Capítulo II – Cinema – Cinema

Space in the Cinema of João César Monteiro

O Espaço no Cinema de João César Monteiro 1

Henrique Muga

Centro de Estudos Arnaldo Araújo / Escola Superior Artística do Porto - Portugal

Abstract

The scenarios and décors of the cinematographic work of João César Monteiro are a fundamental dimension of the story, they are the spirit of the themes and the foyer of dramatic situations.
Oscillating between the natural scenery, mostly, and the religiously constructed sets, the space reveals itself as an integral part of the myths that guide cesarean cinema: if the myth of intimacy invites us to the interior, to the inside of the house, to a female home, attracted by its centers - the fireplace, the dining table and the bedroom, the hermetic myth takes us abroad, towards paths to travel, on a journey of death and rebirth.

Keywords: João César Monteiro, Myths, Scenarios, Décors

Introdução

A obra cinematográfica de João César Monteiro mergulha em todos os mitos2 dominantes da modernidade, desvelando-nos o imaginário lusitano e universal dos dois últimos séculos culturais.

Como evidencia o antropólogo e filósofo Gilbert Durand (1993), o séc. XIX passou progressivamente de um prometeísmo extenuado ao mito da intimidade, para acabar ressuscitando uma ampla mitologia hermetista, que se desenvolve ao longo do séc. XX. Aos mitos extrovertidos, transgressores, conquistadores e da busca iniciática de Prometeu, opõe-se o intimismo romântico, o arquétipo do continente e as grandes imagens da noite, das profundidades abismais, da mulher mãe, da mansão, da água, e tudo o que se vincula com a penetração da terra, do ventre digestivo ou sexual, os alimentos e bebidas espirituosas, os subterrâneos. Em termos estéticos, este paradoxo cultural oitocentista manifesta-se na oposição do estilo neoclássico de Ledoux, de Gabriel ou de David, ao estilo Regência, ao rococó e a Boucher. A dialética entre o prometeísmo e o intimismo romântico desperta o mito de Hermes, uma via que põe em causa as categorias e divisões dos séculos precedentes, que elege uma ética do plural e da alteridade, e propõe uma poética do ser duplo, uma estética oximorónica, e que se estrutura em três mitemas: a força do ínfimo e os microcosmos, o mediador que reúne os contrários, e o psicagogo que une um mundo com o outro.

É esta a mitologia que norteia a obra cinematográfica cesariana, na qual o espaço, os cenários e os décors desempenham um papel determinante. Se o intimismo romântico nos acolhe na casa, um espaço de intimidade e de busca iniciática, o hermetismo leva-nos ao outro, à ligação de mundos opostos, convida-nos à viagem, a uma jornada de transformação e renascimento3.

A casa: espaço de intimidade e de busca iniciática

As grandes imagens do intimismo romântico – a noite, a mulher mãe, as profundezas da terra, a mansão – manifestam-se sobremaneira nesta última; a casa, a habitação, o lar, constitui o cenário existencial mais presente nas ações das personagens do cinema de César Monteiro.

São muito diversas as casas habitadas pelas personagens cesarianas, desde as casas populares aos palácios e às fortalezas; há tanto casas urbanas, sobretudo da Lisboa antiga, como casas rurais, em especial do Norte e do Sul do país.

Contudo, todas elas têm uma história mais ou menos longa: entramos em casas medievais, renascentistas, barrocas (o ambiente preferido das personagens cesarianas, um espaço teatral de luz e sombra, banhado pela música de Bach), e oitocentistas; não há casas modernas. As casas cesarianas são “lugares antropológicos” por excelência, no sentido que lhe atribui o antropólogo Marc Augè (2005): são lugares com história, com memórias; são únicos e como tal identitárias; e são espaços relacionais. Voltadas para dentro, são um espaço de intimidade, um interior estruturado pelos três grandes polos de atração da casa apontados por C. Norberg-Schulz (1972): a lareira, o principal centro da habitação desde os antigos, uma zona de proteção maior; a mesa, lugar de encontro da família em forma de círculo; e a cama, lugar onde começa e termina o dia e a vida.

