Jung 2008, 20) a noção de símbolo é definida como “um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional”, esta noção mergulha nossos pensamentos na área da antropologia e da psicologia. Sem criar nenhum tipo de incongruência, podemos beber da fonte de noção de símbolo do ponto de vista do filósofo Ernst Cassierer (2001), que entende o símbolo de forma mais abstrata e fenomenológica, sem que este símbolo esteja atrelado a uma imagem, um desenho ou um objeto. Ele entende os símbolos como construções do homem, necessárias para sua sobrevivência, sendo estas expressas também por manifestações, atos, movimentos além de apenas uma linguagem escrita ou falada.

A palavra “símbolo” deriva do grego, e significa “juntar”, pois havia na Grécia Antiga o hábito de partir na metade alguns objetos (como anéis ou moedas) e dar a outra metade como lembrança a um visitante, amigo ou parente. Assim, seus descendentes poderiam se reconhecer no futuro e a lembrança seria da amizade preservada (Abbagnano 2012, 1069). Portanto, nossa análise irá abraçar tanto o conceito de símbolo como um signo de comunicação formado de imagens e desenhos como as formas simbólicas adquiridas pela experiência através de práticas culturais e manifestações míticas de um povo. De qualquer forma, as duas maneiras de ver o símbolo corroboram para legitimar identidades e patrimônios culturais.

Nossa segunda categoria abordada nos três documentários é a religiosidade. Para focarmos nossa análise, duas premissas devem ser desenhadas: uma delas é a complexa estrutura religiosa herdada de África e que engloba mais de um panteão mesclando origens geográficas, linguísticas e étnicas. A outra premissa é o sincretismo entre as crenças africanas, indígenas e católicas ao longo de toda história do Brasil. Uma mescla de crenças muitas vezes construída com base em violência e derramamento de sangue, mas que, afinal, constitui o que chamamos hoje de religiões afro-brasileiras ou religiões de matriz africana no Brasil.

Nosso conceito de religiosidade abordado aqui nesta análise irá seguir a ideia de que religiosidade é um estado de espírito de um sujeito ou de um grupo diante de temas sagrados, podendo ou não seguir uma religião específica. Segundo o verbete “religião” no Dicionário de Filosofia (Abbagnano 2012, 997)

(...) convém sublinhar a diferença entre a crença na garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter e conservar tal garantia. Por técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de culto, oração e sacrifício, ritual cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia sobrenatural é a atitude religiosa fundamental, podendo ser simplesmente interior e pessoal.

Os dois termos que usamos acima e suas definições estão totalmente imbricadas à terceira categoria que será abordada: o pertencimento. Para entendermos esse conceito, precisamos lançar mão do nosso entendimento da relação do ser humano com o mundo, o SER no mundo, ou ESTAR no mundo. E os seres humanos estão no mundo dentro de eventos, realidades, relacionamentos, crenças, etc. Assim, entendemos estas três obras fílmicas como registros de atos de pertencimento e afirmação das memórias culturais de determinados grupos. O sentimento de pertencimento é algo que, assim como os símbolos e as crenças religiosas, criamos para poder existir, para continuarmos vivos e entendermos nossas origens. Por isso, sentir-se parte de uma coletividade e escrever sua história a partir do reconhecimento da sua ancestralidade e suas origens é um caminho e uma possibilidade para entender a história. Sendo assim, essa estratégia de olhar para trás e buscar as vozes do passado que ecoam nos dias de hoje, é a que parece ser, intencionalmente, utilizada nestes três documentários. De fato é um convite, olhar para trás e trazer o passado para o presente, e assim poder continuar construindo as memórias.

Assim, o conceito de pertencimento será analisado nos três documentários com a ideia de compreender as ferramentas de resistência e de sobrevivência de comunidades que foram alijadas de seus direitos de viver livre e com dignidade, por séculos. Em Sankofa: a África que te habita, há o sentimento do retornado (negros que conquistaram sua alforria e voltaram pra África) além de identificar e registrar em imagens fotográficas alguns hábitos e trejeitos que também reconhecemos no Brasil. Em Àkàrà, no fogo da intolerância, há o embate sobre o nome dado ao alimento sagrado “acarajé”. A quem pertence a expertise e a herança do alimento acarajé? Os evangélicos teriam direito de chamar o acarajé de “bolinho de Jesus”?. Já no documentário Chico Rei entre nós, o sentimento de pertencimento é evocado na tradição das festas de Reinado que ainda são difundidas entre as comunidades negras.

