Capítulo II – Cinema – Cinema

Star Trek: feminism and identity in the case of Nyota Uhura

Jornada nas Estrelas: feminismo e identidade no caso de Nyota Uhura 1

Mauricio Mario Monteiro

Faculdade Cásper Líbero, Brasil

Ricardo Tsutomu Matsuzawa

Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Abstract

The series Star Trek helped to change the imagination of generations of young people, discussing equality should be placed as a daily practice. This article proposes an initial analysis of the effectiveness of the character of Nichelle Nichols in the television series Star Trek. His character is Lieutenant Nyota Uhura who, a black woman protagonist and in the hierarchy of command of the series. This is a study of the first version of the television series (1966-69) that addresses the issue of black women in the United States through the creation of Gene Roddenberry. The point here is to understand the impacts through the character and the series and not to do an in-depth study of feminism or racism.

Keywords: Star trek; TV; TV series, identity, racism.

Introdução: Antecedentes de uma segregação velada.

Muito embora o nascimento do racismo nos Estados Unidos tivesse fincado suas raízes em dois tipos de pensamento, o calvinismo e o iluminismo vigentes e fortalecidos no espaço de tempo entre os séculos XVII a XIX, o nosso assunto trata do século XX e dos estigmas herdados da escravidão. Nos inícios da Segunda Grande Guerra, já se assistia nos Estados Unidos aquilo que Thomas Skidmore chamou de “divisor de águas”, isto seria a dramatização do pensamento racista em busca de uma justificativa científica que pudesse celebrar o pensamento divisionista de raiz escravocrata:

A II Guerra Mundial dramatizara as consequências do pensamento racista “científico” que dominou a cultura e a política de elite na Europa e nos EUA desde o final do século XIX. A “solução final” da Alemanha nazista mostrou o desfecho trágico das suposições racistas subjacentes à conquista e colonização europeias do mundo “não ocidental” desde o século XV. Auschwitz foi a reductio ad absurdum da escravidão africana, agora vivida no próprio continente europeu (Skidmore, 1992, 50).

A redução ao absurdo como expôs Skidmore, é mais que uma premissa filosófica herdada dos gregos; e no caso da sociedade moderna estadunidense, transformou-se em uma comparação dos piores atos humanos que sempre ancoram nos vários tipos de preconceitos a justificar suas atrocidades. Nos Estados Unidos a política de segregação criou uma terminologia atroz, mas que vingou e incutiu na mentalidade geral a ideia perversa de “iguais, mas separados”. A transformação dessa mentalidade foi lenta: somente sete anos após a Segunda Grande Guerra a segregação foi declarada inconstitucional e somente vinte anos depois, o voto foi estendido a todos.

Não podemos nos esquecer – como um avanço nas questões de segregação ou talvez até uma espécie de remissão - que nos fins da década de 1950, viu-se uma tímida emancipação do negro na sociedade estadunidense. Homens e mulheres, crianças e adultos vivenciaram as piores formas de exclusão. No caso das mulheres negras, imagina-se uma situação provavelmente muito pior quando se pensa em sua participação em todos os setores da sociedade, seja na economia, na religião, na cultura ou mesmo nas práticas cotidianas. A situação era muito mais dificultosa: a entrada da mulher negra no mundo do trabalho foi feita, “na forma mais humilhante e aterradora de todas, pois sua participação naquele mundo também é marcada pela submissão e pelo medo perpétuo” (Souza, 2008, 60). Essa situação, herança de uma sociedade escravista e segregada que insistia em ser tão perpétua quando a exclusão das mulheres negras, ora persistia como prática, ora como estigma. Foi nela que Nichelle Nichols voou para a viagem de dobra. Era preciso avançar mais do que a mentalidade social e, por vezes, amalgamar-se à falsa ideia do capitalismo como um modelo igualitário que permitiria a busca da estabilidade socioeconômica que, na maioria das vezes, só se conseguia após duas vidas.

O preconceito era contra tudo e contra todos, sobretudo, contra as mulheres. Nos anos de 1960 o que restou foi um preconceito velado, um estigma mascarado pelas ideologias e posto em prática no cotidiano. Alice Malsenior Walker, ativista e novelista, autora de “A Cor Púrpura”, é quem melhor descreveu a situação da mulher negra, seja no imaginário restante da escravidão e da segregação racial:

As mulheres negras são chamadas, no folclore que tão apropriadamente identifica o status na sociedade, “as mulas do mundo”, porque nos foi entregue os fardos que todos os demais – todos os demais – se recusaram a carregar. Nós também fomos chamadas de “matriarcas”, “supermulheres” e “cadelas sórdidas e putas”. Sem mencionar “castradoras” e “A Mãe de Safira”. Quando pleiteamos compreensão, nosso caráter foi desvirtuado; quando pedimos carinho, nos entregaram nomes vazios, depois fomos jogadas nos cantos mais distantes. Quando pedimos amor, deram-nos filhos. Em resumo, até nossos dons mais ordinários, nossos trabalhos de fidelidade e amor, foram enfiados em nossas gargantas. Ser uma artista e uma mulher negra, mesmo hoje, reduz nosso status em muitos aspectos, ao invés de elevá-lo: e mesmo assim, artistas nós seremos (Walker, 1984, 237, APUD, Souza).2

Importante seria aqui estabelecer a relação ou, de antemão, pensar em Nyota Uhura. Além de todos os pejorativos apontados por Alice Walker, o que mais chama atenção – e parece ser um nominativo exclusivo da sociedade estadunidense -, é o que ela ponta como “A mãe de safira” (Sapphire’s Mama). Popularizado no cinema e na televisão, o termo faz alusões vilipendiosas às negras altas, maliciosas, teimosas e arrogantes:

A caricatura de safira é um retrato áspero de mulheres afro-americanas, mas é mais do que isso; é um mecanismo de controle social que é empregado para punir as mulheres negras que violam as normas sociais que as encorajam a serem passivas, servis, não ameaçadoras e invisíveis.3

Essa afirmativa é um pouco dúbia, pois retrata ao mesmo tempo, uma condição de submissão e uma situação social de enfrentamento. Ora, parece-nos que destacar-se em algum posto na sociedade ou simplesmente não se curvar diante tanto preconceito e barreiras dissimuladas, era uma espécie de afronta à supremacia branca. De pejorativo e preconceituoso, a resistente e impetuoso, o termo Sapphire’s Mama, acabou por definir uma personalidade que foi compelida a criar uma forma de defesa diante às investidas de segregação. A mulher negra ou a “Mãe de Safira”, de passiva tornou-se forte e de inferiorizada, começou a se destacar na sociedade e no audiovisual. Destacar-se no audiovisual, sobretudo, ou em outras áreas das atividades humanas poderia se tornar um ultraje – com reações mais preconceituosas possíveis - aos pensamentos mais conservadores e retrógrados e à falsa supremacia racial. Aqui vale acrescentar que durante a exibição da primeira temporada de Star Trek, algumas partes do Sul dos Estados Unidos recusaram-se a passar os episódios, dado a participação de uma mulher negra em um programa de televisão.

No nosso caso, Nichelle Nichols e sua personagem, Tenente Nyota Uhura, se tornou uma espécie de “Mãe de Safira” moderna e intergaláctica que procurou sair da submissão aos brancos para alçar uma igualdade. Criada por Gene Roddenbery em 1966, a série Star trek completou no ano de 2016, cinquenta anos de lançamento, a sugerir franquias e releituras (um universo que contempla além das séries televisivas: livros, longas, quadrinhos, games, animações e fan films), como as que se seguem as televisivas: Star trek: The Next Generation; Deep Space Nine; Voyager, Enterprise, Discovery e Picard. A série estreou três anos depois do lançamento do polêmico livro de Betty Friedan, The Feminine Mystique, e que até hoje norteia muitas das prerrogativas da causa feminista 4. Mas Fridan não menciona as negras, as pobres, as trabalhadoras, as segregadas por um motivo ou outro, mas reflete na questão da mulher branca e de classe média dentro de uma sociedade masculinizada; não fala também das mulheres sem marido, com filhos que têm de cuidar sozinhas. Não fala, muito menos, da mulher negra filha de operário – que se tornou prefeito - aceita (com restrições) como atriz na série -, mas estigmatizada fora dela.

Os personagens permaneceram praticamente os mesmos, com algumas trocas de atores e incorporações míticas; os temas, por sua vez, variados, a tratar de guerra e paz, valores morais, futurismo e pós-modernidade. O próprio autor da franquia previa temáticas contemporâneas, além do puro entretenimento em aventuras e ficção. Esse é o ponto desse artigo, basicamente a edição inaugural com suas temáticas da década de 60 do século XX, momento crucial para a recuperação social e econômica após a Segunda Grande Guerra. Os conteúdos ideológicos não podem ser abandonados e as análises devem contemplar as propostas da franquia concomitantes ao período de lançamento. A série original é basicamente política e seus personagens são quase em sua totalidade humanos; entretanto, há entre eles asiáticos, africanos e russos, brancos e negros com patentes e posições hierárquicas bem definidas. Posteriormente, já nas séries seguintes, a Enterprise alocou em sua tripulação seres não humanos, expandindo a ideia de universalização e de futurismo, sempre em busca de novos mundos e outros tipos de vida.

É uma questão de modernidade e cultura, de busca de uma visibilidade negada nos convívios e processos reais do mundo ocidental, fundada pelos conceitos europeus de civilização e pelos propósitos estadunidenses de recuperação econômica e de manutenção de um status quo que serviria de modelo, pelo menos para as sociedades ocidentais. Esse é o caso de nossa personagem, a Tenente Nyota Uhura. Mulher, negra e africana, a presença da personagem de Nichelle representou um avanço nas relações sociais e culturais, sobretudo, em um país de apartheid evidente. Mas essa segregação cruel não é uma postura recente; é na verdade, um conjunto de práticas e ações que se transformaram em tradição (muitas vezes usada para justificar determinados costumes raciais e sociais e, por conseguinte, suas perversidades) e estigma, ou seja, tanto da parte de um quanto do outro, o racismo tornou-se uma cicatriz, muitas vezes incurável.

Essas tais as relações entre o racismo e a modernidade é bem apontada pelo filósofo e estudioso de ciências políticas, Alberto Burgio, que vê claramente uma espécie de recuperação dessa prática logo após o pós-guerra. Essa relação fica bem evidente, “dado que o racismo é, infelizmente, um ingrediente da modernidade”:

O racismo executa duas funções principais (confinantes entre elas): serve para identificar / apontar o culpado ou os seres considerados inferiores para os deuses (portanto, os inimigos). As duas funções são contíguas e muitas vezes entrelaçadas: a inferioridade presumida geralmente aparece como consequência ou causa de culpa. Tanto a inferioridade, quanto a culpa legitimam o comportamento discriminatório (punição, exclusão, subordinação, ao limite de extermínio). (Burgio, 2009, 22)5.