No cinema cesariano, a lareira acende-se sobretudo no aconchego das casas populares; nos palácios, como observa o escritor Baudelaire, não há um cantinho para a intimidade. E são certamente as lareiras das casas vernáculas as que mais se aproximam do sonho da cabana, enquanto raiz axial da função de habitar; como lembra o escritor Henri Baceli, basta escutar, no silêncio do serão, a lareira que crepita enquanto o vento sitia a casa, para saber que, no centro deste círculo de luz, se mora numa casa circular, na cabana primitiva.

As mais ricas imagens da lareira acendem-se nos filmes “medievais”, cinco obras inspiradas em contos tradicionais e cuja ação decorre maioritariamente no nordeste de Portugal, onde a lareira é o centro principal da casa, o lugar onde a família passa a maior parte do tempo, nomeadamente durante os nove meses de inverno; para além da preparação dos alimentos, é à lareira que as pessoas se juntam para passar as longas e frias noites dos meses mais agrestes, antigamente a fiar ou tricotar, a falar de uns e outros ou a contar estórias, atualmente mais a ouvir novelas televisivas em frequente solidão.

Fotograma 1. Veredas, J. César Monteiro, 1977

No filme Veredas (1977) – uma viagem de um jovem casal, desde o nordeste trasmontano até ao litoral português – é-nos mostrada a antiga lareira trasmontana: o fogo encostado junto à parede, com um chupão, e de cada lado um escano (banco corrido de madeira, de costas altas, das quais desce uma mesa de jantar, e que alberga quatro ou cinco pessoas), voltados um para o outro, ladeando as chamas que aquecem e alumiam juntamente com uma candeia a petróleo ou azeite. Bem mais arcaica, medieval, é lareira que acolhe e mata a fome aos dois viandantes a meio do percurso, numa aldeia do alto das serras que separam Trás-os-Montes do Minho: o fogo no centro da cozinha, sem chupão, uma verdadeira cabana.

De igual modo, no filme A Mãe (1979) – um filme da interioridade, cuja história nasce dentro da comunidade e é por ela representado – entramos numa lareira com o fogo sem chupão, com as lares onde se penduram as caldeiras ou panelas e um murilho de ferro, que para além de suporte à lenha (os rachos), é também mesa de refeição, onde se pode pousar uma tijela, um copo ou uma garrafa enquanto se vai comendo.

Fora das casas tradicionais rurais, a lareira apenas se acende na sala de uma antiga casa lisboeta, na casa de João de Deus d’ A Comédia de Deus (1995) – uma comédia em espiral sobre a educação sentimental. Trata-se de uma lareira ritualística, um fogo que aquece o corpo da adolescente na troca da roupa profana pelas vestes sagradas; mas é também um fogo destruidor, que acabará por reduzir a cinzas o Livro dos Pensamentos, onde João de Deus coleciona pelos púbicos de jovens raparigas, acompanhados de citações.

Outro centro maior da casa, a mesa das refeições, é, nas casas antigas, rurais e urbanas, uma extensão da própria lareira ou do fogão onde se prepara os alimentos. São casas onde a especialização funcional burguesa não separou a lareira e a cozinha da mesa das refeições; a sala de jantar, que acabou por se instalar, é apenas um espaço de representação, utilizada esporadicamente em dias de festa ou para receber as visitas e os convidados.

Mas em todas as casas cesarianas, a mesa é habitualmente o foyer de uma rica experiência sensorial de odores e sabores, a plataforma de uma experiência de transubstanciação.

A mesa d’ O Bestiário ou Cortejo de Orfeu (1995) – título homónimo da obra do poeta modernista Guillaume Apollinaire, de 1911 – situa-se na cozinha, em frente ao fogão: João de Deus recebe Rosarinho para um jantar de “arroz devidamente malandrinho”; para além da citação de um dos poemas do Bestiário de Apollinaire (La mouche), a meio da refeição, João de Deus apanha uma borboleta esvoaçante por cima da mesa, coloca-a dentro do copo de vinho, e bebe-o de um trago.