Os símbolos:

Sankofa, um ideograma Adinkra

Atuando explícita ou implicitamente, os símbolos aparecem nos três documentários de diversas formas. Na série Sankofa: a África que te habita, temos no próprio nome e na caracterização deste nome (a logomarca) um símbolo africano, uma referência a um dos Adinkras. Originário da África ocidental, o conjunto de símbolos conhecidos como Adinkras costumam ser associados a aforismos. Seu uso era relacionado a sua história como forma de contar e registrar suas memórias. Segundo os estudiosos das culturas de África, os adinkras são ideogramas. isso quer dizer que são símbolos gráficos, uma espécie de escrita do povo Acã. Cada um representa um ensinamento, que por eles comunicam os valores passados pelos mais velhos às novas gerações. Elisa Larkin nos elucida que “Adinkra significa adeus, tradicionalmente os adinkras apareciam estampados com tinta vegetal em tecidos de algodão que as pessoas usam em ocasiões fúnebres” (Nascimento, 2008). Ainda com base nos estudos de recuperação e preservação da riqueza epistemológica desses símbolos, há registros de mais de 80 símbolos gráficos adinkras. Sankofa faz parte deste conjunto de símbolos e sua representação gráfica comporta duas opções. Sankofa significa, em sua origem etimológica, “volte e pegue”, o que fica bem claro em uma de suas representações, um pássaro que gira a cabeça para trás e indica a necessidade de um povo reconhecer o seu passado, honrar sua ancestralidade. Seu corpo vai para a frente mas sua cabeça não deixa de vislumbrar o caminho percorrido por seus ancestrais.

Imagem 01 – Logomarca da série com um dos símbolos adinkras.

A outra representação é o coração com suas pontas em volutas e que pode ser usado também de cabeça para baixo. Esta segunda representação foi muitas vezes reproduzida pelos ferreiros africanos e seus descendentes aqui no Brasil. Já não associamos mais essas influências antigas aos novos padrões de grades ou estamparias. Os desenhos foram se repetindo e sendo modificados ao longo do tempo. Muitas grades de ferro em janelas, portas e portões em construções espalhadas por toda a América possuem desenhos parecidos com os padrões da cultura desse povo que vivia, principalmente, na região da atual Gana.

Muitos negros africanos trazidos como escravos já conheciam a arte de fundir o ferro e essa expertise atravessou o Antlântico. Hoje, quando vemos um portal em uma fazenda com os padrões de sankofa, já nem lembramos mais de onde vieram. Ainda arrisco a afirmar, que nem mesmo os filhos dos filhos dos filhos dos primeiros ferreiros escravos sabem de onde vieram as inspirações para os padrões de desenhos que foram sendo ensinados geração após geração.

Imagem 02 – Uma das representações gráficas de sankofa.

Imagem 03 – Portão de ferro, Brasil (foto de acervo pessoal).

Àkàrà, bola de fogo

Já no documentário da roteirista e diretora peruana Cláudia Chávez, a simbologia tratada faz referência a um conjunto de práticas ritualísticas e gestuais a que se dedicam as Baianas de Acarajé e que estão diretamente relacionadas à ancestralidade. Quando tentaram mudar o nome da iguaria de acarajé para bolinho de Jesus, Cláudia Chaves decidiu que era hora de contar essa história.

Desde 2012 que o IPHAN reconhece as baianas de acarajé como Patrimônio Imaterial da Bahia, porém estavam prestes a perder o título quando uma grande quantidade de comerciantes começou a descaracterizar o conjunto patrimonial. Isso quer dizer que passaram a incluir outros ingredientes na receita, a colocar homens para vender ou a não incluir o uso da vestimenta de baiana, além de, em 2017, tentar mudar o nome acarajé para bolinho de Jesus para dissociá-lo das religiões de matriz africana.

É nesta região específica do Brasil, Salvador a capital da Bahia, que a narrativa do documentário é conduzida seguindo duas linhas: as explicações históricas que relacionam toda esta disputa pelo bolinho de feijão como uma atitude descarada de intolerância religiosa e racismo. E, outra linha que entremeia os relatos das baianas de forma bastante delicada através dos depoimentos de Gida, uma baiana do candomblé e também de Líu e Dadai, duas seguidoras de igrejas evangélicas. Seus relatos parecem uma tessitura amigável de aceitação mútua apesar delas não se conhecerem. O tom nos relatos pretende iniciar o documentário com um sentimento afetuoso e de conciliação.

Aos poucos vamos sendo introduzidos na atmosfera conflituosa desta luta pelo nome do bolinho que, de fato, é um conflito muito mais complexo do que apenas “como” devemos chamar o acarajé. Passamos a ouvir os argumentos da socióloga Vilma Reis e outras mulheres que fazem parte desta reivindicação por manter a aura sagrada do acarajé. Ao incluir suas falas, a diretora opta por inserir nestas cenas recortes de jornais como documentos comprobatórios do conflito e, assim, em muitos momentos, aponta para a notória relação com a intolerância religiosa e o racismo. Não há como dissociar o preparo desta iguaria da culinária africana e afro-brasileira ao candomblé.