No caso dos negros nos Estados Unidos, essa premissa de punição social, leva à exclusão dos centros de poder e mais ainda, à subordinação por consequência e ao caminho marginal das práticas culturais. É importante, por conseguinte, que uma personagem negra e que ocupa uma função de comando em uma série televisiva seja motivo de estudos e análises dentro de um contexto tão difuso e abrangente e que, por força da personagem e da performance da atriz, venha a eliminar, paulatinamente, as relações de racismo e segregação.

Expansões e teorias

Nesse campo das comunicações, seja das Ciências Sociais Aplicadas ou das Artes, tanto o produto final da obra televisiva ou fílmica quanto as reações e observações do público espectador, estão atreladas às práticas culturais, e é nelas que lançamos a âncora para compreender a personagem, o momento e as funções que toma na série. Inicialmente a proposta é situar o objeto de estudo em um momento histórico relacionado ao desenvolvimento e estabelecimento dos estudos culturais como prática de pesquisa institucionalizado, a utilizar referenciais em textos de Maria Elisa Cevasco, partindo do grupo da Nova Esquerda e chegando ao Materialismo Cultural por Stuart Hall:

A new left foi um movimento que a partir de final dos anos 50 reuniu diversos intelectuais britânicos em torno de novas formas de pensar e de fazer política. Entender esse movimento é relevante, pois constitui a base sócio histórica dos estudos culturais (Cevasco, 2008, 80).

Nessa esteira da chamada Nova Esquerda, não poderíamos nos esquecer dos nomes de Clifford Geertz e Raymond Williams como imprescindíveis para a compreensão e interpretação das culturas. A área mais duradoura de atuação deste grupo – e desses dois nomes importantes - foi exatamente na esfera da cultura, mas dentro do movimento existia uma dicotomia com o Culturalismo, onde surgiu outro nome predominante: o de Edward Palmer Thompson. Juntos, alinhavaram o trabalho intelectual e a militância política. Por sua vez, entra na cena o Estruturalismo, com a atuação mais predominante do marxismo de Louis Althusser6.

Culturalismo está para a antropologia, assim como o Estruturalismo está para a linguística. Essa é uma definição em que tanto uma quanto a outra corrente foram buscar elementos para uma melhor interpretação do indivíduo e da sociedade e dele dentro da sociedade em outros ramos das ciências. Antes, seria preciso ir até Foucault e observar como essas terminologias se ajustam em suas práticas metodológicas. Nesses termos, acrescenta que o estruturalismo seria uma corrente de pensamento, vindo exatamente do formalismo:

O que me surpreende no que se chamou de movimento estruturalista na França e na Europa Ocidental por volta dos anos 60 é que ele era efetivamente um eco do esforço realizado em certos países do Leste, e em particular na Tchecoslováquia, para se libertar o dogmatismo marxista. [...] eis como eu situaria o fenômeno estruturalista, relocalizando-o nessa grande corrente do pensamento formal. (Foucault, 2001, 308).

Foucault pensa o estruturalismo como uma “consciência desperta e inquieta do saber moderno” (Dosse, 2007, v. 1, 425), e como uma tendência nas formas de análises. Isso não se distancia de Roland Barthes que via no estruturalismo uma “passagem da consciência simbólica para a consciência paradigmática, quer dizer, o advento da consciência do paradoxo” (Dosse, 2007, v. 1, 11). Cevasco, por sua vez, pensa o estruturalismo, como uma “busca na cultura da manifestação de dados estruturais de uma sociedade” (Cevasco, 2008, 100).

O culturalismo tem fortes relações com a antropologia e é nela que se sedimenta, estendendo-se para o que se chamou posteriormente de culturalismo político. Cevasco pensa o culturalismo como tendo “a cultura como um todo social, um instrumento de descoberta, interpretação e luta social”; entretanto, é Raymond Williams que exemplifica essa dicotomia, tão comum nas humanidades:

Pode-se assim, insistir em que a composição formal, a estrutura formal, da narrativa ou do teatro revela formas fundamentais de relacionamento social em um nível, porém, que pode ser tomado como determinante, o que resulta em que formas diversas de narrativa ou de teatro sejam vistas apenas (destaque do autor) como variações de uma forma fundamental, e explicada como resultados de evolução interna, ‘sistêmica’, de modo que tal que torna irrelevantes outros tipos de mudança social ou, até mesmo, sua própria história interna, como história. (Williams, 1992, 142).

Ainda é o próprio Raymond Williams que afirma existir na análise estruturalista uma determinada fragilidade, pois ela tende a pensar como irrelevantes “todos os demais tipos de conhecimento”. E mais ainda, Williams acrescenta que tudo isso “pode ser excitante, mas habitualmente não sobrevive a uma verdadeira investigação”. (Williams, 1992,143). Surgido no período entre guerras, basicamente nos EUA e na Inglaterra, o Culturalismo pensa em outras formas de análises e afirma as práticas culturais como determinantes no modo de vida e na compreensão de mundo das sociedades, nisso, recorremos a Clifford Geertz que pensa em símbolos e representações. Propõe duas ideias básicas para compreender o impacto da cultura na vida dos indivíduos e das sociedades:

A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamentos – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros chamam de ‘programas’) - para governar o comportamento. A segunda ideia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismo de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento. (Geertz, 1989, 56).

O conceito de cultura então, não seria um dispositivo engessado e engavetado no campo das teorias, mas uma complexidade de ações e decisões repetidas e ao mesmo tempo mutáveis, com propriedades muito mais difusas. Há de se convir que as duas correntes de pensamento e analise de comportamento estabeleceu uma querela soft no estudo das práticas culturais.