Singular é a mesa baixa, de tipo oriental, que encontramos na casa zen de João Vuvu do Vai e Vem (2003): situada no centro de uma sala de um vazio límpido, paredes brancas e chão alcatifado de encarnado, a mesa convida-nos a sentar-nos sobre nós próprios. Nela, João Vuvu serve à candidata a mulher-a-dias, Jacinta, um prato de papas, enquanto falam sobre a escravatura, o holocausto, Deus, as respetivas experiências sexuais, etc.

Mais frugal é a mesa da casa feudal do Veredas (1977): num enquadramento descentrado, tenso, a bem recheada mesa acolhe várias personagens, incluindo um padre, que preside à purgação da culpa pelo assassínio de um servo.

Para além da função alimentícia, a mesa cesariana é recorrentemente um altar cerimonial e de busca iniciática. Assim, a mesa da ceia no final do Silvestre (1981) – nome adotado por Sílvia quando decide ir à guerra para salvar a honra da mansão, violada por um diabo disfarçado de peregrino, durante a ausência do pai – é o palco do pedido da mão de Sílvia pelo diabo, agora disfarçado de fidalgo, e da revelação dos segredos, que conduzem à morte do diabo; a sua função e configuração em U, num enquadramento centralizado, evoca o imaginário da última ceia de Cristo. Depois da ceia, Sílvia atravessa a porta e projeta-se no mundo cósmico das estrelas da Via Láctea.

Fotograma 2. Silvestre, J. César Monteiro, 1981

No filme A Comédia de Deus (1995), todo ele atravessado por rituais iniciáticos, destacam-se duas mesas-altar. A primeira serve de apoio à iniciação de Rosarinho nos vários estilos de natação, ou a introdução ao processo de purificação: vemo-la em fato de banho, deitada de barriga para baixo, e depois para cima, sobre uma mesa coberta com um colchão de ar vermelho, e João de Deus, de pé, dirigindo majestosamente os seus movimentos, síncronos com o ritmo sensual da música wagneriana. O segundo altar é uma pequena mesa de madeira quadrada, com uma vela acesa em cada canto, encostada a um mural com anjos rafaelinos; é neste altar que João de Deus serve a Joaninha uma bebida espirituosa, e mais tarde o gelado feito com o leite decantado do seu próprio banho, um gelado branco servido num búzio azul-celeste, qual Afrodite renascida da união da água com o céu; é o clímax do processo de transformação de jovem rapariga em mulher-mãe.

Fotograma 3. Recordações da Casa Amarela, J. César Monteiro, 1989

O último centro da casa, a cama, o quarto, não é o espaço mais habitado pelas personagens cesarianas. Contudo, há dois quartos marcantes na vida de dois filmes. O primeiro é o quarto que João de Deus, do Recordações da Casa Amarela (1989), ocupa numa barata pensão, na zona antiga e ribeirinha de Lisboa – um emblema da Lisboa decadente e salazarenta dos finais do séc. XX, ou uma imagem do abandono dos idosos, num país onde “morrem como cães”. Uma cama com colchão de palha, encostada à parede, uma mesinha de cabeceira, um guarda-fatos e uma pequena secretária, com uma varanda voltada para o Tejo. Perante a queixa de ter sido atacado por percevejos, a dona da pensão, a Dona Violeta, muito ofendida nega tal possibilidade, que a “casa não é velha, mas sim barroca, … nela viveram marqueses e marquesas e príncipes de Portugal”. Aqui vive João de Deus entregue à música de Schubert e na companhia da imagem do cineasta Stroheim colada na parede, até ser posto na rua por atentado contra o pudor da filha da dona da pensão.