Na intenção de aproximar o espectador ao que parece ser o ponto central do filme: o bolinho de acarajé. A narrativa documental nos conduz através de closes dos ingredientes, suas cores e os gestos que envolvem seu preparo, sempre acompanhados dos relatos de vivências das cozinheiras. Estes singelos closes, são entremeados pelas entrevistas de historiadores e ativistas da luta de manutenção pelo nome “acarajé” e as tradições que o acompanham. Tradições estas que caracterizam o título de Patrimônio Cultural do Brasil. Este contraste de clima entre as cenas afetuosas e as informações factuais, tensiona a narrativa em direção ao conflito central: o racismo religioso.O ofício que também é fonte de renda de muita gente em Salvador e outras capitais e rende muito lucro na área do turismo, precisa compor o conjunto que é a roupa de baiana e o acarajé feito exatamente como é a receita tradicional. Isso quer dizer que indumentária, ingredientes e tabuleiro precisam ser padronizados.

Começamos pela cozinha no terreiro de candomblé, uma cena introdutória que já nos aproxima do espaço de ritos sagrados, embora os closes fechados também sirvam para preservar um pouco do lugar de mistério no qual os próprio terreiros se colocam como uma forma de proteção e respeito ao lugar. O alimento oferecido é uma forma de oração, e essa tradição que foi ensinada de mãe pra filha é o símbolo em forma de toda uma prática. As escravas de ganho, nos séculos XVIII e XIX, conseguiam economizar parte do que ganhavam com a venda de muitos alimentos para comprar sua liberdade, a dos seus filhos e, algumas vezes, dos companheiros. Quando já eram livres continuavam no ofício e passavam a se chamar de ganhadeiras. Muitos pontos de venda em Salvador mantiveram-se os mesmos por muitas gerações.

A palavra àkàrà significa bola de fogo em iorubá, e a terminação je quer dizer comer. Sua simbologia está ligada à mitologia dos iorubás, um povo proveniente principalmente da região que hoje é a Nigéria. O àkàrà como iguaria, como alimento sagrado, é oriundo de um mito sobre a relação de Xangô com suas esposas, Oxum, Obá e Iansã. Até hoje, o bolinho é ofertado primeiro pra Exú, que é um mensageiro, e depois pra Xangô, Oxum e Iansã. Portanto o gesto e a intenção fazem parte também de toda esta simbologia.

Embora seja muito clara a intenção de levantar a questão da intolerância religiosa, o protagonista do documentário parece ser o próprio bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê. As imagens filmadas em close enquanto as mulheres preparam o quitute dão uma dignidade ímpar ao alimento, escutamos o som do preparo e do azeite fervendo ao ponto de termos a impressão de estarmos sentindo o cheiro. A câmera é afetuosa e nos mantém assistindo a preparação da comida como se nós, os espectadores, fossemos também receber esta oferenda.

Imagem 04 – Still do filme com interferência em fotografia do séc. XIX de Alberto Henschel.

Como forma de criar um sólido embasamento histórico para a defesa do acarajé, são criados videografismos em cenas que inserem fotografias do século XIX como esta de Alberto Henschel produzida em estúdio por volta de 1870, mostrando escravas de ganho vendendo seus alimentos. Devemos lembrar que a imagem com as duas negras vestidas de branco já é uma encenação, pois não era muito comum fotografias externas (in loco) devido às limitações técnicas das câmeras fotográficas. A “mise-en-film da fotografia” (Vale 2016) na narrativa do documentário para aludir às escravas de ganho parece ter restituído aquela verdade perdida dentro do estúdio de Henschel, lá no século XIX. Colocar as imagens de arquivo em um documentário e adicionar um outro elemento, interferindo na imagem, pode trazer de volta a realidade da vida dessas mulheres. De fato, essas mulheres que estão na foto não estão vendendo àkàràs, e sim frutas, mas também não temos registros de que especificamente essas duas negras eram escravas de ganho. No próprio registro fotográfico elas estão representando todas as outras ganhadeiras que estavam nas ruas naquele momento. Ao trazê-las para um documentário de 2020 e inserir sua imagem em um filme que narra a história das ganhadeiras, temos a chance de rever a cena fotográfica envolta em outro cenário. Além disso, ganhamos um ar de realidade ao vermos inserido um outro elemento gráfico relacionado à história contada. A interferência gráfica vivifica a imagem de arquivo, traz do passado para o presente e nos ajuda a refletir. O close nas fotografias que são cobertas com azeite de dendê enfatiza a relação íntima com o ofício de ganhadeira e com o dendê, substância fundamental no seu preparo.