Nessa aparente coexistência conflituosa entre Estruturalismo e Culturalismo, novos tipos de comportamento começaram a refletir a ideia (e ações) ampliada da modernidade. Nessa esteira, e com influências de todos esses tipos de proposições, veio a irrupção de um outra problemática a redirecionar convenientemente o debate intelectual. Trata-se da incursão do feminismo e de outro debate que também tem raízes históricas: a questão da cor e da raça. Naquele momento os autores refletiam sobre esta questão:

A importância de pensar a especificidade da opressão de raças e gênero, no contexto da crise geral da sociedade com um fato que alteraria todas as outras relações: a questão central era pensar a raça e gênero como uma construção que variava de acordo com a época histórica, e que era preciso examinar como ela se articula, ou não, com outras relações sociais (Cevasco, 2008, 106).

E essas articulações eram quase que predominantemente, na esfera da ficção. Muito embora existissem medidas políticas e sociais a estimular tais interações, efetivamente e na vida cotidiana, eram mais dificultosas. Ora, desde o tempo da escravidão, negros e mulheres eram protelados de quaisquer decisões. Os primeiros, pelo conceito de inferioridade justificado pelo pensamento europeu e, sobretudo, pelo calvinismo que ainda carregavam no século XX. Embora muitas vezes velada, surgiu a ideia de que o novelista Hamilton Basso (1904-1964) ironizava em uma frase muito popular até a década de 30 do século XX: “os pretos só fazem três coisas: brigar, fornicar e fritar peixes” (Caldeira 1994, 38).

Com as mulheres não foi diferente. Agora a inferioridade estava atracada no patriarcalismo, no colonialismo e na dependência de um marido e pai severo e cuidador. Não há contradições, o que há aqui é um novo direcionamento do poder e do juízo. O movimento que buscava a igualdade civil de gênero pode ser visto na Inglaterra nos inícios dos fins do século XIX, pelas denominadas sufragetes. Mas foi somente em 1913 através de uma decisão corajosa de uma feminista, Emily Davison, de atirar-se à frente do cavalo do rei, que o movimento começou a surtir efeitos. Com a morte de Emily, o voto das mulheres foi conquistado cinco anos depois e o movimento feminista se alastrou para as décadas seguinte, junto aos movimentos pelos direitos iguais dos negros. Na década de 60 do século XX, pode-se observar uma série de transformações, impulsionadas quase sempre pelos pensamentos e teorias sociais, culturais e antropológicas. O que os ativistas argumentariam, estava, portanto, nas bases dessas ideias. Em boa parte do mundo ocidental, principalmente na França, Inglaterra e Estados Unidos, as movimentações sociais foram constantes: guerra do Vietnam, maio de 68 em Paris, lançamento da pílula anticoncepcional (EUA e Alemanha), movimento hippie, lançamento do livro “A Mística Feminina” de Betty Fridan (1963). Além disso, a virulência de Malcolm X e o pacifismo de Martin Luther King desencadearam um movimento pela igualdade de direitos dos negros afro-americanos. A vida era embalada pelas músicas dos Beatles e Rolling Stones. Por fim, o que sugere o nascimento da nova esquerda (New Left), foi a decepção com os movimentos da antiga esquerda, sobretudo, a burocratização dos partidos da esquerda comunista.

Este era o momento em que se colocava a nova esquerda em paralelo ao que Raymond Williams refletia sobre o materialismo cultural: a cultura como atividade material da sociedade. Em pleno começo dos anos 60 na Inglaterra, onde a versão dominante era daquilo que se denominava de alta cultura, erudita, a grande tradição da literatura inglesa, em oposição à cultura popular, folk. Williams pensava que mais do que difundir grandes obras, uma política de artes tem como objetivo a extensão: as ideias de abrir os canais, facilitar o acesso, sabendo muito bem que com isso se perderá o controle das interpretações. Não se trata mais de impingir valores, mas de viabilizar sua discussão em termos mais igualitários. A questão teórica central para Williams era a da interligação cultural/vida social.

Mesmo as artes consideradas apartadas da vida social comum, devem ser vistas, da perspectiva do materialismo cultural, como parte integrante do processo social, e daí a ênfase, nas obras de Williams, em literatura na história, em escrita na sociedade, em oposição a cultura e sociedade, a fórmula recebida tanto da tradição idealista quanto da materialista. Elas (arte) também produzem significados e valores que entram ativamente na vida social, moldando os seus rumos (Cevasco, 2008, 112).

Tudo isso marcou uma época e desencadeou uma viagem interestelar. E neste contexto de floração de um pensamento cultural de esquerda em terras inglesas que era exibido o primeiro episódio de Star Trek na televisão americana. A totalidade dos fatos históricos na década de 1960 é rica para uma ampla discussão. Mas podemos destacar apenas inicialmente o Movimento dos direitos Civis americanos que tem como marco inicial no primeiro dia de dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, estado do Alabama, quando a costureira negra Rosa Parks entrou num ônibus de volta para casa após um dia de trabalho e sentou-se no banco da frente do ônibus, local proibido aos negros pelas leis segregacionistas do estado.