O outro é o quarto de núpcias do As Bodas de Deus (1999), na Quinta do Paraíso (o Palácio da Bacalhoa ou dos Albuquerques – um palácio renascentista, originalmente propriedade da Casa Real Portuguesa no séc. XV, e adquirido no séc. XVI por Brás de Albuquerque, que mandou construir a maior parte do que hoje existe, nomeadamente uma harmoniosa “casa de prazer” ao lado de um grande tanque, e um belo labirinto que se prolonga na quinta que produz um dos melhores vinhos nacionais). É nesta Quinta do Paraíso, previamente adquirida pelo milionário João de Deus, que fica o quarto das suas núpcias com a princesa Elena. É um quarto amplo, paredes brancas, e com uma suite; encostada à parede, uma imponente cama de madeira escura, em estilo colonial, coberta por um branco lençol e ladeada por dois candeeiros sobre as mesinhas de cabeceira. É neste leito que ocorre a cena mais pornográfica de todo o cinema português, observa Bénard da Costa (2010), uma cena de cama chocante, pelo confronto entre um belo corpo feminino (que se oferece dizendo “comei, este é o meu corpo”) e um corpo masculino de magreza e idade obscenas, mas salva da abjeção por uma prodigiosa mise en scéne. Quando João de Deus acorda do son(h)o, tem ao seu lado o travesseiro, já a princesa e os milhões iam longe.

Sendo um espaço voltado para dentro, a casa cesariana é naturalmente um espaço feminino, é o lugar das mulheres. Tal como a casa poética de Bachelard (1996), no equilíbrio íntimo das paredes e dos móveis, tomamos consciência de uma casa construída e habitada pelas mulheres; os homens só sabem construir as casas do exterior.

Assim acontece na casa-fortaleza do À Flor do Mar (1986) – o Forte de S. João da Barra no Algarve, uma estrutura de planta quadrangular em forma de estrela, com quatro baluartes, construído em meados do séc. XVII, no contexto da Guerra da Restauração da Independência – onde vivem apenas mulheres, e que acolhem no seu seio um desconhecido marinheiro ferido, evocando o sonhado marinheiro pessoano. Também no Silvestre (1981), a casa de Don Rodrigo, com a sua partida em viagem, fica entregue às filhas, com a missão de a proteger. A casa cesariana é um ventre materno: os recorrentes espelhos ovais que cobrem o interior de várias casas, acolhem o rosto das jovens raparigas, transportando-as para uma concha maternal, para uma morada celeste.

A interação entre este espaço íntimo e o exterior é recorrentemente simbolizada pela porta. A janela não é normalmente uma abertura para o exterior, não é um miradouro de projeção no exterior; a luz que irradia serve sobretudo para desmaterializar os corpos em contraluz. É a porta, um pequeno deus dos umbrais (Bachelard, 1996), que liga o interior com o exterior, uma ponte entre mundos diferentes, um lugar de chegadas e de partidas.

Culminando o topo de dois lanços de escadas, a porta nobre da Quinta do Paraíso (As Bodas de Deus, 1999) é um espaço cerimonial onde João de Deus recebe o casal de príncipes. Também a porta da casa de João Vuvu (Vai e Vem, 2003) é o lugar das boas-vindas, onde ele recebe as candidatas a mulher-a-dias. Pelo contrário, a porta da fortaleza habitada por mulheres (À Flor do Mar, 1986) é o lugar das despedidas e da partida do marinheiro. No Silvestre (1981), quando se abre a porta da casa onde teve lugar a ceia triunfal, entra um ofuscante feixe de luz e abre-se uma entrada no céu estrelado onde Sílvia se projeta.

O caminho e a viagem

Em oposição ao intimismo romântico que nos atrai para o interior da casa, o hermetismo conduz-nos para o exterior, para caminhos a percorrer numa viagem de transformação e renascimento.

Toda a obra cinematográfica de João César Monteiro é intensamente percorrida pelo tema da Viagem, seja na sua forma de itinerário físico durante o qual, por entre dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento ou do pecado para a salvação (a qual pode ser motivada por razões externas ou de natureza existencial), seja na sua forma mental, a viagem que se desenrola no tempo e conduz à passagem de uma idade para outra.

As viagens cesarianas decorrem maioritariamente na cidade de Lisboa, sobretudo na sua zona antiga; para além destas viagens urbanas, há também viagens no país profundo, e viagens imaginárias, como aquela que nos convida a partir para o Polo Norte.