Vemos que ao longo do documentário o próprio àkàrà se mantém alheio às disputas: ele, o bolinho, se mostra acima do bem ou do mal na narrativa. O bolinho, protagonista, não precisa provar sua sacralidade, ele simplesmente “é” sagrado, (pelo menos é assim que esta obra cinematográfica, respeitosamente o apresenta). Ele pode ser oferecido por e para quem quisermos, mas será sempre das filhas de Iansã, e o conjunto gestual desde o preparo até a oferta faz parte das obrigações litúrgicas dessas mulheres, as filhas de Iansã. O àkàrà será sempre um símbolo de devoção.

Congada, símbolo de resistência

Uma devoção também pode ser expressa em forma de festa. No documentário de Joyce Prado, Chico Rei entre nós, essa devoção também vai buscar nas memórias ancestrais toda sua inspiração. O pano de fundo é a história de Galanga, um rei africano raptado em África e trazido para o Brasil junto com muitos de sua tribo. Como acontecia com todos os negros escravizados, ele recebeu outro nome logo que aportou em terras brasileiras. Francisco foi seu nome de escravo. Ele e seu séquito foram levados para a então Vila Rica, hoje Ouro Preto, onde seriam úteis por seus conhecimentos de mineração. Mas até aí nós sabemos através de livros de história, não é mesmo?! Ou seria só uma lenda? Ninguém sabe ao certo. A narrativa deste documentário escolheu seguir uma cartografia que aponta para a história oral e é contada do ponto de vista das memórias ancestrais das comunidades negras, as mesmas que homenageiam até hoje a memória de Chico Rei.

Imagem 05 – Still do filme Chico Rei entre nós.

Os depoimentos reunidos neste filme não só reconstroem a memória de Chico Rei, mas também produzem uma história do tempo presente, reconstituiem uma dignidade perdida e espalham esperança por entre as novas gerações de negros que ainda escutam os ecos da escravidão. A narrativa do filme e dos depoimentos acompanha a trajetória da Festa de Reinado ou Congada que se repete todos os anos na região. A Congada encena um acontecimento do passado, é um evento que substitui um outro evento que já aconteceu, sendo assim representa, segundo Abbagnano (2012, 1061), um signo. A noção de signo parece ser ainda mais abrangente do que a noção de símbolo, pois o signo pode ser um ícone, um índice ou um símbolo, como nos ensinam os teóricos da semiótica (JOLY, 2008). Porém, para uma análise das imagens que se entrelaçam aos relatos cheios de emoção no filme, podemos afirmar que os ícones estão presentes em cada adorno, cor, textura, vestimenta e objeto das cenas. Podemos dizer, também, que os índices estão na cartografia, no espaço, na trajetória e na repetição do evento e dos gestos como formas de “não esquecimento”. E o símbolo, aqui, está representado na preservação do ato de resistência que foi o gesto de Chico Rei. Ele não só conseguiu comprar sua liberdade, guardando parte do ouro que encontrava, mas juntou o suficiente para alforriar seus súditos e ainda construir uma igreja no alto do morro de Santa Cruz, em 1785.

Para comemorar a inauguração da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, foi realizada uma festa na qual seu feitor Chico Rei foi coroado novamente por seus seguidores, aqueles a quem ele havia libertado, e que também eram seus súditos no Congo. É claro que há uma pitada de fantasia em toda essa história, porém isso não deslegitima a existência de Galanga. Além do mais, o floreio com que a história foi sendo repetida entre a comunidade dos negros da região faz parte de uma construção da identidade local e da necessidade de resistência ao racismo estrutural, que sabemos existir ainda no país. E, como aponta Diogo de Vasconcellos, Chico Rei “é mesmo um personagem que trafega entre o mito e a realidade, mas nunca esteve tão vivo na imaginação popular.” (Gomes 2021, 214).

Religiosidade:

Herança de África

Os laços religiosos entre Brasil e África são tão emaranhados que torna-se bastante complexo desvendar com clareza as origens de todas as religiões de matriz africana espalhadas pelo território brasileiro. Nesta primeira temporada do documentário Sankofa, transparece em todos os episódios alguma manifestação de religiosidade do povo nos países africanos por onde passam nossos aventureiros: o professor Maurício Barros de Castro da UERJ e o fotógrafo Cesar Fraga.