Um lugar onde nenhuma negra jamais esteve

Existem tantas outras personalidades que podemos destacar neste movimento, dentre eles: Martin Luther King, Bayard Rustin, Phillip Randolph, John Carlos, Tommy Smith, o australiano Peter Norman, o estudante James Meredith, Huey Newton, Bobby Seale, Angela Davis, George Stinney. Nichelle Nichols não fica fora dessa lista. Em plena luta pelos direitos civis, onde em alguns estados americanos era ainda era proibido o casamento inter-racial, ela se tornou uma personagem de destaque em uma série de televisão. Essa incursão proporcionou uma visibilidade da mulher negra como protagonista e em uma função de comando, representando uma possibilidade de igualdade e futuro, onde gerações de jovens segregados podiam almejar fazer parte. O próprio nome da personagem deriva de uma das línguas variantes do banto, comumente falada na Tanzânia, Quênia e Uganda, o suaíli ou suaile: Uhuru significa liberdade e Nyota, estrela. E essa ascendência africana era, em alguns momentos, lembrada até mesmo para atenuar as diferenças da vida real. Em um dos episódios – O Estranho Charlie (Charlie’s Law) - de D.C. Fontana e Gene Roddenberry (15/09/1966), o roteiro apontava essa identidade de Uhura:

Na ponte, a tenente Uhura, com a expressão de seu rosto tão definida quanto a de uma estátua ritual de seus antepassados bantu (sic), estava perguntando pelo microfone: - pode ampliar o sinal, Antares? Mal estamos recebendo sua transmissão. (Blish, 1995, 16)

Entretanto, no roteiro desse episódio há - pelo menos nesse trecho em destaque – duas questões importantes e que se referem ainda à identidade de Uhura. Primeiro a relação com o bantu ou banto: há aqui as mesmas indefinições. Reginaldo Prandi aponta que os bantos vieram:

Da África Meridional, [e] estão representados por povos que falam entre 700 e duas mil línguas e dialetos aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as terras que vão do Atlântico ao Índico até o cabo da Boa Esperança. O termo ‘banto’ foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Willelm Bleek e significa ‘o povo’, não existindo propriamente uma unidade banto na África. (Prandi, 2000, 54).

Como denominativa, a palavra banto parece ser mais abrangente e, por conseguinte, identificativa de uma determinada linhagem africana. Mesmo com as imprecisões, tendemos a identificar sociedades africanas através dessa definição. Seria mais procedente, portanto, pensar o banto como um tronco inicial de diversas ramificações. Como tronco linguístico, o banto deu origem a diversas línguas e povos, como o kimbundu, ndebele, zulu, suazi e xhosa, dentre muitas outras. De qualquer forma, o nome de Nyota Uhura remete, ao mesmo tempo, a uma ancestralidade de povos autóctones da África e a uma definição preconcebida no Ocidente de que tais povos não pertenciam aos conceitos europeus de civilização e cultura. Na série Star trek, tanto a personagem quanto o nome que lhe foi dado, serviram como impactantes na sociedade estadunidense em seus momentos segregacionistas

Em um segundo momento procurou-se reforçar a identidade dada a Nichelle Nichols e à sua personagem: a relação do rosto de Uhura com “a de uma estátua ritual de seus antepassados bantu (sic)”, cria uma afinidade mítica, serena e ao mesmo tempo cheia de parcimônia para resolver um problema técnico – ou mesmo para se tornar um atenuante na sociedade racista. Ora, o olhar do Ocidente para os povos autóctones incorre muitas vezes na substituição da cor pela aura. De selvagem, aberrantemente sexualizado, briguento e comedor de peixes, o negro podia incorporar as possíveis divindades e suas representações metafísicas, ainda atenuante ou caracterizador de gentio, não europeu, animista e politeísta. Numa sociedade calvinista, isso era pejorativo e não era bom! Não se trata de absolvê-lo de sua cor e raça, mas de criar uma nova roupagem para seu estado ainda preconceituosamente repreendido. Era uma obra de ficção ajustado à realidade.

Em uma entrevista, William Shatner tentou explicar essa aproximação com a realidade, a sugerir que a personagem de Nichelle tinha raízes mais profundas e que, por herança, representaria uma parte do povo africano, escravizado e segregado. Seria mais um artificio de reunir a humanidade independente de raça, cor e credo:

O sonho original de Gene era ter um elenco fixo de sete e contar suas histórias numa base de uma por semana. Com isso em mente, ele e eu nos reuniríamos sempre que possível para discutir o que incluir e excluir no meu personagem. Quero dizer, durante toda nossa primeira temporada, sentávamos horas a fio, falando sobre a vida de Uhura. Lembro-me que sugeri a ideia de que ela vinha de um lugar chamado de Estados Unidos da África, que seu povo havia sido da nação banto e que sua língua nativa era o suaíle. Tudo isto realmente ajudou em termos de escrever para o personagem e certamente me ajudou a interpretar o papel. (Shatner e Kreski, 1995, 22).

Muito embora as definições dos povos africanos incorram em imprecisões históricas, sabe-se que vieram de uma larga extensão da costa da África. Portanto, de Cabo Verde, São Jorge da Mina, Angola e Benguela. Propõe-se, aliás, que a escravidão nos Estados Unidos teve início com um africano em 1619, capturado em Angola e vendido a um comerciante da Virginia Company, Edward Bennet. Mas o tráfico era muito maior e em várias regiões da África.