O filme onde a viagem faz caminho com maior fulgor é certamente o Veredas (1977), como o próprio título sugere e o quadro do genérico, intitulado Convite à viagem, confirma. Trata-se de uma viagem de um jovem casal desde o nordeste trasmontano até ao litoral português, fugindo à ameaça demoníaca do pai de Branca Flor, após ter dado a mão desta ao viandante. Depois da travessia do inverno (ou o inferno) por entre a neve e o nevoeiro do norte do país, ascendem ao alto da serra e pairam sobre as nuvens. No seu encalço segue o diabo, até desistir da perseguição depois do encontro com um monge nas ruínas do Mosteiro de Santa Maria das Júnias (situadas no concelho de Montalegre, e que remontam a um antigo eremitério pré-românico, isolado num vale estreito e isolado, cujos monges viviam asceticamente da pastorícia). Quando o casal atravessa o rio Lima (o rio da morte e do esquecimento, de acordo com a mitologia popular), entram no domínio do sagrado, das águas tranquilas e purificadoras da ilha dos amores, donde saem transformados. Numa bifurcação do percurso somos levados para os espigueiros do Soajo, um Areópago onde a Deusa Atena discursa apelando às Fúrias para abandonar a cólera e aceitar a reconciliação, um repto esquiliano à fundação de uma nova justiça ordenada pela razão e submetida ao interesse democrático. Segue-se o Alentejo, uma travessia da humilhação e da dor: é junto ao poço, elemento de comunicação com o mundo dos mortos, que é abatido o homem que puxava a nora, e que o viandante se esquece de Branca Flor e se separam. A viagem termina junto à cascata de água fecundante, onde o viandante ressuscita, erguendo-se por entre as pernas de Branca Flor, ela própria já renascida. Em suma, uma viagem ao encontro do espaço e do tempo profundos, uma reflexão sobre as raízes culturais portuguesas, no pressuposto de que o arcaico e o essencial coincidem.

Fotograma 4. Veredas, J. César Monteiro, 1977

O Recordações da Casa Amarela (1989) é também uma viagem de morte e renascimento, uma deriva por lugares-outros4 da Lisboa antiga. O travelling inicial mostra-nos esta Lisboa, a partir do Tejo, desde o Terreiro do Paço até à Madre Deus, ao mesmo tempo que ouvimos em off um texto de Céline (Morte a Crédito), desvelando o sentir da cidade a partir de dentro, dos bairros decadentes e moribundos. Após o atentado à honra da filha da dona da pensão onde vivia, João de Deus é expulso e remetido para o meio dos sem-abrigo, dos sem-lugar, alimentando-se da sopa dos pobres. Porém, com o dinheiro que encontrou numa boneca de trapos de uma prostituta amiga que morrera, compra uma farda de oficial de cavalaria e entra no quartel militar, com o objetivo de preparar uma marcha sobre a sede da Assembleia da República, o Palácio de São Bento. Tamanha ousadia abre-lhe a porta do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda. O seu Pavilhão de Segurança, um corpo retangular de entrada e apoio, com as paredes amarelas, e um vasto corpo circular, foi construído em 1896 por ordem do diretor do hospital, o médico-psiquiatra Miguel Bombada, e é um edifício vanguardista (com o arredondamento das arestas em bancos, portas e janelas, para evitar contusões, proporcionar mais resistência e facilitar a limpeza), um dos seis edifícios no mundo projetado sob a filosofia do panótico de Jeremy Bentham, e o único com o pátio a descoberto, para os doentes permanecerem ao ar livre durante o dia, poderem caminhar no claustro circular ou no labirinto do jardim, melhorando assim o seu estado de saúde e evitando a transmissão de doenças. Atualmente alberga um museu psiquiátrico, acumulando memórias do seu tempo de vida, incluindo a maior coleção nacional de arte outsider ou arte bruta.

Aqui, João de Deus reencontra o velho Lívio – um reencontro do corpo com a alma separada no Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970) – que o orienta na saída do hospital, proferindo sábias palavras, como “a única coisa que conta é aprenderes a administrar o teu estado de simplicidade”, que lhe oferece todo o seu dinheiro, e lhe abre a porta da liberdade, com um profético conselho “Vai, e dá-lhes trabalho!”. E é da profundeza dos infernos que o vemos emergir transformado no corpo de um Nosferatu envolto numa nuvem de fumo.