Especificamente, vemos, nos episódios 6 e 7, imagens, cores e lugares que desenham um esboço original do que podemos identificar como as origens dos diversos candomblés do Brasil. As imagens de rituais sagrados, que foram assistidas e registradas pela produção do documentário, em muito se assemelham às imagens de práticas do candomblé brasileiro já registradas em fotografias por Pierre Verger e José Medeiros

Imagem 06 – Foto de César Fraga. Ritual religioso em África.

Os episódios são recheados de sequências fotograficas que registram o cotidiano do povo e paisagens por onde a equipe passa. Entre uma sequência e outra, podemos ouvir verdadeiras aulas de pesquisadores como Milton Guran, Muniz Sodré, Paulo de Jesus ou Yeda Pessoa de Castro, uma etnolinguista que nos esclarece o que ela entende a respeito da palavra “nação” nos candomblés da Bahia. Yeda explica que, o uso do termo “nação” para os praticantes dessa religião na Bahia, não tem a intenção de dividir e separar os praticantes oriundos de determinadas regiões de África. Ela defende não ser uma escolha baseada em países de origem, mas sim, uma organização baseada em origens étnico-cultural e religioso. O que sabemos é que tribos de locais diferentes de África trouxeram, em sua bagagem cultural, crenças semelhantes, crenças baseadas em um mesmo panteão. O encontro, em terras brasileiras, dessas tribos de lugares diferentes mas que possuíam as mesmas crenças, deu origem às nações religiosas. A riqueza e a complexidade das imagens produzidas pela equipe nos países por onde eles passam, Gana, Togo, Benin e Nigéria, começa a ganhar uma clareza vibrante na voz da professora Yeda. Ela esclarece que os territórios e a religiosidade de cada povo está relacionado ao panteão a que servem. Quando nos referimos a nação Congo-Angola entendemos que é uma nação que tem como ancestralidade o povo de etnia banto e, portanto, suas entidades devocionais são os inquices. O povo banto é originário de muitos locais em África. Ainda não há estudos definitivos a respeito das origens e da formação dos bantos, mas já se sabe que vieram, principalmente, do atual Camarões, Nigéria, Angola e das Repúblicas congolesas. Os inquices não possuem forma humana, são abstrações da natureza. Por isso, eles precisaram se unir à nação Ketu, de etnia iorubá, pois são eles, os iorubás (também chamados de nagôs) que trouxeram o panteão dos orixás para o Brasil. Os orixás são entidades antropomórficas e, assim, representadas em imagens que ganham uma visualidade mais imediata. Uma terceira nação é identificada no Brasil: são os Jêjes. Estes trouxeram o panteão dos voduns, os mais demonizados pelas elites escravocratas durante o período colonial e imperial. No encontro em terras brasileiras, os três panteões se mesclaram e criaram as diversas religiões afro-brasileiras, ainda em fase de catalogação por parte de estudiosos.

Assim como identificamos uma riqueza enorme de padrões e cores nas vestimentas das mulheres, nos turbantes e contas, dos retratos que recheiam o documentário, também vemos a riqueza cultural de três panteões diferentes que se misturam quando chegam ao Brasil. O fato é que precisaram se mesclar, se misturar, para que pudessem se fortalecer e, assim, juntos, “preservar a memória ligada ao sagrado. Pois não havia outro jeito de ter acesso ao passado se não fosse essa religiosidade transmitida pelos antepassados”, é o que diz o historiador Paulo de Jesus quando entrevistado para um dos episódios de Sankofa. Uma visão mais politizada é elaborada na fala de Muniz Sodré, professor emérito da UFRJ, que compara o terreiro que ele chama de:

Comunidade litúrgica. É uma metáfora espacial da África. Uma reterritorialização da África. Isso é também político, pois é uma forma de resistência e de continuidade da cultura negra. Não são só núcleos de crença religiosa e, sim, formas de cosmovisão africana. (Filme Sankofa. Sodré 2020)

Essas crenças misturadas não ficaram apenas entre os panteões africanos, mas abraçaram também os rituais indígenas e os santos católicos. Há muitos motivos para que isso tenha acontecido. O principal motivo do sincretismo religioso no Brasil foi a vontade de continuar honrando a mãe África e seus orixás, inquices e voduns, mesmo que proibido e criminalizado pelas leis brasileiras, tanto quando do Brasil colônia como quando do império e depois da república.