A série retrata a nave espacial Enterprise que faz parte da Federação dos Planetas Unidos em sua missão de cinco de anos de explorar novos mundos, pesquisar novas vidas e novas civilizações. A tripulação era composta por personagens multiétnicos, tendo entre seus principais membros uma africana, um nipo-americano, um russo, um escocês e um alienígena. Seres de várias etnias e origens interagindo com respeito e igualdade. O futuro criado pela série, longe da distopia de algumas produções de ficção cientifica, os humanos não passam por fome ou guerra, não há sexismo ou racismo. Os problemas da humanidade são apresentados através de metáforas e alegorias na alteridade do outro: o extraterrestre. Os temas sociais são apresentados pela sua ausência. Star trek teve um grande impacto cultural por gerações de telespectadores, foi importante pela valorização das minorias e outros grupos discriminados, mas podemos enumerar inúmeras críticas: não conseguiu radicalizar nas discussões de inclusão - o elenco ainda era majoritariamente caucasiano e masculino, os gays nunca foram protagonistas ou receberam destaque no decorrer das séries.

No entanto, podemos destacar relatos sobre a força da personagem Uhura sobre o público: a atriz americana Whoopi Goldberg descreve em entrevista que quando criança, viu a personagem na televisão e correu para contar para a família: “Acabei de ver uma mulher negra na televisão e ela não é uma empregada!” (The Chronicle, 18/09/2010)7. A atriz também afirma que a série foi tão importante em sua vida que, quando criaram a primeira série derivada: Star Trek – A nova geração, ela pediu para fazer parte do elenco. A ex-astronauta da NASA, Mae Jemison, a primeira mulher negra a viajar no espaço, também credita o papel de Nicholls como sua inspiração para querer se tornar uma astronauta8. Talvez o mais importante seja o relato de Martin Luther King: “Eu sou o maior Trekkie no planeta, e eu sou fã mais fervoroso do tenente Uhura” (id. Ibid). O ativista dos direitos civis teria dito isso a atriz Nichelle Nichols, quando eles se conheceram em NAACP (The National Association for the Advancement of Colored People) em Beverly Hills. Quando ela pensou em deixar a série no término da primeira temporada, King foi mais incisivo: “Nichelle, quer você goste ou não, você se tornou um símbolo. Se você deixar a série, eles podem substituí-la com uma menina branca de cabelos loiros. O que você realizou, para todos nós, só será real se você ficar” (The Chronicle, 18/09/2010). Para ampliar esse discurso interestelar em que se imagina ou deseja-se uma igualdade, podemos pensar na afirmação de Appadurai:

A comunicação eletrônica dá uma tessitura nova ao contexto em que o moderno e o global aparecem frequentemente como faces opostas da mesma moeda. Sempre portadora do sentido da distância entre observador e acontecimentos, provoca, não obstante, a transformação do discurso cotidiano. Ao mesmo tempo, fornece recursos para toda a espécie de experiências de construção do eu em todo tipo de sociedade e para todo tipo de pessoas. Permite enredos de vidas possíveis imbuídas da sedução de estrelas de cinema e fantásticos argumentos de filmes, sem que percam o seu caráter de plausibilidade, como noticiários, documentários e outras formas de telemediatização informativa e de texto impresso. Graça a mera multiplicidade de formas que assume (cinema, televisão, computadores e telefones) e a maneira rápida como se move ao seio das rotinas da vida cotidiana, a comunicação eletrônica é uma ferramenta para cada indivíduo se imagine como projeto social em curso. (Appadurai, 2004, 15).

Outro fato relevante e que a série foi protagonista do primeiro beijo inter-racial da televisão americana com as personagens Uhura e Capitão Kirk no episódio “Os Herdeiros de Platão” exibido pela primeira vez em 22 de novembro de 1968. No episódio a nave e os tripulantes da Enterprise ficam reféns de uma raça com poderes telepáticos que usam deles para obrigar os personagens a serem sua diversão particular. O primeiro beijo é ocasionado por uma força que coage os personagens a se beijarem, mas não se tira o mérito e coragem da produção de veicular e produzir este marco televisivo.

A ênfase que colocamos na série e suas personagens, na questão de visibilidade ainda carecem do desenvolvimento mais amplo na discussão feita pelos estudos culturais nas questões de raça e gênero. Aponto algumas afirmações e teóricos para dialogar com o tema, primeiramente podemos lembrar de Bhabha em sua análise da obra de Fanon e como ele observa a complexidade da representação do negro na cultura:

A presença negra atravessa a narrativa representativa do conceito de pessoa ocidental: seu passado amarrado a traiçoeiros estereótipos de primitivismo e degeneração não produzirá uma história de progresso civil um espaço para o Socius, seu presente, desmembrado e deslocado, não conterá a imagem de identidade que é questionada na dialética mente/corpo e resolvida na epistemologia da aparência e realidade. Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem negro e nesse ato de violência epistemológica seu próprio quadro de referência é transgredido, seu campo de visão perturbado (Bhabha, 1998, 73).

Podemos refletir sobre a afirmação de Bhabha, e como a maior violência infringida do colonialismo escravagista foi a “colonização epistemológica” ao homem negro. Ele próprio destaca a questão da visibilidade: “Ver uma pessoa desparecida ou olhar para a invisibilidade é enfatizar a demanda transitiva do sujeito por um objeto direto de autorreflexão, um ponto de presença que manteria sua posição enunciatária privilegiada como sujeito” (Bhabha, 1998, 80) pois a não visibilidade e o estereótipo é confrontado pela sua diferença, seu outro. Apagando a auto presença do “Eu” que carrega os conceitos tradicionais e domínio narrativo. A sua presença e imposta pela ausência na possibilidade ou impossibilidade da identidade. Mas talvez o espaço criado na ficção em um produto de larga distribuição como a televisão e sua visibilidade a uma personagem não restrita a visão impositiva do dominante, longe de expressar a cultura negra que sempre foi excluída da corrente cultural imposta, foi um momento de importância para o imaginário de um público que não se enxergava nas representações televisivas, como se a vida de uma negra fosse uma experiência vivida fora da representação. A representação tem um calcanhar de Aquiles e pode-se confundir entre o real, o imaginário e o desejado: “Existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante de diferença e da transgressão perde o fio da especularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada” (Hall, 2003, 339).