Fotograma 5. Recordações da Casa Amarela, J. César Monteiro, 1989

O filme As Bodas de Deus (1999) continua esta viagem de transformação, em nova deambulação por diversas heterotopias da Lisboa antiga. É o parque com árvores centenárias onde o vadio João de Deus recebe do Enviado de Deus uma mala cheia de “bago” e o transforma num distinto e milionário Barão. É o convento medieval onde João de Deus confia aos cuidados das Irmãs a adolescente que salvara do afogamento no lago do parque. É a Quinta do Paraíso onde celebra a noite de núpcias com a princesa ganha ao jogo. É o Teatro Nacional de São Carlos, onde durante a Traviata João de Deus lança o caos e destrói os bonecos presidenciais. Após a traição da princesa que lhe rouba os milhões e o abandona após a noite de núpcias, e na sequência da descoberta de material de guerra na quinta, João de Deus vai de novo dar com os costados no mesmo hospital psiquiátrico, onde reencontra o Enviado de Deus, que já não o reconhece e o expulsa também. Segue-se a prisão; é nesta etapa final de um “estranho caminho” bressoniano, que reencontra Joana, a jovem que ele salvara do afogamento, qual Ariadne que lhe abre o caminho da liberdade e do amor puro.

A conclusão das viagens de João de Deus é uma fuga para o Polo Norte, no Le Bassin de J. W. (1997) – filme cujo mote, epigrafe e âncora é o sonho confidenciado pelo amigo, crítico de cinema, Serge Daney, no qual John Wayne mexia maravilhosamente a bacia no Polo Norte. É o sentimento de exclusão por parte do país que é um logro, que não lhe dá sequer “espaço para cair morto”, que leva Max Monteiro a partir, num burro e guiado por Ariadne, para o Polo Norte,

espécie de não-lugar que é ao mesmo tempo todos os lugares do mundo (…), último e único refúgio para uma personagem que escolhe autoexilar-se e olha para o que deixou atrás numa mescla de condescendência e desprezo profundo” (L. Oliveira (2010, p. 89).

Desta vez não são outros que o expulsam, é ele que os condena a ficar.

Fotograma 6. Le Bassin de J.W., J. César Monteiro, 1997

É do convite de Elói, um velho marinheiro, que nasce a viagem (n´O Último Mergulho, 1992) que o jovem Samuel, preparado para se atirar ao Tejo, faz com ele durante dois dias e duas noites por Lisboa em festejos solsticiais do Santo António. É uma deambulação pela cidade antiga em festa, subindo e descendo as escadas das ruas que galgam as colinas, entrando nos bailaricos dos bairros populares, mergulhando nas esplanadas e boîtes. Trata-se de uma viagem de despedida para o velho marinheiro, uma fuga à vida consumida (previamente preparada com a bela dança dos sete véus), e de uma salvação pelo amor para o jovem Samuel.

A natureza deambulatória desta viagem expressa-se na própria estrutura narrativa do filme. Em resposta a R. Silva (1992, p. 362) sobre o porquê do Bach no final deste filme, João César Monteiro explica: “Porque a construção do filme é em espiral. A espiral é um bocado a linha da vertigem, do redemoinho. É uma linha barroca por excelência. Não tem princípio nem fim. É como um pintelho (pintelho feminino) que se desenrola, e eu ando à procura dessas coisas. É como o fio de Ariadne. O pintelho, em si, não me interessa muito. Interessa-me como fio de Ariadne.”