Oferenda à Iansã e à Santa Bárbara

Se o acarajé é o protagonista do roteiro de Àkàrà: no fogo da intolerância, o assunto central do documentário é o racismo religioso. A socióloga Vilma Reis aponta para as disputas narrativas que acabaram no campo jurídico, pois mudar o nome de acarajé para bolinho de Jesus não era somente uma afronta e um desrespeito ao simbolismo sagrado dessa iguaria aprendida com as bisavós africanas, mas também uma clara diabolização aos cultos sagrados do candomblé. Endemonização das crenças africanas era prática comum por parte da sociedade brasileira nos séculos passados. Os negros africanos chegaram forçozamente às Américas e toda a cultura que traziam juntos, em suas memórias e em suas práticas religiosas, eram reduzidas a um patamar de inferioridade como nos explica o professor Jaime Sodré (em um trecho das cenas de entrevistas do documentário) “era uma forma de justificar a escravização do povo negro africano”.

Assim, para preservar suas memórias, os escravizados se aliavam a alguns sacerdotes católicos que, embora cumprissem seus papéis de catequizar e ensinar a orar para os santos cristãos, também eram sensibilizados pela trágica condição que a escravização impunha a esses fiéis que. Embora não fossem todos os padres católicos que faziam esse papel de ajudar seus pupilos a esconder e camuflar suas crenças, aqueles padres que combatiam a escravidão ganhavam a simpatia dos negros escravos. Em muitos casos, os negros fingiam estar rezando as orações católicas diante das imagens das igrejas, ao mesmo tempo em que estavam trabalhando para honrar seus orixás, e assim, garantir o não esquecimento de suas obrigações de fé. Com o tempo, as imagens dos santos foram se misturando no imaginário religioso e suas crenças tomando novas formas. Para o pastor Djalma Torres o sincretismo “foi uma habilidade de resistir à perseguição cultivando nos orixás a ancestralidade”. Essa é a razão de termos santos católicos equivalentes aos orixás: Exú é Santo Antônio; Ogum é São Jorge; Xango é São Pedro ou São Jerônimo; Omolú é São Lázaro ou São Roque; e Iansã, responsável pelos ventos e tempestades, é Santa Bárbara.

Imagem 07 – Still do filme. A Festa de Santa Bárbara.

O sincretismo foi tão profundo e se entranhou de tal forma no Brasil que já não é mais um subterfúgio para esconder suas verdadeiras crenças. Os santos católicos já fazem parte das liturgias nos terreiros e são amados da mesma forma que os orixás. A cena que registra a festa em frente à Igreja de Santa Bárbara no Pelourinho, em Salvador, confirma esse sincretismo de forma calorosa e vibrante em tomadas de close nos bolinhos de acarajé sendo oferecidos à Santa Bárbara e à Iansã ao mesmo tempo. A atmosfera quente é passada por várias vias: pela cor vermelha predominante na paleta de cor do filme e que fica mais notória na sequência da festa (uma comemoração que acontece todo 4 de dezembro). Pelo calor transmitido por estas mesmas cenas, nas quais o povo na rua se aglomera e esbanja emoção, alegria e suor, em completa confraternização entre fiéis devotos a Ogum, Exú e Xangô, São Jorge, Iansã e Santa Bárbara.O sincretismo religioso é fruto da resiliência dos antepassados escravizados, ato de resistência que acabou por fazer parte da nossa brasilidade.

Sincretismo religioso na Congada

Na narrativa de Chico Rei entre nós, o sincretismo religioso é ainda mais imanente, pois ele está nas origens de toda história lendária de Galanga. Conta-se que foi Santa Ifigênia, uma santa preta da Igreja Católica, a filha de um rei etíope, a mensageira da liberdade. Foi ela que, em visões oníricas de Chico Rei, o instruiu a guardar o pó de ouro em seus cabelos para, depois, na pia batismal, guardá-lo cada dia um pouco. Foi assim que ele comprou sua alforria, mandou construir várias capelas e ainda convenceu outros negros a ajudarem com a mesma estratégia de guadar o pó de ouro nos cabelos, para assim, toda uma irmandade de pretos devotos conseguir a liberdade. Como comemoração dos seus feitos, passou a promover as festas com dança e música que encenavam sua coroação. A primeira festa ocorreu diante da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos que ele havia mandado erigir e cujo altar abriga uma imagem de Santa Ifigênia.

(...) por devoção, Francisco, já chamado por todos de Chico Rei, tinha mandado construir capelas, sendo a principal a do Rosário, onde colocou a imagem de Santa Efigênia. Como um liberto, rico e com prestígio entre milhares de africanos e seus descendentes, passaria a organizar as festas mágico-religiosas, especialmente as congadas. Eram rituais de matriz africana, com instrumentos e danças que tomavam as ruas durante as festividades anuais de Nossa Senhora do Rosário.” (Gomes et al. 2021, 214)

Hoje, chamamos de Congada, Festa do Reinado ou apenas Reinado, as festas que acontecem uma vez por ano pelas ruas de várias cidades de Minas Gerais e estão frequentemente ligadas às inúmeras igrejas do Rosário, uma ligação tão profunda ao ponto de muitos congadeiros se referirem a festa como “Reinado de Nossa Senhora do Rosário”.