Podemos criticar que, mesmo em destaque na série, a personagem Uhura é apresentada com exotismo, uma mulher que com uma vestimenta curta e com um exagero nos acessórios. Retomando a questão sobre o gênero e a mulher, Laura Mulvey:

A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado (Mulvey, 1983, 438).

Nas palavras de Mulvey, a mulher viria a ser o espelho imóvel de seu senhor e marido. Contudo retornando o conceito de História e histórias contadas (ou desconstruídas) pelas artes narrativas, Ranciére destaca que o testemunho e a ficção pertencem ao mesmo regime de sentido: “O real precisa ser ficcionado para ser pensado” (Rancière, 2009,.58). Essa proposição deve ser distinguida de todo o discurso: positivo ou negativo – segundo o qual tudo seria “narrativa”, que aprisiona as posições do real e do artificio em que perdem igualmente positivas e desconstrucionistas. Mas a potencialidade de visibilidade de espaço, tempo e atividade, proporcionam um lugar na ordem vigente pelo menos no imaginário em construção do excluído, e recolocam em causa a partilha do sensível. Entretanto o sistema dominante de representações se apropria, impõem distâncias, derivações, maneiras, reagem as circunstâncias, distinguem suas imagens e “Reconfiguram o mapa do sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais de produção, reprodução e submissão” (Rancière, 2009, 59).

Entretanto sobre a potência do Audiovisual ele afirma: “O cinema (Televisão) é também um aparelho ideológico produtor de imagens que circulam na sociedade e nas quais esta reconhece o presente de seus tempos, o passado de sua lenda ou os futuros que imagina para si” (Rancière, 2012, 14). Entretanto, foi a personagem televisiva de Nichelle Nichols que conseguiu proporcionar a visibilidade da mulher negra na sociedade estadunidense. Existem os direcionamentos ideológicos, na maioria das vezes alienantes como bem apontou Rancière, mas também surgem mensagens que penetram nas questões importantes para uma sociedade igualitária. As questões de raça e gênero infelizmente precisam evoluir muito, como a sua visibilidade e os seus espaços na partilha do sensível. Mas Uhura inspirou e mudou a vida de uma estrela de Hollywood, uma astronauta, entre tantos jovens excluídos que sonhavam apenas na possibilidade de serem reconhecidos como iguais, como seres humanos. Esse olhar em busca de uma igualdade social – ainda muito difícil - e de uma humanização de uma viajante negra em uma nave interestelar pode ser ainda observada em uma novela de Janet Hagan: A Canção de Uhura (Uhura’s Song, 1975). Nessa novela que virou episódio da série, a tenente Uhura canta com ironia acompanhada pela harpa do vulcano Spock, a questionar a sua frieza e falta de romantismo. A letra é direcionada para o cerne da acne:

Oh, aqui na nave Enterprise
Há alguém que está no disfarce de Satanás,
com orelhas e olhos do diabo.
Poderia rasgar seu coração!
Em princípio seu olhar poderia hipnotizar,
E então seu toque seria sedutor.
Seu amor alienígena poderia vitimizar
...
E rasgar seu coração!
E é por isso que as mulheres astronautas temem
Oh mulheres astronautas
Esperem aterrorizadas e exageradas
Para ver o que ele pode fazer.
Oh meninas do espaço, muito cuidado,
Sejam cuidadosas, muito cuidado!
Meninas no espaço, muito cuidado!
Não sabemos o que ele vai fazer. 9

Essa canção tão significativa para a humanização de Spock, quanto para a igualdade de Uhura. Frio, matemático e extremamente calculista, Spock se viu cercado por palavras que miravam um relacionamento que viria a acontecer no filme de 2009, agora com Zöe Saldaña no papel de Uhura.

Conclusão: A fronteira final

A série Star trek abandonou esse mundo de conflitos e criou no espaço sideral a tão desejada igualdade entre os homens e foi além: buscou uma razoável interação com outros tipos de vida. Essa é a questão: todos os seres viventes tinham direito à vida e mais que isso, direito a compartilha-la, seja como for, onde for e de que maneira fosse possível. A produção audiovisual é uma prática social que identifica e insere determinados indivíduos e seus respectivos personagens dentro de uma amplitude social que gera e amplia a sua própria identidade. Stuart Hall (2003) propõe que essa identificação e seus respectivos impactos, relacionam-se diretamente ao que é a sociedade ou seu espelho de intencionalidades. As representações podem sugerir, por conseguinte, diversas proposições tanto do ator que assume uma personagem quanto daqueles outros que lhe rodeiam; elas podem ser reais, imaginárias, desejadas e, quase que predominantemente, estereotipadas, dissecadas nas mais profundas raízes culturais. E isso pode levar à perpetuação do preconceito. A série criada por Gene Roddenberry derrubou e ignorou os estigmas e os preconceitos e ainda fez repercutir em uma sociedade segregacionista as diferenças de classe, raça e nacionalidades. Em 1966, a busca por igualdade racial era algo novo, inusitado e até mesmo subversivo.