A última e derradeira viagem que César Monteiro nos propõe é uma viagem reflexiva ao interior de si próprio, metaforizada através de um Vai e Vem (2003) que João Vuvu faz no autocarro 100, entre a sua casa e um jardim público (o Príncipe Real, onde encontra a proteção do cósmico cipreste, cuja enorme copa circular constitui uma aconchegante mandala), um vai e vem entre o passado e o futuro. Primeiro é Jacinta que lhe fala de um antigo e velho namorado, com o qual tinha uma relação debochada, orgias sexuais e depois a obrigava a ler poemas (referia-se a João de Deus, obviamente). Depois é próprio filho que o retrata:

O pai é a pessoa mais conservadora e reacionária que já conheci. (…) Mas admito que nos enganou a todos e, de tal modo nos enganou, que nem sequer se esqueceu de se enganar a si próprio.

E é no contexto da conversa com o filho sobre as feridas que este guarda da prisão, que Vuvu nos dá a imagem da grande viagem:

Haverá sempre cães que ladram, mas a caravana há-de sempre passar. Damos a volta ao mundo, damos a volta à vida, e serão impercetíveis as cicatrizes que o tempo sarou.

Trata-se de um vai e vem entre João César Monteiro personagem, realizador, pai, um tempo entre a vida e a morte, uma procura proustiana do tempo perdido ou a verdadeira viagem da descoberta. Aliás, o vai e vem é uma constante ao longo de toda a sua obra, na qual, comenta Bénard da Costa5, as personagens, os temas e as músicas vão e vêm como as ondas do mar e o movimento dos corpos.

Os caminhos percorridos no cinema cesariano são trajetos labirínticos, deambulantes, são percursos em forma de espiral, à imagem da galáxia que habitamos, tal como é realçado através da recorrente imagem da Via Láctea: no plano final do Silvestre (1981), Sílvia contempla e funde-se com o céu estrelado e serpenteado pela Via Láctea, e diz “agora estou sozinha diante das estrelas!”; e é com a Via Láctea que começa A Comédia de Deus (1995), anunciando o paraíso do (leite) gelado, e As Bodas de Deus (1999). O nome diz tudo (Chevalier and Gheerbrant, 2010): “Láctea”, por ter sido formada pelo leite derramado no céu; “Via”, porque aparece como um lugar de passagem, ligando o mundo terrestre e o mundo divino; simboliza o caminho dos peregrinos, dos místicos, dos exploradores de um plano a outro do cosmos, de um nível ao outro da psique; a sua forma espiralada, evoca a união entre o mundo do movimento e a imóvel eternidade.

Assim são os caminhos cesarianos, caminhos que nos voltam para o outro (os pobres, os velhos, os sem-abrigo, os loucos) e que nos levam ao interior de nós mesmos, jornadas de transformação guiadas pela anima da Mãe dos homens, cruzadas progressistas em direção ao império espiritual.

Notas finais

1Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04041/2020

2Mais do que simples reverso representativo de um rito, como tendem a defini-lo os etnólogos, ou uma simples forma de linguagem, uma maneira de fazer circular significações na sociedade, como o descrevem os semióticos, o mito é, na conceção antropológica de G. Durand (2007), um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, um sistema que, sob o impulso de um esquema, tende a constituir-se em relato. Tal como o arquétipo promove a ideia e o símbolo engendra o nome, o mito promove o relato histórico e lendário, o sistema filosófico e a doutrina religiosa, expande-se em simples parábolas, contos ou fábulas e, finalmente, em toda a narrativa literária, ou ainda se incruste de acontecimentos existenciais ou históricos.

3Esta dialética entre o intimismo e fechamento versus a abertura e movimento, é refletida na imagem do “espaço existencial” do arquiteto e teórico da arquitetura C. Norberg-Schulz (1972), um sistema relativamente estável da imagem do ambiente, e estruturado por três elementos: centro e lugar; direção e trajeto; área e domínio.

4De acordo com M. Foucault (1984), os “lugares-outros”, as heterotopias, são lugares que se relacionam com todos os outros lugares, mas que contradizem todos os outros. São espécies de utopias realizadas, nas quais todos os outros sítios reais podem ser encontrados e são, simultaneamente, representados e contestados ou invertidos. No Recordações da Casa Amarela são visitadas sobretudo as heterotopias do desvio.

5Depoimento registado no DVD do Vai e vem (Integral João César Monteiro, Madragoa Filmes, 2003).

Bibliografia

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