Pertencimento:

Memória da escravidão

No epísódio 7 de Sankofa, o professor Maurício afirma ser “Benim um dos lugares mais importantes da África para a memória da escravidão entre Brasil e África” . Ele de fato diz isso não só porque é uma afirmação em diversos estudos sobre a história do negro na África e no Brasil referentes às rotas dos navios tumbeiros (era como chamavam os navios repletos de escravizados), mas também porque esteve lá para a realização desde projeto da série Sankofa. No roteiro estava previsto percorrer os caminhos que nos levam de volta às origens de mais da metade da população brasileira, a intenção foi mesmo retraçar o caminho, explorar com os olhos de hoje, aquilo que já foi contado, e, assim, contar de novo. E foi, da praia de Uidá, também conhecida como Costa dos Escravos, que saíram a maior parte dos tumbeiros. Chegando lá agora, em pleno século XXI, o professor Maurício viu, sentiu e percebeu as semelhanças e as diferenças entre os povos de lá e os povos de cá do Atlântico.

Imagem 08 – Memorial em Benin. Portal do não-retorno.

Há de se compreender por que foi para lá, para a costa de Benim, que muitos negros já libertos aqui no Brasil voltaram carregando uma bagagem de costumes abrasileirados. São os chamados Agudás (ou retornados). Eram grupos de africanos de Gana, Togo e Nigéria que voltaram para a costa de onde saíram as naus que os aprisionaram. Alguns eram também nascidos no Brasil, mas quiseram retornar às terras de seus pais. O que nos conta Milton Guran em entrevista para a equipe, é que novos “grupos sociais se constituíram a partir de uma matriz cultural brasileira”, e muitos descendentes de ex-escravos brasileiros se identificam como cidadãos brasileiros, ao ponto de existir na cidade de Uidá diversos elementos que lembram o Brasil, desde a culinária na rua, parte da arquitetura e também muito da cultura popular. É esse o sentimento de pertencimento mútuo que é alimentado pelo povo da costa da África e o povo negro no Brasil.

Mas por que a memória da escravidão é frequentemente visitada e revivida em monumentos e objetos culturais? O filósofo Walter Benjamin dedicou muitos dos seus textos ao conceito de historiografia materialista. Sua crítica aos historicistas que contam a história como sendo uma linha progressiva de fatos e consequências com datas de vitórias e relatos dos vencedores é sustentado em suas teses Sobre o Conceito de História (Benjamin 1994, 224 e 229). Assim, ele sugere um retorno ao passado para, apropriando-se dele, confrontá-lo com o presente. E, deste confronto, construir dialeticamente o que poderia ser chamada de “a verdadeira história”. Posto que é uma história do caos, uma história contada pelos vencidos, contada ao sons de gritos e gemidos dos antepassados que viam sofrimento onde os vencedores cantavam vitória. Há de se escutar a voz dos vencidos e reconstruir as memórias no presente. É nesta busca da memória de África, que apostam os produtores da série Sankofa e de muitas outras produções com o tema sobre africanidades, negritude, racismo e intolerância.

O desafio no meio do fogo

Em Àkàrà, nos confrontamos com um dos depoimentos mais contundentes no centro de toda esta discussão sobre a intolerância. Durante os vários momentos no depoimento de Jaciara Ribeiro, Yalorixa do Abassá de Ogum, nos sentimos desconfortáveis com os abusos infligidos sobre os praticantes do candomblé. Jaciara relata diversos casos como o de um integrante do seu terreiro que perdeu o emprego logo após assumir que era do candomblé. Dentre vários exemplos em seus relatos, há os casos de adolescentes que estão se iniciando com ela, que estão sob sua proteção e seus cuidados, muitas vezes acabam por sair da escola porque se sentem discriminados quando usam suas contas de devoção, ou apenas quando assumem pertencer a um terreiro.

No momento que Jaciara comenta sobre a desrespeitada Lei 10.639, além de outros casos de racismo religioso que já assistimos no país, os recortes de jornais com essas notícias são inseridos na cena, incluindo um fundo com imagens de pimenta, fortalecendo a atmosfera quente do documentário e fazendo alusão ao alimento apimentado que é o acarajé.

Imagem 09 – Um dos stils do filme, com os recortes de notícias de jornal inseridos na narrativa.