A fronteira final dessa humanidade de Roddenberry começou exatamente no momento em que as diferenças devem ser necessariamente atenuadas, sobretudo porque a verdade está lá fora. Não se trata aqui de diferenças vistas como definidoras de status quo dentro de uma sociedade ou de contendas pela raça, cor ou credo. Roddenberry imaginou um momento em que tudo isso deveria se autodestruir, uma vez que a Enterprise sairia de um mundo humano, demasiado humano, e avançaria rumo ao desconhecido. Para ir à fronteira final, onde nenhum humano jamais esteve, é necessário o tipo mais sólido de integração e de igualdade e, consequentemente, tratar humanos como humanos, pois somos todos terráqueos. Trata-se de futuro e de moldes para o presente. Essa afirmativa não seria exagero.

Deve-se atentar nesse sentido para a invenção do celular, inspirada, por exemplo, nos comunicadores usados pelos tripulantes da USS Enterprise – é o que disse o executivo da Motorola, Martin Cooper: “De repente, ali estava o capitão Kirk falando em seu comunicador, sem precisar discar! Para mim, aquilo não era fantasia, mas um objetivo” (Nogueira e Alexandria, 2016, 7). Das tecnologias à universalização da humanidade, contra todas os estorvos criados por nós mesmos - todas eles sem o menor sentido -, a série mostra a possibilidade da consciência harmoniosa, da união de todos os indivíduos em prol de um bem comum e da cooperação internacional. Eugene Wesley Roddenberry, ou simplesmente Gene, era o visionário que desafiou o comportamento da sociedade estadunidense, de suas produtoras e criou, aos moldes da Caravana (Wagon Train, 1957 e 1965), uma frota para as estrelas. Contrariando o imaginário e a realidade estadunidense, a presença de Uhura (mulher africana, protelada pelo machismo e pela cor), Sulu (asiático-americano ironizado e ridicularizado nas produções fílmicas), Checov (russo, inimigo do Ocidente durante a Guerra Fria), Spock (extraterrestre e mais inteligente que os humanos, o vulcano de vitruvio de Da Vinci) estavam na ponte de comando e os Klingons, de aparência humanoide, mas de estereótipo díspar. Nessa saga, Uhura teve uma das principais funções: oficial-chefe de telecomunicações; isto é, responsável pelos primeiros contatos e pelas relações imediatas com outros viventes.

Notas

1Esse texto é uma rediscussão e atualização de uma comunicação apresentada no GP Ficção Seriada do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso brasileiro de Ciências da Comunicação, sob o título de: Star Trek: Raça e Gênero - Uma canção para Tenente Nyota Uhura em 1966.

2Aqui cabe um comparativo que ainda perdura no imaginário brasileiro, quando situações como essas descritas por Alice Walker se fazem evidentes. “O senhor colonial português não se casava com a mulher africana, conforme implica o slogan convencional do Inter casamento: estuprava-a. Os filhos resultantes dessa relação continuavam legalmente na condição de escravos. (...) Quando os brancos brasileiros dizem que não há racismo no Brasil, porque o branco brasileiro casa com a negra, ou a leva à sua cama, lembrem-se deste famoso ditado popular, que revela a verdade: Branca para casar/Negra para trabalhar/ Mulata para fornicar”. Cf.: Nascimento, Abdias. O Negro revoltado. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982, p. 29.

3The Sapphire Caricature is a harsh portrayal of African American women, but it is more than that; it is a social control mechanism that is employed to punish black women who violate the societal norms that encourage them to be passive, servile, non-threatening, and unseen.” É essa a melhor definição da terminologia, estudada pela Ferris State University. Ver sobretudo o Jim Crow Museum of Racist Memorabila. Cf.: PILGRIM, David. http://www.ferris.edu/jimcrow/sapphire. Tradução nossa.

4Para autora trata-se de “um problema que não tem nome”. Livro lançado no Brasil em 1971 pela editora Vozes. Cf.: Friedman, Betty (1971). A mística feminina. Tradução de Áurea B. Weissenberg. Petrópolis, RJ: Vozes [Edição original: (1963). The feminine mystique. New York: W. W. Norton Company.]

5Il razzismo assolve due funzioni – chiave (tra loro contigue): serve a individuare/additare dei colpevoli (quindi dei nemici) o degli esseri considerati inferiori. Le due funzioni sono contigue e spesso intrecciate: la presunta inferiorità appare spesso conseguenza o causa della colpa. Ad ogni modo, sia l’inferiorità sia la colpevolezza legittimano comportamenti discriminatori (punizioni, esclusione, subordinazione, al limite sterminio)”. Tradução nossa.

6Ver principalmente: Althusser, Louis. Elementos de autocrítica. Lisboa: Iniciativas, 1976.

7http://www.chronicle.com/blognetwork/edgeofthewest/2010 /09/18/i-just-saw-a-black-woman-on-television-and-she-aint-no-maid/ Acesso em 30/01/2021.

8http://memory-alpha.wikia.com/wiki/Mae_Jemison. Acesso em 30/01/2021.

9Oh, on the Starship Enterprise/ There’s someone who’s in Satan’s guise, / Whose devil’s ears and devil’s eyes / Could rip your heart from you!/ At first his look could hypnotize,/ And then his touch would barbarize./ His alien love could victimize.../ And rip your heart from you!/ And that’s why female astronauts/ Oh very female astronauts/ Wait terrified and overwrought/ To find what he will do./ Oh girls in space, be wary, /Be wary, be wary!/ Girls in space, be wary!/ We know not what he’ll. (tradução nossa). Cf.: http://memory-alpha.wikia.com.

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