Não conseguimos ficar imunes ao apelo que seu depoimento propõe, indicando o caminho da instrução, da informação, da educação. Sua voz não pode deixar de ser ouvida - não só a dela, mas de todas as mulheres e todos os homens que pertencem à comunidade do candomblé e de outras religiões de matriz africana. Sua voz ecoa desde seus ancestrais e principalmente ecoa de um passado recente, quando, em 2001, Mãe Gilda, uma mulher de 69 anos, líder de toda uma comunidade no Abassá de Ogum, mulher religiosa e comprometida com o sagrado, morreu de desgosto após ver sua imagem e seu nome difamados em um jornal local. Mais uma vítima dos inúmeros ataques sofridos por praticantes de algumas igrejas evangélicas contra religiões de matriz africana.

O dia de sua morte, 21 de janeiro, foi decretado dia do enfrentamento contra a intolerância religiosa, um busto de bronze com sua imagem foi erigido na Lagoa de Abaeté, representando a memória de todas as vítimas que até hoje enfrentam ataques físicos, injúrias, fake news e se sentem ameaçados por certos grupos intolerantes. Mãe Gilda era a mãe de sangue de Jaciara, e com uma voz rasgando o coração, ela relembra o que ocorreu, mas também é essa dor que a mantém lutando contra o que ela chama de “forças tentando desafricanizar o povo brasileiro”.

Como uma linha de urdidura que une as sequências de entrevistas, videografismo e panorâmicas, o documentário Àkàrà é conduzido pelos sons contagiantes dos tambores da trilha sonora criada pelo baiano Letieres dos Santos Leite. As escolhas da percussão foram cuidadosamente elaboradas respeitando os sagrados batuques. Segundo Lazarry,

O uso de tambores no Candomblé é muito importante porque através dos diversos tipos de toque, acompanhados de cânticos, se conecta com as divindades. (Lassary 2017, 32)

Tambores africanos

É ao som do batuque de tambores que também é feita a montagem que entremeia as entrevistas e os registros da congada no documentário Chico Rei entre nós. O termo “batuque” marca a presença da cultura banto, originária de Angola e do Congo, terras do nosso Chico Rei histórico. A etimologia da palavra “batuque” é bem controversa, pois vem da expressão bu-atuka de origem quimbundo do banto, e quer dizer “onde se salta ou se pinoteia”, ou seja: originalmente é uma dança “feita com cantigas onde entra a expressão kubat’uku que quer dizer “nesta casa aqui” (Lopes 2020, 47). Como a língua é viva e as expressões sofrem mudanças com o tempo e com as misturas linguísticas, a expressão bu-atuka do povo banto foi associada ao verbo ‘bater’ dos portugueses, e o que era relacionado a uma dança acompanhada de um tambor, passou a significar a própria batida do instrumento, chegando, então, a palavra ‘batucada’.

E, assim, na batida do tambor, vamos ‘batucando’ a história e a contando do nosso jeito, do jeito que entendemos e sentimos. No roteiro de Chico Rei, Natália Vestri e Joyce Prado buscaram traçar paralelos entre a história de Chico Rei, um símbolo de resistência das comunidades negras, e os muitos ‘Chicos reis’ anônimos que compõem narrativas do período da escravidão e dos períodos subsequentes de pós-abolição. Essas histórias ilustram as tantas dolorosas trajetórias dos negros subjugados até hoje.

Joyce Prado procura coletar grande número de depoimentos nas vozes da comunidade negra, valorizando, assim, os anseios, as memórias, os afetos e que envolvem as práticas culturais que intentamos perpetuar nas festas de congada. Os enquadramentos nos detalhes de cores e texturas dos apetrechos, roupas, coroas e estandartes revelam uma aproximação e um carinho de quem está dentro do cortejo, vibrando junto com o ritmo e pulsando em muitos corações.

A trilha sonora de Sérgio Pererê dá um tom de pertencimento às raízes de mãe África na vibração de um importante símbolo de africanidade: o tambor. A participação de Emicida e o som forte na brasilidade do funk nacional trazem um jogo sonoro em camadas que buscam a harmonia entre a luta e a paz, o sagrado e o profano, o passado e o presente. A cor local e a contemporaneidade do som não esquece de contar uma história do tempo presente através das vozes anônimas dos que pertencem a essa história, dos que guardam as dores e as alegrias, passam e repassam as lembranças por entre as ruas por onde passa a congada, na batida do tambor.

Bibliografia

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Artigo eletrônico

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Filmografia

Àkàrà, no fogo da intolerância. 2020. Documentário de Cláudia Chávez. Brasil: Canal Curta.

Chico Rei entre nós. 2020. Documentário de Joyce Prado. Brasil: Abrolhos Filmes.

Sankofa: a África que te habita. 2020. Série em documentário de Adriana Miranda (diretora). Brasil: Netflix.